O FEMININO ENQUANTO SIGNO NO IMAGINÁRIO DA CULTURA: ressignificações nos filmes Vida de menina e Que horas ela volta? 
 
THE FEMININE AS A SIGN IN THE IMAGINARY OF CULTURE: resignifications in the films Girl's Life and What time does she return?
Denise Firmo*
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DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n25.54369.p189-205

 

 

 

Resumo

Este artigo procura investigar incidências da ressignificação do feminino enquanto signo/impressão em criações de imaginários forjados sob óticas de sujeitos femininos. Para tanto, procede-se a partir da metodologia de análise fílmica interpretativa (VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 1992) dos filmes Vida de menina, de Helena Solberg e Que horas ela volta?, de Anna Muylaert, pré-selecionadas a partir de propostas de ressignificações que incidem a partir das composições narrativas dos imaginários das personagens principais. Desse modo, observa-se que essas possibilidades de ressignificações do feminino enquanto signo colaboram para a elaboração de subjetividades para os significados do feminino. O que permite concluir que é possível desconstruir/reconstruir e/ou reconstituir o feminino enquanto signo no imaginário da cultura e dessa forma interferir nas construções de experiências para os sujeitos femininos nos plano sócio-histórico e cultural.

Palavras-chave: Semiótica; Imaginário; Feminino; Cinema.

 

Abstract

This article seeks to investigate incidences of female resignification as a sign/impression in creations of imaginaries forged from the perspectives of female subjects. For this it employs the methodology of interpretative film analysis (VANOYE; GOLIOT - LÉTÉ, 1992) of the films Girls Life, Dir. Helena Solberg and The Second Mother, Dir. Anna Muylaert, pre-selected because of the resignifications that affect the imaginary of the principal characters. Thus, it is observed that these possibilities of reframing the feminine as a sign contribute to the elaboration of subjectivities for the meanings of the feminine. This allows us to conclude that it is possible to deconstruct/reconstruct and/or reconstitute the feminine as a sign in the imaginary of culture and thus to interfere in the construction of experiences for female subjects from a socio-historical and cultural perspective.

Keywords: Semiotics; Imaginary; Female; Cinema.

 

Introdução

 

Este artigo se fundamenta na compreensão de que o gênero feminino e a experiência dos sujeitos que o vivenciam em seus corpos foi/está hegemonicamente constituído, no sentido de arraigado/fundado, nos planos sócio-histórico e cultural, sob o signo/impressão construído sob a ótica de sujeitos masculinos. Essa fundamentação se pauta no fato de que os sujeitos masculinos, enquanto principais estruturadores dos discursos históricos formadores dos locais sociais, demarcaram para o lugar do feminino uma extensão do lugar do masculino (BEAUVOIR, 1960a; DEL PRIORE, 2000). Ou seja, para o feminino não foi/está construído a ocupação de um lugar de sujeito histórico, como foi/está para o masculino, mas o lugar de objeto/corpo extensão da existência masculina. Acredita-se que um dos modos de efetivar essa constituição se deu nas formações de subjetividades para os gêneros, configurando assim formas de assimilação para os locais de existência e as experiências dos sujeitos que compartilham o ambiente da cultura.

Sendo assim, propomos aqui, a investigação de possibilidades de ressignificações do signo/impressão do feminino constituído sob a ótica masculina a partir de criações de subjetividades sob óticas femininas fomentadoras de imaginários para a cultura. Entendendo que no uso de modos semelhantes aos estruturantes de significações para a apreensão do feminino enquanto gênero, demarcadores de locais da existência sócio-histórica e cultural e consequentemente da experiência dos sujeitos, residem formas de ressignificar essas apreensões. Para a análise, foram selecionados os longas-metragens ficcionais Vida de menina, de Helena Solberg e Que horas ela volta?, de Anna Muylaert, entendendo que nas composições narrativas dos imaginários das personagens principais incidem ressignificações para o feminino. O primeiro trabalho conta a história de Helena Morley (Ludmila Dayer), garota de 14 anos que se utiliza da escrita para elucidar o seu universo interior e o mundo a sua volta, oferecendo ao espectador uma narrativa conduzida pela sua percepção adolescente, de um feminino que se constrói através da manifestação de sua palavra escrita como construção da sua identidade de menina-moça. Em Que horas ela volta? temos a história de Val (Regina Casé), que traz ao espectador o protagonismo de um feminino bastante brasileiro, mas pouco narrado a partir de seu próprio universo. Val é uma mulher nordestina, empregada doméstica, migrante, que precisou abandonar sua terra e família para garantir sua subsistência no sul do país.

