SOCIOLOGIA PÚBLICA E A INSERÇÃO DA SOCIOLOGIA NO CURRÍCULO DA EDUCAÇÃO BÁSICA BRASILEIRA:
uma reflexão sobre o papel e a relevância pública desta ciência na sociedade

PUBLIC SOCIOLOGY AND THE INSERTION OF SOCIOLOGY IN THE BRAZILIAN BASIC EDUCATION CURRICULUM:
a reflection on the role and public relevance of this science in society

 

Ana Olívia Costa de Andrade*

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DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n25.54903.p98-125

 

Resumo

Esse artigo discorre sobre como a ideia de sociologia pública do sociólogo norte-americano Michael Buroway junto à inserção obrigatória da sociologia no currículo do ensino médio brasileiro suscitou diferentes percepções e disputas retóricas em relação ao papel da sociologia e de que forma esta ciência pode se tornar mais ou menos relevante para a sociedade não acadêmica. Este trabalho é fruto de uma monografia (ANDRADE, 2014) que investigou os debates referentes ao tema a partir de revisão bibliográfica dos trabalhos de professores e intelectuais que protagonizaram as discussões referentes ao processo de reinserção da sociologia no ensino médio brasileiro em 2008. Também a partir de pesquisas bibliográficas sobre a ideia de sociologia pública. No centro desse debate, é posto sempre em oposição a defesa de um caráter neutro que visa caracterizar a sociologia como científica versus a defesa de uma sociologia capaz de intervir nos acontecimentos da sociedade para caracterizá-la como socialmente relevante. É uma reflexão que nos leva a pensar para que serve a sociologia, o seu papel na sociedade e como a sociologia pode ultrapassar os muros da universidade e adentrar nas trincheiras da política e da sociedade civil sem perder o seu rigor científico.

Palavras-chave: Sociologia Pública; Sociologia no Ensino Médio; Intervenção Social; Neutralidade Científica.

 

Abstract
This article discusses how the idea of ​​public sociology of the American sociologist Michael Buroway, together with the mandatory inclusion of sociology in the Brazilian high school curriculum, raised different perceptions and rhetorical disputes regarding the role of sociology and how this science can become more or less relevant to non-academic society. This work is the result of an undergraduate monograph (ANDRADE, 2014) that investigated the debates related to the theme based on a bibliographic review of the works of teachers and intellectuals who led the discussions regarding the process of reinserting sociology in Brazilian high school in 2008. It also drew upon bibliographic research on the idea of ​​public sociology. At the center of this debate we find an opposition between on the one hand a defense of its neutrality that aims to characterize sociology as scientific, versus, on the other hand, a defense of a socially relevant sociology capable of intervening in the events of society. It is a reflection that prompts us to think upon about the aim sociology, its role in society and how it can extend beyond the walls of the university and enter the trenches of politics and civil society without losing its scientific rigor.

Keywords: Public Sociology; Sociology in High School; Social Intervention; Scientific Neutrality.

 

 

Introdução

 

No decorrer da formação em ciências sociais, é possível que uma parte significativa dos estudantes tenha tido um pouco de dificuldade para responder de forma objetiva as seguintes indagações: Para que se formar em ciências sociais? O que faz um cientista social? Sociologia para quê? Dado que o curso não apresenta para o cidadão comum clareza de sua utilidade, por isso pouco conhecido socialmente, encontrar uma resposta clara, unânime e objetiva para estas questões, sem tratá-las genericamente e a ponto de conseguir sanar a dúvida de quem questiona, não é uma tarefa simples, tampouco obrigatória, mas nos leva a refletir sobre a relevância pública de nossa formação e para que serve na prática para a sociedade a ciência que estudamos (ANDRADE, 2014).

Ao tentar formular uma resposta específica para as questões acima, este artigo se propõe a discutir a inserção obrigatória da disciplina de sociologia no currículo do ensino médio brasileiro, à luz da proposta de sociologia pública formulada por Michael Burawoy, sociólogo norte-americano contemporâneo, que foi presidente da Associação Sociológica Americana (ASA) em 2004. No âmbito desta, expôs uma conferência intitulada “Por uma sociologia pública”, propondo teses favoráveis a uma sociologia pública. Apresentando-a como uma forma de sociologia além de uma ciência acadêmica, assim como uma “força política e moral”, capaz de produzir conhecimento sociológico de forma “engajada” com variados públicos extra-acadêmicos, principalmente com os “segmentos subalternos”, a fim de reagir às consequências de um “fundamentalismo de mercado”.

A proposta de sociologia pública traz consigo o ideal de intervenção nos acontecimentos da sociedade e nas disputas políticas, pretendendo, contudo, não deixar de lado a objetividade científica e o rigor acadêmico. Isto traz certa repercussão sobre ser esta — de fato — uma forma de fazer a sociologia relevante publicamente (BRAGA, 2009; BURAWOY, 2009a), ou conforme os críticos dessa ideia, se não seria apenas uma forma de usar a sociologia para moralizar e doutrinar as pessoas com ideologias marxistas, se distanciando de um caráter científico e neutro (TURNER, 2009; SCHWARTZMAN, 2010). Essa mesma reflexão aparece também nos debates em torno da inserção da sociologia como disciplina obrigatória no currículo do ensino médio brasileiro (SILVA, 2009; COSTA, 2014; MORAES 2014), levando-nos à necessidade de retomar um pouco da história em torno desta ciência e suas diferenciadas concepções, assim como a buscar entender uma possível relação entre esse ideal de sociologia pública e o caso da introdução da sociologia como disciplina da educação básica do país, principalmente no contexto do século XX (ANDRADE, 2014).

Tanto a proposta de sociologia pública de Buroway quanto a inserção da sociologia no ensino médio dividem opiniões e revelam diferentes atribuições de papéis à sociologia, assim como diferenciadas formas de compreendê-la. Pensar qual o papel (no sentido de relevância e utilidade) da sociologia para a sociedade, tendo em vista que se trata de uma ciência tradicionalmente acadêmica, a qual se ocupa do estudo do mundo social e seus fenômenos, faz com que as compreensões em relação a esse papel se depare numa espécie de dilema entre os ideais de neutralidade científica e da sociologia como uma forma de intervenção nos acontecimentos sociais. Assim surgem diferentes visões sobre a sociologia e o papel que ela deve desempenhar, e conhecer estas visões é importante para compreender disputas e posicionamentos que cercam a ciência da sociedade (FERNANDES, 1954; BRAGA, 2009; BURAWOY, 2009a; DURHAM, 2010; TURNER, 2009; SILVA, 2009; SCHWARTZMAN, 2010; ANDRADE, 2014; COSTA; 2014; MORAES, 2014).

 

O que é sociologia pública?

 

Sociologia pública ou sociologia que engaja variados públicos para facilitar uma organização contrária a um “fundamentalismo de mercado”; trata-se de um debate sobre “uma prática sociológica organizada em torno da centralidade axiológica do conhecimento dos subalternos, engajada com diferentes públicos extra-acadêmicos organizados em movimentos sociais progressistas” (BURAWOY, 2009a, p. 13). Seu precursor defende que essa prática sociológica seria uma contraposição ao “despotismo” do Estado e ao “absolutismo” do mercado.

Michael Burawoy, sociólogo marxista, reflete a respeito do “fazer sociológico” no contexto da crise mundial do sistema capitalista do ano 2008. Ele acredita que os sociólogos compartilham de uma ambição e missão comum que seria uma contraposição ao paradigma baseado no chamado “fundamentalismo de mercado”. Nesse sentido, para Burawoy (2009a), é função dos sociólogos canalizarem as consequências da crise do capitalismo mundial para a criação de uma sociedade civil mais forte e democrática, assim como para uma esfera pública potente e inclusiva.

