TRADIÇÕES JOGADAS

RELEASED TRADITIONS

 

Gabriel Farias Pereira *

 

 

https://doi.org/10.46906/caos.n28.60497.p199-208

 

MAGALHÃES FILHO, Paulo Andrade. Jogo de discursos: a disputa por hegemonia na tradição da capoeira angola baiana. Salvador: EDUFBA, 2012.

 

O que é a tradição para capoeira angola? Essa é uma questão que o praticante de capoeira angola em algum momento de sua vida faz a si mesmo ou àquele que lhe ensina. “Por que tal golpe é chamado de formas diferentes em grupos diferentes de capoeira?” ou “Por que lá é aceito o que aqui é proibido?”. A percepção da diferença das formas de tal prática não é, apesar disso, uma questão que mobilize unicamente os capoeiristas iniciantes. Essa diferença das formas do fazer que a tradição de um grupo particular absolutiza é ela mesma o alvo das disputas dos jogadores autorizados de diversas linhagens da capoeira angola. Paulo Andrade Magalhães Filho em seu livro, resultado de sua pesquisa de dissertação pela UFBA, Jogo de discursos: a disputa por hegemonia na tradição da capoeira angola baiana, toma a tradição da capoeira angola baiana por objeto de pesquisa, e, através de um percurso pela história da capoeira baiana do século passado e do atual e de suas relações com as instituições e com a política de Estado, com os intelectuais e os movimentos sociais, aponta a dimensão histórica, as estratégias e disputas simbólicas e os processos de constituição e instituição de uma forma, até então particular da prática da capoeira angola, no modelo dominante quando se trata de pensar o que é a capoeira angola. Apesar de uma forma particular ter se tornado dominante — ou nas categorias trabalhadas pelo autor, hegemônica — as suas concorrentes não foram excluídas e, dela mesma, outras maneiras diferenciadas vieram a ganhar existência.

Paulo Magalhães é um acadêmico, jornalista e capoeirista (conforme lemos no livro), no meio da capoeira possui o apelido de Sem Terra. Foi na qualidade de capoeirista que já havia passado por diversos grupos e linhagens diferentes que o problema do ser da tradição lhe surgiu, como ele nos descreve na introdução do livro (MAGALHÃES, 2012, p.16). Na época em que redigiu sua pesquisa, era aluno do mestre Renê, fundador da Associação de Capoeira Angola Navio Negreiro (ACANNE), de Salvador. Foi com o intuito inicial de pesquisar seu “bisavô” de capoeira, o mestre Canjiquinha, que o autor pôde fazer descobertas significativas para pesquisadores da capoeira e da cultura popular.

Se debruçando sobre o trajeto de mestre Canjiquinha na capoeira, Magalhães observou que havia discursos diferentes em torno de Aberrê — quem ensinou capoeira ao mestre Canjiquinha. Segundo alguns, Aberrê teria sido aluno do mestre Pastinha (1889-1981), promotor de uma linhagem que veio a dominar a definição e a representação do que se compreende como capoeira angola. Contudo o autor nos mostra discordâncias entre os relatos históricos e os discursos presentes, por exemplo: mestre Pastinha estava afastado da capoeira pelos idos de 1912, só retomando-a em 1941. Nesse período, Aberrê figurou em importantes disputas em ringues de capoeira (década de 1930), inclusive contra o mestre Bimba (1899-1974), criador da capoeira regional. Por outro lado, como o autor destaca em uma de suas hipóteses no subcapítulo Polêmicas Pastinha e Aberrê (p. 84), tendo Pastinha dado aulas de capoeira de 1910 a 1912, Aberrê só teria sido seu aluno por dois anos; outro problema que se coloca também é a remissão que a tradição oral faz da linhagem capoeirística de Aberrê que nos enviaria ao Recôncavo Baiano. Uma terceira questão é a de que naquela época — anterior à possibilidade de instituição de espaços reservados para a prática e ensino da capoeira, as academias (grupos ou escolas de capoeira, na concepção atual) — a relação aluno-mestre era muito mais fluída do que a atual relação de rigidez e fidelidade que a determina atualmente (MAGALHÃES, 2012, p. 85).