Para tanto, a discussão se baseia principalmente em autores do campo do signo (PEIRCE, 1997; SANTAELLA, 1983, 2000), do gênero (BEAUVOIR, 1960a, 1960b; DEL PRIORE, 2000; HARAWAY, 2009; LAURETIS,1984,1994; MULVEY, 1983), da comunicação (ECO, 1976), do imaginário (SILVA, 2003) e da análise fílmica (VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 1992). Nesta seção introdutória, uma perspectiva teórica acerca do tema, da filósofa Donna Haraway, em sua obra Manifesto ciborgue (2009), se aponta como um bom início. A autora compreende a construção histórica e/ou realidade social como campo linguístico, como significado das relações sociais vividas, como significado da nossa construção política mais importante, e os corpos como mapas de poder e identidade. Fazendo-nos refletir sobre a potência que permeia o fato de tomarmos consciência do poder presente nas significações que fazemos para os nossos corpos e existências. A autora ainda faz um recorte a respeito do feminino e sobre as questões da apropriação dos territórios da produção de significação, reprodução e da imaginação. Para ela, um dos caminhos importantes para se reconstruir a política feminista socialista é por meio de uma teoria e de uma prática dirigidas para as relações sociais da ciência e da tecnologia, incluindo, de forma crucial, os sistemas de mito e de significado que estruturam nossas imaginações. “Se for verdade que somos aprisionados pela linguagem, então, a fuga dessa prisão exige poetas da linguagem, exige um tipo de enzima cultural que seja capaz de interromper o código” (HARAWAY, 2009, p. 103). É sob pressupostos como esse que se ampara este artigo, projetando no imaginário da cultura uma via potencial para ressignificar o feminino através da criação de subjetividades, e assim mover o terreno da experiência e subjetividade sócio-histórica e cultural dos sujeitos femininos.

 

Fundamentação teórica

Do gênero

 

Para compreensão e aprofundamento das questões suscitadas acima, faz-se importante trazermos aqui os referenciais teóricos que baseiam esta discussão, os mesmos que elucidam o caminho delineador deste artigo. Acerca do gênero, tomamos por base o pensamento de Teresa de Lauretis, a partir do artigo A tecnologia de gênero (LAURETIS, 1994) e do livro Alice Doesn’t: feminism, semiotics, cinema (LAURETIS, 1984). Obras em que a autora defende a construção do gênero como resultado das várias tecnologias de gênero e discursos institucionais com o poder de controlar o campo das significações sociais, e assim produzir, promover e programar as representações de gênero. Fato que ocorre a partir da construção de subjetividade, entendida como experiência (efeitos, hábitos, disposições, associações, percepções e significantes que resultam da interação semiótica com o mundo exterior, de acordo com a proposta filosófica de Peirce). Ou seja, o modo pelo qual a subjetividade é dada e assimilada por/para todos os seres sociais, e isso inclui a experiência do gênero, produção de homens e mulheres, é produzida/construída/fabricada por meio da linguagem e suas estruturas e modos, concluindo que o sujeito humano é um sujeito semiótico.

A perspectiva acima defendida por Lauretis para pensarmos a construção de homens e mulheres no ambiente social, toma por base a semiótica de Peirce para explicar como o indivíduo assimila o mundo (convenções, construções e estruturas) à sua volta. Em vários momentos deste texto, defendemos o feminino enquanto signo para elucidar acerca da impressão que está posta sobre o feminino dentro da fabricação de significantes e significados que operam o ambiente da cultura, pensando-o enquanto código engendrado pela cultura. Portanto, ser mulher ou signo feminino, corresponde a uma construção/impressão social que está colocada para a experiência sócio-histórica e cultural das mulheres, a toda uma estrutura de sentido que responde às perguntas: “O que é ser mulher?”, “Qual o seu lugar social?” Ou, ainda, “Para que serve uma mulher?”

