“A QUESTÃO DOS MEDICAMENTOS”: uma análise acerca do uso e consumo de medicamentos entre crianças nascidas com a Síndrome Congênita do Zika vírus em Recife/PE

“THE ISSUE OF MEDICINES”: an analysis of drug use and consumption among children born with Congenital Zika virus Syndrome in Recife/PE

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Ana Claudia Knihs de Camargo*

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n23.48105.p251-270


 

Resumo

Neste trabalho[1], procura-se refletir acerca do uso e consumo de medicamentos entre as crianças nascidas com a síndrome congênita do zika vírus em Recife. A partir das trajetórias de três “mães de micro”, Deisy, Paula e Cecília,[2] será feita uma análise de perspectiva diacrônica, desde que as conhecemos, ainda em 2016, até os dias atuais, levando em conta a centralidade do tempo enquanto um elemento diretamente ligado à experiência adquirida com a prática do cuidado diário. Assim, as narrativas dessas três mães nos mostram que os medicamentos são um fato social total no contexto da epidemia, e suas histórias têm muito a nos contar sobre as práticas de manejo com a biomedicina e com o Estado, evidenciando novas facetas de como os medicamentos operam no contexto da epidemia, da deficiência e da biomedicina na capital pernambucana.

Palavras-chave: Síndrome Congênita do Zika Vírus; Deficiência; Medicamentos; Maternidade.

 

Abstract

This paper aims to reflect on the use and consumption of medicines among children born with Congenital Zika Virus Syndrome in Recife (Brazil). From the trajectories of three “micro mothers”, Deisy, Paula and Cecília, a diachronic perspective analysis will be made, since we met them, still in 2016, to the present day, taking into account the importance of time as an element directly linked to the experience gained with the practice of daily care. Thus, the narratives of these three mothers show us that medicines are a total social fact in the context of the epidemic, and their stories have much to tell us about management practices with biomedicine and the state, highlighting new facets of how medicines operate in the context of the epidemic, disability and biomedicine in the Pernambuco capital.

Keywords: Congenital Zika Virus Syndrome; Disability; Medicines; Maternity.

 

Apresentação

 

Era final de uma manhã de outubro de 2016, o relógio marcava quase doze horas. Estávamos[3] saindo de uma clínica de reabilitação no Recife, capital de Pernambuco, após passarmos a manhã acompanhando a rotina de fisioterapia de algumas das crianças que conhecemos em nossa primeira incursão a campo. Ao lado de fora da instituição, conversávamos com uma das “mães de micro” – como se autodenominavam as mães de crianças nascidas com a Síndrome Congênita do Zika vírus (SCZV) – que havíamos conhecido naquela semana e, após ficar acordado que lhe daríamos carona até seu próximo destino, esperamos juntas o carro do aplicativo Uber. Durante a espera, avistamos Deisy, que parou para cumprimentar a primeira mãe e logo se apresentou para a nossa equipe. Deisy vinha com um sling amarelo-ouro preso em sua filha, Laura, também nascida com a SCZV. Estava com pressa, e logo nos contou que havia passado a manhã inteira tentando resolver a “questão dos medicamentos”. Deisy decidiu se juntar a nós e fomos juntas de carro até a ONG que ambas as mães frequentavam.

            Ao final daquela tarde, em um dos corredores dessa ONG, encontramos novamente Deisy, que havia acabado de ser entrevistada. “Depois de um dia como eu tive hoje, foi ótimo falar. Eles ficaram me mandando de um lado a outro hoje cedo”, disse, completando que gostava de dar entrevistas por “razões psicológicas”. Nos contou que tinha passado por quatro lugares diferentes naquela manhã. A “questão dos medicamentos”, que a mãe vinha tentando resolver era permeada por papéis e burocracias. Precisava estar atenta a assinaturas, documentos, laudos médicos. Com a receita em punho, uma pasta de papéis na mão e a criança nos braços, Deisy ia contornando os serviços e trâmites para garantir que sua filha tivesse acesso aos medicamentos prescritos em sua receita médica - que, juntos, somavam setecentos reais mensais, e até aquele momento, eram adquiridos por meio da renda da própria família.

Mais cedo, ainda no carro, Deisy havia comentado conosco que andar de Uber era “lazer” para as “mães de micro”. Após tantos trajetos a pé, migrando de ônibus em ônibus, indo atrás não só da questão dos medicamentos, mas de tantas outras questões, como a das fisioterapias, das consultas médicas, exames e suas respectivas burocracias, andar de carro era a possibilidade de um breve momento de descanso.

 

Introdução

 

Este artigo é fruto de uma pesquisa de iniciação científica empreendida no âmbito do grupo “Microcefalia, deficiência e cuidados: um estudo antropológico sobre os impactos da Síndrome Congênita do Zika vírus no estado de Pernambuco”, ligado ao Departamento de Antropologia (DAN) da Universidade de Brasília, e coordenado pela professora Soraya Fleischer. Desde 2016, o grupo tem feito pesquisa etnográfica na capital pernambucana com aproximadamente uma dúzia de mães e crianças nascidas com a Síndrome Congênita do Zika vírus (SCZV), acompanhando-as presencialmente com uma frequência semestral.

O primeiro contato das pesquisadoras do grupo com as “mães de micro” de Recife se deu em outubro de 2016. Desde este primeiro momento, nomes comerciais de medicamentos como Depakene, Keppra, Frisium, Berotec etc. eram constantemente acionados pelas mães em suas narrativas. Assim, ficava evidente que os medicamentos não se restringiam apenas às prescrições médicas destinadas às crianças. Ao longo dos três anos de pesquisa etnográfica realizada em Recife/PE, os relatos sobre medicamentos foram continuados, de forma que se ouvia constantemente nomes de compostos ativos, de farmácias, preços, quantidades, formas de uso, assim como críticas, opiniões e desabafos. Ficava cada vez mais claro, então, que os medicamentos eram centrais e onipresentes na realidade daquelas famílias. O relato de Deisy apresentado acima, que se deu na primeira incursão do grupo a campo, denuncia questões práticas enfrentadas pelas mães para ter acesso aos medicamentos prescritos, como burocracia, dificuldade financeira e penosa circulação pela cidade.