Parte dessa disputa sobre a ascendência de Aberrê faz eco aos dissensos do tempo presente no campo onde estão em luta aqueles que defendem a possibilidade da diversidade na unidade do que se compreende — e se busca fazer compreender por meio dessas disputas simbólicas e corporais, discursivas e acadêmicas — por capoeira angola e aqueles que impingem o estigma de descaracterização para formas, ou melhor dizendo, maneiras de ser e estar em jogo que não se conformam ao modelo hegemônico determinado pela linhagem pastiniana. Dentro desse robusto tecido de disputa pelo passado e memória que encontramos em tal pesquisa, a pertença a uma linhagem ou a oposição a ela, os interesses nas reconstituições práticas e teóricas das genealogias, de modo concreto, configuram para o ponto de vista teórico um espaço de disputa da legitimidade, de jogos para fortalecer ou enfraquecer os direitos associados a uma linhagem e, assim, de ter uma prática diferenciada da definição dominante de capoeira angola podendo, então, esses praticantes identificarem-se como angoleiros com maneiras particulares de ser e se fazer capoeira, implicando uma mudança na própria definição de capoeira angola.

Conforme nos relata, foi enquanto se dedicava aos materiais históricos sobre a capoeira baiana do século XX que o autor viu-se enredado em materiais jornalísticos da década de 1980, que apontavam para uma disputa em torno da tradição (e definição) da capoeira angola na forma de controvérsias entre jovens mestres que arrogavam para suas respectivas práticas a maior conformidade com a capoeira angola, sendo protagonistas dessa disputa político-simbólica, dentro do campo da capoeira angola baiana, os mestres Moraes e Renê. O primeiro, que se situa na linhagem de mestre Pastinha, e o segundo, na linhagem do mestre Aberrê. Segundo outro mestre baiano famoso (Paulo dos Anjos), mestre Aberrê pertenceria a uma outra linhagem da capoeira angola que se formou a partir da década de 1930.

A descoberta desse material histórico fez o pesquisador alterar seu objeto de pesquisa. Entretanto, apesar das pesquisas históricas do autor e dos debates entre descendentes de Aberrê, no meio capoeirístico ainda se mantém a indecisão quanto à ascendência do mestre Aberrê. Então, é a partir de tal deslocamento provocado pela empiria histórica que a pesquisa ganhou corpo: o autor vai em busca, na dialética entre as estratégias dos agentes e das conjunturas para sua ação, do significado das práticas e discursos propostos a respeito da tradição da capoeira angola.

Foram várias as contribuições que Paulo Magalhães ofertou para os pesquisadores da cultura afro-brasileira em seu livro. A historicidade das disputas simbólicas que constituem a prática da capoeira, desde o período de sua ilegalidade, passando pela criação da capoeira regional em 1928 por mestre Bimba e, mais ou menos na mesma época, da capoeira angola até sua descriminalização no Estado Novo. Magalhães, a partir da pesquisa nos jornais na década de 1930, falando sobre a criação da capoeira angola, traz contribuições importantes por apresentar, na contramão de hipóteses de outros pesquisadores, que a capoeira angola e o seu recurso à tradição (MAGALHÃES, 2012, p. 55) como estratégia central de sua oposição à capoeira regional e de disputas políticas dentro do seu próprio espaço não é uma criação dos intelectuais, posteriormente apropriada pelos praticantes.[1] Simone Vassalo, em artigo de 2003, Capoeira e intelectuais: a criação coletiva da capoeira autêntica, apresentando as observações do folclorista Edison Carneiro sobre a pureza da capoeira angola, escreve-nos:

 

[...]Em seguida, [Edson Carneiro] acrescenta: "A capoeira de Angola me parece a mais pura das formas de capoeira, podendo servir de paradigma à análise" (Carneiro, 1937: 149). Os critérios que o levaram a essa conclusão não são explicitados nesse artigo, nem nos outros que escreve posteriormente sobre essa mesma atividade. [...] A partir desse momento, intelectuais e capoeiras passaram progressivamente a veicular a expressão "Capoeira d'Angola", considerando-a a forma mais autêntica de jogo. Desde então, os estudos sobre a luta afro-brasileira referem-se quase que exclusivamente a essa modalidade de luta, que se cristaliza progressivamente, adquirindo contornos específicos. Não pretendo afirmar aqui que Édison Carneiro tenha sido o criador dessa expressão. Mas sugiro que a veiculação que ele fez dessa categoria tenha contribuído em muito para a sua consolidação (VASSALO, 2003, p. 110-111, grifo nosso).

