UMBANDA INTERIORANA: relato em um terreiro de Vilhena (RO)
RURAL UMBANDA: report in a terreiro in Vilhena (RO)
Heron Cristiano Mairink Volpi *
https://doi.org/10.46906/caos.n28.60774.p143-162
Resumo
Esta é uma pesquisa exploratória, por se tratar de um trabalho inicial. A pesquisa deste artigo está engajada em fazer um mapeamento geral sobre a umbanda na cidade de Vilhena, estado de Rondônia. Sabemos que as religiões de matrizes africanas não são politicamente fortes e, portanto, não conseguem grandes movimentos nessa seara, diferentemente das religiões evangélica e católica. Através de um relato etnográfico de terreiros de umbanda no interior de Rondônia, buscamos compreender como se dão as dinâmicas de culto, trabalho e parentesco dentro desses espaços. Por se tratar de um trabalho inicial, no qual cada aspecto abordado poderia ser etnografado de forma mais ampliada, porém, contêm as potencialidades de levantar um debate acadêmico novo para o interior de Rondônia.
Palavras-chave: umbanda; religiões afro-brasileiras em Rondônia; Vilhena.
Abstract
This is an exploratory research, as it is a preliminary work. The research in this article is aimed at engaged in mapping Umbanda in the city of Vilhena, Rondônia. We know that in this area African religions are not politically strong and do not constitute major movements unlike the Evangelical and Catholic churches. Through an ethnographic account of Umbanda terreiros in rural Rondônia, we seek to understand the dynamics of worship, work and kinship in these spaces. This is an exploratory research and the limitations of the ethnography are acknowledged. However it has the potential to contribute to academic debate regarding Umbanda in the interior of Rondônia.
Keywords: umbanda; afro-brazilian religions in Rondônia; Vilhena.
Introdução
No livro Umbanda, José Magnani (1986) faz um trabalho bastante extenso de descrição dessa religião e seus desdobramentos na cidade de São Paulo. O autor a aborda a umbanda traçando paralelos entre ela, o candomblé e o espiritismo. Magnani faz um compilado de livros que já haviam sido lançados sobre essa temática em meio acadêmico até então. O autor alerta que escrever sobre religião continua sendo um desafio, mas que as previsões dos evolucionistas não se confirmaram: mesmo com os avanços tecnológicos e do desenvolvimento do pensamento científico, os homens seguem preocupados com a religião, com as manifestações espirituais e com a vida após a morte.
A umbanda, como já foi assinalado, é o resultado de um duplo movimento: de um lado, apropria-se de elementos já existentes no seio de cultos, ritos e valores religiosos populares que constituíam a macumba e o baixo-espiritismo, bem como o candomblé; de outro, submete-os a um processo de depuração, reinterpretando-os dentro da lógica do kardecismo. (MAGNANI, 1986, p. 29).
A umbanda no Brasil remonta ao “culto às entidades africanas, aos caboclos (espíritos ameríndios), aos santos do catolicismo popular e, por fim, às outras entidades que a esse conjunto foram sendo acrescentadas pela influência do kardecismo” (MUNANGA; GOMES, 2016, p. 143).
As linhas de trabalho na umbanda são tipos de espíritos que se manifestam nos terreiros. Basicamente, essas linhas de trabalho são espíritos desencarnados que se apresentam em grupo através de arquétipos para atuar nas cerimônias. Por exemplo, na gira de baianos somente espíritos que são baianos irão incorporar nos médiuns. As principais linhas de trabalho são: caboclos[1], pretos velhos[2], crianças[3], exus[4], exus-mirins[5] e pombas-gira.[6]
Ao observar as entidades, vem a indagação de sua origem. Segundo Birman (1991, p. 43): “As entidades de umbanda são construídas como seres em contiguidade com o mundo humano — seres que já viveram”.
Os dados que puderam ser levantados por acadêmicos de História, contam que as religiões de matrizes africanas se espalharam por toda região amazônica com os fluxos migratórios maranhenses a partir do primeiro ciclo da borracha nas duas primeiras décadas do século XX. Esses migrantes, que ocuparam todas as principais cidades do norte do país, abriram terreiros nas maiores capitais (Belém, Manaus, Porto Velho, Rio Branco). Os terreiros eram de tambor de mina, um sistema religioso africano e tendência cultural presente nos cultos do interior do Maranhão (Codó, Cururupú, Santo Antônio).