“Fundamentalismo de mercado” é um termo que Burawoy usa para se referir a dinâmica de funcionamento da economia capitalista e suas crises, o que se estende a todas as relações sociais, fazendo com que a formação, o comportamento e as relações pessoais e de trabalho estejam cada vez mais enviesados pela lógica do sistema de produção vigente. O autor sugere que a crise do capitalismo iniciada no Japão em 1990, alcançando posteriormente os Estados Unidos e o resto do mundo — devido à “desregulação financeira, privatização da natureza, dos serviços sociais e repressão que afeta o trabalho” (BURAWOY, 2009b, p. 234) — trouxe uma recessão mundial, e lembra-se do declínio financeiro que resultou na Grande Depressão de 1930, responsável por suscitar o fascismo, stalinismo e, por outro lado, a socialdemocracia e o New Deal. Com isso, o autor pensa que a conjuntura de 2008 também traria para o contexto contemporâneo dificuldades e novas saídas.

Como nova saída para a última crise do capital e como função dos sociólogos, Burawoy sugere que eles se prendam a seus próprios interesses para canalizar as reações ao colapso do sistema capitalista, direcionando-as para fomentar uma sociedade civil organizada, ativa e inclusiva e com maior participação dos cidadãos. Isso seria não só a atitude mais progressista a se tomar, mas se daria porque, conforme Burawoy (2009b), a vitalidade da sociologia está na base da sociedade civil. Isto posto, o autor fala que, em tempos de incertezas, a sociologia pública, ou sociologia do engajamento com variados públicos, terá chances e obrigação de defender os fundamentos da sociologia, consequentemente, o interesse comum e universal, que, para o autor, seria reagir ao fundamentalismo de mercado.

Burawoy defende que, ainda que com diferentes posicionamentos e perspectivas, os sociólogos partilham de um “programa distintivo” que se enraíza na defesa e na expansão da sociedade civil e, por isso, têm o interesse comum de responder e combater o fundamentalismo de mercado e a crise financeira que ele provoca. O autor acredita que devido ao contexto histórico, os sociólogos públicos deixarão seus “covis acadêmicos” para assumir papéis e influenciar na direção da sociedade.

O autor apresenta dois tipos de sociologia pública: a tradicional e a orgânica. A primeira sendo formada por sociólogos que trouxeram questões privadas para o âmbito público, sociólogos renomados com Anthony Giddens, Pierre Bourdieu, entre outros, os quais, por meio de um exercício sociológico, mostraram a ligação entre a microexperiência individual e a macroestrutura social. Esse tipo de sociologia pública se dirige a públicos amplos, passivos e que não subsistiriam numa sociedade de massas. Burawoy explica que Bourdieu entendia que “as pessoas comuns eram impermeáveis à mensagem sociológica. Habituadas à submissão, elas não podiam entender as condições da sua própria existência submissa” (BURAWOY, 2009b, p. 237), e questiona, então, para quem o sociólogo escrevia. Já Anthony Giddens, também apontado como exemplo de um sociólogo público tradicional, entende, segundo Burawoy, que as pessoas comuns absorviam de forma rápida a mensagem da sociologia, a ponto de transformar o pensamento sociológico do agora em sabedoria popular no amanhã. De todo modo, ambos aderem à noção de que a educação sociológica teria que ser hierarquizante, de cima para baixo.

Por outro lado, a sociologia pública orgânica pressupõe que nas “comunidades subjugadas” existe sensatez contida no senso comum das pessoas. Sendo assim, a educação sociológica é um diálogo não mediado entre o sociólogo e o público, diferente da sociologia pública tradicional que era direcionada ao público, mas mediada pelas mídias. Exemplos de sociólogos públicos orgânicos seriam Antonio Gramsci, Alain Touraine com a sociologia da ação; educadores como Paulo Feire e feministas como Dorothy Smith, isto porque todos realizavam seus trabalhos a partir de experiências com os oprimidos. Nessa perspectiva, os públicos são mais ativos, densos e locais. É um tipo de sociologia que trabalha nas “trincheiras” da sociedade civil, não sendo tão visível quanto a sociologia pública tradicional, que só é eficaz se tiver visibilidade.

Os sociólogos públicos orgânicos precisam equilibrar três conjuntos de relações de poder: “dentro da comunidade acadêmica, que, com frequência, condena e rejeita tais engajamentos; o 2º, entre o próprio sociólogo e a comunidade com a qual ele se compromete; e o 3º, as relações de poder dentro daquela comunidade estudada” (BURAWOY, 2009b, p. 237). Enquanto o sociólogo público tradicional menospreza o contato e os encontros com os públicos (os têm como “contaminantes”), o sociólogo público orgânico menospreza o conhecimento restrito à Academia, o tendo como subserviente do poder. Há uma hostilidade recíproca entre os tipos de sociólogos públicos devido à hierarquia acadêmica; porém um tipo complementa o outro, pois a sociologia pública tradicional legitima a orgânica, enquanto essa lhe concede vitalidade e imaginação procedente de seus engajamentos públicos.

Além do exposto, o autor apresenta um tipo de divisão do trabalho sociológico em suas formulações centrais da ideia de sociologia pública, a partir de quatro tipos do “fazer sociológico”: o púbico, profissional, para políticas públicas e crítico. A sociologia para políticas públicas seria a resolução dos problemas oriundos de seus clientes (Estado, ONG’s, um político, instituições, sindicato ou qualquer entidade com recursos para ter a prestação de serviços de um sociólogo subordinado); a sociologia crítica, que estabelece o diálogo entre os sociólogos a respeito das bases da sociologia profissional; e a sociologia pública, a qual institui um contato com os públicos além da academia sobre os fundamentos da sociedade. Desse modo, o conhecimento instrumental direcionado ao público acadêmico seria a sociologia profissional; ao público extra-acadêmico seria a sociologia para políticas públicas; o conhecimento reflexivo para o público acadêmico seria a sociologia crítica, para o público extra-acadêmico seria a sociologia pública BURAWOY, 2009a).

 

A resistência à ideia de sociologia pública

 

A proposta de sociologia pública apresentada por Michael Burawoy repercutiu no meio acadêmico e, com isso, foi submetida a algumas críticas que, de certa forma, colaboram para uma maior compreensão a respeito da ideia do autor. Algumas serão elucidadas neste tópico, o qual tem por finalidade mostrar a relevância da sociologia pública para a Academia e os debates suscitados por ela.

De modo geral, os críticos da sociologia pública de Burawoy questionam, principalmente se há mesmo possibilidade de junção dos interesses das classes subalternas à ciência sociologia. Alegam que a sociologia pública se resume a um marxismo camuflado que objetiva dominar a sociologia como um todo. Criticam também a forma como Burawoy concebe a sociedade civil, julgando que é como se ela fosse a base principal e necessária para sustentar uma nova ciência. Essas são as mais comuns e compartilhadas críticas à sociologia pública (BRAGA; BURAWOY, 2009).

Dentre os principais críticos, destaca-se (por publicar mais diretamente sobre o assunto) o sociólogo norte-americano Jonathan Turner, que no artigo, Contra a sociologia pública: será ela a melhor forma de tornar a sociologia relevante? reúne suas principais indagações a respeito da sociologia pública de Burawoy. É fato que Turner não é o único a criticar a proposta de Burawoy, nem o que lhe conferiu a crítica mais severa — apontada por Braga (2009) como sendo a de Mathieu Deflem, que diz não ser a sociologia pública nem sociologia, nem pública —; porém, no citado texto de Turner, convergem as mais recorrentes e corriqueiras críticas a Burawoy (ANDRADE, 2014).