 

Os dados apresentados por Magalhães põem em suspeição a ideia de que a capoeira angola seria uma invenção dos intelectuais. Em um debate jornalístico de março de 1936, momento marcado por tentativas de esportivização imanentes ao campo da capoeira (MAGALHÃES, 2012, p. 58 e 63) em que se via “duas vertentes da capoeira como dois modelos negros de esportivização” (REIS, 1994 apud MAGALHÃES, 2012, p. 63), e em que mestre Bimba buscava afirmar a capoeira regional como a capoeira que conservou e desenvolveu as suas características marciais; é citada por Magalhães a fala do mestre Samuel em um jornal em que ele nos diz que “a capoeira por Bimba introduzida no Parque Odeon não é a legítima de Angola, mesmo porque para se praticá-la mister se faz a presença do berimbau e pandeiro marcadores do ritmo”  (MAGALHÃES, 2012, p. 60, grifo nosso). Para além do debate aí implícito dos limites da prática e da própria concepção do que seria a capoeira, tal enunciado nos mostra que, tal como a capoeira regional foi uma inovação orgânica do desenvolvimento da capoeira e atendeu direta ou indiretamente às necessidades sociais de seus praticantes, a capoeira angola surge como resposta (e classificação opositora) prática à tal inovação, de antemão pondo a capoeira regional como ilegítima e promotora de uma espécie de heresia em relação à capoeira que vem a tomar o apelo “à tradição como sua marca distintiva” (MAGALHÃES, 2012, p. 65). Apesar da grande importância desses achados de Paulo Magalhães, ele põe com isso uma questão que não nos responde, a saber: qual a razão, então, da tradição — essa lei do passado que rola a cabeça dos vivos — vir a ser, quase que espontaneamente, o instrumento de luta dos angoleiros?

Em relação aos aspectos referentes à construção do objeto de pesquisa, o autor é claro: “Não é nossa intenção aqui [...] efetuar uma ruptura epistemológica e submeter a uma crítica teórica o discurso angoleiro” (MAGALHÃES, 2012, p. 46). Tomar por objeto científico aquilo que em um espaço específico da vida social determina os limites do certo e errado, do que está dentro ou fora, do que é honroso ou desonroso é uma tarefa difícil e cheia de ciladas em sua execução, essas oposições naturalizadas na capoeira angola compõem a ideia de tradição. O recurso à relativização antropológica de uma sociedade ou grupo social através do método comparativo, a historicização de um determinado fenômeno social, a descrição etc., são instrumentos importantes da objetivação científica que visam dar ao pesquisador um coeficiente de objetividade fundamental para evitar as tomadas de posição inconscientes a favor da sociologia espontânea mobilizada pelos agentes em disputa em um jogo social particular. Em um momento histórico de reviravoltas epistemológicas e críticas aos pressupostos das formas oficiais e dominantes de saber e expressão, quer seja a filosofia, a ciência, a religião ou a arte, tomadas como cúmplices conscientes ou inconscientes de doutrinas coloniais e racistas, pode parecer socialmente risível, politicamente descuidado e academicamente ultrapassado falar em buscar alguma objetividade do conhecimento. A razão de nossa desconfiança se fundamenta em certa incoerência dos argumentos do autor, algumas contradições internas do texto e do seu conteúdo, por exemplo: a opção, dada a priori, por um conceito nativo de tradição e a forma como é apresentada.