            Para além das dimensões prática e técnica presentes nos medicamentos, não se pode deixar de apontar que eles têm uma construção simbólica de grande impacto na vida das “mães de micro”. Em um contexto onde não se fala em cura, surgem como uma promessa biomédica de alívio dos sintomas mais críticos, materializando uma possibilidade de maior qualidade de vida e bem-estar, tanto para as crianças quanto para suas cuidadoras. Os medicamentos são multifuncionais nesse sentido, sendo utilizados para reduzir o choro intenso, acalmar a criança, aliviar os espasmos e, principalmente, diminuir a frequência das crises convulsivas.

            A tarefa de cuidado intenso e diário, ao longo dos anos que se passaram desde o nascimento das crianças, fez com que as mães de micro criassem novas noções de experiência, conhecimento e técnica em relação ao uso das tecnologias biomédicas - onde se situam os medicamentos – concebendo um tipo particular de “ciência doméstica” (DINIZ, 2016b).  Logo, tornou-se usual que posologias fossem reduzidas, horários passassem a ser alterados, ou tipos de drogas fossem combinados. As mães constantemente mediam as posologias prescritas com a possibilidade real do consumo destes medicamentos pelas crianças, no que diz respeito às viabilidades financeiras daquele mês, mas também do tempo e das intensas agendas das famílias, além de outros empecilhos que poderiam surgir com o uso – ou a recusa – dos medicamentos.

Cabe utilizar-se os medicamentos como um “atalho etnográfico” (FLEISCHER, 2012), sendo esta uma estratégia que permite conhecer distintas camadas da vida dessas famílias, desde a relação das mães com os profissionais e serviços de saúde, a, inclusive, suas próprias concepções de saúde e doença. Sabe-se que as “mães de micro” são as principais cuidadoras das crianças e, também, as grandes responsáveis por administrar os medicamentos a seus filhos na rotina doméstica. Por este motivo, este trabalho é uma primeira tentativa de chamar atenção para a importância dos fármacos no cenário da SCZV, visto que, enquanto “atalhos etnográficos” (FLEISCHER, 2012), conhecer o fluxo dos medicamentos neste contexto é ter acesso à grande parte da dinâmica da vida e dos percalços destas mulheres, crianças e famílias. Cabe lembrar, ainda, que as principais atingidas pelo vírus Zika foram mulheres negras, nordestinas e de baixa renda (DINIZ, 2016a), de forma que os medicamentos no cenário da Síndrome Congênita do Zika vírus estão imbricados tanto em uma discussão de infância, saúde e deficiência, mas também de gênero, raça e classe. Retomando o que Deisy nos ensinou no início deste trabalho, a “questão dos medicamentos” suscita diversas outras questões.

Minhas funções enquanto autora deste artigo foram as de sistematizar, organizar e analisar os dados coletados pelas minhas colegas, de modo que este não deixa de ser um esforço coletivo, um trabalho em grupo que não teria sido possível sem as outras integrantes que compartilharam[4] suas próprias reflexões e experiências em campo. Não foi necessário utilizar roteiro ou entrevistas focadas na temática dos medicamentos, visto que esse era um assunto constantemente abordado pela iniciativa das próprias mães.

Na análise dos dados, a perspectiva diacrônica foi importante para englobar todo o material relacionado aos medicamentos durante as cinco temporadas vividas em campo, considerando o que mudou em suas trajetórias nesses três anos de cuidado. Assim, este recorte temporal também foi um critério utilizado para escolher as três mães apresentadas ao longo do trabalho, Deisy, Paula e Cecília, três “mães de micro”, que possuíam registros referentes a medicamentos em todas as cinco temporadas da equipe na cidade.

 

Quem são Deisy, Paula e Cecília?

 

Deisy, a mulher apresentada no início deste trabalho, é branca, com cerca de 30 anos, e mãe de quatro crianças além de Laurinha - sua filha caçula de um ano nascida com a SCZV. “Onde eu chego, eu vou logo fazendo amizade”, explicou Deisy, ao definir-se como uma pessoa comunicativa e sociável. Quando a caçula nasceu, a família morava em um bairro de periferia localizado ao sul de Recife. A casa era bastante distante dos circuitos de fisioterapias de Laurinha, exigindo que as duas fizessem quatro viagens diárias de metrô e ônibus. O marido, caracterizado por Deisy como “possessivo e ciumento”, se opunha constantemente à rotina de peregrinação que as duas levavam entre os serviços de saúde e fisioterapias. Apesar de ser pai de todas as crianças, o marido não ajudava no cuidado dos filhos. Essa responsabilidade era atribuída toda à mãe, que também não contava com a ajuda de nenhum outro familiar. O esporádico apoio que recebia, na verdade, vinha do “povo da rua”, como contou, referindo-se às outras mães que frequentavam as mesmas organizações não-governamentais[5] que ela, e compartilhavam de uma rotina similar.

Antes do nascimento de Laurinha, Deisy era comerciante. Era dona de uma pequena loja local que funcionava como padaria, quitanda e mercearia. Após o complicado parto da caçula, pelo qual mãe e filha precisaram ficar cerca de um mês hospitalizadas, o negócio ficou sob responsabilidade do marido e logo foi à falência. “O comércio da gente tinha o valor de duzentos mil reais. Tive que vender por 20 mil. Perdi muito dinheiro”, Deisy lamentava. Após o ocorrido, a principal fonte de renda da família passou a vir do Benefício de Prestação Continuada (BPC) recebido por Laurinha, no valor de um salário mínimo.

Com 22 anos, Paula é a mãe mais jovem do trio. Mulher branca, Paula havia se divorciado do pai de Felipe, o filho caçula nascido com a síndrome, após sofrer violência doméstica e traições conjugais. Mãe de três crianças, considerava-se “sozinha, só com Deus”, mesmo morando com sua mãe, pai e irmão, em um bairro popular situado no noroeste de Recife. Não costumava pedir ajuda a nenhum dos familiares, pois a réplica geralmente era o ditado bíblico “quem pariu Mateus é que o balance.” Assim como Deisy, a responsabilidade do cuidado com todos os filhos era atribuída somente a ela.