Turner (2009) interpreta a proposta de sociologia pública de Burawoy como sendo o veículo que levaria a sociologia crítica radical a ser dominante. O autor alega que se os sociólogos passassem a expor suas políticas aos variados públicos, estes perderiam ainda mais o interesse em se ater ao que dizem os sociólogos, principalmente em sociedades capitalistas, como os Estados Unidos. Isso porque, no mundo repleto de problemas de organização social, Turner considera mais seguro seguir um modelo de sociologia que pode ser “levado a sério” do que a uma sociologia imersa de ideologia, que não pode fortalecer a credibilidade pública dos sociólogos, tampouco conceder-lhes um espaço no poder, no qual se tomam decisões importantes sobre demandas da sociedade, interferindo na vida das pessoas (ANDRADE, 2014).

Turner afirma ser gratificante ver sociólogos sendo consultados e tratados como especialistas pela mídia para retratar alguns assuntos, porém alerta para o risco de, assim como outros grupos de profissionais que são convidados a opinar sobre assuntos que ganham atenção da mídia, ficarem os sociólogos conhecidos apenas como “cabeças falantes” na televisão. Para o autor, a única forma de ter esperanças em uma sociologia que discurse para variados públicos é ter a ciência como disciplinadora do discurso, mas como é claro, o comprometimento da sociologia pública com uma ideologia em especial e suas tendências de esquerda, há nesse caso poucas possibilidades de disciplinamento da sociologia pública por parte da neutralidade da ciência. Vejamos nas palavras do próprio Turner:

 

Muito do que se apresenta como sociologia constitui-se, essencialmente, num caminho ideologicamente percorrido sobre o que é bom para as pessoas e para a sociedade, na grande maioria totalmente fora do controle da explicação científica, de como o mundo social realmente funciona. Na realidade, muitas vezes a ciência é vista como o “inimigo” de uma sociologia ideologicamente orientada. Se os sociólogos ficarem expostos dessa maneira a públicos cada vez mais amplos, quase sempre mais conservadores do que eles, vamos nos distanciar deles, perdendo, assim, aquilo que aspiramos a exercer: a influência (TURNER, 2009, p. 256).

 

É possível perceber, neste fragmento, a preocupação do autor referente à cientificidade da sociologia perante a sua representação pública, defendendo ser esta ciência capaz de exercer influência na sociedade apenas se conseguir manter-se como científica. Para tal, precisaria se abster de um caráter puramente ideológico, que seria o que Burawoy vem apresentando como proposta de uma sociologia pública. Para Turner, o que a sociologia pública pretende é engajar o público como “cruzados morais”, o que tende a reduzir um pouco mais a influência já limitada dos sociólogos, mediante debates públicos e decisões importantes. Tendo isso em vista, o autor defende:

 

Ao invés de partir para as cruzadas públicas, a sociologia precisa resolver algumas divisões fundamentais referentes à sua prática — divisões que a sociologia pública não consegue e que, na realidade, não tem interesse em resolver. Uma delas é a divisão, há longo tempo, entre os que desejam ser neutros em relação a valores e os que querem defendê-los, ou a divisão entre ciência versus moral (ética). Outra separação é a retórica de anticiência da maior parte da sociologia contemporânea, seja da sociologia crítica ou a crença filosófica na impossibilidade de uma ciência natural do processo social. Outra, conforme observa Burawoy, é a divisão entre a sociologia para políticas públicas, ou o que chamarei de sociologia aplicada ou prática sociológica, e todas as outras sociologias. [...] Assim, a sociologia possui uma imensa casa que precisa ser organizada antes de engajarmos o público com o que temos. E o que temos mesmo? Conhecimento acumulado? Percepções teóricas comprovadas? Indignação moral? Não ficou claro para mim que a sociologia tenha tudo isso a oferecer ao público no estado atual (TURNER, 2009, p. 256 - 257).

 

O autor vê necessidade em definir o que Burawoy pretende que seja apresentado como sociologia aos públicos, por isso mostra essa série de problemáticas apontadas acima, que ainda não estão sanadas dentro da própria sociologia. Turner alega ser a missão de Burawoy tornar a sociologia uma ciência moral, que possa ser um pouco disciplinada pela sociologia profissional, mas tendo como objetivo principal que o engajamento da sociologia seja moral, a fim de desafiar fundamentos, debates, decisões e suposições éticas. Contra isso, Turner defende que os sociólogos não teriam sucesso ou muita competência pública, crítica, científica ou aplicada, se tudo o que pudessem oferecer à sociedade fosse indignação, camuflada por um extremismo político (ANDRADE, 2014).

Turner coloca que é mais necessário mostrar ao “mundo externo” o poder da sociologia como ciência, ao invés de expor as convicções morais dos sociólogos. Para o autor, Burawoy acaba por querer subordinar a ciência sociológica a uma pregação moral, e isso, no lugar de dar à sociologia um caráter público, afastaria os que poderiam ser influenciados por ela. Para evitar que a moral e ideologia prevaleçam sobre a análise sociológica, tornando os sociólogos verdadeiros cruzados morais, é necessário ter o propósito firme de manter critérios pessoais e morais longe da ciência. Moralizar e submeter a sociologia a uma ideologia é a forma mais rápida de torná-la irrelevante, segundo Turner, pois os públicos e clientes que passam por problemas não precisam que sociólogos os estimulem a se engajar, mas precisam de organização, poder e dinheiro, algo que os sociólogos não poderão oferecer diretamente. Os públicos mais abrangentes, com necessidades inúmeras, poderão não receber bem pronunciamentos sociológicos morais, ou com orientações de esquerda, pois o que eles precisam é de dados e de explicações que ultrapassem suas preconcepções e ignorância.

Turner esclarece a sua resistência a um tipo de sociologia orientada por valores, e uma defesa da neutralidade e do caráter científico da sociologia. Nesse embate entre as ideias de Turner e Burawoy, fica visível uma disputa referente ao que pode ser considerado como papel da sociologia e do sociólogo. Enquanto Burawoy defende uma prática sociológica que engaje o público mais amplo a respeito dos conflitos e interesses sociais, Turner entende que a sociologia precisa resolver seus problemas internos, se apresentar enquanto ciência para então poder influenciar externamente.

Esses debates sobre o que seria o papel da sociologia também se apresentaram de forma muito semelhante na discussão que cercou a obrigatoriedade do ensino de sociologia na educação básica brasileira. Enxergar a sociologia como uma ciência neutra, ou como uma ciência que tem por finalidade intervir nos rumos dos acontecimentos sociais está no centro das diferentes concepções da relevância social e do papel da sociologia, por isso, no tópico a seguir, trataremos um pouco dos discursos que fundamentaram a inserção desta ciência no currículo escolar.

 

No ensino médio brasileiro, a sociologia deve ser neutra ou intervencionista? Qual o seu papel nesse espaço?

