AIYÊ: dançar a vida em corpo búzio de carne

AIYÊ: dance life in body of buzios

 

Larissa Ferreira *

 


DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n26.57583.p160-169

 

 

 

Resumo

O presente ensaio visual debruça-se sobre Aiyê, um projeto de pesquisa em dança que coordenei. Realizado pelo Grupo de Pesquisa Corpografias, culminou no espetáculo de mesmo nome cujas imagens estão reunidas neste manifesto visual. A palavra “Aiyê”, de origem Yorùbá, pode ser entendida como “terra”, dimensão material da vida onde tudo tem asè. Parte-se, então, do desafio de pensar a vida desde a pluralidade das matrizes africanas e indígenas. Abarca as questões políticas e socioculturais imbricadas nesta discussão que perpassa as relações raciais e de gênero. Aiyê traz a beleza de um legado ancestral, mas também aciona as violências cotidianas que denunciam o racismo estrutural. Sendo um projeto gestado na Licenciatura em Dança do Instituto Federal de Brasília, faz coro à necessidade de cumprimento da leis 10.639 e 11.645, que incluem no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade das temáticas sobre história e cultura afro-brasileira e indígena.

Palavras-chave: Dança; Ancestralidade; Aiyê; Educação.

 

Abstract

This visual essay focuses on Aiyê, a dance research project that I coordinated. Conducted by the Corpographies Research Group, it culminated in a dance piece called also Aiyê, which is presented in this visual manifesto. The word "Aiyê" has an Yorùbá origin, can be understood as "earth", material dimension of life where everything has asè. It starts with the challenge of thinking about life, from the diversity of African and Indigenous matrices. It covers the political and socio-cultural issues involved in this discussion that permeates racial and gender relations. Aiyê recalls the beauty of our ancestral legacy, but it also triggers the daily violence that denounces structural racism. Being a project created at the Dance Degree of the Federal Institute of Brasilia, it reinforces the need implement Laws 10.639 and 11.645, which include themes of Afro-Brazilian and Indigenous History and Culture at the official curriculum of education.

Keywords: Dance; Ancestry; Aiyê; Education.

 

 

Introdução 

 

A palavra “Aiyê”, de origem Yorùbá, pode ser entendida como “terra”, dimensão material da vida onde tudo tem asè. Na sinopse da obra “Aiyê”, lê-se: “Na linha da vida, a qual Aiyê percorre, é tempo de saudar quem abre os caminhos, dançar com as águas salgadas, mas também com águas doces. Evocar a natureza como força que move o corpo e a dança em ventania. Cair e se reerguer, e logo nos vestir como realezas, honrar as/os ancestrais e agradecer por estarmos aqui.”

Criei o Grupo de Pesquisa Corpografias em 2017, com a finalidade de fomentar discussões e pesquisas sobre as relações raciais e de gênero no âmbito das artes. Sobretudo, com vistas a contemplar os conhecimentos preconizados pelas leis 10.639 (BRASIL, 2003) e 11.645 (BRASIL, 2008), que incluem no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade das temáticas sobre história e cultura afro-brasileira e indígena. O grupo é composto por estudantes e egressas da Licenciatura em Dança do Instituto Federal de Brasília. Participaram do processo de pesquisa e atuação de Aiyê: Marilia Borges, Louise Lucena, Christiane Castro, Patrícia Diniz, Carolina Alves, Jéssica Rayanne e Catherine Layana (em ordem de entrada no grupo).

O título, que nomeia o presente ensaio, foi tirado de um trecho da poesia da moçambicana Noémia de Sousa, chamada “Se me quiseres conhecer” (1949).  Segue um trecho do poema:

 

Se quiseres compreender-me / Vem debruçar-te sobre a minha alma de África, / Nos gemidos dos negros no cais...

[...] E nada mais me pergunte / Se é que me queres conhecer... / Que não sou mais que um búzio de carne / Onde a revolta de África congelou seu grito inchado de esperança (SOUSA, 2016, p. 40).