A memória social informa que o primeiro terreiro de Rondônia foi fundado por volta do ano de 1917 por populações de migrantes afrodescendentes oriundos dos Estados do Maranhão, do Piauí e do Pará. O terreiro fundado adotava a religião chamada Tambor de Mina e recebeu o nome de Recreio de Yemanjá (LIMA, 2016, p. 92 apud LIMA, 2001).
Somente em 1960, os cultos umbandistas passaram a ocupar a região amazônica através da implantação das políticas desenvolvimentistas dessa região pelo Governo Federal, na fase da execução dos Projetos de Assentamentos Dirigidos (PADs) e dos Projetos Integrados de Colonização (PICs). A umbanda, então, se enraizou e se expandiu em Rondônia. Durante essa década, foi fundado o primeiro espaço religioso socialmente reconhecido como umbanda, o Terreiro de São Sebastião. As práticas desse terreiro não se diferenciavam essencialmente dos ritos do tambor de mina. (LIMA, 2016, p. 91, 98).
A umbanda, ao chegar à Amazônia nos anos 1960, já encontrou o tambor de mina instalado, e incorporou de maneira orgânica, não só as próprias concepções do tambor de mina, mas a pajelança indígena local, e ampliou o seu panteão de entidades espirituais. De forma que a umbanda ocupou uma posição de religião nacional e reformulou o mapa dos cultos afro-brasileiros em todas as regiões do país. (FURUYA, 1980 apud LIMA, 2016, p. 91).
O Censo 2010[7] divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2012) aponta que 33,8% da população do estado de Rondônia se autodeclara evangélica, portanto, vivemos no estado mais protestante do país. Comparado com o censo de 2000, houve um crescimento de 6,6% de evangélicos em Rondônia. Católicos passaram de 60% para 47%. E os que se declararam sem religião em 2010 representam 14,3%, quase o dobro da média nacional, que é de 8%.
Devo mencionar a delicadeza do assunto abordado neste artigo — religião — e dizer que depurar este texto tem sido um grande aprendizado para mim.[8] Não proponho aqui um artigo extenso. Contudo, o que fica de mais importante, são os processos de recolhimento de informações e um levantamento de um quadro geral do que vi.
Objetivos
Este texto se propõe fazer análises dos principais aspectos sociológicos e de rito da umbanda vilhenense através de um terreiro: Terreiro do Pai Baiano do Rio Vermelho da Areia Branca. Também é um texto em que se presta a expor os erros e pedregulhos em que o autor se envolveu. Pois, por mais que façamos diversas leituras e aulas de etnografia, é realmente o campo e os apontamentos dos revisores que norteiam de fato o trabalho do etnógrafo.
Neste texto, há uma marca indelével dos percalços de um antropólogo novato. Não seria um erro crasso apagar essa marca, mas de alguma forma, esconderia o risco tomado pelo autor, tanto em nível etnográfico quanto em nível pessoal. O que não deixa a pesquisa mais superficial, mas evidencia ao leitor a sujeição ao erro em que ela está alocada.
Quais seriam os meus objetivos ao fazer um relato no terreiro do meu amigo? O primeiro objetivo seria o mais pessoal possível: conhecer o culto. O segundo, criar um relato para a disciplina de Teoria Antropológica I. Descortinava-se na minha frente um mundo bastante novo. Fui em busca de padrões generalistas dos três terreiros que visitei. Ou seja, essa pesquisa não se tornou etnográfica. De forma que buscou principalmente traçar um retrato geral dos lugares de umbanda em Vilhena.
A cidade de Vilhena – Rondônia
Vilhena é a primeira cidade da Amazônia Ocidental, o que lhe permite ser chamada de “Portal da Amazônia”. A história da cidade data do começo do século XX, por volta de 1910 com a passagem do Tenente Coronel Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, quando fixou nos campos do Planalto dos Parecis um posto telegráfico, na linha Cuiabá/Santo Antônio do Alto Madeira, o qual ligaria as principais cidades do oriente do país: Cuiabá e Porto Velho. O nome “Vilhena” foi denominado por Rondon, em homenagem ao ex-chefe Álvaro Coutinho de Melo Vilhena, natural do Maranhão, engenheiro chefe da Organização da Carta Telegráfica Pública.