 

Vimos que existem concepções diferenciadas do que venha a ser o papel da sociologia. Isto é algo problematizado desde os escritos da considerada tríade clássica de autores desta ciência: a sociologia deve ser compreensiva, como desenvolveu Weber: “significa uma ciência que pretende compreender interpretativamente a ação social e assim explicá-la em seu curso e seus efeitos” (WEBER, 1994, p. 03); em outras palavras, deve ter por objetivo apenas compreender o significado da ação social dos indivíduos? Deve ser transformadora da realidade e guiar a construção de uma nova sociedade, como sugere a tradição marxista: “até hoje os filósofos se contentaram em contemplar a realidade, mas o que importa é transformá-la”? (MARX; ENGELS, 1982, p. 03). Ou deve ter a função de localizar quais as partes do organismo social apresentam problemas e, assim, restaurar seu bom funcionamento, como sugere a perspectiva positivista que influenciou Durkheim?

Dentre essas três concepções de sociologia, quando se trata de ensiná-la na educação básica brasileira e de pensar a sociologia pública, as discussões tendem a ficar entre o método compreensivo, influenciado pelo individualismo metodológico e desenvolvido por Weber — o que confere certa neutralidade política à ciência —, e a forma intervencionista e revolucionária provinda da tradição marxista —, a qual traz para a  disciplina um caráter político e divide opiniões se ela torna-se mais ou menos irrelevante por isso. Aparentemente, a garantia de cientificidade da disciplina se equilibra entre os ideais de intervenção e neutralidade. Discutir a importância da sociologia como disciplina no ensino médio — que tem como um de seus propósitos formar os alunos para o exercício da cidadania — vem sendo uma forma de pensar, de modo geral, qual a relevância pública desta ciência. Para que sociologia? Qual o papel intelectual de sociólogo? 

Para que seja pertinente uma análise a respeito da ideia de sociologia pública e sua possível relação com a inserção obrigatória da sociologia no ensino médio brasileiro, se faz necessária a reconstituição de alguns pontos importantes desse processo de inserção. Diante disso, é válido ressaltar que o debate a respeito do ensino obrigatório da sociologia na educação básica se desenvolve no país desde a década de 1940, embora não de forma sistemática, pois o assunto só vinha à tona quando a disciplina aparecia nas reformas educacionais.

 Um dos percussores da defesa do ensino da disciplina no nível básico foi Florestan Fernandes, o qual, em 1954, no primeiro Congresso Brasileiro de Sociologia, escreveu o texto O ensino de sociologia na escola secundária brasileira (FERNANDES, 1954). Nesse texto, o autor falava da importância do ensino da disciplina para a formação de um cidadão capaz de entender e participar de forma crítica diante dos conflitos da sociedade moderna, mercantil, urbana e industrializada. Para Fernandes (1954), aprender sociologia na educação básica possibilitaria maior participação de pessoas na democracia em prol do desenvolvimento social.

Ao pensar sobre o ensino da sociologia no ensino médio, Florestan Fernandes encontrava-se imerso no contexto das discussões a respeito do desenvolvimento nacional do Brasil, que estava em voga na década de 1950, desdobrando-se em temas como ampliação de participação democrática dos vários setores sociais da sociedade brasileira e universalização dos direitos sociais e da cidadania. O autor entendia a educação como um processo social importante para pensar possibilidades e dificuldades do desenvolvimento do país. Para ele, a mudança social construtiva na sociedade brasileira partiria da educação se esta orientasse a formação de um cidadão capaz de criticar e ter ciência do andamento da nova ordem social.

Florestan Fernandes (1985) percebia o ensino da sociologia como indispensável para engrandecer a autonomia dos indivíduos por meio da crítica e reflexão, estando assim aptos para conhecer e participar do dinamismo da sociedade. O argumento do autor sobre o ensino da sociologia no nível médio refletia uma posição política preocupada com o caráter formativo desse grau de ensino, contrapondo-se ao modo “aquisitivo, enciclopédico e propedêutico”.

Para Florestan Fernandes, ter conhecimento das ciências sociais significava que as pessoas não seriam alienadas de seus interesses e da ação política democrática, não ficariam à mercê da ordem vigente, mas poderiam agir ativamente na transformação social. Com isso, pode-se dizer que, para o autor, ter sociologia no nível médio era importante para a ampliação da participação democrática de cidadãos com autonomia, com consciência dos fenômenos sociais.

Florestan Fernandes nos permite perceber — além do fato que o debate em torno da sociologia como disciplina no ensino básico não é recente — que tais discussões estão, historicamente, atreladas a um ideal quanto ao papel da sociologia e a disputas a respeito do tipo de formação adequada. Podemos ver essas mesmas questões ilustradas no texto O papel da sociologia no currículo do ensino médio, de Ileizi Luciana Fiorelli Silva (SILVA, 2009). Nesse texto, a autora defende que a sociologia só tem sentido no ensino médio se estiver dentro de um projeto delimitado de educação, de formação de adolescentes, jovens e adultos. Além disso, enfatiza que o papel da disciplina na educação básica, ainda que discutido desde a década de 1940, está em construção.

Silva (2009) argumenta que a sociologia só fará sentido em uma estrutura de currículo que preze por uma educação científica e humanista. Dessa forma, o ensino da sociologia deve possibilitar o desenvolvimento da capacidade de distanciamento e envolvimento. Ou seja, os estudantes devem compreender o meio social no qual estão inseridos, os conhecimentos adquiridos na escola, os valores da sociedade, do capitalismo e de sua religião de origem a partir do estranhamento desses fenômenos tidos como naturais.

A autora considera os princípios epistemológicos “estranhamento” e “desnaturalização” — apontados nas Orientações curriculares do ensino médio-sociologia (BRASIL, 2006) — como necessários para o ensino da sociologia na educação básica. Esses princípios seriam formas de problematizar os fenômenos sociais, com o objetivo de conhecê-los e vê-los como antinaturais. Ela alega que a capacidade dos jovens de se envolverem com a compreensão de seu meio social possibilitará que elaborem novos métodos de explicação e de envolvimento com tais fenômenos. Então ela sustenta que o objetivo do ensino da sociologia é mudar os padrões de distanciamento e envolvimento dos jovens em relação à vida social:

Os olhares dos alunos deverão ser alterados pelos “óculos” das teorias sociais. Seus olhares deverão se desprender das imagens já construídas sobre a escola, os professores, os pobres, os ricos, as igrejas, as religiões, a cidade, os bairros, as favelas, a violência, os políticos, a política, os movimentos sociais, os conflitos, as desigualdades, entre outros. O que significa alterar os “olhares” dos nossos alunos? Significa doutriná-los em nossas convicções religiosas e políticas? Significa dizer para eles que tudo o que eles pensam é senso comum, não serve para o exercício da razão? Significa afirmar-se com um discurso moralista ou revolucionário? Certamente que não! Mesmo que a neutralidade não exista na elaboração dos programas da disciplina e das aulas, um certo rigor é necessário (SILVA, 2009, p. 11).

 

Silva (2009) também relembra que, muitas vezes, o ensino da sociologia foi direcionado como um mecanismo de introjeção de valores, sejam conservadores, progressistas, democráticos, socialistas ou revolucionários. Ela reconhece a tarefa difícil que é levar os alunos ao conhecimento mais completo da sociologia, pois isso requer delimitações de conteúdo, recortes teóricos, entre outras questões. Também aponta como limitação o tempo de aula no ensino médio, o qual é curto, representando outro fator de dificuldade. Com isso, o docente é levado a escolher o que ele acha melhor, ou o que ele tem o domínio maior para tratar como conteúdo em sala de aula. Ela acredita que se deve ter autonomia nessa delimitação do que ensinar, mas alerta para o cuidado que é preciso tomar com a essência da ciência de referência.