Paulo Magalhães, no subcapítulo: Sobre a tradição (MAGALHÃES, 2012, p. 46) e nas suas Considerações finais (MAGALHÃES, 2012, p. 225), expressa as intenções de sua pesquisa, a de não efetuar “uma ruptura epistemológica” (MAGALHÃES, 2012, p. 46) com o discurso nativo: “Nos colocamos aqui na posição do intelectual orgânico gramsciano, que expressa na linguagem da ciência o pensamento e os interesses de determinado grupo social” (MAGALHÃES, 2012, p. 228). Um raciocínio por oposição veria em ambas as citações os riscos de que, sobre a égide da política e de uma crítica à forma dominante de saber se acabe endossando academicamente uma visão particular de um grupo ou mestre específico sobre o que é a tradição angoleira ou mesmo a capoeira, sendo um fato observado pelo autor e demais pesquisadores a extensão e transformação do âmbito acadêmico em mais um espaço de disputa dos grupos e mestres para implementação de sua visão particular da capoeira: “Uma parte significativa das pesquisas sobre capoeira hoje são realizadas por praticantes de capoeira, e há aí uma relação de legitimação em duas vias” (MAGALHÃES, 2012, p. 31). O próprio autor faz tal tipo de crítica no fim do subcapítulo A crítica regional à tradição (MAGALHÃES, 2012, p. 33) para apontar mediações importantes que também condicionam a crítica de pesquisadores-praticantes ao objeto constituído desde um ponto de vista teórico (e não-prático) como fundamento das disputas de poder para os angoleiros:

 

É importante não deixar de frisar o lugar de onde se fala, que grupo social é referência para estes autores que criticam, relativizam e desestabilizam o discurso nativo tradicionalista da capoeira angola. Letícia Reis foi aluna de Mestre Kenura, na Associação de Capoeira Fonte do Gravatá, em São Paulo; Simone Vassallo treinou com o grupo Senzala, no Rio de Janeiro; Luiz Renato e Falcão são mestres do grupo Beribazu, de Brasília. São todos representantes da capoeira contemporânea do Sudeste, e coincidentemente questionam de forma contundente a tradição da capoeira angola baiana [nordestina] (MAGALHÃES, 2012, p. 34).

 

Mas o risco de o feitiço se virar contra o feiticeiro é bloqueado em tal pesquisa? A forma de articulação do discurso do autor (próximo ao objeto em jogo) derrapa, às vezes, no uso espontâneo de jargões próprios ao ponto de vista da capoeira angola baiana, passando implicitamente da descrição de uma realidade à defesa dela, sendo essa operação a forma invertida daquela criticada por Magalhães, a historicização objetivista feita por José Cirqueira Falcão (FALCÃO, 1994 apud MAGALHÃES, 2012, p. 32), que ataca o recurso à tradição pelos praticantes da capoeira angola, taxando-os de “românticos” e “ingênuos”, presos a “superfluidades que supostamente se perderam nas brumas do tempo” (FALCÃO, 1994 apud MAGALHÃES, 2012, p. 32). Tal crítica de Falcão demonstra sua incompreensão das funções políticas que a tradição cumpre nas disputas entre os praticantes de capoeira angola, entre esses e os praticantes de capoeira regional e com a sociedade e suas instituições políticas. Nesse sentido, o historicismo objetivista de Falcão se torna ideológico por reduzir e, com isso, pensar destituir o objeto de significado a partir da exposição teórica de sua dimensão histórica, parte de um arbitrário cultural, pretendendo com isso desvalidar, retirar o valor através de um juízo teórico sobre esses jogos sociais — e capoeiranos — que a tradição motiva.

Como o próprio autor demonstra ter ciência, há uma “relação dialética intensa entre o campo angoleiro e a academia” (MAGALHÃES, 2012, p. 46), sendo as produções de conhecimento acadêmicas e não acadêmicas importantes instrumentos apropriados e mobilizados historicamente por mestres e grupos de capoeira para concorrer entre si no “mercado da capoeira”. A tradição, que é apresentada em várias acepções ao longo da pesquisa, é assombrada implicitamente, mesmo no seu uso nativo e positivo, pelo fantasma de sua mobilização instrumental na determinação de recurso em disputas simbólicas entre diferentes mestres e grupos; porém, qual é o conteúdo que as categorias constituintes da tradição — e ela própria — visam conquistar para si ao se realizar? Segundo Vivian Fonseca:

 

[...] tudo acontece como se a capoeira estivesse imune a tensões econômicas. Os jogos de linguagem presentes no campo da capoeira atribuem motivações somente ideológicas, esvaziando-se a tensão presente relativa à disputa de alunos e do mercado externo (workshop, palestras, batizados etc.) [apoios estatais incluso] (FONSECA, 2009 apud MAGALHÃES, 2012, p. 54)