Durante quase 50 anos, foi o Posto Telegráfico da passagem do homem civilizado por esta região e, somente a passar do final da década de 50, a sua presença tornou-se mais efetiva. No ano de 1959, o Presidente Juscelino Kubitscheck iniciou a BR-29 (Brasília/Acre), atual BR-364, que integrava a região Norte com as demais Regiões do País. No ano de 1964, ocorreu através do IBRA (Instituto Brasileiro de Reforma Agrária), e depois do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), a distribuição de terras da União aos colonos, dispostos a adquiri-los e se fixarem na Região. Este fator atraiu migrantes de todos os quadrantes do País. Nesta ocasião, que chegavam as primeiras cabeças de gado (80 rezes), instalavam-se aqui: o primeiro Posto de Gasolina; o primeiro Hotel e Restaurante; tudo de propriedade do pioneiro Ferreira Queiroz. (PREFEITURA DE VILHENA, online).
Andando pela cidade, não é difícil perceber que a religião tem presença massiva na vida das pessoas. Os espaços físicos onde a espiritualidade é celebrada tomam lugares por todos os bairros da cidade. A maioria dos templos são pequenas casas evangélicas. Mas existem os massivos templos evangélicos, como os da Assembleia de Deus e da Igreja Luterana. As igrejas católicas, apesar de serem em menor número, são espaços maiores e muito bem localizados, e, portanto, recebem mais pessoas em seus cultos. Hoje, Vilhena tem cerca de cem mil habitantes, sendo a quarta maior cidade do estado de Rondônia. As maiores cidades do estado são em ordem decrescente: Porto Velho (capital), Ji-Paraná e Ariquemes.
A religião que liga o homem ao que é divino por intermédio de ritos, encontra na cidade condições especiais para o seu desenvolvimento e manifestação. Fazer o estudo original deste artigo foi muito delicado, pois envolve a religiosidade de pessoas, e literalmente não há nada mais sagrado para nós que nossos deuses.
Métodos
Há dentro da antropologia e das ciências sociais um grande problema em relação ao emprego da primeira pessoa na escrita acadêmica. Como se o “eu” devesse estar como uma identidade oculta. Esse problema de metodologia fora superado em algum momento (ou não) pela antropologia, que destituiu do imaginário científico a possibilidade de o pesquisador conseguir se manter neutro o tempo todo. Novos antropólogos têm maiores aderências ao emprego de suas próprias experiências em trabalhos acadêmicos. Por outro lado, há aqueles que rechaçam essa possibilidade e associam o “eu”, somente às biografias.
Na apresentação do livro Antropologia das sociedades contemporâneas, Bela Feldman-Bianco (1987) faz um grande apanhado em relação a metodologias e epistemologias que a antropologia frequentou. Ela faz um sobrevoo sobre a “teoria da ação” em substituição às outras teorias e abordagens prevalecentes na antropologia até os anos 1940. Essa teoria está mais interessada em descobrir o comportamento concreto por meio de observações.
Nos anos 70, Gilberto Velho (1973), apontou uma questão teórico-metodológica que ainda perdura na academia: a preocupação em traçar rigidamente os limites entre investigação sociológica e a antropológica. O autor pondera que o estudo acadêmico em meio urbano, por sua complexidade, exige o “concurso de diferentes tradições de trabalhos”. Dessa maneira, história, geografia, antropologia, sociologia e psicologia deveriam dialogar nas pesquisas. O estudo de religiões na cidade só pôde ser viabilizado na antropologia quando seu braço urbano surgiu.
A presença das religiões mágicas na cidade não se realiza como contradição ou ruptura entre os conceitos pretensamente antinômicos, isto é, “magia” na aldeia e “racionalidade” na cidade. O desenvolvimento urbano não é necessariamente obstáculo ou impedimento ao pensamento mágico. Não se trata de ruptura entre religião e secularidade ou entre magia e racionalidade, mas de uma continuidade possível, pelo diálogo entre práticas, valores e significados destoantes, conflitivos ou convergentes, que caracteriza a vida multidimensional da cidade (MAGNANI, 1986, p. 98).