Focando um pouco mais no aspecto de funções conferidas à sociologia, mostra-se relevante citar o trabalho de Juarez Lopes de Carvalho Filho, o qual, no texto O ensino de sociologia como problema epistemológico e sociológico, realiza uma discussão interessante a respeito das noções de papel e utilidade atribuídos à disciplina. Carvalho Filho (2014) cita o sociólogo francês François Dubet (2011) que afirma não existir sociólogo que não concorde com Durkheim quando ele fala que a sociologia não seria digna de uma hora sequer de esforço se não houvesse crédito em sua utilidade. Porém acreditar na utilidade da sociologia provém não só de razões intelectuais, mas visa à transformação da sociedade moderna e à necessidade que a sociologia tem de construir uma representação social do mundo. O autor, ainda analisando o sociólogo francês, assegura que é preciso se precaver a respeito do que se entende por utilidade, porque tanto a ciência — como a sociologia — objetiva primeiramente produzir conhecimento, não podendo submeter-se a algum princípio de serventia. Nesse caso, se faz necessário falar de utilidade no sentido de papel ou vocação.

Carvalho Filho (2014) observa que duas razões apontadas pelo autor Bernard Lahire (2002) são essenciais para pensar na necessidade de os sociólogos discutirem o papel da disciplina no curso da história: primeiramente, pelo fato de a sociologia ser vista como menos científica que outras ciências, a exemplo das ciências naturais. Segundo, porque a sociologia é levada, pelo seu próprio objeto, a achar (mais que as outras ciências) questionamentos e/ou justificações de seus resultados, por ser uma ciência obrigada a desmanchar mal-entendidos e a dedicar-se a explicações, mais que a fornecer resultados.

 Carvalho Filho (2014) sugere que algumas tentativas de defesa da utilidade da sociologia, de definição da sua função social e legitimação científica, assim como a profissionalização dos sociólogos, foram essenciais para aumentar a representatividade da disciplina no ensino superior e secundário. O autor também alega que na luta pela institucionalização da sociologia no ensino médio fica evidente que as funções de “educar para cidadania”, preparar para o mercado de trabalho e ensinar valores são atribuídas a esta ciência.

O debate sobre a sociologia ser obrigatória no ensino médio também suscitou críticas e posicionamentos contrários de sociólogos, como por exemplo, Costa (2014) alega que o que está tentando ser colocado como disciplina de sociologia não é de fato sociologia, mas uma espécie de “Moral e Cívica de esquerda”, pois se trata de uma doutrinação. Para ele, o currículo brasileiro é uma “aberração” por ser impraticável, pois a quantidade de disciplinas é muita, e a grade curricular para os conteúdos de cada uma é bastante aprofundada, com muitos detalhes, formada por uma composição de interesses e pressões das corporações profissionais, visando mais uma reserva de mercado que uma formação escolar. Isso converge para a falta de possibilidade de prática desse modelo de currículo (ANDRADE, 2014).

Costa (2013)  sustenta que a escola não deve ser um lugar de doutrinação; e o que pode ser o motor para a entrada da sociologia no ensino médio é justamente a esperança de que ela seja “moralizadora”, o que vai contra o que a sociologia é de fato, pois ela segue a direção contrária. Há também interesses coorporativos por trás desta inserção. Essa obrigatoriedade talvez não seja fruto apenas da “ignorância” a respeito do que seria a sociologia, mas pode de fato existir pessoas que prezem por transformar a escola em um ambiente de moralização, usando, em vez disso, a palavra “conscientização”, o que resultaria numa ineficácia total (ANDRADE, 2014).

Schwartzman (2010), ao questionar o modelo de currículo de sociologia apresentado no Rio de Janeiro, ainda que se referindo especificamente àquela proposta, acaba por expressar certos temores em relação à inserção obrigatória da disciplina. O autor diz que uma sociologia bem “dada” mostra as variadas possibilidades de visão de mundo, não envereda apenas por um caminho, mas apresenta todos os possíveis. E segue criticando o programa do Rio de Janeiro por entender que ele visa “inculcar” nos alunos uma cosmovisão pobre e particular. O autor diz temer que este modelo de currículo esteja se repetindo por outros estados. Assim como Costa, Schwartzman se preocupa com uma concepção de sociologia que seja enviesada por certos segmentos ideológicos, enfatizando que não é esse o papel desta ciência.

Durham (2010) trata da inserção obrigatória da sociologia e filosofia no ensino médio de forma geral, também alegando ser fruto de interesses para difusão de uma visão ideológica pobre e distorcida do que seria uma análise social. Ela aponta que os intuitos coorporativos acabaram por deformar a Lei de Diretrizes e Bases para educação básica, que visava interdisciplinaridade, não inflar os componentes curriculares, o que resulta numa “colcha de retalhos, que só um gênio conseguiria transformar em um projeto pedagógico coerente” (DURHAM, 2010).

É válido lembrar que já aparece nas OCNEM- Sociologia (Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio) uma ponderação sobre ser inevitável a escolha arbitrária de conteúdo por parte dos docentes, tendo em vista a amplitude da sociologia enquanto ciência e os desafios que ela encontra em sua implementação devido à organização escolar. Isto se reflete nas críticas sobre a sociologia ter uma função moralizante, apontada pelos três cientistas sociais relutantes à inserção obrigatória.

Das colocações acima, podemos tirar três críticas e atribuições comuns ao papel e significado da sociologia como disciplina obrigatória no currículo da educação básica: criação de uma reserva de mercado para licenciados em ciências sociais; proselitismo político contra-hegemônico, fruto do desconhecimento a respeito do que seria sociologia; resultando numa imputação “civilizatória” à disciplina, sendo, na prática, um manual de “boas maneiras cívicas”. Críticas que convergem com a resistência à ideia de sociologia pública de Buroway e que traz para o centro do debate o papel da sociologia, o dilema entre neutralidade, rigor científico, intervencionismo e a sociologia como cruzada moral (ANDRADE, 2014).

 

A sociologia no ensino médio é uma forma de sociologia pública?

 

Como já mencionado, os debates referentes à neutralidade científica da sociologia; moralização da disciplina; atribuições de papel; politização; e disputas por modelos de formação, são suscitados tanto no debate teórico sobre o conceito de sociologia pública quanto nas reflexões sobre a inserção da sociologia no currículo como disciplina obrigatória do ensino médio brasileiro. Seguiremos, então, tratando dessas questões, focando em pontos que possam esclarecer essas aproximações. Para começar é relevante considerar o texto Atravessando o abismo: uma sociologia pública para o ensino médio de Ruy Braga (BRAGA, 2009). Nesse ensaio, o autor trata da reintrodução da sociologia no ensino médio brasileiro e elenca alguns pontos intrínsecos a esta reintrodução. Entre tais pontos, Braga sustenta que é necessário ir além de uma discussão curricular e do que oferece a sociologia profissional, para pensar no ensino de sociologia na educação básica. O autor acredita na necessidade de promover o contato do estudante acadêmico de sociologia com um estudante do ensino médio, o que ocorreria “por meio de uma sociologia pública”.

Braga explica que os baixos salários dos professores nas redes estaduais e o descaso com as condições de trabalho no ensino público resultaram na falta de interesse por parte dos alunos de ciências sociais na área de sociologia da educação. Em vez disso, os estudantes se interessam cada vez mais por temas sobre violência urbana, mundialização do capital, transformação do trabalho, desigualdades sociais, entre outros. Conforme o autor, para trazer de volta o interesse dos graduandos na sociologia escolar é necessário construir, juntamente com eles, “um campo reflexivo comum que, aproveitando seus múltiplos interesses de pesquisa, faça da escola um autêntico ‘laboratório’ de experiências e intervenções a que eles, de outra forma, jamais teriam acesso” (BRAGA, 2009, p. 169).