Felipe, que à época tinha 1 ano e dois meses, era um bebê grande, com cerca de 9 quilos. A criança, alguns meses mais velha que as outras duas apresentadas, foi uma das primeiras a ser diagnosticada com a SCZV em todo o estado de Pernambuco. Com gastos específicos referentes aos cuidados de Felipe, o BPC também era uma fonte de renda essencial para Paula e sua família.

Cecília, a terceira mãe, é uma mulher negra de 23 anos. Casada com Miguel, pai do primeiro e único filho do casal, Dudu, também nasceu com a SCZV. A família morava em uma pequena casa junto com dois familiares de Miguel, um primo de 22 anos e sua avó, Dona Rosa, de 76. A casa que moravam era localizada no alto de um morro na periferia de Recife, no mesmo bairro de Paula, e o acesso à residência era difícil, possível somente após alguns minutos de subida por escadaria intensa e íngreme. Diferentemente das outras duas mães, Cecília tinha uma rede de apoio mais aprofundada dentro de casa. Seu marido dividia com ela a tarefa de levar o filho às terapias e consultas, enquanto a avó e o primo faziam o possível para contribuir com os cuidados no ambiente doméstico.

Dudu, apesar de compartilhar do mesmo espectro de sintomas comuns às crianças nascidas com a síndrome, não precisava tomar tantos medicamentos, usar sonda ou sequer tomar algum tipo de leite especial. Em comparação com o estado de outras crianças, seus sintomas eram considerados “mais leves” por Cecília e sua família, ainda que Dudu tivesse crises convulsivas semanais e precisasse do estímulo das fisioterapias como os outros “bebês de micro”. Assim como as outras famílias, essa também contava e dependia do auxílio financeiro do BPC.

Dezenas de nomes de medicamentos eram ouvidos nas narrativas dessas mães. Para o leitor deste trabalho, mais importante que conhecer suas exatas denominações comerciais ou de princípio ativo, é saber os tipos dos principais medicamentos consumidos pelas crianças, sendo eles: anticonvulsivos e antiespasmódicos (geralmente de tarja preta), antiácidos, ansiolíticos, relaxantes musculares, broncodilatadores, fluidificantes, além de outros administrados ocasionalmente, como laxantes, analgésicos, antitérmicos e antibióticos.

 

O protagonismo dos medicamentos no contexto da SCZV

 

1 Deisy

“Minha fé é na ciência”, Deisy certa vez confessou. Quando recebeu o diagnóstico da microcefalia, ainda durante a 35ª semana de gestação, pouco se falava sobre SCZV. A notícia veio acompanhada de um conjunto de diagnósticos malfadados: “braquicefalia, microcefalia, mega cisterna magna, ventriculomegalia moderada, espinha bífida sacral aberta, pé direito torto e feto pequeno para a idade gestacional”, explicou a mãe. Os médicos chegaram a sugerir que abortasse, ideia que negou veementemente. Durante a gestação, após o impacto da notícia, Deisy passou por um período que chamou de “estresse emocional”. A boa notícia veio só após o parto de Laurinha, que contrariando o punhado de alterações encontradas no exame pré-natal, nasceu apenas com a microcefalia, depois ligada à SCZV. “Tá ela aí, perfeita hoje”, disse Deisy, “a microcefalia é só um detalhe.”

As consequências de como a síndrome evoluiria ainda eram pouco conhecidas pelos médicos e cientistas, e ainda menos pelas mães. Não havia medicamentos ou tratamentos específicos que cobrissem as necessidades daquele grupo tão complexo, composto por recém-nascidos, que possivelmente precisariam tomar medicamentos por longos períodos, senão para sempre. Os efeitos colaterais que poderiam surtir naqueles corpos após o consumo diário de grande quantidade de medicamentos a longo prazo também eram desconhecidos. O conjunto de medicamentos receitados era basicamente um arranjo sugerido pelos médicos, dada a urgência da diminuição de alguns dos sintomas, e sua eficácia, observada posteriormente pelas mães.

Esta prática, no entanto, tinha suas consequências. Certa vez, quando ainda era recém-nascida, Laurinha teve uma grave crise epiléptica, com espasmos nas pálpebras, febre de 39ºC e vômitos. Após a recusa de atendimento por outros dois hospitais, a criança só conseguiu ser atendida após o contato com sua neurologista. Na emergência, administraram o Berotec, medicamento comumente receitado entre as crianças, tido como polêmico após apresentar preocupantes reações adversas. Laurinha teve uma grave reação alérgica ao medicamento, chegou a precisar ser reanimada, e só pôde voltar para casa após passar 15 dias internada na UTI.

Assim, Deisy ia aprendendo os limites do corpo de Laurinha. A falta de medicamentos destinados a conter suas crises epilépticas poderia causar consequências graves, mas o excesso de medicamentos também poderia ser fatal. Após o ocorrido, Deisy aumentou a quantidade de medicamentos antiespasmódicos, “Ela tomava Sabril. Mas teve a crise e agora toma o Keppra também. O Sabril não tava dando conta de conter as crises dela. Agora toma dois para evitar as crises.” Quando questionada sobre os medicamentos, Deisy tinha respostas pragmáticas sobre seus nomes e formas de acesso. Além dos medicamentos citados acima, a criança também consumia o Aerolin, distribuído na Unidade de Pronto Atendimento (UPA), além dos que precisavam ser comprados, como o Depakene, Sonebon, e Losek, para tratar refluxos.

Devido ao alto custo mensal que o arranjo medicamentoso tinha, Deisy tentava conseguir doações nas ONGs que frequentava. As doações eram uma realidade ambígua e complexa, ainda que a doação de medicamentos fosse comum, e mais bem quista que a doação direta de dinheiro, por exemplo. Os medicamentos talvez fossem enxergados como artigos mais essenciais que outros, tidos com menor suspeita, ou causassem maior comoção. Dessa maneira, Deisy dependia da disponibilidade de medicamentos que poderiam ser encontrados como donativos nas ONGs.