Nesse sentido, em seu artigo, Lauretis também propõe as seguintes questões: como as mudanças de recepção afetam ou alteram os discursos dominantes? Os discursos antagônicos precisam se tornar dominantes para que as relações sociais se modifiquem? Como poderão ser alteradas as relações de gênero? Para pensar essas questões a autora se baseia na perspectiva de ideologia operando no engajamento das subjetividades, proposta pelo teórico Louis Althusser (ALTHUSSER, 1970) que determina essa operação como o processo pelo qual uma pessoa aceita sua representação social e se torna real para ela, embora seja imaginária. Ou seja, o feminino tal como está construído/impresso/vivenciado enquanto signo/código ou representação social, na lógica da objetificação, não é senão um pacto social entre os sujeitos que aceitam e reproduzem essa existência como está representada culturalmente.

Laura Mulvey é outra autora precursora do pensamento sobre as significações sociais impostas ao signo feminino construídas a partir do olhar masculino, através do cinema, especificamente. No texto Prazer visual e cinema narrativo (1983), introduz os temas do fetichismo e do narcisismo. Ela escreve: 

 

A mulher, desta forma, só existe na cultura patriarcal como significante do outro masculino, presa por uma ordem simbólica na qual o homem pode exprimir suas fantasias e obsessões através do comando lingüístico (...) impondo-as sobre a imagem silenciosa da mulher, ainda presa ao seu lugar como portadora de significado, e não produtora de significado (MULVEY, 1983, p. 438).

 

A autora ainda aponta o que seria o caminho para a desconstrução da imagem patriarcal e as representações da mulher: 

 

Nós presenciamos aqui uma contradição teórica do feminismo: ao mesmo tempo em que as feministas precisam desconstruir a imagem patriarcal e as representações da mulher, elas precisam estabelecer historicamente sua subjetividade feminina (...) (MULVEY, 1983, p.438).

 

Ou seja, a autora sinaliza que as mulheres que desejarem a complexa empreitada de (re)construir o feminino, precisam descobrir e redefinir o que significa ser mulher através da criação de subjetividades para a significação do feminino. Essas subjetividades para a significação operam ressignificações, tendo em vista que o código está significado e essas criações engendram outras significações, permitindo assim ressignificá-lo no imaginário da cultura. Neste texto, busca-se descobertas que permitam redefinições ou ressignificações do feminino, para que assim se possa orientar saídas das subjetividades historicamente impostas à construção de significados do feminino sob o prisma patriarcal. Tanto no imaginário como também na reprodução desse imaginário nas relações sociais construtoras da realidade dos corpos que vivenciam a existência feminina. Desejamos empreender caminhos possibilitadores de subjetividades para o existir do feminino enquanto sujeito sócio-histórico e cultural, expandir as fronteiras das perspectivas sígnicas, no sentido de impressões impostas sobre as significações e sentidos para o “ser mulher” ou para o feminino.

Donna Haraway é mais uma das teóricas convocadas para a defesa da apropriação por parte das mulheres dos territórios da produção de significação, reprodução e da imaginação. Para ela, um dos caminhos importantes para se reconstruir a política feminista socialista é por meio de uma teoria e de uma prática dirigidas para as relações sociais da ciência e da tecnologia, incluindo, de forma crucial, os sistemas de mito e de significado que estruturam nossas imaginações.

 

Do signo

 

Para a compreensão acerca do feminino enquanto signo, tomamos por base teórica a semiótica (PEIRCE, 1997), ciência que estuda os signos, ou todos os processos de significações. De acordo com Lucia Santaella (SANTAELLA, 1983), principal referência brasileira das investigações de Peirce, a semiótica ou ciência do signo, tem por objeto de investigação todas as linguagens possíveis, ou seja, tem por objetivo o exame dos modos de constituição de todo e qualquer fenômeno de produção de significação e sentido. Diante de qualquer fenômeno ou para compreender qualquer coisa, a consciência produz um signo, ou seja, um pensamento como mediação irrecusável entre nós e os fenômenos.