 

Evocamos as matrizes africanas para fazer conhecer e reconhecer os muitos corpos búzios de carne que resistem.  A escritora Noémia de Sousa se faz presente no transcorrer de Aiyê, já que a cena Deixa passar o meu povo! é composta por trechos adaptados de seus poemas. Outras mulheres são reverenciadas ao longo do espetáculo, tais como: Marielle Franco (Presente!), Maria Lucia da Silva, Beatriz Nascimento, Celia Xakriabá e Sônia Guajajara. Listadas em ordem de aparição de suas potentes vozes na cena Parem de nos matar!

Aiyê compõe uma trilogia de composições de dança cujo leitmotiv está no diálogo com as tecnologias da imagem.  Aiyê soma-se às obras Sentidos da presença[1] e Corpo em obra[2], que criei em 2011 e 2013, respectivamente. Vale ressaltar que a ideia inicial para a escrita do projeto, contemplado com o apoio do Fundo de Apoio à Cultura do DF, partiu de uma série de performances que realizei a partir de 2018, que intitulo como Dramaturgias da memória.[3] Esta série, que já trazia a “corrente” como um objeto de cena, foi criada a partir de uma imersão nos escritos de Paul Gilroy, notadamente na obra Atlântico negro. A possibilidade de uma “dramaturgia da recordação” (GILROY, 2001) expandiu-se no processo de composição de Aiyê:

 

Se, por um lado, a matriz colonial de poder se constitui como prática de esquecimento, a dramaturgia da recordação, por outro lado, reivindica a atualização da memória. Vivemos um ciclo composto majoritariamente de práticas de esquecimento. Recordar é um ato político (FERREIRA, 2019).

 

Compus Aiyê [4] em dez cenas que partem da ideia de que recordar é um ato político, portanto, fazer lembrar e reverenciar nossa ancestralidade onipresente na circularidade do passado-presente-futuro. A colaboração de talentosos artistas foi imprescindível, seja na interface de imagem interativa (Anibal Alexandre), na trilha sonora (Ramiro Galas), no figurino (Eduardo Baron) e/ou na iluminação (Emmanuel Queiroz), além da atuação e pesquisa em dança do corpo de baile do Grupo de Pesquisa Corpografias.

           As imagens seguem com descrição das cenas as quais correspondem, a fim de dar mais pistas às leitoras e leitores.  Foram selecionadas oito dentre as dez cenas que compõem a obra. Apenas três cenas não estão listadas, são elas: Cena 3. O elo que nos une: Duo e dualidade; Cena 5. Mar… Deixa passar o meu povo: trechos selecionados de poemas da autora moçambicana Noémia de Sousa; Cena 7. Parem de nos matar!  <Basta de genocídio e necropolítica> composição com frases de Marielle Franco (Presente!), Maria Lucia da Silva, Beatriz Nascimento, Celia Xakriabá e Sônia Guajajara.

A título de informação sobre o processo de criação de Aiyê, vale ressaltar que os ensaios iniciaram em setembro de 2019, foram interrompidos em março de 2020 em razão na pandemia de Covid-19. Retomamos os ensaios online de junho a outubro, tivemos um breve intervalo, e retomamos em janeiro de 2021, com uma imersão de 5 dias no teatro Pé Direito (Brasília- DF) para gravação do espetáculo que foi retransmitido no canal do Youtube do projeto.  Portanto as imagens selecionadas para este ensaio foram registradas em janeiro de 2021 por Thiago Sabino, fotógrafo convidado para o projeto. Nas fotos, estão as dançarinas pesquisadoras que fizeram parte da versão apresentada em janeiro de 2021: Carolina Alves, Catherine Layanna, Christiane Castro, Larissa Ferreira e Patrícia Diniz.

 

Cena 1. As correntes e seus elos. Abrindo os caminhos: “Se quer ir rápido, vá sozinho. Se quer ir longe, vá em grupo”
(provérbio africano).

 

 

 

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Imagem 1As correntes e seus elos (trecho da cena 1), 2021. | Acervo pessoal da autora.

 

 

Cena 2. Labirintos: "Quando não souber para onde ir, olhe para trás e veja de onde veio" (provérbio africano).

 

 

 

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Imagem 2Labirintos (trecho da cena 2), 2021. | Acervo pessoal da autora.

