JUREMA Y OTRAS YERBAS – Resenha

 

JUREMA AND OTHER HERBS – Review

Giovanni Boaes*

_____________

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n24.52451.p154-167

 

 

GIOBELLINA BRUMANA, F. La jurema y otras yerbas: estudios sobre el campo religioso brasileño.  Cádiz: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Cádiz, 2013.

 

A última vez que vi Fernando foi em 2012 na casa do professor Vagner, de onde seguiríamos a um terreiro situado em um bairro afastado da cidade de São Paulo. De imediato, não o reconheci; ao iniciarmos a conversa, aquela imagem ressurgiu na minha mente: o acadêmico, que há alguns anos eu havia conhecido em João Pessoa, sempre espirituoso e crítico, com um tipo de humor afiado, porém muito atencioso e perspicaz. Iríamos assistir a uma gira de malandros — ritual de umbanda —, cujo momento principal reservara-se “ao boteco de espíritos portugueses”. Sua franqueza e apuração crítica a respeito do que víamos, assim como a limpidez da verbalização, foram para mim a melhor lembrança daquela noite.

Dois anos depois, recebi um exemplar de La jurema y otras yerbas, trazidos a João Pessoa pelo professor Vagner, com uma pequena dedicação manuscrita pelo autor. Ao agradecer-lhe o livro, Fernando sugeriu que eu o resenhasse. Nesse mesmo ano, 2014, iniciei o trabalho, mas outras obrigações acabaram me desviando do propósito. Em 2019, pego de surpresa pelo desaparecimento do autor, recrudesceu o compromisso assumido. A princípio, juntamente com a professora Maristela, surgiu a ideia de publicarmos uma nota em sua homenagem, mas achamos que poderíamos fazer algo a mais do que um necrológio resenhando suas obras.

O livro que ora resenho é uma publicação de 2013. Reunião de textos, a maior parte publicada entre 2005 e 2009 em revistas brasileiras e espanholas. Alguns derivam de pesquisas etnográficas realizadas na década de 1980 (em São Paulo) e nos anos de 2001, 2002 e 2003 em Recife e em São Paulo.

Diferentemente de outros livros do autor, que tratam da mesma temática, como Umbanda, el poder del margen (em coautoria com Elda González) e Las formas de los dioses, o livro resenhado se apresenta, conforme o autor, como uma colcha de retalhos composta por fragmentos de natureza diversa, apesar de possuir uma unidade que subjaz a cada uma de suas partes. Se há êxito nele, diz, mostra-se como resultado de um duplo fracasso: no campo, a expectativa de que algo ocorresse mas que nunca viria a acontecer; e a um fiasco mais radical porque o objeto que supunha existir a partir da bibliografia mais clássica, na verdade já não existia (p. 10).

Quando iniciou seus estudos sobre o campo religioso brasileiro (início da década de 1980), apesar de ter mantido contato com o catimbó, pouco ou nada sabia a seu respeito. À época, iniciava uma pesquisa sobre as quatro denominações axiais do campo religioso brasileiro (umbanda, candomblé, espiritismo kardecista e pentecostalismo), na qual o catimbó não se incluía. Estudá-lo mais à frente foi uma pausa e redirecionamento dessa linha de estudos. Inicialmente, afirma, sustentou-se na literatura para conhecer o catimbó, ideias que em boa medida foram superadas e negadas pela realidade. Refere-se ao modelo construído por Bastide, Câmara Cascudo, a Missão Folclórica de 1938, Gonçalves Fernandes e demais autores que primeiro estudaram o catimbó, no qual ele aparece como sinônimo de feitiçaria, um culto não institucionalizado, menos organizado, com pouca hierarquização sacerdotal, com raízes indígenas e de pouca influência africana, um culto sincrético (mesclando espiritismo europeu, catolicismo popular, práticas mágicas ibérias e europeias em geral).

O que lhe dizia a literatura sobre esses “cultos subalternos” não se verificava no campo com a clareza suposta. Então viu-se obrigado a compreender as reconfigurações do campo religioso brasileiro no que se refere aos cultos periféricos como o catimbó, que até então eram pouco explorados na literatura clássica, quase sempre ocupada por denominações mais evidentes como o candomblé e a umbanda.