 

Perceber não é senão traduzir um objeto de percepção em julgamento de percepção, ou melhor, interpor uma camada interpretativa entre a consciência e o que é percebido. (...) O simples ato de olhar já está carregado de interpretação, visto que é sempre o resultado de uma elaboração cognitiva, fruto de uma mediação sígnica que possibilita nossa orientação no espaço por um reconhecimento e assentimento diante das coisas que só o signo permite (SANTAELLA, 1983, p.79-80).

 

Para a autora, o indivíduo só conhece o mundo porque, de alguma forma, o representa e só interpreta essa representação numa outra representação, que Pierce determina interpretante da primeira. Para conhecer e se conhecer, o indivíduo se faz signo e só interpreta esses signos traduzindo-os em outros signos, ou seja, interpretar é traduzir um pensamento em outro pensamento, em um movimento ininterrupto, pois só podemos pensar um pensamento em outro pensamento. 

A autora vai além ao dizer que, “o signo de um lado representa o que está fora dele, o objeto, e, de outro, dirige-se para alguém em cuja mente se processará” (SANTAELLA, 1983, p. 81). Ainda de acordo com Santaella, o signo é uma coisa que representa outra coisa, seu objeto. Ele só pode funcionar como signo se carregar esse poder de representar, substituir outra coisa diferente dele. O signo não é o objeto, ele apenas está no lugar do objeto. “(...) Ex: a palavra casa, a pintura de uma casa, a fotografia de uma casa, um filme sobre uma casa, uma planta de uma casa, uma maquete de uma casa ou mesmo um olhar sobre uma casa, são todos signos do objeto casa”. (SANTAELLA, 1983, p. 81). Dentro dessa lógica de apreensão do mundo é que defendemos o processo sócio-histórico e cultural pelo qual perpassa a existência do feminino enquanto signo no imaginário da cultura. Vislumbramos pensar o feminino como um signo, no sentido de uma impressão que está posta sobre o gênero e os sujeitos, um pensamento sobre determinado fenômeno que delimita a forma como o indivíduo enxerga e reproduz esse fenômeno. Na busca de ressignificações para as impressões impostas historicamente pela ótica do masculino, tendo obras cinematográficas de autorias femininas como trabalhos potencialmente capazes de fomentar outras subjetividades para o feminino, visto que partem de suas experiências com o gênero em seus corpos. 

 

Da comunicação

 

Para pensar a relação entre os imaginários propostos pelas obras selecionadas e de como eles podem contribuir com a ressignificação do feminino enquanto signo e interferir nas relações reais do sujeito feminino, convocamos a perspectiva do teórico Umberto Eco, em seu livro Tratado Geral da Semiótica (ECO, 1976). De acordo com o autor, a semiótica estuda todos os processos culturais como processos de comunicação e, ainda segundo Eco, tem-se um processo de comunicação quando as possibilidades de um sistema de significação são utilizadas para produzir fisicamente expressões para diversos fins práticos. Portanto podemos afirmar que o feminino enquanto signo está inserido no sistema de significação operado pelos processos culturais, entre os quais se inserem as tecnologias potencialmente produtoras de significados para a cultura, e nisto, se incluem processos cinematográficos, que reproduzem e sedimentam lógicas para as experiências que constroem o tecido da realidade cotidiana/histórica. 

Mas quem constrói essas lógicas? Como as constroem? São questões aqui despertadas a partir de óticas femininas e de como elas se voltam para a experiência sócio-histórica e cultural do sujeito feminino. Tendo como parâmetros os escritos acerca do signo delimitados acima, entendendo-o como um código participante de um processo dentro de um sistema de significação mais amplo, a cultura. E assim pensarmos lógicas que ressignifiquem o modelo hegemônico cultural de construção sígnica do feminino, forjado pelo olhar masculino, principal construtor dos discursos históricos definidores de locais sociais. As obras serão um ponto de partida para pensarmos essa ressignificação, contribuintes para esboços de outros modos para a vivência do feminino e dos sujeitos que o compõe na construção da experiência da realidade histórica.

