AS MUITAS VIDAS DE FERNANDO
Fernanda Arêas Peixoto*
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DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n24.52736.p140-144
Argentino de nascimento, sueco em função do exílio, espanhol naturalizado e presença constante no Brasil a partir dos anos setenta, as vidas de Fernando Giobellina Brumana (1944-2019) são muitas. Seguindo o traçado da geografia, é possível dizer que com o país de nascimento, onde se formou em filosofia e atuou politicamente em diversas organizações de esquerda, possuía relações ambivalentes: muitas histórias e familiares queridos, também memórias amargas. Com a Suécia e o Brasil, por sua vez, mantinha dívidas de gratidão, distintas é verdade, mas ambas verdadeiras. Instalando-se na Espanha, em meados dos anos 1980, reconstruiu a vida pessoal e profissional: teve dois filhos e ingressou na universidade, em Cádiz, como professor de antropologia.
Experiências importantes de viagem marcaram a vida adulta de Fernando. Nos anos sessenta, segue de mochila nas costas para a Europa com a primeira companheira, quando conhece Paris, cidade que frequentava pelas leituras literárias, sobretudo de Jean-Paul Sartre, que a partir de então se converte em lugar central de sua cartografia afetiva (na capital francesa passou as férias de Natal nos últimos dez anos, com a mulher, a antropóloga Hortensia Caro Sánchez e o filho mais novo, Pablo). Em 1976, fugindo da perseguição política e da ditadura na Argentina, viaja para o Brasil, onde permanece um ano, antes de seguir para Oslo, ao lado de outros intelectuais sul-americanos exilados.
O Brasil foi uma descoberta, uma paixão imediata, me disse ele em nossa última conversa longa, numa tarde de 28 de dezembro de 2018: “[no Brasil] era possível sentir uma solidariedade, um afeto, um carinho, uma coisa enorme. Eu não tenho como agradecer”. Apesar das dificuldades — insegurança política em função da ditadura militar brasileira, falta de dinheiro, moradias precárias — contou ter sido esse ano passado no Brasil com Pichi (a historiadora Elda González Martínez) um período extraordinário; sentiu-se afetivamente acolhido e pôde experimentar atividades variadas, também para sobreviver: escreveu artigos para jornais e revistas, fez traduções, produziu volumes para uma coleção de pintura editada pela Abril cultural, chegando mesmo a escrever um volume sobre Goya. A esta experiência brasileira se seguirão outras, que ecoarão ao longo de sua vida pessoal e profissional. Não esqueçamos que é no Brasil que Fernando inicia-se na prática etnográfica, o que faz substituir Sartre por Lévi-Strauss, “um verdadeiro escândalo” para alguém formado no marxismo, ele confessa.
O encontro com as “religiões subalternas brasileiras”, como definia a umbanda e o candomblé, e as pesquisas em casas e terreiros de São Paulo fizeram da cidade uma espécie de porto ao qual retornava periodicamente. Embora tenha viajado por outras partes do país, Fernando escolheu São Paulo como sua cidade brasileira: nela fez longas pesquisas de campo, especialmente na casa do pai Toninho, a qual permaneceu ligado por toda a vida; cultivou grandes amizades, dentro e fora da universidade; deu cursos na USP e experimentou intensamente a vida caótica da metrópole, o centro, mas também os bairros periféricos, que ele percorria com prazer e interesse. As etnografias que realizou estão na base de teses, livros e artigos, entre os quais Marginália sagrada, escrito com Elda González, e editado em português, em 1991 (versão da tese de doutorado defendida na universidade de Upsala e publicado em inglês, em 1989); Las formas de los dioses: sistemas de clasificaciones y categorias en el candomblé (1994), e Umbanda, el poder del margen (2000) — também escrito em parceria com Elda González.
Foi no Brasil que publicou também Antropologia dos sentidos: introdução às ideias de Marcel Mauss, na coleção “Primeiros voos” da Brasiliense, com tradução de Júlio Simões (1983). O ensaio, fruto de uma encomenda, pode parecer mero escrito de circunstância, mas, ao contrário, funciona como abertura de uma trilha reflexiva que Fernando desenvolverá nos anos 2000, ao lado dos trabalhos sobre religião. Lembremos, entre outros, de Sonhando com os Dogon: nas origens da etnologia francesa (tradução brasileira de 2011, do original espanhol de 2005); Marcel Mauss: ensayo sobre el don. Forma y función del intercambio en las sociedades arcaicas (prefácio à edição argentina de 2009, que seria editado em francês nos Carnets de Bérose, em 2017).[1]
As leituras da antropologia francesa, que realiza desde o início de sua formação antropológica, serão aproveitadas em estudos posteriores sobre história e teoria antropológica, todos eles preocupados com o problema do sentido, das classificações, da estrutura e da antiestrutura, bem como do “popular”. Especialmente no livro sobre a etnologia francesa do entreguerras, O sonho dogon, nota-se a retomada de indagações formuladas na década de 1980, por exemplo a questão das “margens”, central em toda a sua obra, como assinalo na apresentação que fiz à edição brasileira do livro.