O autor aposta na necessidade de priorizar a produção de conhecimento sociológico na escola, a fim de tornar os alunos de ciências sociais mais interessados pela educação pública. Braga entende os educandos do ensino médio como um “extraordinário público capaz de interagir com nossos estudantes” (BRAGA, 2009, p. 170). E fala que temas como mercado de trabalho, desigualdade social, cultura da periferia e violência urbana encontrariam na escola pública uma grande quantidade de informações e oportunidades de pesquisa. Para ele, o envolvimento dos graduandos em ciências sociais com o ensino público, para a produção de um novo conhecimento sociológico, faria com que os acadêmicos se interessassem pelas questões atuais da escola.

Braga acredita que os graduandos em ciências sociais devem tornar-se excelentes cientistas sociais e cidadãos ativos na sociedade (BRAGA, 2009, p. 170). Nesse sentido, o contato com estudantes do ensino médio, sob a responsabilidade dos cursos de ciências sociais, é uma grande oportunidade de exercitar as competências científicas e políticas desses acadêmicos. Para que isso ocorra, o autor defende que será necessária uma prática sociológica diferente da sociologia profissional, a qual poderá unir a sofisticação dos seus métodos, ao mesmo tempo em que supere seu “covil” acadêmico. Assim como há também a necessidade de uma sociologia crítica, preparada para questionar teoricamente os valores, mas capaz de romper com os muros das universidades e se deparar com a autêntica e complexa realidade das lutas sociais. Com o exposto, Braga conclui que a transposição do abismo que distancia a sociologia do ensino médio é possível por meio do contato entre o graduando em ciências sociais e o aluno da escola básica, por meio de uma sociologia pública. Seria possível por meio do contato entre tais estudantes, o que poderia ser uma tradução teórica e prática da noção de sociologia pública de Buroway na realidade educacional brasileira.

É possível identificar no argumento de Braga suas aspirações políticas e as atribuições que ele confere não só à sociologia, mas às ciências sociais, quando alega que o que se espera de um estudante de graduação na área é que se torne um excelente cidadão e cientista capaz de intervir na sociedade. O autor assinala o sentido crítico que deve ter a sociologia para transpor o abismo entre ela e o ensino médio. Essas são aspirações de intervenção e expectativas de transformação da realidade social, as quais têm influência do marxismo, agregando uma notória função política ao ensino de sociologia, o que fica evidente quando o autor afirma que os alunos de ensino médio constituem um potencial público para tratar determinados fenômenos sociais (ANDRADE, 2014).

Braga não se preocupa em pensar no ensino de sociologia como neutro politicamente, mas fala em manter a cientificidade da disciplina, não dando margem para uma possível dicotomia entre a politização do ensino e o seu caráter científico. Porém conceber o ensino da sociologia na educação básica, enviesado por aspirações políticas, suscita uma série de críticas referente à descaracterização da ciência, que passa a ser vista como doutrinária, ideológica e moralizante.

Podemos perceber que Braga, assim como Burawoy, também está atento à posição pública da sociologia perante a sociedade, com sua relevância no meio social. Nesse sentido, é interessante considerar o texto de Simon Schwartzman referente à Sociologia como profissão pública no Brasil (SCHWARTZMAN, 2009). No ensaio, o autor traça o perfil público da profissão de sociólogo no país e vê que em 60 anos, desde a criação da Sociedade Brasileira de Sociologia, o número destes profissionais, cursos de graduação e pós-graduação da área se multiplicaram no Brasil. Schwartzman sustenta a hipótese de que os principais campos de trabalho para o sociólogo brasileiro sejam as ONG’s, a carreira acadêmica e a administração pública.

Em contraposição a Burawoy, Schwartzman acredita que é no mundo acadêmico e não fora dele — devido à liberdade de pesquisa e rigor científico — que o sociólogo deveria ter autonomia intelectual e na profissão. Mesmo reconhecendo que uma sociologia voltada para o público, “com temas trazidos pela sociedade e cujas conclusões são testadas e discutidas pela sociedade, é muito mais rica e interessante que uma sociologia trancafiada nos muros disciplinares e dedicada aos rituais dos jogos de poder e prestígio da academia” (SCHWARTZMAN, 2009, p. 277). O autor aponta como desafio para os sociólogos brasileiros a tarefa de voltarem sua atenção e se sintonizarem a essa agenda pública. Bem como, ao mesmo tempo, solidificar uma sociologia relevante e independente (não só em relação aos “ritos acadêmicos”, mas também aos movimentos sociais e organizações com as quais dialoga e ⁄ou participa) (ANDRADE, 2014).

Como alternativas para que a sociologia tenha relevância pública, Schwartzman pensa em duas condições: a primeira seria o fortalecimento do espaço acadêmico, o qual resultaria na prevalência da independência intelectual sobre outros interesses e motivações; e a segunda seria que a sociologia consiga retomar seu espaço intelectual e sua importância para sociedade. Para isso, a disciplina não precisa se colocar contra a política e a economia vigente, pois é necessário um estado nacional que funcione e uma “economia que produza e distribua a riqueza, e de instituições capazes de fazer a mediação entre o social, o econômico e o político, assim como entre o local e o nacional” (SCHWARTZMAN, 2009, p. 277). Para ele, o que melhor caracteriza a prática pública da profissão de sociólogo seria a elaboração de uma visão institucional, somada à perspectiva histórica e à inclusão consciente de outras disciplinas, de forma direta e que possa fazer sentido para os interlocutores extra acadêmicos.

Mesmo sem discutir com profundidade a inserção da sociologia no ensino médio, por não achar que o magistério secundário “já esteja se tornando em uma opção profissional privilegiada para os sociólogos” (SCHWARTZMAN, 2009, p. 277), reconhece que essa é uma maneira de ampliar o mercado para os graduandos em ciências sociais, sendo assim, uma forma de profissão pública da sociologia, ainda que vista como uma opção pouco privilegiada. Nesse ponto, e talvez apenas nele, percebe-se certa concordância com as expectativas de Braga e Burawoy em relação à preocupação com o papel social da sociologia. Isto porque tê-la no ensino médio é uma forma de torná-la acessível aos públicos não acadêmicos e, por isso, uma forma de torná-la relevante socialmente, convergindo com o ideal de a sociologia pública sair dos limites da universidade.

      

O que há por trás do dilema entre a neutralidade e intervenção (ou doutrinação marxista para engajamento político e ideológico ou politização da sociologia)?

 

Ao abordar as críticas à sociologia pública e sobre a relevância de ter sociologia no ensino médio, nos deparamos com posicionamentos que prezam pelo distanciamento do ensino de uma politização, mas também, por outro lado, com alguns que não consideram esta relação problemática. Vimos ainda que está entre os objetivos do ensino médio brasileiro, assegurados pela LDB, uma formação para a cidadania, a qual possibilitou diversas leituras sobre que tipo de formação seria esta — dentre elas, uma formação política. Tendo isso em vista, a relação entre ensino e engajamento político, mesmo dividindo opiniões, acaba sendo mais um pano de fundo da discussão geral deste trabalho e requer certa atenção (MORAES, 2014; ANDRADE, 2014).