 

 

Cena 4. A nossa encruzilhada”: Exu matou um pássaro ontem, com a pedra que atirou somente hoje (provérbio africano). Laroyê!

 

 

 

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Imagem 3A nossa encruzilhada (trecho da cena 4), 2021. | Acervo pessoal da autora.

 

 

 

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Imagem 4 – A nossa encruzilhada (trecho da cena 4), 2021. | Acervo pessoal da autora. | Fotografia: Thiago Sabino.

 

 

Cena 6. Símbolos: cena composta pela simbologia dos adinkras, muito comum nas culturas do Oeste Africano:
Mpatapo (nó de reconciliação), Osran (paciência) e Fawhodie (liberdade).

 

 

 

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Imagem 5 Símbolos (trecho da cena 6), 2021. | Acervo pessoal da autora.

 

 

Cena 8. Oxum: reina nas águas doces. Amor que desagua em abundância, ouro e beleza.
Realeza na cachoeira de luz e mel, fértil, sua morada é rio dourado. A força e a sabedoria da Iyalodê maior. Ora iê iê ô!

 

 

 

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Imagem 6Oxum (trecho da cena 8), 2021. | Acervo pessoal da autora.

 

 

 

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Imagem 7Oxum (trecho da cena 8), 2021. | Acervo pessoal da autora.

 

 

 

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Imagem 8Oxum (trecho da cena 8), 2021. | Acervo pessoal da autora.

 

 

Cena 9. Oxalá traz a paz: música Oní Sáà wúre:

 

 

 

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Imagem 9Oxalá traz a paz (trecho da cena 9), 2021. | Acervo pessoal da autora.

 

 

Cena 10. Coco de despedida:

 

 

 

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Imagem 10 – Coco (trecho da cena 10), 2021. | Acervo pessoal da autora.

 

Com a Cena 10, terminamos “Aiyê”, apresentando elementos da cultura nordestina: o coco celebra e agradece a nossa força! Salve todas as mulheres negras, indígenas, diaspóricas, retirantes, latino-americanas! Juntas somos muitas! Com esta cena final, saudamos os conhecimentos de nossas/os antepassadas/as que se afirmam em nós no presente-futuro.

 

 

Referências

 

BRASIL. Lei no 10.639, de 09 de janeiro de 2003. Brasília, DF: Presidência da República, [2003]. Disponível em: http://planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm. Acesso em: 4 maio 2017.

BRASIL. Lei no 11.645, de 10 de março de 2008. Brasília, DF: Presidência da República, [2008]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20072010/2008/lei/l11645.htm. Acesso em: 4 maio 2021.

FERREIRA, Larissa. Corpos moventes em diáspora: dança, identidade e reexistência. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), Uberlândia, v. 11, n. 27, p. 50-63, 2018. Disponível em: https://abpnrevista.org.br/index.php/site/article/view/664. Acesso em: 10 ago. 2020.

GILROY, Paul. Atlântico negro. Rio de Janeiro: Editora 34, 2001.

SOUSA, Noémia de. Se me queres conhecer. In: SOUSA, Noémia de. Sangue negro. São Paulo: Kapulana, 2016, p. 40-41.

 

Recebido em: 11/02/2021.

Aceito em: 08/03/2021.

DOI: DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n26.57583.p160-169

 

 



* Doutora e mestra em artes pela Universidade de Brasília/Brasil. Licenciada em Dança pela Universidade Federal da Bahia/Brasil. Docente na Licenciatura em Dança no Instituto Federal de Brasília/Brasil. E-mail: larissa.contato@gmail.com.

[1] Mais informações:http://larissaferreira.art.br/paginas/sentidosDaPresenca.php.

[2] Mais informações: http://larissaferreira.art.br/paginas/corpoEmObra.php.

[3] Ver: http://larissaferreira.art.br/paginas/dramaturgiasDaMemoria.php.

[4] Mais informações sobre o espetáculo estão disponível no canal do Youtube: http://shorturl.at/jtQT2; no Instagram: @danceaiye; Evento no Facebook: https://fb.me/e/hCZ2Hdcre e Facebook: https://www.facebook.com/danceaiye.

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