 

Do imaginário

 

       Para a compreensão sobre o conceito de imaginário, utilizamos como base inicial as concepções dos seguintes teóricos: Baudrillard; Durand; Lacan; Silva; Maffesoli e Morin, reunidas na obra Tecnologias do imaginário, de autoria de Juremir Machado Silva (SILVA, 2003). Para o autor, baseado nas leituras das perspectivas teóricas citadas acima, o imaginário é uma narrativa, uma trama, um ponto de vista, a vista de um ponto, uma espécie de nutriente primitivo responsável por um reservatório arcaico de imagens anteriores à cultura. Seu sistema de operação é como a língua, o indivíduo entra nela pela aceitação de suas regras, participa dele pelos atos de fala imaginal (vivências) e altera-o por ser também um agente imaginal (ator social) em situação. Ainda de acordo com a obra, para o sociólogo Michel Maffesoli, só há o imaginário social, nunca individual — o imaginário coletivo como o inconsciente social. Outro autor citado é Gilbert Durand, conhecido pesquisador do campo, para quem o imaginário é o trajeto antropológico de um ser que bebe numa "bacia semântica" (encontro e repartição das águas) e estabelece o seu próprio lago de significados. 

       Com base em tais concepções teóricas, trazemos para este artigo o conceito para a compreensão do feminino enquanto signo. Entendendo que, de acordo com os autores, é no imaginário que se formam os significados da cultura, entre eles, o do feminino e, consequentemente o seu ator social (a mulher, neste caso), condicionada à representação cultural do feminino.

Outro ponto importante da obra é a concepção sobre as chamadas tecnologias do imaginário, definidas como dispositivos de alimentação de "bacias semânticas", canais de irrigação do real pela imaginação, mecanismos de fabricação do olhar interior. Considera-se, de acordo com a definição apresentada acima, que os trabalhos que serão analisados funcionam/operam como dispositivos de criações de significações para o feminino, fabricando novos olhares interiores para a existência feminina.

Acreditamos que esse “olhar interior” é disputado por obras que oferecem construções contra hegemônicas para o feminino enquanto signo, elas elaboram visões, introduzem leituras, entre outros, fomentando assim ressignificações para o feminino sustentado historicamente pelo discurso masculino. Entendendo que o indivíduo se constrói na cultura pelo imaginário, atmosfera por onde ele se move, se cria, se estrutura, representa e se sedimenta enquanto ator cultural. Logo, se houver elaborações que visem ou que possibilitem ressignificar construções de significados firmadas no ambiente da cultura — neste caso, para o feminino —, há aberturas de apreensões para os indivíduos e eles poderão estruturar outros modos para significados já assimilados e reproduzidos ou massificados.

 

Análise fílmica

 

A obra Ensaio sobre a análise fílmica (VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 1992) é a referência teórica para auxílio das análises interpretativas, visto que versa sobre a compreensão de aspectos técnicos, contextuais e históricos das construções cinematográficas. O livro é um importante suporte para análises de elementos de reflexão do cinema (história das formas cinematográficas, instrumentos da narratologia, problemas de interpretação), assim como também de análises práticas, como os planos e sequências.

 

Metodologia

 

O processo se deu por meio de análises interpretativas das narrativas selecionadas, considerando as incidências de ressignificações do feminino enquanto signo. A análise pautou-se nos suportes teóricos das perspectivas já citadas. Feita as leituras preparatórias para as análises e as interpretações que as referências teóricas nos permitem, foram analisadas as obras Vida de menina e Que horas ela volta? em busca de incidências de ressignificações do feminino a partir das composições narrativas dos imaginários de suas protagonistas.

 

Análise (s) interpretativa (s)

 

Chegando de fato às obras, é importante situá-las. Vida de menina, produção de 2004, de Helena Solberg, é uma narrativa ficcional baseada no relato confessional de Helena Morley, uma adolescente que cresce na pequena cidade brasileira de Diamantina (MG), no século XIX, após abolição da escravatura, e recém proclamado república. Por ser uma menina, digamos, fora do padrão estético das meninas da cidade, visto que é filha de mãe brasileira e pai inglês, com traços marcadamente puxados para a sua descendência inglesa, Helena, desde muito cedo, percebe que naquele lugar ela é olhada como alguém diferente, o que a faz se achar feia. Diante desse cenário, Helena encontra na escrita uma forma de amparo para as suas queixas e sensações de não pertencimento, e de desabafo dos preconceitos sofridos, desenvolvendo assim uma olhar crítico para um mundo que, como ela, está passando por grandes transformações. A partir do olhar crítico e da percepção do que acontece ao seu redor, a personagem constrói o universo narrativo do filme. Ou seja, todo o filme nasce, desenvolve-se e finda-se a partir da narração de Helena. Ela é a voz condutora que costura a narrativa. Nela, a menina se transforma em moça, por meio de um processo de simbiose, uma evidência de como tecnologias de construção de discurso, neste caso uma obra cinematográfica, podem fomentar novos modos de assimilação do feminino para a cultura por meio do fomento de construções de subjetividades. 