Para Fernando — penso —, o êxito que emergiu do duplo fracasso pode ser visto na sua constatação de que, no campo das religiões subalternas, havia um movimento de canibalização horizontal juntamente com o vertical, ou seja, os cultos subalternos, além de fazerem bricolagem com o material do “centro”, fazem-na também entre si, e nesse jogo, o candomblé e a umbanda se tornam o espaço e os paradigmas triunfantes.

O livro está dividido em, além da introdução geral, três seções.

A primeira, denominada El campo religioso[1], possui dois capítulos e uma pequena introdução nomeada A propósito de la jurema. No primeiro capítulo (Noches en la periferia de Recife), o autor apresenta dois relatos de duas sessões de jurema a que assistiu em 2002, em ocasiões e bairros diferentes da periferia de Recife. Pelos detalhes do que descreve, trata-se do que em João Pessoa conheço como “Jurema de chão” (GONÇALVES, 2012). No segundo capítulo (El dibujo del tapiz), empreende análise do material apresentado no capítulo anterior. É nele que surgirão as hipóteses referentes às formas dinâmicas de configuração do campo religioso brasileiro, com interesse sempre voltado para a natureza da religiosidade subalterna e das lógicas que a regem (p.45), levando-o a recuperar interpretações sobre a umbanda e o candomblé apresentadas em Marginália sagrada (BRUMANA; MARTÍNEZ, 1991).

Destaca-se, nesse capítulo, a reorientação que oferece ao conceito de “sincretismo”, com o qual sempre teve cautela. Propõe-se usá-lo de forma diferenciada da que fazem os historiadores das religiões antigas, que o veem como diversas formas de sínteses que serviriam para designar qualquer culto. Compreende-o como uma bricolagem, “um procedimento de apropriação de elementos de cultos eruditos a partir de uma posição religiosa subalterna, em termos de sua própria lógica e necessidades simbólicas” (p.46). Assim, só haveria sentido falar em “sincretismo” no jogo entre religiões eruditas e religiões subalternas. É com essa chave de leitura que o autor colocará em análise as tramas e urdiduras que desenham as configurações (dibujo del tapiz) do campo religioso afro-brasileiro atual. Esses “desenhos” refletem a apropriação subalterna de uma produção erudita, o que não exclui, senão habilita, o canibalismo entre produções subalternas. No processo de bricolagem, observa o autor, porém foi a devoção católica que deu às novas religiões americanas de raízes afro boa parte das categorias e das denominações com que operam (p. 48), o que abertamente vai de encontro aos ideais tanto dos acadêmicos quanto dos fiéis; contrário também ao mote do movimento de (re)africanização.[2]

Para chegar às lógicas do campo (objetivo do capítulo), o autor segue dois caminhos: o primeiro leva-o à análise dos terreiros visitados, procurando compreender sua organização interna, hierarquia, relações internas de poder, capacidade de atrair e recrutar clientela e fiéis, entre outros aspectos. No segundo caminho, acompanha o trajeto dos pesquisadores e acadêmicos no campo para mostrar que o papel que ocupam não é de mero pesquisador; de alguma forma também são canibalizados e canibalizam, dão e retiram legitimidade do que fazem; dito de outro modo, ajudam a redesenhar o campo.

O capítulo desemboca na seguinte conclusão: no campo, destaca-se uma estrutura que predomina sobre os acontecimentos. São “lógicas potentes que atuam como força centrípeta no campo religioso e que terminam por absorver aos cultos com lógicas mais débeis” (p. 60). O candomblé e a umbanda representariam as lógicas mais fortes, constituídos como sistemas completos e consistentes, enquanto outros cultos subalternos, a exemplo da jurema, ficaram a meio caminho de consolidar-se como tal. Para ele, a jurema se mostra como “agência” sem princípios claros de organização, com funções pouco ou mal hierarquizadas, panteões lábeis de personagens não estruturado (p.63) — uma posição ainda, penso, muito próxima de Bastide (2004).