Estava, ainda, tentando pedir o Sabril na “farmácia do governo”. Em sua casa, tinha uma pasta com todos os documentos necessários organizados: a receita médica, papéis explicativos, formulários, além de papéis escritos à mão por uma assistente social, que afirmavam que o medicamento era importante, mas inviável dentro do contexto financeiro de Deisy. Ao falar sobre o assunto, a mãe mostrava as dezenas de medicamentos que tinha em casa, os papéis organizados, as bulas lidas com atenção.

“Está tudo piorando, sabe. Agora é criança com microcefalia, todo mundo fazendo cirurgia, usando e testando novos medicamentos, tendo crises.” Assim contextualizou-nos Deisy, no início de nossa segunda viagem à Recife, em abril de 2017. A quantidade de medicamentos que Laurinha consumia havia aumentado, e as despesas também.

O tempo começava a aparecer como uma categoria importante para a socialização biomédica de Deisy. Conforme percebe-se no trecho abaixo, coletado do diário de campo de Fleischer (2017), Deisy já frequentava consultas, hospitais, exames e ONGs há mais de ano, conhecia profissionais e havia firmado uma rede de convivência com outras “mães de micro”:

 

Com o remédio na mão, Deisy tentava encontrar a informação. “Veja aqui, é 100, visse?”. A outra olhou, “É mesmo. Acho que o meu é 200 mesmo. É mais forte”. “Se é forte demais, a criança até engasga quando a gente dá o remédio”. “É mesmo, na primeira aplicação, a gente já vê que a criança melhora rapidamente. É sinal de que é forte o remédio, né não?”. Eu completei, “Mas minha gente, vejam que é ‘100’ doses e ‘100 mcg’. Uma coisa é quantas vezes você pode usar esse remédio. Outra coisa é a força desse tipo aqui (FLEISCHER, 2017).

O diálogo trazido acima se passou em um dos “Espaços de Convivência”, salas reservadas nas policlínicas para que as mães pudessem descansar, deixar seus pertences, conversar entre as sessões de fisioterapias. Em meio às conversas, as mães trocavam relatos, experiências e aprendizados adquiridos no cuidado com os filhos. A reação de cada remédio, o preço mais barato, o profissional que era mais atento às especificidades de cada criança, todas essas eram informações compartilhadas entre suas redes de convívio (LIRA, 2017). O aprendizado naquele contexto não era, então, uma tarefa solitária – a socialização biomédica vinha acontecendo na vida de todas as “mães de micro”, ainda que cada uma à sua maneira. O conhecimento era trocado e construído em diversos níveis: entre as mães e suas proles nascidas com a SCZV, mas também entre as mães e “suas” pares.[6]

Era perceptível como o conhecimento referente aos fármacos havia sido naturalizado na rotina de Deisy. Muito além de se apropriar somente da linguagem biomédica, Deisy passou a fazer suas próprias avaliações qualitativas acerca dos medicamentos, estabelecendo predileção por alguns que considerava ter bom custo-benefício, analisando quais eram ineficazes, substituindo os de alto custo etc. Não tinha só mais contato com o conhecimento técnico advindo das bulas e documentos, também tinha a rotina e o conhecimento empírico ao seu favor. A observação, diariamente feita pelas mães, continuava sendo uma intensa fonte de aprendizado, que a cada dia se tornava mais refinada e bem fundamentada.

Por outro lado, a questão financeira continuava sendo uma preocupação constante na rotina de Deisy. Apropriava-se não só dos nomes e funções dos medicamentos, mas também de seus preços. Após listar com facilidade todos os 10 medicamentos consumidos pela filha, levando em conta quantidade, preço e duração, Deisy chegou ao valor de mais de dois mil reais mensais. “Laurinha é milionária. Gasta muito e tudo que ela gosta é caro”, lamentou aos prantos.

Ao longo dos meses, os arranjos prescritos mudavam constantemente. Rapidamente, Laurinha já havia passado por três arranjos medicamentosos diferentes, e estava em seu oitavo medicamento, como apresentado por Fleischer (2017) em seu diário de campo:

 

Ela tomava Depakene e Sonebom. Mas a médica viu que não estava ajudando tanto. E, com seis meses, ela passou pro Sabril e o Kepra. Mas não está tomando mais esses dois. Estava com muita crise, não estava ajudando tanto. O organismo, depois de um tempo, se acostuma. Tem que trocar o remédio com um ano. Então, no 18º mês, passou para o Topinamato, Carbamazepina e Frisium (FLEISCHER, 2017. Grifo meu).

No relato acima, o tempo novamente aparece como uma categoria significativa. As expectativas colocadas nos medicamentos passavam a ser relativizadas, de forma que não significavam necessariamente uma completa melhora. Podiam facilmente tornar-se ineficientes, ou desencadear reações inesperadas. Assim, não eram mais objetos estáticos, que significavam algo completamente positivo ou negativo, as diferentes expectativas ali depositadas os tornavam fluídos. Era inevitável para Deisy que cada novo arranjo testado trouxesse também novas esperanças, mas essas logo eram ressignificadas conforme as reações de Laurinha. Cada vez mais ao encontro do que se tem como uma expert por convivência (ANDRADE, MALUF, 2017), Deisy também passou a administrar em Laurinha fármacos, como a vitamina Ômega 3, por conta própria.

Uma das grandes conquistas das ONGs frequentadas pelas mães foi o acesso gratuito ao Keppra, medicamento frequentemente receitado por meio do SUS. “Oxi mulher, e Laurinha tomava né o Keppra, aí quando saiu o remédio pelo SUS, ela teve que mudar o arranjo”, nos contou Deisy. As dificuldades financeiras persistiam, e a mãe ainda não contava com grande ajuda dos familiares. O marido, inclusive, exigia ser reembolsado por Deisy quando comprava algum dos medicamentos de Laurinha.