Nestor Perlongher (1993), no texto Territórios marginais, comenta sobre algumas exigências metodológicas que se desdobraram para a antropologia urbana. De forma sucinta, tentaremos elucidar os três pontos principais. O primeiro ponto é a exigência de local: na prática social, não se pode referenciar um lugar único, mas múltiplos. O lugar-território, clássico da antropologia, deve ser deixado de lado e admitido a plurilocalidade da vida na sociedade contemporânea, privilegiando os espaços intermediários da existência social, percursos, trajetórias e devires. O segundo ponto é a homogeneidade na etnologia urbana, que funciona como uma demanda para os estudos etnográficos. O pesquisador não deve inventar homogeneidades, mas procurar aprender unidades reais de funcionamento, e, para tanto, deve pesquisar grupos mais ou menos homogêneos. Como último ponto, Perlongher se refere ao segundo ao dizer que o mesmo recurso metodológico deve valer para o plano de crenças e representações.
Terreiros da cidade de Vilhena
Fui a três terreiros da cidade, em um espaço de tempo de seis meses. A partir do Terreiro de Umbanda Pai Baiano do Rio Vermelho da Areia Branca construí o relato presente neste artigo. Contudo, considerando similaridades com os outros terreiros da cidade, também ensejei escrever sobre construções sociais que pudessem ser mais genéricas, ou seja, presentes em todos esses lugares. Além do terreiro principal, fui ao Terreiro Cosme & Damião. Este lugar de umbanda, está em uma chácara, há quinze minutos de carro do centro da cidade. O outro terreiro visitado é o Terreiro da Mãe Suzi e Pai Roque, há vinte minutos de carro do centro da cidade.
Terreiro de Umbanda Pai Baiano do Rio Vermelho da Areia Branca: relato
Ensejando o que escrevi até aqui, o autor do texto deve se apresentar. Meu interesse pelas religiões de matrizes africanas vem de muito tempo. O primeiro livro que eu li sobre magia e espiritualidade foi Umbanda sem medo de Flavio de Oxóssi. Um livro que contém explicações ricas e gerais sobre a religião. Apesar de ter lido esse livro há muito tempo, ainda havia em mim certo recalcamento de visitar casas umbandistas, principalmente por ter crescido nas cercanias das igrejas evangélicas, por (in)fluência da minha mãe.
Nesse contexto, eu já estudando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Mato Grosso, fui pela primeira vez em um terreiro de umbanda[9] na minha cidade, Vilhena (RO). Apesar de não ter chegado lá com intenções claras de construir um relato etnográfico, em alguns momentos, visualizei a possibilidade de ele existir, justamente para “cientificizar” fatos que me aconteceram no terreiro, de forma a não me envolver completamente nas dinâmicas exercidas no ambiente. Tenho um amigo muito próximo, Jhonatan Tozi, que é frequentador e médium assíduo do Terreiro de Umbanda Pai Baiano. Então, convidei-me para ir.
O terreiro fica localizado no bairro Embratel, distante quinze minutos de carro do centro da cidade, o que para uma cidade média, é muito tempo no transporte. O relato a seguir é fruto de seis visitas espaçadas durante um tempo de dois meses. Portanto nunca fui um frequentador assíduo ou um fiel do terreiro.
Quando cheguei ao terreiro, às 19h30min, horário marcado para começar os trabalhos, as pessoas ainda estavam em frente a casa conversando. Uma residência muito simples, em uma rua sem asfalto, em um bairro pobre da cidade. A casa é pintada de verde, com uma pequena área em frente, onde algumas cadeiras se emparelham para que alguns possam se sentar. Outros estão mais distantes, também conversando. Depois de algum tempo, um senhor passa por nós. Ele parece estar com pressa e vai até seu carro. Alguém lhe grita para que possa pegar o banho que lhe fora preparado, ele volta para buscar a garrafa pet que carrega ervas e água, contudo, percebe-se claramente que ele está incomodado com a situação, ou mesmo que seja, com a exposição que lhe fora imposta no ambiente dos que esperam.