A segunda parte do livro — Ellos — traz uma introdução (com o mesmo título da seção) e dois capítulos derivados de observações feitas em duas agências (terreiros) na cidade de São Paulo; o primeiro (Pedro Trancarua) é fruto de observações realizadas durante 3 meses em 2001, 2002 e 2003, (no mesmo período das excursões em Recife que produziram o material apresentado na primeira parte do livro),  e o segundo (El terreiro de Roque) decorrente de etnografia realizada em 1983 e 1984 quando o autor produzia dados sobre a umbanda para sua dissertação de mestrado. O autor apresenta uma descrição etnográfica bem elaborada, ainda que pouco consiga extrair sobre catimbó/jurema. Entendo que nesse momento sua preocupação voltava-se ainda para o candomblé e a umbanda. Os casos de Pedro Trancarua e Roque — protagonistas dos capítulos —, ambos líderes de religiões subalternas, para usar a expressão do autor, realizavam rituais que traziam muito pouco dos elementos do catimbó/jurema que estou acostumado a ver na Paraíba.

O primeiro agente, apesar de as informações terem sido colhidas apenas por entrevistas, parece ter demonstrado mais conhecimento (no sentido mais cognitivo) sobre o catimbó. Quanto ao segundo, poucos elementos aparecem diretamente relacionados a ele. Creio que se o autor tivesse explorado mais a trajetória religiosa dos agentes, poderia ter ampliado os argumentos sobre o “processo de canibalização do catimbó/jurema pela umbanda e vice-versa”. Porém precisamos ter em mente que no período de 1980, ele não estava interessado diretamente no catimbó; e no período de 2000, apenas iniciava as pesquisas sobre o assunto; como destacou no início do livro, ainda estava impregnado pelo modelo de catimbó veiculado pela literatura.

Nessa seção, a introdução se destaca por trazer contribuições que não derivam totalmente dos dois capítulos, embora eles tenham sido uma etapa necessária para dar força ao seu argumento, não só sobre o catimbó, mas a respeito da lógica do campo das religiões subalternas. Segundo nos diz, foi em uma conversa com um dos paraibanos (citados no segundo capítulo da segunda seção) que teve a ideia de explicar a umbanda por um diagrama triangular (GIOBELLINA BRUMANA; GONZÁLEZ MARTÍNEZ, 1991).

A seguir, destaco importantes e consistentes afirmações contidas na introdução.

Atualmente não existe um catimbó independente da umbanda que seja significativo, e é impossível, considerando as escassas informações registradas pela literatura e as não menos superficiais etnografias feitas no começo do século XX, saber qual era o sistema do catimbó (ou catimbós) que um dia existiu.

Os elementos da jurema — lembrar que o autor pouco diferencia catimbó de jurema — sobreviventes na umbanda operam como adornos de um conjunto do qual não fazem parte essencial, são ali colocados como se colocam as estátuas de Buda e Joana D’Arc no contexto umbandista. Na verdade, não são inúteis, apesar de não participarem da estrutura simbólica do sistema; são úteis para criar efeitos estratégicos em um mercado religioso bastante saturado: (i) prover ao culto uma dimensão indígena e (ii) dar-lhe ou enfatizar a conotação do poder da feitiçaria.

  Diante da difundida tese — tanto por acadêmicos quanto por religiosos — da continuidade indígena do catimbó, o autor assume posição oposta: não há essa continuidade, e o elemento indígena aparece transmutado em figuras míticas como realidades espirituais idealizadas, exatamente porque os índios desapareceram como realidade cotidiana. Em outras palavras — interpretação minha —, o catimbó não é uma herança étnica, e se porventura existir alguma continuidade de sangue com os pajés, contudo não está correlacionada à continuidade simbólica.

Sobre a relação do catimbó com a feitiçaria, diz que esta seria a associação que mais se verifica no culto, tanto como o conheceu quanto afirmado pelos seus primeiros estudiosos. Não lhe resta dúvida que ele sempre esteve associado à feitiçaria, e pelo peso negativo dessa associação, a palavra “catimbó” acabou sendo substituída por outra: “jurema”. Nenhum de seus adeptos e frequentadores ignora que ao dizer “jurema” se está dizendo “catimbó”, mas ao mesmo tempo, “dizer jurema não é dizer catimbó” (p. 71).