Qual a potência das margens, pergunta-se Fernando desde o seu primeiro estudo sobre a umbanda, emblematicamente intitulado Marginália sagrada. O exame da “sócio-lógica da umbanda” expande-se, pouco depois, em direção aos mecanismos classificatórios no candomblé (Las formas de los dioses, 1994). O deslocamento das pesquisas, da umbanda para o candomblé, leva-o a recolocar e redimensionar as discussões sobre as relações entre margens, poder e perigo, que o obriga a movimentar-se entre as inspirações francesas (de Van Gennep, Mauss e Hertz, por exemplo) e a tradição anglo-saxã, de modo a examinar os nexos entre estrutura e antiestrutura (Victor Turner), entre ordem e desordem (Mary Douglas). Este último ponto seria reelaborado em El lado oscuro: la polaridade sagrado/profano y sus avatares (2014), quando das incursões pela obra de Georges Bataille — e por suas teorizações sobre norma e transgressão — e da recuperação do célebre ensaio de Robert Hertz sobre a polaridade religiosa.
A escolha do candomblé como solo de investigação reforça a inclinação do antropólogo pelas bordas e regiões limítrofes: fugindo das casas mais tradicionais, ele elege os terreiros das periferias de São Paulo como foco de seu interesse. Às margens, espacial e sociologicamente definidas, corresponde também uma posição epistemológica: “Em campo se está à margem”, indica Fernando. “O etnólogo se parece a um possuído, talvez diga Leiris sem dizê-lo: em um caso como no outro, são atores da margem” (GIOBELLINA BRUMANA, 2011, p. 329-330). Em livro dedicado às primeiras etnografias com uma ‘quimbandeira’, volta ao ponto: “A liminaridade, tema dos estudos etnológicos — tema nevrálgico de minhas investigações — é a condição assumida pelo antropólogo em campo, queira ele ou não” (GIOBELLINA BRUMANA, 2009a, p. 12, tradução minha).
Além de um problema intelectual e de uma posição metodológica, as margens (e sua potência disruptiva) nos reconduzem à personalidade intelectual e à grande figura humana de Fernando Giobellina Brumana, alguém que escolheu as margens como uma forma de ver e de se colocar no mundo. Afinal, desde aí, é possível exercitar a crítica e o humor (rindo do outro e de si mesmo), dosando também a arrogância e a cafonice (ele adorava o termo!) acadêmicas. Foi ele próprio quem sugeriu a ideia, na mesma conversa de dezembro de 2018 a que me referi no início, quando disse ter sido uma vez definido como alguém que estava sempre “às margens do centro”. Acho que sim. E por isso também ele era completamente ímpar.
Conheci Fernando em 1985, e desde então nunca mais nos perdemos de vista. Assim foi, assim será. Ele segue presente na memória dos amigos que o amavam, como eu, e na antropologia brasileira.
Referências
GIOBELLINA BRUMANA, F. Las forma de los dioses: categorias y clasificaciones em el candomblé. Cádiz: Servicio de Publicaciones da Universidad de Cádiz, 1994.
GIOBELLINA BRUMANA, F. La metáfora rota. Cádiz: Servicio de Publicaciones Universidad de Cádiz, 1997.
GIOBELLINA BRUMANA, F. Sentidos de la antropologia. Antropologia de los sentidos. Cádiz: Servicio de Publicaciones Universidad de Cádiz, 2003.
GIOBELLINA BRUMANA, F. Soñando con los dogon: en los orígenes de la etnografía francesa. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 2005.
GIOBELLINA BRUMANA, F. Diário de la índia: experiencia de campo con una hechicera brasileña. Barcelona: Ediciones Laertes, 2009a.
GIOBELLINA BRUMANA, F. Estudio preliminar: el don del ensayo. In: MAUSS, Marcel. Ensayo sobre el don: función del intercambio em las sociedades arcaicas. Buenos Aires; Madrid: Katz Editores, 2009b, p. 7-60.
GIOBELLINA BRUMANA, F. O sonho dogon: nas origens da etnologia francesa. São Paulo: EDUSP, 2011.
GIOBELLINA BRUMANA, F. El lado oscuro: la polaridad “sagrado/profano” y sus avatares. Buenos Aires: Katz Editores, 2014.
GIOBELLINA BRUMANA, F. Le don de l’essai: à propos de l’essai sur le don de Marcel Mauss. Les Carnets de Bérose (n. 8). Paris: Lahic-Iiac, 2017. Disponível em: http://www.berose.fr/article1060.html?lang=fr. Acesso em: 18/05/20.
GIOBELLINA BRUMANA, F.; GONZÁLEZ MARTÍNEZ, E. Marginália sagrada. Campinas: Editora da UNICAMP, 1991.
GIOBELLINA BRUMANA, F.; GONZÁLEZ MARTÍNEZ, E. Umbanda, el poder del margen. Cádiz: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Cádiz, 2000.
Recebido em: 18/05/20.
Aceito em: 19/05/20.
* Professora titular do departamento de antropologia da USP, pesquisadora do CNPq, coordenadora do Asa, artes, saberes, antropologia (http://www.coletivoasa.dreamhosters.com), autora de Diálogos brasileiros: uma análise da obra de Roger Bastide (2000) e A viagem como vocação: itinerários, parcerias e formas de conhecimento (2015). E-mail: fareaspeixoto@gmail.com.