Amaury Cesar Moraes (MORAES, 2014) discute a relação entre engajamento e neutralidade, questiona se o ensino de sociologia na educação básica deve buscar por uma neutralidade científica ou ceder a um engajamento político. Ele também pensa se não seria admissível uma terceira via, a qual intitula de alfabetização científica; ainda que também critique e reflita sobre a forma em que essas três possibilidades teriam legitimidade acadêmica.

Moraes pensa a escola pública como um espaço de transição para o mundo político, por ela se colocar entre a família e a sociedade civil, sendo o professor um “agente público” encarregado pela formação do estudante. As escolhas de métodos de ensino do educador devem se orientar pela responsabilidade de ir além de suas próprias convicções, em prol da formação autônoma do aluno (MORAES, 2014, p. 18). Para realizar as análises de seu texto, Moraes reuniu uma série de notícias veiculadas em blogs, revistas, artigos e sites referentes ao anúncio da volta da filosofia e da sociologia ao ensino médio. O autor percebe que em todos os veículos há críticas ao caráter ideológico vinculado ao ensino de ambas as disciplinas, sendo que um dos aspectos mais criticados se deve ao diagnóstico feito pelos jornalistas analisados a respeito da educação brasileira: todos concordam que o ensino no país é precário e se agarram a tal problema para dizerem que a sociologia e a filosofia não contribuiriam para a melhoria da situação escolar, sendo, inclusive, nocivas (ANDRADE, 2014).

As notícias analisadas por Moraes, em sua maioria, compreendem que a educação não tem dado conta de “conhecimentos essenciais”, como matemática e português, e, por isso, adicionar outras disciplinas não irá incrementar qualidade do ensino, ainda mais se forem de cunho ideológico. Entendem a sociologia e a filosofia como irrelevantes e inúteis. É comum encontrar ampliação de carga horária, defasagem do ensino público, formação de professores, ampliação de gastos dos cofres públicos e organização escolar como problemas apontados nas reportagens analisadas por Moraes. Porém o autor explica que são críticas frágeis, pois, quando se recorre à história das disciplinas, percebe-se que ambas já fizeram parte do currículo e perderam lugar para outras ciências, que agora poderiam devolvê-lo.

O argumento sobre a falta de professores formados nas áreas de ciências sociais e filosofia é reconhecido por Moraes, que entende que este tem sido um problema para as disciplinas. Porém ele lembra que também é noticiada a falta de professores de física, química, geografia e português, e nem por isso se fala em retirá-las do currículo. Assim como a questão da formação, os professores de sociologia e filosofia são educados nas mesmas instituições superiores que os de outras disciplinas, o que faz com que a qualidade de seu desenvolvimento também não seja um problema exclusivo da sociologia e da filosofia.

Tendo refletido as questões mais gerais, Moraes passa a tratar da “denuncia” de que o ensino de sociologia e filosofia seria puramente doutrinário, “aliás, mais do que isso: uma verdadeira armação para que o marxismo seja ensinado nas escolas” (MORAES, 2014, p. 22). O autor questiona quais dados empíricos os analistas teriam para afirmar que é impossível o ensino destas disciplinas, criticando o diagnóstico superficial que fazem sobre a escola. Quem e como pode comprovar que as aulas de sociologia e filosofia nas escolas se restringirão apenas a um doutrinamento marxista?

A partir dessas análises, Moraes percebe um dilema entre garantir a legitimidade científica das ciências sociais ou doutrinar jovens com ideologias esquerdizantes. Diante disso, o autor pergunta o que deve ser feito: “Ficamos então imobilizados por uma pretensa neutralidade das Ciências (Sociais) ou enfrentamos e superamos esse falso dilema?” (MORAES, 2014, p. 33). O autor acredita que uma alternativa a essa questão seria enxergar o ensino de sociologia como uma forma de alfabetização científica, ou seja, domínio dos métodos, teorias e problemáticas do campo científico das ciências sociais.

Moraes apresenta as concepções de sociólogos como Émile Durkheim, Pierre Bourdieu e Antônio Candido em relação ao ensino de sociologia, para argumentar que uma neutralidade não constitui o ideal fundamental da disciplina, pois, “para além de uma pretensa neutralidade científica, o que encontramos é uma relação profunda e necessária entre fazer ciência social e viver numa realidade social, entre conhecer e intervir” (MORAES, 2014, p. 34).

O autor também comenta o posicionamento de Max Weber quando apresentou as colaborações da ciência para a vida prática e pessoal. Alegando que o conhecimento científico nos coloca à disposição certa quantidade de saberes que nos permite orientar a vida por meio de previsões. Declarando, além disso, que a ciência nos fornece os instrumentos de uma disciplina e contribui com a clareza. Considerando isso, Moraes lembra que Weber também pensou a posição do professor e cientista diante de questões de valores, reconhecendo que é necessário fazer escolhas. Porém ir além de mostrar a necessidade de escolhas seria sair do papel de professor para o de demagogo; ou seja, o professor, o cientista, deve mostrar as alternativas existentes, mas as escolhas não cabem a ele. O que lhe compete é apresentar as teorias possíveis e suas origens, não promover suas próprias concepções.

Moraes reconhece nos posicionamentos dos sociólogos acima citados uma inclinação ao ensino da sociologia como alfabetização científica, que possa mostrar o arcabouço teórico e metodológico da disciplina, sem precisar necessariamente se prender entre uma neutralidade absoluta ou uma doutrinação. Dotar os alunos do conhecimento do campo científico da disciplina seria uma terceira via às concepções presentes nos veículos midiáticos analisados por Moraes (que as entende como frágeis e superficiais). As quais alertam sobre o perigo de que a sociologia não seja ensinada como ciência, mas como discurso ideológico; e sobre a concepção do papel da sociologia ser de conscientização e transformação social. Em relação a isso, o autor comenta:

 

Parece que as duas primeiras concepções assumem perspectivas claramente ideológicas ao defenderem a ausência ou a presença da Sociologia no currículo do ensino médio a partir de posicionamentos políticos críticos. A primeira, situada à direita no espectro ideológico porque assume um ponto de vista conservador e preconceituoso, vê o currículo como lugar da tradição — predominância das disciplinas tradicionais — e considera sociologia e socialismo a mesma coisa. A segunda, situada à esquerda, nem por isso é mais crítica, pois fundamenta-se na crença de que a escolha de uma concepção de mundo — o marxismo — pode recobrir todo o debate que o campo das Ciências Sociais abrange e que é o bastante para ser ensinado. Por outro lado, são perspectivas autoritárias e manipuladoras. A da mídia, por confundir deliberadamente as funções de expressar e de formar a opinião pública — dizendo-se expressar, pretendendo formar, tenta impor sua opinião privada como se fosse a opinião pública, essa entidade metafísica (Moraes, 1991). A que assume um posicionamento político por antecipar o produto ao processo, antes de contribuir para a emancipação dos alunos, pretende [...] engendrar um projeto de sociedade verdadeiramente socialista (MORAES, 2014, p. 35, grifos do autor).

 

Há uma tendência de se pensar a escolha de conteúdos da sociologia preocupando-se com questões ideológicas, o que se deve às propostas de “conscientização e intervenção na realidade” (MORAES, 2014, p. 36). Porém esta preocupação acaba por reforçar a crítica “conservadora”, a qual afirma que o ensino da sociologia busca a manipulação dos alunos, não sendo de fato ensino, mas doutrinação. Por outro lado, a proposta de alfabetização científica se guia por uma concepção mais formativa e menos engajada, sendo criticada por pretender ser neutra e objetiva. Moraes, então, afirma que o ensino de sociologia cumpriria um importante e indispensável papel no ensino médio se permanecesse no limite de uma alfabetização científica.