Segundo ele, é difícil dizer o que foi o catimbó — pois não é possível “tirar leite de pedra” com os parcos registros produzidos nos anos de 1920 a 1940 —, daí o que nos resta é o presente com suas manifestações já colmatadas. O que se tem, portanto, é uma definição do catimbó como um culto sempre ligado a agências de pequeno porte, instáveis e não institucionalizadas, cujo propósito principal é a feitiçaria. Tudo se passa como se o autor acreditasse ter existido um “catimbó original” (grau zero) que foi sendo canibalizado pela umbanda (modelo institucionalizado), sobrando dele, hoje, apenas alguns elementos em terreiros de pequeno porte como o de Pedro Trancarua, Roque e Edivaldo (segundo terreiro visitado em Recife), representando linhas de fuga da canibalização — inclino-me a não compartilhar totalmente com essa ideia por achar que comporta uma idealização positiva para a umbanda e uma negativa para o catimbó.

Para terminar a resenha da segunda seção, não poderia deixar de comentar o final do capítulo 3 (primeiro da segunda seção), no qual, em tom nostálgico e melancólico, refere-se ao que disse Pedro Trancarua: “o que ele conta não é algo que ele faça, senão o que talvez tenha visto ser feito há várias décadas em Recife, ou que tenha ouvido da voz de algum juremeiro antigo” (p.89). Desta feita, insinua que o “catimbó mesmo” só existe na lembrança. Contudo, para mim, que me atrevi a atravesar el espejo y caníbalizar al objeto de estudio o ser canibalizado por él (p.53), tenho presenciado em atos, gestos e rituais muitos dos elementos relatados por Pedro Trancarua. Trata-se de características ainda vivas (mesmo que ressignificadas), de uma modalidade por aqui conhecida como “umbanda com nagô”. Infelizmente, nas duas ocasiões em que esteve em Recife, como ele mesmo reconhece, o autor não pôde realizar etnografias das casas visitadas, por isso recomenda que suas narrativas devem ser vistas como uma aproximación casi periodística (p.19).

Na terceira seção — El espejo erudito —, o autor coloca em perspectiva as ideias e as práticas investigativas de alguns autores tidos como referência nos estudos das religiões afro-brasileiras. Não os poupa das críticas, com exceção para Vagner Gonçalves da Silva. Pretende, antes de tudo, mostrar o fracasso dos seus empreendimentos em primeiro plano. Como as demais seções, contém uma introdução (repete o título da terceira seção)[3], cujo objetivo principal é mostrar o papel que a dinâmica acadêmica tem desempenhado na construção e consolidação de uma “verdade religiosa”, especialmente para o candomblé:

 

Los estudiosos, algunos de ellos, han sucumbido a la tentación de convertirse en forjadores de una teologia para el candomblé y amenazan con suplantar, condensar y controlar los resortes de poder del culto antes difusos. [...] Es probable que la palabra escrita, más aún em libros de editoriales avaladas por las redes académicas, cambie esta tolerancia por sistemas de mayor rigidez y capacidad de exclusión de quienes hacen o dicen algo diferente a lo así vuelto norma (GIOBELLINA BRUMANA, 2013, p.144).

 

Colocar o que é verdadeiro e o que é falso no âmbito do candomblé, diz o autor, é uma inquietação e um projeto de intelectuais desembarcados em suas fileiras. Por outro lado, nem todas as manifestações dos cultos subalternos foram objeto de preocupação como ocorreu com o candomblé. O catimbó, por exemplo, nunca foi alvo de investigações sérias, nada sofreu com o intuito de torná-lo uma tradição pautada em uma verdade acadêmico-teológica; ao contrário, as poucas produções e interpretações eruditas foram em direção oposta: associá-lo à feitiçaria, à frouxidão institucional e ritual. Nele, se há uma textualidade importante, ela se representa por cadernos provenientes de fontes orais, em parte de livros e de outros cadernos anteriores, a maioria contendo orações católicas, fórmulas de encantamentos, receitas de “feitiços” etc.