Há alguns anos e, inclusive, quando engravidou de Laurinha, Deisy já consumia pílulas anticoncepcionais. Foi no ano de 2018, entretanto, que passou a consumir medicamentos psicotrópicos. Em seu laudo psiquiátrico constava o CID 10. “Depressão, transtorno de ansiedade e potencial suicida”, estava escrito no papel. “Agora eu tenho um CID pra chamar de meu!”, celebrava, feliz porque teria acesso ao caro antidepressivo por meio da Farmácia Popular. Apesar da prescrição ser destinada à mãe, o medicamento era dividido com o marido, que se acalmava quando medicado. “Ele tá tomando também. Dei uma [cartela] para ele. Antes, ele nem conseguia subir esse morro aí. Agora vai até lá em cima, só vendo”.

 

2 Paula

“Depois do parto, eu entrei em coma por cinco dias”, explicou Paula. A mãe só soube da microcefalia após o nascimento da criança, quando acordou do coma. Durante a gestação, ao ver médicos conversando à sua revelia, criou suas suspeitas, mas só foi informada do diagnóstico após o parto. Paula precisou tomar um “remédio para segurar” o parto de Felipe, uma das primeiras crianças a nascer com a SCZV em todo o estado. Por esse motivo, à época, pouco se falava de Zika, mosquito, ou microcefalia. “Eu fui fuçar na internet”, completando, “ninguém me explicou nada no hospital. Saí de lá sem saber nada”.

Alguns meses após o diagnóstico, começou a peregrinação pelo novo itinerário terapêutico, a socialização com outras “mães de micro”, médicos e pesquisadores, e o contato com as ONGs e associações. Logo de início, Paula caracterizou-se como uma “mulher balista” (LIRA, 2019), ou seja, que demandava, que falava alto, que tinha uma postura ativa frente aos descasos que frequentemente ocorriam com essas mães.             Neste trecho do diário de campo de Fleischer (2016), uma nova questão aparece:

 

Eu perguntei se ela ia aprendendo sobre o problema de Felipe ao conviver com outras mães e filhos na AMAR e nos serviços por onde circula. Ela explicou que sim. Mas também comentou que achava anti-ético, por exemplo, uma médica que comparou Felipe com outras crianças da mesma idade. “Ela disse assim, ‘Felipe não está fazendo isso, não está fazendo aquilo. Tem criança na idade dele que está caminhando etc.’. Eu falei que Felipe tem os limites dele, tem o jeito dele de ir se desenvolvendo. Eu achei muito errado ela fazer essa comparação, me falar desse jeito” (FLEISCHER, 2016).

O relato ilustra bem a relação tecida entre as mães e seus filhos, assim como entre elas e os profissionais de saúde. Ao tratar dos medicamentos, as mães frequentemente mostravam o próprio incômodo com profissionais que não prescreviam medicamentos personalizados às necessidades da criança ou às demandas da mãe. A comparação entre outras crianças, como trouxe Paula, também não era bem recebida. Ao criarem relações profundas com seus filhos e atentarem-se às subjetividades de cada criança, não aceitavam que recebessem dos profissionais de saúde um tratamento universal, um arranjo medicamentoso generalizado ou comparações parcas.

Após uma intensa crise convulsiva, Felipe desaprendeu a mastigar e passou a broncoaspirar, realidade comum entre as crianças nascidas com a SCZV. A solução dada pelos médicos foi a sonda endogástrica, que exigia novos cuidados especializados, outros tipos de exames e consultas, sem nenhuma expectativa temporal de retirada do aparelho. Os novos gastos preocupavam Paula, visto que o material custava dois mil reais. O hospital que frequentava fazia a cirurgia para colocar a sonda gratuitamente, desde que a família assumisse os custos do aparelho. Assim, o cuidado com o filho ia demandando novas necessidades, que, por vezes, implicavam em tecnologias financeiramente inacessíveis para renda de Paula. Suspender os medicamentos mais caros ou comprar marcas genéricas acabava sendo uma forma possível de não interromper bruscamente o tratamento do filho em detrimento, por exemplo, do pagamento do aluguel ou do abastecimento da despensa da cozinha.

Assim como aconteceu com Laurinha, filha de Deisy, Felipe também esteve internado no hospital em estado grave. A criança recebeu oxigênio direto, e não conseguia respirar sem os aparelhos. Segundo Paula, a crise epiléptica não foi tratada a tempo e o medicamento administrado precisou ser dobrado. Deram-lhe uma dose tão alta que Felipe dormiu durante três dias seguidos. “Ele dormia e dormia, não acordava mais, não. Eu expliquei que ele não tem crises assim, ele tem três crises por mês. E lá, ele tava tendo 30 por dia”.

A frequência das crises epilépticas de Felipe era bastante controlada pelo conjunto de medicamentos que a criança consumia, dois antiespasmódicos de tarja preta, um ansiolítico e o Cannabidiol. O Cannabidiol era obtido por meio de uma amiga, outra “mãe de micro”. Apesar do acesso difícil, os resultados estavam sendo bastante positivos: “Eu acho que está ajudando muito com as crises”, Paula contou, “eu tenho ainda, mas se acabar, não sei onde conseguir, não sei como fazer, não.”

“Tenho que ir lá na cidade entrar com os papéis para o remédio do Felipe, que agora estão dando o Keppra, você tá sabendo?”, perguntou Paula. Após muita luta e reivindicação por parte das mães e de ONGs, o Keppra, um dos medicamentos antiepilépticos comumente receitados para as crianças, passou a ser gratuitamente fornecido pelo programa Farmácia Popular. Neste momento, Paula, sua amiga e os filhos iam à “farmácia do governo”, para apresentar a dezena de documentos necessários, entre eles, a receita médica que atestava a necessidade do Keppra.