Em relação a horários, nesse terreiro, não há hora exata para começar e nem para terminar os compromissos. Como relata meu amigo Jhonatan no áudio:
Porque assim, como você vai tá comigo, eu só saio de lá amigo, Deus sabe que horas. Tenho horário pra chegar, horário pra sair eu não tenho, tá? Pode ser, dez, dez e meia, onze, meia noite, vai depender de como os trabalhos vão estar acontecendo (informação verbal)[10]
Realmente, nesta primeira visita, assim como nas outras, os presentes só puderam sair depois da meia noite.
Já passa das 20h10min quando somos convidados a entrar em uma pequeníssima sala que deve ter três metros de largura e quatro metros de comprimento, é realmente muito simples. A entidade Maria já está incorporada em seu “cavalo”, termo animal que denomina o ser humano a ser usado pela entidade para manifestação em terra. Essa adaptação dos cultos às exigências da cidade, Magnani (1986) também encontrou em São Paulo:
A Casa das Minas de Thoya Jarina, de pai Francelino, instalada num sobrado geminado, é um dos mais contundentes exemplos da dinâmica do sistema simbólico e de adaptabilidade ritual do terreiro às contingências espaciais da cidade. A sala em que as festas acontecem praticamente toda semana (devido ao calendário intenso da nação mina-nagô) ocupa uma minúscula área de aproximadamente quatro metros quadrados nos quais cerca de vinte pessoas dançam e assistem aos seus alegres e festivos tambores em homenagem aos vodus encantados (MAGNANI, 1986, p. 98).
O cavalo de Maria é uma mulher por volta de seus quarenta anos. A “ritualidade” começou mais tarde, pois o cavalo havia chegado do serviço atrasada, e só pôde começar os trabalhos da incorporação depois de cumprir os protocolos de banho. Por diversas vezes, referindo-se a outras sessões, meu amigo me contou que não haveria reuniões, pois o cavalo estava com alguma dor física, o que na minha cabeça leiga, nunca foi entendido. De um padre, por mais que esteja com dor, se espera que cumpra suas funções no dia da missa, e se não puder estar presente, outro padre o substituirá. O mesmo aconteceria com um pastor de uma denominação evangélica. Porém o cavalo tem trabalho regular, “de carteira assinada”, junto ao fato das grandes exigências físicas demandadas pelos trabalhos, o que abre espaço para que se cancelem as reuniões semanais. Portanto é imprescindível, para que os trabalhos aconteçam, que o cavalo de Maria esteja muito bem de saúde e se sentindo muitíssimo bem-disposto.
Pergunto qual o rito, e a entidade Maria, que é uma entidade da linha de trabalho baiana,[11] diz que devo pedir-lhe a benção agachado. A voz da entidade é engrossada e imposta, ela tem um fino senso de humor e é rápida nas respostas. Maria chama a cerveja gelada, com que é servida, de “loira”, e sua cumbuca é sempre abastecida por algum membro do terreiro. Este membro deve estar sempre a postos para encher os copos com bebidas e trazer e levar os apetrechos utilizados pelas entidades, como chapéus, cigarro, charuto, muletas, panos, cocares, entre outros.
Um jovem rapaz toca o tambor, ele deve ter por volta dos vinte e cinco anos. Ele é filho do cavalo de Maria. E embora as observações tenham sido realizadas no Brasil interior, vale trazer as observações realizadas em São Paulo por Magnani:
O toque dos atabaques é inconfundível: anuncia o começo da gira semanal num dos incontestáveis centros de umbanda da cidade, e não é preciso ser filho-de-fé para receber um passe do caboclo ou conselho do preto-velho. É dia da sessão de caridade e todos são bem-vindos em sua busca de ajuda para as aflições e perplexidades que a vida na grande cidade parece multiplicar. (MAGNANI, 2009, p. 19).