Grande parte da introdução dedica-se à formulação de distinções essenciais dos planos de discurso das religiões subalternas, ou seja, retoma proposições já apresentadas em livros anteriores. Destaca-se a questão da “verdade”, ou para ser mais exato, das “verdades” no candomblé. Ao contrário da verdade que a teologia forjada pelos eruditos pretende anunciar nos livros — a exemplo de Reginaldo Prandi, Bastide, Verger, Juana Elbein etc. — suas verdades são plurais, personificadas, existenciais, carnais, não se confrontando tanto com a mentira, senão com a ausência de sentido, com a aflição, com a falta de rumo, com a perda de si. Verdades produzidas em duas direções: da capacidade terapêutica do culto e da revelação ao iniciado de si mesmo no mundo. São verdades que operam em outra dimensão, próxima à forma como os gregos a encaravam (p. 147). Com isso, deixa claro que existe um grande descompasso entre o candomblé apresentado pela maioria dos livros e o candomblé “real”, vivido e sentido tanto pelos nativos quanto por alguns pesquisadores que, a exemplo do autor, não renunciam facilmente ao ofício do cientista social. Diz-nos que alguns pesquisadores do candomblé perderam o rumo porque preferiram ir atrás da sabedoria esotérica às conversas da cozinha, privilegiaram as trocas com os prestigiados sacerdotes e desprezaram o convívio com os subordinados, e por estarem sentados em cadeiras de honra, não presenciaram os envolvimentos sexualizados nas portas dos templos. “A vida real das casas de santo está ausente de seus livros” (p. 155).

No capítulo 1 da terceira seção (quinto capítulo no plano do livro) — Mário de Andrade y la missão de pesquisas folclóricas (1938): uma etnografia que no fue —, debruça-se sobre as ações e resultados providos pelo projeto modernista de Mário de Andrade com a criação do Departamento de Cultura de São Paulo e a Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938.[4] A iniciativa de Mário de Andrade teve um papel importante para documentar manifestações referentes ao catimbó; os registros produzidos são bastante sugestivos. Contudo trata-se de um êxito que nem por isso deixou de ser um fracasso: “a ideia de uma recopilação musical massiva entrava em contradição com uma etnografia satisfatória dos grupos em questão” (p.184). O resultado foi uma etnografia religiosa pobre, cujos parcos elementos foram conseguidos em três grupos de catimbó da Paraíba e um de Recife, registrados quase como notas telegráficas que mais ocultam do que revelam (p. 187).

O capítulo seguinte — Bastide, más allá de los cultos afro[5] —, o menor deles em extensão, é dedicado à discussão sobre a obra de Roger Bastide, que com generosidade sincera, porém preso às suas ilusões, forjou um paradigma que idealizava o candomblé, colocando-o entre Platão e Kant, seguindo a receita de pensar que o Outro só é alguém quando se assemelha ao Nós (p.155). Foca-se nas poucas interpretações de Bastide sobre o catimbó, feitas a partir da observação de uma única sessão de jurema em um bairro de João Pessoa/PB na década de 1940, algumas entrevistas com praticantes e nas glosas de textos de câmara Cascudo e Gonçalves Fernandes. Resultado que foi publicado em 1945 no livro Imagens do nordeste místico em preto e branco. As conclusões, já bastante conhecidas, as quais chega Bastide, dizem ser o catimbó um espetáculo que carece da estética do candomblé, não se pauta por normas rígidas, é marcado pelo subjetivismo e improvisação do inconsciente, uma herança indígena e terreno privilegiado da feitiçaria. Cenário que, segundo Fernando, para Bastide reflete a inferioridade do índio frente ao negro. Em suma, trata-se de uma prática mágica, não religiosa, ao contrário do candomblé. A grande cegueira de Bastide foi não ver que, conforme os registros da Missão de 1938, os dois cultos tinham como praticantes os mesmos agentes. Bastide foi vítima de seus autoenganos — diz o autor.

O último capítulo da terceira parte (sétimo no plano do livro) — Reflejos negros en ojos blancos[6] — reúne as críticas aos empreendimentos de Verger, Juana Elbein e o consórcio de Vogel, Mello e Barros; por último, vemos as críticas cederem lugar à concordância ao falar sobre Vagner Gonçalves da Silva e sua crítica à africanização.