Propomos que o fato de a obra trazer uma adolescente como voz condutora e construtora da narrativa incide em ressignificação do feminino enquanto signo no imaginário da cultura, porque dentro da concepção peirceana de signo, o signo é uma impressão que está posta sobre determinado significado, ele conduz um interpretante (alguém) a uma interpretação condizente com a significação que está dada para o objeto/coisa a ser interpretado. Logo, modificando a impressão para o significado do objeto, podemos modificar a interpretação que se faz para o mesmo objeto. Ou seja, o feminino hegemônico/histórico, e, portanto, dominante das significações que fazemos para o feminino, enquanto signo está estruturado sobre bases de significações forjadas para uma interpretação por um prisma patriarcal. Se trabalharmos essas impressões, ressignificando o feminino enquanto signo, ou construindo outras impressões para o feminino, como fazem as obras aqui estudadas, temos possibilidades de gerar outras impressões para o feminino que não seja a hegemônica, a dominante nas nossas interpretações, baseada em uma significação/interpretação de viés patriarcal/masculino.

A seguir, apresentamos alguns pontos que achamos indicar ressignificações:

1) Uma menina como voz condutora de uma narrativa se mostra uma ressignificação porque tende ao fomento de uma das pautas principais das lutas das mulheres na História: ter o direito à voz, exercitar o poder da fala, expressar seus sentimentos, emoções, desejos, opiniões, pontos de vistas e vistas de pontos. São diversas as narrações que a personagem faz ao longo da trama, contando ao espectador as histórias dos personagens principais (seu núcleo familiar e outros), sobre a cidade, sobre seus sentimentos, impressões sobre o seu universo — universo que a constrói e que também é passível de ser construído por ela. São diversas as cenas em que, por meio da técnica de OFF, a personagem conta as suas percepções sobre a trama, seus personagens, lugares, histórias. Podemos citar como exemplo, um dos primeiros OFFS, (9 a 10 minutos da narrativa), em que Helena conta sobre Diamantina, cidade onde ela vive e onde se passa à narrativa, e que serve também como indicativo de que Helena será a voz principal na condução da narrativa. Pode-se afirmar, sem dúvidas, que esse é o ponto principal de ressignificação na obra, tendo em vista que toda a trama é construída em cima da narração/condução do feminino representado por Helena, como também é o ponto que propicia os outros pontos de ressignificação a seguir:

2) Ao ser portadora principal do discurso de uma história/narrativa, a personagem afirma e/ou reafirma/fomenta outra pauta para o feminino: ser visto como sujeito que merece/deve ser escutado, como alguém que pode e tem algo a dizer ao mundo e aos outros, como um sujeito com poder de discurso;

3)Baseado no referencial teórico já citado, acreditamos que o mundo é uma construção discursiva formatada por várias construções de discursos, como já explicado e explicitado em linhas acimas, e que, historicamente, essas construções foram determinadas por sujeitos masculinos, portadores do poder de discurso e legitimados para serem ouvidos, lidos, acatados etc. Portanto uma obra que traz o feminino como narrador/construtor, não apenas afirma a capacidade do feminino como narrador/condutor histórico, mas também abre espaço para legitimar os sujeitos do gênero a serem ouvidos, lidos e/ou acatados na esfera pública. Ou seja, sujeitos também possíveis de possuir uma voz ativa na História, no contexto social, na cultura de um modo geral. Isso se mostra uma evidência de possibilidades de ressignificar o feminino, atacando uma de suas maiores amarras históricas, o silêncio.