Cinco minutos após pegarem a senha preferencial, o nome de Paula foi chamado. Conversou um pouco com a atendente e logo voltou com o semblante desanimado. Havia planejado toda a rotina daquele dia para pegar o papel que lhe garantiria acesso ao medicamento, trouxe seu filho consigo, mas foi informada que faltava um documento. Precisava levar o eletrocardiograma de Felipe, o “eletro”, ou uma declaração de que o exame não podia ser realizado caso não fosse possível. Além disso, as receitas médicas tinham validade de um mês: “Então, ou você vem antes disso ou você precisa ir na médica e renová-la, ok?” explicava gentilmente a funcionária. Neste relato de Fleischer (2017), Paula explica:

 

A médica disse assim: “Se não der certo com esses documentos, você volta aqui e a gente providencia outros”. Agora, me diz, por que já não me deu todos os documentos necessários, né? Por que me fazer ter que voltar lá de novo? Agora, eu preciso descobrir quando essa médica atende lá. (...) O telefone não atende. Vou ter que ir lá para descobrir quando ela está lá atendendo. Aí, eu volto no dia em que ela estiver lá. Ela vai ter que fazer essa declaração e também atualizar a receita. Aí, eu vou voltar aqui (FLEISCHER, 2017).

Dessa maneira, a burocracia surgia como um novo aspecto ligado à questão dos medicamentos na vida das “mães de micro”. A experiência de Paula nos mostra que nem mesmo a receita médica alegando a necessidade do medicamento, daria certeza ao acesso. Precisavam estar sempre alertas a prazos, documentos, carimbos, assinaturas. No caso de Paula, a falta de um exame acarreta toda uma nova peregrinação. Além disso, o programa exigia uma política de renovação dos documentos a cada trimestre. Ou seja, os medicamentos deveriam ser mensalmente buscados na farmácia, e a cada três meses todos os documentos deveriam ser novamente comprovados.

 

3 Cecília

“Foi parto normal. Ele nasceu ótimo. Só tem essa deformação na cabeça mesmo”, descreveu Cecília. A mãe soube do diagnóstico após o nascimento e teve um processo de pós-parto difícil por causa da notícia. Logo, descobriu as ONGs que reuniam outras “mães de micro” e começou a reorganizar suas redes de apoio, a conhecer outras crianças que estavam na mesma situação que o filho, e a criar outras expectativas para a vida da criança.

A mãe explicou que Dudu “não toma remédio como muita criança com micro, não precisa de leite especial, só o ninho mesmo. Não tem mais nada. É tudo normal”. Diferente da maioria das crianças nascidas com a síndrome, os sintomas de Dudu eram bem mais leves, as crises convulsivas não eram rotineiras. O conjunto de medicamentos antiespasmódicos, o mais comum entre os receitados para as crianças, não era consumido por Dudu. O único medicamento que a criança consumia era um relaxante muscular, “a musculatura dele é muito enrijecida”, Cecília apurou.

A função do relaxante muscular, naquele caso, era ajudar no desenvolvimento das terapias, deixando o corpo da criança mais flexível e sensível aos estímulos. Com este medicamento, Dudu também ficava mais calmo, e o trajeto pelo circuito de terapias – que envolvia diversos ônibus, mudanças climáticas, muito barulho – tornava-se menos exasperante. Cecília constantemente distinguia a situação de seu filho com a de outras crianças, que dependiam de maiores tecnologias ou intervenções terapêuticas. Era uma reflexão diferente do discurso de outras mães, que os colocavam como pertencentes a um mesmo grupo por compartilharem das mesmas fases e sintomas, como uma “pequena tribo” (VALIM, 2017). Aqui, vemos o entendimento de Cecília, como relatado por Fleischer (2017):

 

Ah, muitos estão fazendo cirurgia. Você já reparou? Ficou sabendo?” Eu não sabia que cirurgia era essa. “Dizem que muitos estão com hidrocefalia. Então, estão fazendo cirurgia para colocar a válvula e sair o líquido”. Eu fico espantada. “Parece que vai aparecendo mais coisa com o passar do tempo, né?”, comentei e ela concordou. “Coisa nova que vai surgindo. Muitos deles veve doente, muita gripe, veve internado. Dudu nunca foi internado, nunca fez cirurgia, nunca usou sonda. Eu dou comidinha para ele. Faço as verdurinhas e dou para ele. Quando fica gripado, é coisa pouca. Dou remedinho e ele melhora logo” (FLEISCHER, 2017. Grifo meu).

É importante lembrar que a situação de saúde de Dudu, aparentemente menos complicada que a de outras crianças, não tornava a rotina de Cecília menos onerosa que a de outras mães. Eram simplesmente outras demandas, expectativas e distintas formas de cuidado sendo construídas em torno da síndrome. Assim como a rotina de outras “mães de micro”, o itinerário terapêutico de Cecília e Dudu era intenso, uma agenda cheia de terapias reabilitadoras, consultas e exames, que, mesmo com a ajuda do pai e dos familiares em casa, não se fazia menos complexa.

Aquela manhã de terça feira seria diferente para Cecília, sem precisar levar Dudu para terapias ou ao hospital. Deixou a criança sob os cuidados da avó, em casa, e foi caminhando até o posto médico do seu bairro tomar a “vacina para evitar filho”, anticoncepcional injetável aplicado mensalmente. Ali, o medicamento funcionava como um instrumento de autonomia em relação ao seu próprio corpo, conseguindo ter um planejamento familiar que fizesse sentido para ela. Outra gravidez, naquele contexto, intensificaria sua rotina de cuidados e não era parte dos seus planos. Era um medicamento importante a ser consumido, mesmo tendo suas próprias desconfianças: “Eu acho que esse remédio que tomo a cada três meses pode ser um problema, sabe. Vai acumulando dentro da gente, vai ficar tudo preso dentro da gente. Fica preso lá dentro o hormônio. Acho que vai fazendo mal para gente, sabe.”

Conversando durante o trajeto, contou sobre a reunião de seu bairro, que frequentava semanalmente. “Vão 10 mulheres, mais ou menos. É um momento de a gente falar o que está precisando, leite, fraldas, remédio, essas coisas. E ela anota tudo e vai tentar conseguir para gente. Ali a gente fala de como vão as coisas”, explicava. Assim, eram feitos os arranjos de Cecília: ia conhecendo as possibilidades de cada local que frequentava, as organizações e reuniões, ia tecendo novos contatos e caminhos para ter acesso aos medicamentos, fraldas, leite ou outras necessidades. A estratégia era juntar todas as informações que recebia em cada um desses locais e manter boas relações com os funcionários e servidores que encontrava. Assim, formava sua própria rede de contatos que ultrapassava a rede construída por meio das ONGs, por exemplo.