 

A passagem e desenvolvimento do entendimento da função simbólica da tradição na construção das identidades e fronteiras dos grupos (MAGALHÃES, 2012, p. 53-55) para a compreensão, também, da função política do recurso à tradição — através da gênese da tradição hegemônica e das disputas dos agentes em torno dela — e da legitimidade que ela oferta é essencial para se apreender a dimensão dinâmica de tal realidade social.[2]

Ao combinar a empiria histórica com entrevistas feitas com mestres de capoeira angola, o autor oferece um amplo espaço de reflexão sobre as diferentes propostas político-identitárias para a capoeira angola; entretanto, a “busca de um conceito nativo consensual” (MAGALHÃES, 2012, p. 19) de tradição o enreda, a nosso ver, em mais um problema: não só a colcha de retalhos que a disposição das respostas dos mestres questionados sobre o que é tradição cria, como também o fato de algumas respostas conterem em si elementos que forçam e, em certa medida, “desrealizam” a “dimensão” secreta e imponderável (MAGALHÃES, 2012, p. 222) da tradição tal como defende o autor, aparentando, assim, posicionar-se a favor de certa visão específica sobre a capoeira angola, o que nos leva à questão: afinal, não seria esse o significado denegado que orienta a abdicação do autor em construir um conceito de tradição?

Em se tratando de tradições, o passado (sempre mediado pelas urgências atuais) se torna a medida das práticas presentes, é interessante notar, por exemplo, a visão positiva sobre as modificações da capoeira que o mestre Virgílio traz (p. 214), “porque a violência foi tirada”; ou a fala do mestre Nô que apresenta uma valoração inversa que associa a descaracterização da capoeira angola com a emergência dos princípios da atual tradição dominante vinculada, tal como Magalhães demonstra em sua pesquisa, ao surgimento do Grupo Capoeira Angola Pelourinho — GCAP (p. 214), que reinterpreta e continua ao seu modo o trabalho de racionalização da capoeira angola operado por mestre Pastinha. Ou também o mestre Raimundo Dias que “interpreta o discurso de descaracterização como um ataque hegemônico às linhagens minoritárias, que seriam coagidas a seguir o modelo dominante” (MAGALHÃES, 2012, p. 214). Contudo, de todas as respostas dadas, a que, a nosso ver, melhor ilustra a necessidade de fazer aquilo que o autor não intenciona — a ruptura epistemológica — é a anunciada pelo mestre Cobra Mansa.[3] Ele é um dos personagens centrais nos processos sociais estudados em tal pesquisa, sendo um dos fundadores de um dos dois grupos responsáveis pela “reascenção angoleira” (MAGALHÃES, 2012, p. 127), o Grupo Capoeira Angola Pelourinho (GCAP), após a morte do mestre Pastinha — figura central na criação de uma tradição angoleira, e que após sua morte, tornou-se um símbolo solicitado positiva ou negativamente para afirmação de tradições e linhagens dentro da capoeira angola. Em uma de suas respostas na entrevista, em parte citada por Magalhães (que citamos aqui a resposta inteira), dada a Rosângela Araújo, o mestre Cobra Mansa nos diz que:

 

Hoje em dia eu vivo mais contradição do que tradição. No meu meio, eu tenho vivido uma fase muito difícil de capoeira, nos últimos 4, 5 anos... tem sido muito difícil... já teve momento em que eu tive vontade de parar de dar aula de capoeira, porque eu já não aguento mais, eu já não sei o que é verdade, o que é mentira, o que é tradição, o que é história, o que é mito, perdi a referência total, então é difícil para mim hoje em dia, chegar para um aluno e dizer: olha, isso é pau, isso é pedra. Porque, na verdade, você aprende que tradição é feita todos os dias, tradição é uma coisa que as pessoas adotam e que outras pessoas vão adotando e que com o processo passa a fazer parte daquele grupo, e aí vira tradição. Então eu tento passar para os meus alunos, hoje em dia, uma visão um pouco aberta do que é Capoeira Angola e ao mesmo tempo colocar para eles que tem certas coisas que não devem ser mudadas.