Na outra obra, Que horas ela volta?, produção de 2015, de Anna Muylaert, podemos observar, e aqui defendemos enquanto evidência de possibilidade de ressignificar o feminino enquanto signo no imaginário da cultura, o protagonismo da personagem Val, vivida pela atriz Regina Casé. Val é uma mulher nordestina que precisou deixar a sua terra, sua filha e toda a sua família para trás e ir viver no sul do país para batalhar pelo sustento seu e de sua filha. Ou seja, Val é um retrato tipicamente brasileiro, mas que poucas vezes foi apresentado em um plano geral de visibilidade cultural, como em um filme, em uma narrativa centrada em seu drama existencial. Notamos que o filme gira em torno das perspectivas da personagem, de como ela vivencia a sua história de vida enredada em contexto social muito mais amplo. É Val quem discorre, é Val quem conduz, é Val quem sente. O Brasil, representado pelos outros personagens e contextos do filme, apenas a atravessa e demarca-a, mas é ela quem conta, sutilmente, sobre as linhas que cortam uma existência de mulher, nordestina, empregada e mãe.

Sim, defendo e acredito que elevar o lugar sócio-histórico e cultural de Val a um patamar narrativo interessado em discorrer sobre as angústias, aflições e outras sensações que esse lugar causa a quem o vivencia, pode ser considerada uma possibilidade de ressignificação do feminino para o imaginário da cultura. Visto que raramente é possível visualizar esse retrato feminino em um plano geral da cultura, no qual possa ser refletido, visualizado e significado, a ponto de que essas ações gerem/fomentem novas apreensões como também reflexões para esse lugar feminino ocupado por milhares de mulheres brasileiras. Val é ressignificação do feminino pelo simples fato de alçar essas mesmas mulheres a um patamar cultural de visualização que permite com que suas existências possam ser refletidas, questionadas, sentidas ou/e assimiladas. Val é ressignificação por representar um feminino/invisível social, mas visto.

Na obra em questão, podemos exemplificar e ressignificação citada na cena da festa de aniversário da patroa (minutagem: 23 min e 21 s até 24 min) em que Val atua como garçonete e resolve servir os convidados com um conjunto de xícaras que ela havia presenteado à patroa. A patroa, ao perceber o que estava acontecendo, interpela Val grosseiramente questionando-a como ela pode servir os convidados com aquele conjunto. Val lembra à patroa que ela mesma havia afirmado que o presente deveria ser guardado para ser usado em uma ocasião especial (minutagem: 18 min e 14 s). Ou seja, Val havia acreditado nas palavras da patroa e resolveu usar o presente em uma ocasião que, em sua opinião, era especial para todos da família, já que se comemorava o aniversário da dona da casa. O que ela não contava é que talvez ela (representada pelo presente) não fosse tão especial (no sentido de íntima) quanto imaginava para a família para a qual trabalhava, o que fica um tanto claro diante da atitude da patroa. Acreditamos que essa cena representa, em termos sígnicos, o feminino\invisível, mas visto que falamos acima, de alguém que atua cotidianamente (anos a fio, muitas vezes acompanhando indivíduos do nascimento até a fase adulta) em um cenário (a casa de famílias de classes altas) e que, dado o tempo que convivem ali, são muitas vezes afirmados como “parte da família”, mas que, na realidade, são apenas palavras de gratidão do que propriamente expressão de um sentimento de pertencimento familiar propriamente dito. Logo, podemos afirmar que há ressignificação no feminino representado por Val em trazer a um plano geral signos que colocam questões como essa em visibilidade, o que podem proporcionar discussões e debates acerca desse feminino “doméstico”, invisível, mas visível, e de sua existência em nossa cultura.

 

Resultados

 