A análise de Moraes sugere que neutralidade versus politização da sociologia configura-se como um falso dilema, que cabe não somente às ciências sociais e pode ser superado por uma terceira via, a qual seria uma alfabetização científica. Pensando nisso, faz-se necessário discutir também a respeito desta tensão que se coloca ao caráter científico da sociologia, já que aparentemente a garantia de cientificidade da disciplina se equilibra entre os ideais de intervenção e neutralidade. Para refletir sobre a concepção que defende a neutralidade da sociologia, é importante rever mais algumas colocações de Weber.

Determinadas interpretações em relação a Weber alegam que o sociólogo preza por uma neutralidade rigorosa das ciências sociais, o que faz com que ele coloque uma considerável distância entre teoria e prática. Assim, há quem interprete que Weber acaba por deixar os cientistas distanciados dos movimentos políticos. Nesse sentindo, se de alguma forma essa neutralidade conferiu aos sociólogos “uma maior profissionalização de sua ciência” (SELL, 2002, p. 65), tendo em vista que as questões destes profissionais são em sua essência teóricas, separar rigidamente a ciência da política põe as ciências humanas sob perigo de se tornarem arcabouços ideológicos que justificam a ordem vigente e estabelecida, já que elas não devem fornecer soluções de práticas políticas para questões sociais. Porém, mesmo não tomando partido nas situações políticas do cotidiano, a neutralidade axiológica não impede a sociologia de pesquisar a realidade política da sociedade.

Partindo para uma análise mais contemporânea sobre esta tensão entre neutralidade e politização da sociologia, os pontos respondidos por Bourdieu no livro Questões de sociologia a respeito do caráter científico da disciplina quando ela intervém em questões sociais, mostra-se relevante para a discussão. O autor afirma que o sociólogo estará em melhor condição de mostrar a cientificidade de suas análises quanto mais uso ele fizer de métodos e técnicas acumuladas por seus antecessores Marx, Weber, Durkheim, e pelos sucessores. De acordo com o sociólogo francês, “quanto mais crítico for, quanto mais subversiva a intenção consciente ou inconsciente que o anima, quanto mais interesse tiver em revelar o que é censurado, recalcado, no mundo social” (BOURDIEU, 1983a, p. 27), mais científica é a construção do conhecimento.

Bourdieu defende que ter interesse em produzir verdade pode consistir em qualquer sentido — político, de realização pessoal, movido por curiosidade de descobrir e infindáveis razões — e, por isso, não há uma forma imaculadamente neutra de fazer ciência, pois, se for para desconsiderar as descobertas científicas que provêm de interesses, sejam lá quais forem esses interesses, não restariam muitas verdades científicas, já que “as intenções ou os procedimentos dos seus autores não terem sido lá muito puros” (BOURDIEU, 1983a, p. 27).

Quando questionado se, no caso das ciências sociais, os interesses e paixões resultariam numa cegueira, concedendo, dessa forma, razão aos defensores da neutralidade, Bourdieu responde que isso realmente confere dificuldade para a sociologia. Os interesses e paixões, sejam nobres ou não, só conduzem a uma verdade científica na medida em que “se acompanhem de um conhecimento científico daquilo que os determina, e dos limites que impõem ao conhecimento” (BOURDIEU, 1983a, p. 27). Ao ser interrogado sobre se a sociologia, ao ser ao mesmo tempo uma atividade crítica, acadêmica e até mesmo política, isso não faria dela algo contraditório, o autor explica que a sociologia surgiu de um mal-entendido e que Durkheim fez de tudo para torná-la uma ciência universitária e reconhecida. Por isso, diferente de outras disciplinas, a sociologia é questionada o tempo todo sobre sua razão de ser e sua função, principalmente quando ela se afasta da definição de prática científica que seus fundadores lhe impuseram, constituindo-a como um conhecimento puro, ou seja, neutro.

A sociologia seria, desde sua origem, ambígua, que teve de se negar como “política” para ser aceita como ciência universitária. Para Bourdieu, a sociologia verdadeiramente científica é uma prática social que “sócio-logicamente” não deveria existir. E aponta que a maior prova disto seria que sempre quando esta ciência se deixa definir por ciência pura, que analisa objetos sem importância na sociedade, corroborando a ordem estabelecida, fica sob ameaça de sua existência social (BOURDIEU, 1983b). Em outras palavras, toda vez que a sociologia se torna apenas estatística, questionando seus próprios paradigmas e métodos, não constitui nenhum conhecimento de interesse para sociedade, sua relevância é posta em questão. Por outro lado, quando ela passa a se defrontar com temas inerentes às tensões sociais, passa a ter sua cientificidade colocada à prova, ganha um caráter político e, consequentemente ideológico.

 

Conclusão

 

Desde os primeiros teóricos da sociologia, há dissenções quanto a sua definição e sua utilidade. Essas dissenções sempre aparecem quando se tenta atribuir um papel para esta ciência. Vimos isto tanto a respeito da sociologia pública, que traz um projeto político claro de intervenção social, dividindo opiniões sobre a relevância pública da sociologia quanto a respeito da sociologia nas escolas da educação básica brasileira, o que, assim como a sociologia pública, também levanta uma discussão sobre o caráter científico e político da disciplina, no qual um sempre é posto como oposição ao outro.

Entre as disputas relativas à compreensão do papel da sociologia na sociedade, encontram-se: 1) a proposição de uma sociologia que preza por uma neutralidade axiológica, em que seu papel se restringiria a compreender os fenômenos sociais, tendo como críticas fundamentais tornar a sociologia irrelevante, inacessível ao variados públicos e conservar o status quo da sociedade; confrontada por 2) uma proposição que defende que o conhecimento sociológico deve ser usado para compreender e intervir nas demandas sociais, tendo como principais críticas a moralização da ciência e o perigo de uma doutrinação ideológica marxista, o que descaracteriza um conhecimento científico.

Algo que tomou forma nessa reflexão é que as críticas contra o ensino de sociologia na educação básica e a ideia de sociologia pública se direcionam a um tipo de “caça às bruxas” velado (ou nem tão velado) em relação ao marxismo, que aparece sempre relacionada a uma moralização ideológica e politização da sociologia. É como se apresentar essa visão de mundo, sua importância para a ciência e suas limitações, se caracterizasse necessariamente como uma doutrinação. A veemência em que se tenta evitar que tal tradição chegue aos alunos ou público não acadêmico parece muito mais enviesada por interesses políticos conservadores e à direita do espectro ideológico.

Achar um ponto de acordo entre as diferentes proposições sobre o papel da sociologia não configura a pretensão deste trabalho — e tampouco deve ser possível. Mas identificá-las e discuti-las foi importante para perceber a complexidade da sociologia como ciência e suas variações. Porque, afinal, buscando por neutralidade ou com pressupostos de intervenção, não deixa de ser sociologia. Compreendendo isso, percebe-se que as discussões referentes à sociologia pública e à sociologia escolar seriam mais de ordem política que epistemológica, ainda que da parte de quem defenda a imparcialidade da ciência, já que mesmo essa defesa condiciona uma posição política — isto se considerarmos neutralidade como uma forma de conservar o que está em vigência.

 

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Recebido em: 31/08/20.

Aceito em: 25/10/20.

 

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n25.54903.p98-125

 

 

 

 

 



* Aluna de doutorado em sociologia PPGS/UFPB/Brasil. Professora da Rede Estadual de Ensino Médio de Minas Gerais/Brasil. E-mail: anaoliviaandrade.aoa@gmail.com.