E tem outras coisas que você tem que ter a mente aberta o suficiente para entender que não existe verdade, não existe mentira. Eu mesmo, hoje em dia, não ensino mais nomes de toques, porque eu mesmo já me perdi, me perdi mesmo... porque cada tempo que passa eu vejo que existe mais contradição do que tradição. Então, um mestre decide que esse toque vai ser assim e por aí vai passando.  Também não discuta, aprenda a maneira que ele tem e guarde para você, você só vai ganhar mais conhecimento com isso (ARAÚJO, 2004, p. 206, grifo nosso).

 

Elementos importantes são aí mobilizados e abertamente relativizados. O fundamento inquestionável ou ignorado que dá a certeza para que um olhar e fazer particular se acredite como o único correto, próprio do apelo à tradição, vê-se em xeque nesse depoimento. Seria preciso, contudo, situar o olhar do mestre Cobra Mansa a partir de seus traços biográficos, sociologicamente pertinentes, o que não é adequado nos limites desta resenha, ficando tal tarefa para pesquisas posteriores.

É por intermédio desses jogos na história da capoeira em geral, e da capoeira angola em particular, que o autor abre novos horizontes e nos instiga para a pesquisa das práticas culturais populares a partir de novos conceitos e problemas. O livro, com as suas reflexões teóricas sobre a constituição da hegemonia em um espaço social específico, os novos achados históricos, as analogias com as demais práticas culturais e religiosas afro-brasileiras, as estratégias práticas dos agentes sociais em jogo, é um convite aos leitores para entrarem no jogo (dentro e fora da roda de capoeira), na história e contradições das práticas culturais produzidas pelas classes sociais marginalizadas no processo de formação do Brasil.

 

Referências

ARAÚJO, Rosângela Costa. Iê, viva meu mestre: a capoeira angola da “escola pastiniana” como práxis educativa. 2004. Tese (Doutorado em Educação) — Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004.

MAGALHÃES FILHO, Paulo Andrade. Jogo de discursos: a disputa por hegemonia na tradição da capoeira angola baiana. Salvador: EDUFBA, 2012.

VASSALO, Simone Pondé. Capoeiras e intelectuais: a construção coletiva da capoeira autêntica. Revista Estudos Históricos, v. 2, n. 32, p. 106-124, 2003.

 

Recebido em: 11/08/2021.

Aceito em: 12/04/2022.

 

https://doi.org/10.46906/caos.n28.60497.p199-208

 



* Aluno do curso de Bacharelado em Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB)/Brasil. E-mail: gabriel.pereira@academico.ufpb.br.

[1] Importante destacar que o próprio autor nos remete à função política — assomada a função de homogeneização de um grupo — que a tradição realiza em sua afirmação e reposição, tornando-a também um instrumento de disputa de um determinado grupo social, no caso específico, os angoleiros baianos. Nesse sentido, ele recorre à noção de “essencialismo estratégico” do teórico cultural Stuart Hall (MAGALHÃES, 2012, p. 16).

[2] Ver também a página 40 sobre a denúncia das estratégias de controle de mercado feitas pelos mestres brasileiros e a página 56 onde o autor aponta que “a defesa da tradição está ligada intrinsecamente" às disputas no mercado da capoeira — que como mercado de um bem simbólico, raramente aparece como tal e muitas vezes tem suas disputas em formas transfiguradas.

[3] Observemos que a “contradição” que o mestre Cobra Mansa nos relatará a seguir indica-nos que há uma modificação em curso no espaço da capoeira angola em que nos são sinalizados os contornos de uma compreensão da tradição mais particularizada, mais intelectualizada, ciente da arbitrariedade das tradições. Somemos a isso que a intuição da arbitrariedade no cerne do apelo à tradição é bastante presente em mestres angoleiros que não são da linhagem pastiniana, hegemônica, isto é, que são dominados nesse espaço, que não se conformam com o modelo estabelecido pelo GCAP, como o autor documenta nas desconfianças dos mestres Raimundo Dias, Nô e Lua Rasta (MAGALHÃES, 2012, p. 214-215).

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Desenho de um círculo

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