Importante recordar que este artigo está baseado nos estudos da semiótica, ciência que defende a apreensão do mundo através de estruturas sígnicas que mediam a relação entre os indivíduos e as realidades, e procura investigar obras cinematográficas que apresentam possibilidades para experiências de ressignificação da percepção/assimilação do feminino enquanto signo no imaginário da cultura. Parte-se da compreensão do termo ou vivência feminina como uma impressão que está posta sobre determinado sujeito/objeto/palavra, processo conceituado pela semiótica como signo (SANTAELLA, 1983). Sabemos que historicamente a inserção do feminino enquanto signo/significado no imaginário da cultura ocorreu de forma hegemônica a partir de perspectivas óticas subjetivantes forjadas sob o olhar masculino (LAURETIS, 1984; DEL PRIORE, 2000). Essa afirmação se dá tendo como pano de fundo a visão do feminino pelo prisma do paradigma patriarcal, ou seja, a representação de um feminino objetificado e subserviente da existência do sujeito masculino, configuradas a partir da lógica do homem enquanto principal construtor e narrador da história hegemônica ocidental (BEAUVOIR, 1960a). Acredita-se que uma das principais formas de efetivar essa representação se deu por meio de estruturações de imaginários para apreensão do ambiente da cultura. Entre elas, processos de criação de obras audiovisuais que funcionaram/funcionam como campos de fomento de significações, auxiliando nas assimilações do que será/é experienciado como real ou realidade. De acordo com Juremir Silva, pesquisador do campo, podemos denominar essas obras como “tecnologias do imaginário, dispositivos de alimentação de ‘bacias semânticas’, canais de irrigação do real pela imaginação, mecanismos de fabricação do olhar interior” (SILVA, 2003, p. 35). 

Tendo em vista o horizonte lógico proposto acima, compreendemos que dentro da estrutura de significação dos gêneros e de seus papéis de representação social no imaginário da cultura, configurada hegemonicamente pelo olhar masculino (MULVEY, 1983), foi relegado ao lugar do feminino a configuração de uma existência moldada para o serviço da existência do masculino. Para o feminino não foi/está configurado o lugar de construtor e narrador histórico da cultura e de sua existência, mas a objetificação de uma existência condicionada a servir o masculino, este sim, sujeito histórico, construtor e narrador dos discursos da cultura e de sua própria existência. Considerando-se o fato de que as tecnologias de imaginário estiveram/estão entre os aparatos mais utilizados nas formulações para a apreensão do ambiente cultural, entre elas, a representação do feminino, fica claro que obras como as analisadas neste artigo, propõem, mesmo que minimamente ou de alcance ínfimo, novas experiências para apreensão/assimilação do feminino e possibilitam outras formas de vivenciar o gênero no ambiente cultural. Considerando o campo da linguagem como uma zona de reconstituição e disputa das representações sócio-históricas e culturais experienciadas. 

 

Conclusão

 

Diante do contexto apresentado que circunda a representação do feminino, e a reverberação desse fato em sua existência sócio-histórica e cultural, nota-se a necessidade de suportes teóricos, como este, que reflitam sobre as significações que demarcam o existir social feminino. Este artigo se pauta sobre essa perspectiva de necessidade, tendo em vista refletir como os dispositivos de fomento de construção das representações, formadores de modos de conceber e representar o real, também podem contribuir como ferramentas de ressignificação do quadro/retrato hegemônico acerca do existir feminino inserido na narrativa histórica patriarcal. Considerando a necessidade de atuarmos para transformações da realidade histórica que circunda o feminino a partir de sua representação, assim podemos projetar interferências nas condições de elaboração e vivência do feminino na realidade histórica. Sendo assim, esta proposta teórica se apresenta como um projeto político, estético e crítico feminista para atuar na ressignificação do imaginário social e cultural acerca do universo feminino. Na transformação dessa impressão. O signo de si ressignificando o signo feminino e como esse processo pode mudar o cotidiano da mulher, nos permitindo avançar em um caminho mais direcionado à igualdade. Quais são as possibilidades de ressignificar o feminino enquanto signo residente em produções construídas via tecnologias do imaginário? Como esses processos aliados a produções de autorias femininas que engendram significações para o feminino, contribuem para ressignificar o feminino enquanto signo estruturado sob a ótica masculina? Como essas ressignificações permitem desconstruir/reconstruir e/ou reconstituir o feminino enquanto signo no imaginário da cultura e assim interferir nas construções de experiências para os sujeitos femininos? São questões que ecoam neste artigo e se fortalecem nas descobertas.

 

Referências

 

ALTHUSER, Louis. Aparelhos ideológicos do estado. Rio de janeiro: Graal, 1970.

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: a experiência vivida. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1960b.

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Recebido em: 06/08/20.

Aceito em: 28/09/20.

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n25.54369.p189-205

 

 



* Mestra em artes cênicas pelo PPGAC/UFBA/Brasil. Professora da Rede Estadual de Ensino da Bahia/Brasil. E-mail: denisemadalenafirmo@gmail.com.