Na introdução, refere-se a duas perspectivas que nos permitem encarar a religiosidade de raiz africana no Brasil e em outras regiões americanas, a saber, a perspectiva da diáspora e a perspectiva do próprio campo religioso subalterno brasileiro. A primeira escruta a partir da africanidade, e a segunda, a partir da brasilidade. É por meio dos (des)enlaces entre essas duas perspectivas que o autor passa a avaliar a produção dos autores em pauta, seguindo a asserção: “quanto mais o estudioso se identifica com o objeto estudado, menos pode dar conta de seu sentido” (p.199). Somente uma visão externa pode fazê-lo. Daí a um passo para afirmar que nem Verger, nem Bastide e nem Juana Elbein conseguiram ter essa visão externa, porque estavam muito identificados com o objeto; em consequência temos que “A africanidade brasileira é antes de tudo uma construção francesa: Bastide, o primeiro; Verger, mais tarde; seguidos pela argentina sorbonizada Juana Elbein” (p. 200).

O tema central do capítulo trata do papel que os intelectuais possuem na construção da “africanização”, que poderia ser caracterizada como a “invenção de uma África no Brasil”, “uma invenção dessincretizante de um culto sincrético” (p. 201).

Inicia com Pierre Verger e sua escritura fotográfica, que “a partir de seus registros africanos, desenhou tipos de vademecum de mitos, ações místicas, conhecimentos herborísticos etc. de grande presença nas casas de santo e nas geralmente vazias estantes de livros das casas de seus fiéis” (p. 202). Verger, como ele mesmo assume, via-se como um elo entre a África e o Brasil — fluxo e refluxo — levando e trazendo conhecimentos, imagens, objetos etc. No conjunto de africanistas, diz o autor, ele é peculiar, pois nunca quis ou se afinou com os cânones acadêmicos, daí as marcas de sua própria obra, mais afinada com a fotografia do que com a etnografia. O fato é que Verger atravessou o espelho e se sentiu bem do outro lado. Alvo certeiro para críticas: os livros de Verger são compilações de fatos sem interpretações, metalinguagem, hipertexto, glosa, além de apresentar elementos abstraídos de seu entorno, sem indicações de proveniência; sofrem de carência de contexto e de teoria.

Para falar de Juana Elbein e a sua africanidade iniciática, começa relembrando a já conhecida polêmica travada entre ela e Verger, marcada por acusações mútuas de estarem, cada qual a seu turno, falsificando a tradição nagô. Porém, diz Fernando, os dois têm mais coisas em comum do que a briga entre eles faz parecer: “ambos encontravam no outro uma espécie de reflexo deformado de sim mesmo” (p. 210). Entre outras coisas, ambos não davam nenhuma informação de onde provinham os materiais com os quais compunham seus textos; ambos compartilhavam do mesmo dogma: recortavam o objeto a que se dedicavam a partir, de um lado, de uma segregação, e de outro, de uma fusão — dois procedimentos fraudulentos que acabaram engendrando um racismo antibrasileiro.

O livro de Juana Elbein — Os nagô e a morte (SANTOS, 1986) —, além de tedioso e incoerente, representa mais um discurso retórico e ideológico do que uma obra antropológica, assevera o autor, cujas finalidades eram garantir à autora o reconhecimento na academia (título de doutorado na Sorbonne) e mostrar que a “epistemologia” do candomblé só poderia ser explicada por alguém de dentro (iniciada, como ela), o que lhe daria o reconhecimento como teóloga do candomblé, algo que nunca havia existido. É a conjugação entre esses dois papéis que dá ao seu discurso um brilho especial. O autor gasta algumas linhas (três asseverações) para se posicionar contra o mote da autora. Em síntese, para ele, ao antropólogo não se impõe a necessidade da iniciação (atravessar o espelho) para produzir conhecimento válido — diz ele mais à frente: “Sujeito e objeto do conhecimento etnológico devem estar separados por completo. A alteridade é um componente irrenunciável da disciplina” (p. 232) —, ainda mais quando se sabe que iniciação e convivência não são equivalentes. Além disso, diz, não é novidade para quem investiga o candomblé encontrar poucas restrições ao acesso de todo tipo de cerimônia, com poucas exceções, mesmo sem ser iniciado.

Depois de “glosar” o famoso “esquema dos três sangues” da autora, ele finaliza alegando que o sentido está ausente no livro de Elbein, ou seja, falta-lhe uma lógica que organize e explique o material apresentado, além dos já destacados erros em relação à metodologia.