Ao final de 2017, Dudu começou a apresentar novos sintomas que vieram a alterar sua rotina. Com crises epilépticas e choro constante, sintomas comuns entre as outras crianças com a síndrome, foi introduzido a um arranjo medicamentoso comum ao das outras crianças, conforme Fleischer (2017) apresenta:

 

“No final do ano, ele apresentou um choro constante. Eu acabei internando com ele. Ficamos 10 dias internados. Depois, ele apresentou crises. Ele não tinha, mas começou a ter. Passou três dias com crise. E a Dra. Júlia passou um remédio para ele, o Depakene e o Label. O Label é para o intestino, que passa mal com o Depakene. Chora por conta da dor” (FLEISCHER, 2017. Grifo meu).

Assim, Cecília passou a socializar-se com o conjunto de medicamentos que as outras mães vinham administrando a seus filhos ao longo desses dois anos. Depakene, Label, Rivotril, além da possibilidade de aplicar botox para enrijecer a musculatura da criança. Os termos sobre o uso, acesso e administração dos novos medicamentos receitados eram aprendidos, sobretudo, nas consultas médicas. Aqui, segue um trecho do diário de campo de Fleischer (2017), que acompanhou Cecília em uma destas consultas:

 

Dra. Júlia: “O Label é um vidro só, só por um mês, ok? Depois é para parar. É só para melhorar a dor de estômago dele. Mas se der o Depakene de barriga cheia não vai mais ter problema de dor de estômago. Se ficar relaxado, deixa como está. Não aumenta o Rivotril. Você pegou faz pouco o Depakene” (FLEISCHER, 2017).

Conforme percebemos com o exemplo acima, a mãe ia aos poucos aprendendo o vocabulário, os termos e técnicas a partir da nova demanda de seu filho. Assim como cada criança tinha seu próprio tempo e suas especificidades, argumento trazido anteriormente em uma fala de Paula, cada mãe socializava-se com diferentes facetas da síndrome a partir das necessidades particulares da criança. Criavam as habilidades, relações e incorporavam os jargões médicos e burocráticos conforme seus filhos precisavam. Em um dia comum, seis meses após esta consulta, Cecília e Dudu passavam o dia em casa, observou Fleischer (2018) neste trecho:

 

Quando ele acalmou de novo, ela deixa o prato de lado e, também ali no seu alcance, sem levantar do sofá, ela lhe dá alguns de seus medicamentos. Com uma seringa, ela puxa de dentro do frasco uma quantidade tal de Keppra e deposita na boquinha do filho. Ele engole com facilidade e sem muita reação. Ela limpa o pouquinho que escorre para fora com a ponta da fralda de pano que também está ali do lado. Depois, com a mesma seringa, pega outra quantidade de Depakene, um líquido rosa forte, e lhe oferece. Ele treme, não gosta do sabor. Ela abastece a seringa com um pouco de água, tanto para limpá-la, quanto para amenizar o gosto do medicamento. (...) Prato de comida, colher, celular, frascos de remédio, comento que está tudo ali perto dela. Ela sorri, “Isso mesmo, quando venho dar a comida dele aqui, deixo tudo no jeito, tudo pertinho de mim para facilitar” (FLEISCHER, 2018).

Dessa maneira, as novas necessidades de cuidado de Dudu, no que diz respeito aos medicamentos, logo foram incorporadas à rotina de vida de Cecília. Um tipo de “farmacologia caseira, que envolve a criação de outras temporalidades para o uso de medicamentos” conforme Fleischer e Carneiro (2017) apontaram, passava a ser assimilada.

 

Considerações finais

 

Neste trabalho, foram apresentadas três “mães de micro” de Recife, capital de Pernambuco, e os encontros e desencontros entre suas próprias trajetórias. O recorte inicial tratado neste artigo é o de medicamentos, mas a centralidade desses pequenos objetos na vida dessas famílias torna extremamente difícil criar uma análise sequencial. Aqui, o objetivo foi demonstrar como, no contexto da SCZV, os medicamentos são objetos extremamente múltiplos, complexos e cheios de significados, que transitam e fluem de diferentes formas entre cada uma das redes de convivência dessas mães, sendo ressignificados nas ONGs, ou no ambiente doméstico, ou nos ambientes institucionalizados como hospitais. Ambíguos, carregam expectativas e preocupações, que variam conforme a ciência faz novas descobertas em relação à Síndrome Congênita do Zika vírus.

Por esse motivo não é possível dar certezas, mas busca-se demonstrar, a partir da trajetória dessas três mães, que as narrativas criadas em torno da SCZV não são lineares. Há melhoras, há fases mais tranquilas, mas o cuidado intenso é integralmente presente na rotina dessas três mães. Dentro desse grande “quebra-cabeças” de aprendizados que têm diariamente, as mães transitam e juntam as informações que mais lhes são caras e úteis, que podem garantir acesso a determinado medicamento, como tentamos mostrar em diversas situações: Paula, ao garantir doses de Canabidiol para o filho por meio de uma amiga “mãe de micro”, Deisy, conversando, ensinando e aprendendo com suas colegas sobre qual a dose correta do medicamento a ser administrado, ou na cena de Cecília, aprendendo sobre o uso dos medicamentos a partir do cuidado diário do filho.