A entidade aconselha o rapaz a não beber tanto como anda fazendo, um conselho que carrega uma maternidade consigo. Este mesmo rapaz, posteriormente ao conselho, recebe uma entidade, um preto velho. E então começa a tocar o atabaque. Na sala há poucas pessoas, por volta de dez. A “gelada” vai passando entre uma e outra pessoa, em uma corrente, na qual todos devem beber. Ao centro, Maria, de pé, comanda os trabalhos, em que vários pontos[12] são tocados. Uma senhora idosa, que aparenta ter mais de setenta anos, também incorpora. Cinco pessoas incorporam a linha de preto velho. Maria está feliz, e, entre um ponto e outro, conta um causo. Ela é a entidade que lidera os trabalhos, e aconselha que a entidade incorporada na senhora idosa beba menos: “cuidado com seu cavalo”. Esta senhora idosa, vem a ser a mãe do cavalo de Maria. Mais à frente exploraremos melhor como essas relações de parentesco desenham este terreiro.
Interessante o fato de que por várias vezes a entidade de Maria libera seu cavalo. Ela vai até o pequeno altar e sai do corpo da senhora, desta maneira o cavalo pode resolver algum problema que lhe aparece, como o filho que acabou de chegar do trabalho. Outra nota que se faz é que este terreiro está dentro do quintal da família, mostrando que a grande materialidade com que algumas religiões se versam, não se aplica a esta umbanda interiorana.
O jogo com que Maria “entra e sai” de seu cavalo é interessante, e demonstra que essa incorporação não é difícil para essas duas: o cavalo[13] (mulher) e a entidade. A incorporação acontece quando uma pessoa recebe um espírito em seu corpo, e esse espírito passa a controlar a totalidade de suas faculdades físicas. O processo de incorporação é difícil, pois exige muito estudo e dedicação. Mas Maria — a entidade que lidera o Terreiro do Baiano do Rio Vermelho da Areia Branca — e seu cavalo fazem a incorporação parecer bastante fácil: o cavalo se aproxima do pequeniníssimo altar, abaixa a cabeça, e, em um pequeno impulso para trás incorpora ou desincorpora a entidade Maria. Gostaria de ressaltar que essa não é uma perspectiva interna da pessoa que incorpora. Portanto o que parece ser fácil pode ter exigido anos de dedicação.
Já se passava da meia-noite quando Maria, lembrando da importância do trabuco[14], e que muitos que estavam ali trabalhariam no outro dia, vai embora. Pergunto para o meu amigo para onde ela vai, ele diz que ela vive em Aruanda, e ainda trabalha em outros terreiros.
Melhora no espaço físico do terreiro
Fui outras vezes ao terreiro, mas desta vez, por oportunidade dos trabalhos finais das disciplinas de mestrado, fui com maior convicção de construir um relato do ambiente. Nas minhas novas idas, havia um ambiente completamente novo, um espaço muito melhor. Provavelmente seis vezes maior que a pequena sala anterior. O espaço fora recentemente construído pelos fiéis no mesmo terreno da casa, porém, na outra ponta do quintal. Uma construção de madeira com terna decoração colorida em seu interior. Todo o sincretismo religioso das religiões mais disseminadas no Brasil concretizado por meio da decoração do lugar. Imagens de santos em quadros e físicas; bandeirolas de São João no teto; imagens de pretos velhos sentados em tocos; terços (católicos) etc. Um altar diverso e muitíssimo colorido.
Figuras 1 e 2 – Altar diverso e colorido no novo terreiro |
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Fonte: página do Instagram do Terreiro do Pai Baiano do Rio Vermelho da Areia Branca (2021).
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Figura 3 – Iniciando os trabalhos: passes |
Fonte: página do Instagram do Terreiro do Pai Baiano do Rio Vermelho da Areia Branca (2021). |
Em relação às minhas anotações antropológicas, fiquei constrangido de entrar com minha caderneta. A aura não é de estudo, e não há tantas pessoas para que cada um não seja notado. Mas desejo deixar claro aqui a anuência de minha pesquisa pelos fiéis retratados. Deixei minha caderneta em minha mochila e anotei as palavras-chave em um intervalo de cinco minutos que nos deram e ao final da segunda gira. Desta vez, o pai de santo, que é caminhoneiro, está presente. Há mais pessoas. Pelo menos dez médiuns envolvidos em uma gira de movimento circular, rodando ao centro da sala. Ao todo, deviam estar presentes vinte e cinco pessoas. Há também adolescentes e senhoras que estão atentas para possíveis demandas da gira.