Sobre Vogel, Mello e Barros, começa dizendo que, a exemplo da produção de Verger e Elbein, o livro Galinha d’angola se inscreve no mesmo mito, porém deles se diferenciando porque não congela as realidades, a “escrita se move” por meio de uma etnografia que passa ao largo da obsessão essencialista à la Verger e Elbein. A objeção inicial, entretanto, aponta para a construção de sentido, ou melhor, a sua fragilidade. O primeiro descontentamento surge quando os autores, depois de apresentarem uma interessante etnografia do bori, buscam no mito a sua explicação. A reação, então vem em três considerações: (i) o grande nível de precisão etnográfica se transforma em indeterminação, pois em vez de se pautarem em mitos recolhidos nos terreiros observados, remetem-se à literatura africanista inglesa, e isso se deve à prenoção de que o mito é mais rico que o rito; (ii) o mito escolhido (do oleiro) foi selecionado arbitrariamente dentre vários outros mitos, dando a entender que a escolha se  deve à leitura equivocada sobre a teoria do dom de Marcel Mauss; e (iii) a ideia profunda de sacrifício escapa aos autores, pois não é a reciprocidade (dom e contradom), senão o sacrifício (potlatch) o elemento que rege a relação entre humanos e divindades no candomblé, cuja função principal é revelar o verdadeiro ser do adepto — o autor enfatiza que esta regra não se aplica à umbanda, quimbanda, jurema etc., nas quais prevalece a lógica da reciprocidade.

Em suma, para o autor, o maior problema do livro está no momento da interpretação, considerando que, descontados alguns deslizes, há uma etnografia bastante efetiva. Assinala os erros cometidos ao interpretarem a imagem da galinha d’angola (protagonizada no momento da saída ritual) como portadora de todos os jogos de sentido do candomblé, o que em si repete a crítica a todo trabalho interpretativo da obra: por um lado é um livro aberto às várias experiências e à multiplicidade do campo religioso afro-brasileiro, mas que se apoia em um edifício ilusório, o da mitologia africana.

O capítulo se encerra com algumas considerações sobre Vagner Gonçalves da Silva e as tribulações da africanização. Aqui, o autor vê um exemplo de alguém que trocou a vida de santo pela acadêmica, um caso inverso, por exemplo, ao ocorrido com Gissèle Cossard-Bignon (Omindarewa). Coloca em destaque duas questões relacionadas à trajetória de Vagner: (i) os fatos que o impediram de ser religioso e acadêmico ao mesmo tempo e (ii) a desmistificação da africanidade, uma “construção” cada vez mais presente nos candomblés.

Ocupa-se mais da segunda questão, tomando como ponto de referência o livro Orixás da metrópole (SILVA, 1995). A (re)africanização significa um movimento em busca de uma África mítica, que para ser construída pressupôs a desconstrução de saberes institucionalizados a cargo do movimento de purificação ou dessincretização dos candomblés, gerando tensões e crises entre os adeptos. Exemplos de efeitos práticos dessa (re)africanização apresentados por Vagner são os cursos de yoruba oferecidos pela USP e as viagens de pais de santo à Nigéria e ao Benim. Uma das conclusões apresentada por Vagner, — endossada pelo autor — é que a (re)africanização tem como principal função proporcionar prestígio aos agentes religiosos. Por outro lado, mostra a precariedade desse jogo africanizante, sustentado na existência de uma “nova África fantasma” (p.238).

 

 

La jurema y otras yerbas, como diz o próprio autor, é uma colcha de retalhos, porém que não deixa de ter unidades subjacentes. Creio que mais do que prestar contas de etnografias e gerar interpretações sobre o catimbó/jurema, o autor nos lega uma reflexão robusta sobre o fazer antropologia das religiões subalternas, o que nos diz muito sobre a imagem que os pesquisadores têm feito de todas elas, incluindo o catimbó/jurema. É prudente dizer que, neste livro, o autor amplia a vazão a um interesse que sempre o acompanhou — as margens —, fato bem destacado por Fernanda Peixoto algumas páginas atrás (PEIXOTO, 2020, p. 142).