A cena de Deisy, trazida no início deste artigo, é um grande exemplo que ilustra como a “questão dos medicamentos” é um fato social total (MAUSS, 2003) no contexto das “mães de micro”. Esses pequenos objetos, carregados de valores e expectativas, transpassam integralmente a vida das crianças, famílias e mães atingidas pela Síndrome Congênita do Zika vírus, tanto em termos econômicos e financeiros, de políticas públicas ao aprenderem a lidar com as burocracias estatais, mas também em termos psicológicos e de saúde mental, ao tratar das expectativas colocadas naquele tratamento e ao lidar com o cansaço diário.[7]

Percebe-se ainda, que ao longo de suas trajetórias foram criando-se termos valorativos em relação aos medicamentos. De início, eles eram consumidos sem grandes termos comparativos. Ao longo da experiência das crianças e das mães, comentários que comparavam, criticavam, ou enalteciam seu desempenho começaram a se tornar mais frequentes. Repletos de ambivalências, com o passar do tempo, deixaram de apresentar certezas, podendo ser perigosos ou apenas não funcionar, ao “acostumar com o organismo”, como apontado por Deisy. Há quatro anos, essas mães vêm nos mostrando que os medicamentos são centrais em suas trajetórias, mas ambíguos: podem ser motivo de melhora e boas expectativas para o bem-estar de seus filhos, assim como também são motivo de grandes preocupações e geram novos percalços na rotina intensa de cuidado dessas famílias.

Referências

ANDRADE, Ana Paula; MALUF, Sônia. Loucos/as, pacientes, usuários/as, experientes: o estatuto dos sujeitos no contexto da reforma psiquiátrica brasileira. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 41, n. 112, p. 273-284, 2017. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-11042017000100273&script=sci_abstract&tlng=pt. Acesso em: 11/11/2019.

DINIZ, Debora. Vírus zika e mulheres. Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 32, n. 5, p. 1-4, mai. 2016a. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csp/v32n5/1678-4464-csp-32-05-00046316.pdf. Acesso em: 11/11/2019.

DINIZ, Debora. Zika: do sertão nordestino à ameaça global. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016b.

FLEISCHER, Soraya. Uso e circulação de medicamentos em um bairro popular urbano na Ceilândia, DF. Saúde e Sociedade. São Paulo, v.21, n.2, p.410-423, 2012.  Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-12902012000200014&script=sci_abstract&tlng=pt. Acesso em: 11/11/2019.

FLEISCHER, Soraya. Diários de campo. Recife, out. de 2016. Notas pessoais compartilhadas com a autora.

FLEISCHER, Soraya. Diários de campo. Recife, mai. e out. de 2017. Notas pessoais compartilhadas com a autora.

FLEISCHER, Soraya. Diários de Campo. Recife, mar. e set. de 2018. Notas pessoais compartilhadas com a autora.

FLEISCHER, Soraya; CARNEIRO, Rosamaria. A alta terapêutica de crianças com a síndrome congênita do vírus zika: o que esse fenômeno pode nos contar sobre o estado atual da epidemia? In: BRAZ, C. A. de; HENNING, C. E. (Orgs). Gênero, sexualidade e saúde: diálogos latino-americanos. Goiânia: Editora da Imprensa Universitária, 2017, p. 17-52.        Disponível em: https://www.cegraf.ufg.br/up/688/o/ebook_genero_sexualidade_saude.pdf.  Acesso em 20/03/2019.

LIRA, Lays. Mães de micro: três redes de cuidado e apoio no contexto do surto da Síndrome Congênita do Vírus Zika no Recife/PE. 2017. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Antropologia) – Universidade de Brasília, Brasília, 2017. Disponível em: http://bdm.unb.br/bitstream/10483/19314/1/2017_LaysVenancioLira.pdf. Acesso em: 21/10/2018.

LIRA, Lays. Dar um bale: ativismo materno na busca por serviços a bebês com síndrome congênita do vírus zika no Recife. Revista Textos Graduados. Brasília, v. 5, n.1, p. 17-30, Jan./2019. Disponível em: http://periodicos.unb.br/index.php/tg/article/view/22478/20428 Acesso em: 11/11/2019.

MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. In: MAUSS, M. Sociologia e antropologia. Rio de Janeiro: Cosac & Naify, 2003. p. 183-314.                   

VALIM, Thais. Ele sente tudo que a gente sente: um olhar antropológico sobre a sociabilidade de bebês nascidos com a síndrome congênita do zika vírus em Recife/PE. 2017. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Antropologia) – Universidade de Brasília, 2017. Disponível em: http://bdm.unb.br/bitstream/10483/18067/1/2017_ThaisMariaValim_tcc.pdf Acesso em: 21/10/2018.

 

 

Recebido em: 13/09/2019.

Aceito em: 04/12/2019.

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n23.48105.p251-270

 

 

 

 

 

 



* Graduanda em Ciências Sociais/UNB/Brasil. E-mail: anaclaudiadecamargo@hotmail.com.

[1] O presente texto foi resultado de Projeto de Iniciação Científica concluído em 2019. Agradeço à professora Soraya Fleischer pela ótima orientação, e ao CNPq pela bolsa concedida durante o período. Uma versão inicial deste trabalho foi apresentada na III Reunião de Antropologia da Saúde, realizada na UFRN, portanto, também agradeço pelos comentários que surgiram no GT “Deficiência e intersecções: diálogos com o campo da saúde”.

[2] Os nomes das pessoas citadas no texto são fictícios.

[3] Os fatos aqui relatos não foram presenciados pela autora, conforme explicarei na Introdução, contudo, para tornar a leitura mais fluída, narro em primeira pessoa.

[4] Aproveito para agradecer a todas as participantes do grupo, sobretudo, à professora Soraya Fleischer e às alunas Fernanda, Lays, Thais S., Yazmin, Raquel, Aissa, Lucivânia, André, Amanda e Thais V. Obrigada por compartilharem seus diários de campo com as demais participantes do grupo.

[5]  A União de Mães de Anjos (UMA) e a Aliança das Mães e Famílias Raras (AMAR) são exemplos de duas associações não governamentais muito frequentadas pelas mães desde o início da epidemia.

[6] O uso do feminino aqui foi proposital, visto que os espaços citados são predominantemente ocupados por mulheres.

[7] Apesar de não ter sido explorada neste texto, é importante lembrar que nas narrativas maternas aqui trabalhadas, também há medicamentos consumidos pelas mães. Uma primeira hipótese é que muitos deles podem estar ligados a fatores como o cansaço, à intensidade de suas rotinas, à total responsabilização pela tarefa do cuidado etc.