Durante a gira, cada linha espiritual é recebida por vez. Em movimentos circulares, os médiuns despertam a corrente magnética. Apenas alguns médiuns da gira recebem as entidades. Assim que incorporadas, as entidades fazem suas demandas materiais. Os primeiros são os pretos velhos que demandam cachimbo e bengala. Quem vêm depois são os espíritos que são índios, estes precisam de cocares, que são adornados com pedrarias e enfeites importantes.
Ciganos, boiadeiros, pretos-velhos, caboclos, exus, todos esses personagens cujos suportes históricos em vida foram explorados, marginalizados, ocupando os interstícios do sistema, toda a legião dos seres liminares, enfim, são transformados nos terreiros populares, por um processo de inversão, em heróis dotados de força espiritual, capazes de socorrer aqueles que hoje, sujeitos talvez às mesmas vicissitudes, os invocam (MAGNANI, 1986, p. 48).
Todos os visitantes do terreiro podem abordar os guias quando estes estão incorporados em algum médium. Contudo não há um momento específico para que isso aconteça.
Como se tonar médium
A pessoa interessada em se tornar médium deve ir ao terreiro pelo menos três vezes. A partir do interesse em entrar na gira, ela será entrevistada pelo pai de santo da casa incorporado por seu guia, que irá averiguar todos os interesses. O guia dirá quais são os prós e os contras, explicará todos os pesos, responsabilidades e compromissos, principalmente ligados ao comparecimento assíduo do provável médium. Depois disso, essa pessoa pode entrar na gira e começar seu desenvolvimento.
Pelo menos nesse terreiro não há a exigência que se estude por longos períodos para que se receba as entidades, ao contrário do espiritismo kardecista ou de outras religiões cristãs, em que os desenhos hierárquicos são maiores, e, portanto, exigem mais tempo.
Por exemplo, em uma casa espírita kardecista que segue as diretrizes da FEB (Federação Espírita Brasileira), um médium deve ficar em preparação por cinco anos. Estudando o ESDE (Estudo Sistematizado da Doutrina Espírita) que são três anos. E depois mais dois anos no Estudo e Prática da Mediunidade.
Preparação física
Quem está na gira não é o pai de santo, nem o cavalo de Maria, estes estão no meio, ou ao lado, comandando os cânticos e trabalhos. Os médiuns da gira, contudo, uma vez incorporados por entidades, não conversam como aquelas entidades recebidas pelos médiuns mais polidos, caso do pai de santo e do cavalo de Maria, eles aceleram a batida do pé e o girar do corpo. Aliás, dessa vez, Maria aparece tarde na reunião, e sagazmente logo diz: “não tenho tempo a perder”.
Outro aspecto importante é a preparação física exigida pela “ritualidade” desse terreiro de umbanda. Os médiuns ficam girando, aproximadamente, quatro horas sem parar, marcadas pelo atabaque. Com pequenos passos criam a corrente magnética exigida para que as incorporações aconteçam. Sintomático desta observação foi quando, eu sentado no banco, olhei diretamente para um jovem rapaz médium que estava em gira, bastante magro. Imediatamente ao perceber meu contato visual, ele respirou profundamente, como se dissesse que estava absolutamente cansado. Também há a importância da sociabilidade para a umbanda; as giras só podem acontecer em um grupo de pessoas.