O autor diz que seu livro representa um intervalo em uma linha de estudos mais significativos, pois marca um redirecionamento nas suas investigações anteriores e na elaboração de material recolhido, que até então não havia sido empregado em publicações subsequentes (p.11). Como muito oportunamente me fez notar Maristela Andrade, em conversas editoriais, parece sensato dizer que o redirecionamento a que o autor se refere, movimenta o seu “olhar para a margem das margens, algo que se recusou por um bom tempo a compreender, por não encontrar nada muito definido com uma teologia mais sistematizada ou luminosa dos rituais feéricos”.

Enfim, encerro aqui com as palavras do homenageado: “No se trata de una estratégia narrativa preconcebida, sino más bien un resultado en el que he querido conjugar necessidade y virtude” (p.16). Um brinde aos leitores.

 

 

Referências

 

BASTIDE, Roger. Catimbó. In: PRANDI, R. (Org.). Encantaria brasileira: o livro dos mestres, caboclos e encantados. Rio de Janeiro: Pallas, 2004, p. 146-159.

GIOBELLINA BRUMANA, F. Bastide más allá de los cultos afro. In: ANDRADE, Maristela O. de. (Org.). Roger Bastide e o Brasil. João Pessoa: Religare; Manufatura, 2004, p. 23-37.

GIOBELLINA BRUMANA, F. A propósito de la jurema. Reflexiones sobre el campo religioso brasileño. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, v. 48, n. 2, p. 423-471, 2005a. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-77012005000200001. Acesso em: 15/03/20.

GIOBELLINA BRUMANA, F. Bastide más allá de los cultos afro. In: MOTTA, Roberto (Org.). Roger Bastide hoje: raça, religião, saudade e literature. Recife: Bagaço, 2005b, p. 111-127.

GIOBELLINA BRUMANA, F. Mário de Andrade y la missão de pesquisas folclóricas (1938): uma etnografia que no fue. Revista de Indias, Madrid, v. 66, n. 237, p. 545-572, 2006. Disponível em: http://revistadeindias.revistas.csic.es/index.php/revistadeindias/article/view/349. Acesso em 15/03/20.

GIOBELLINA BRUMANA, F. Reflexos negros em olhos brancos: a academia na africanização dos candomblés. Revista Afro-Ásia, Salvador, n. 36, p. 153-197, 2007. Disponível em: https://portalseer.ufba.br/index.php/afroasia/article/view/21144. Acesso em: 15/03/20.

GIOBELLINA BRUMANA, F. El candomblé y su espejo erudito. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, v. 52, n. 2, p. 507-532, 2009. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/ra/article/view/27317. Acesso em: 15/03/20.

GIOBELLINA BRUMANA, F. La jurema y otras yerbas: estudios sobre el campo religioso brasileño.  Cádiz: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Cádiz, 2013.

GIOBELLINA BRUMANA, F.; GONZÁLEZ MARTÍNEZ, E. Marginália sagrada. Campinas: Editora da UNICAMP, 1991.

GONÇALVES, A. G. B. Catimbó/jurema, umbanda e candomblé: o campo religioso afro-brasileiro em João Pessoa. Relatório de Pós-doutoramento apresentado ao Departamento de Antropologia da FFLCH/USP, 2013, (Mimeo).

PEIXOTO, Fernanda A. As muitas vidas de Fernando. CAOS – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, João Pessoa, n.24, p. 140-144, 2020. (No prelo).

SANTOS, Juana E. Os nàgô e a morte: pàde, àsèsè e culto égun na Bahia. Petrópolis: Vozes, 1986.

SILVA, Vagner G. da. Orixás da metrópole. Petrópolis: Vozes, 1995.

 

 

 

Recebido em: 10/05/20.

Aceito em: 17/05/20.

 

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n24.52451.p154-167

 

 

 

 

 

 



* Professor titular do Departamento de Ciências Sociais da UFPB/Brasil. E-mail: giboaes@gmail.com.

[1] Ver Giobellina Brumana (2005a).

[2] O uso do prefixo entre parênteses, aqui e em outras partes do texto, é de minha responsabilidade.

[3] Ver Giobellina Brumana (2009).

[4] Ver Giobellina Brumana (2006).

[5] Ver Giobellina Brumana (2004, 2005b).

[6] Ver Giobellina Brumana (2007).