A marcação de gênero
“Que um homem não te define. Sua casa não te define. Sua carne não te define. Você é seu próprio lar”. Com esse verso da música Triste, louca ou má (2016), de Francisco, El Hombre, decidi começar esta parte do texto, para exprimir que, por mais que se possa pensar que ao se morrer, os gêneros sexuais “devam” ir embora, já que a “carne” se esvai, mas não é isso que acontece. Na gira, as mulheres ficam de um lado e os homens de outro. Em dado momento um rapaz colocou uma saia, então, imediatamente foi mandado para o lado das mulheres na gira. O cavalo de Maria, ao receber a entidade feminina usa uma saia roxa, e, ao receber um marinheiro, trocou seu figurino para uma calça branca. Isso também demonstra que as mulheres podem receber entidades masculinas e vice-versa. Maria, na minha primeira ida ao terreiro, contou, entre um causo e outro, que não se pode fazer sexo no mundo espiritual, ou seja, na terra dos mortos, de onde ela vem, lá não há sexo. Aqui também se aprofunda a questão trazida por Judith Butler nos atos performativos e de construção de gênero:
A construção não apenas ocorre no tempo, mas é, ela própria, um processo temporal que atua através da reiteração de normas; o sexo é produzido e, ao mesmo tempo, desestabilizado no curso dessa reiteração. Como um efeito sedimentado de uma prática reiterativa ou ritual, o sexo adquire seu efeito naturalizado e, contudo, é também, em virtude dessa reiteração, que fossos e fissuras são abertos, fossos e fissuras que podem ser vistos como as instabilidades constitutivas dessas construções, como aquilo que escapa ou excede a norma como aquilo que não pode ser totalmente definido ou fixado pelo trabalho repetitivo daquela norma. (BUTLER, 2019, p. 9-10).
Com isso podemos aferir que há espíritos que se identificam como “machos”, e espíritos que se identificam como “fêmeas”. O gênero, portanto, dentro do contexto umbandista da casa visitada, pode não estar na “carne”, ou seja, no corpo que temos e nascemos nele, mas pode estar na projeção mental em que nos autodeclaramos, visto que espíritos não têm “carne”, mas continuam expressando, nas incorporações, a dicotomia entre o que é de homem e o que é de mulher. Os espíritos não abrem mão de que seus cavalos estejam usando roupas condizentes com sua sexualidade, por exemplo, um boiadeiro incorporado em uma mulher jamais poderia estar usando uma saia.
As ambiguidades
Clifford Geertz (1978) fala sobre a celebração das ambiguidades que se dá no seio das religiões em geral como forma de superação das duras realidades enfrentadas por todos os povos, pelo simples fato da existência da vida humana. Ou seja, a religião é uma forma de encarar a vida.
A estranha opacidade de certos acontecimentos empíricos, a tola falta de sentido de uma dor intensa e inexorável e a enigmática inexplicabilidade da flagrante iniquidade, tudo isso levanta a suspeita inconfortável de que talvez o mundo, e portanto, a vida do homem no mundo, não tenha de fato uma ordem genuína qualquer – nenhuma regularidade empírica, nenhuma forma emocional, nenhuma coerência moral. A resposta religiosa a essa suspeita é sempre a mesma: a formulação, por meio de símbolos, de uma imagem de tal ordem no mundo que dará conta e até celebrará as ambiguidades percebidas, os enigmas e os paradoxos da experiência humana. O esforço não é para negar o inegável – que existem acontecimentos inexplicados, que a vida machuca ou que a chuva cai sobre o injusto – mas para negar que existam acontecimentos inexplicáveis, que a vida é insuportável e que a justiça é uma miragem (GEERTZ, 1978, p. 123).
A umbanda não contradiz as ambiguidades, e de forma generalista, apoia a ideia de que o sofrimento é necessário para que haja a evolução do espírito. Contudo, o mal tem outra inserção na filosofia umbandista se comparado com o discurso cristão ocidental, no qual o mal deve ser totalmente repelido e evitado.
A umbanda, em seu discurso popular, celebra o céu e o inferno, pois alguns dos espíritos que recebem prestações energéticas daqueles que estão encarnados, vêm direto do “profundo”. Estes espíritos que “vêm debaixo da terra” são invocados para que cumpram sua função em relação ao mal, pois são cumpridores das leis divinas, em que o mal deve ser pago com o mal. Ao mesmo tempo em que essas entidades são invocadas de lugares mais infernais, outras tantas são ternas e paternas, vindas “do céu”. A gira de direita convoca os espíritos “bons”, que são os caboclos, os índios, os pretos velhos... Já a gira de esquerda atua com exus, que são responsáveis por manipular e absorver as energias densas, vindas do inferno.
Carl Gustav Jung (2015) — que passou sua vida procurando por explicações do comportamento humano — enseja a ideia de um Deus ambíguo. Jung esteve inserido em uma sociedade europeia predominantemente católica e protestante, e seu pai foi pastor. A declaração a seguir foi expressa pouco depois da II Guerra Mundial.
[...] o Deus do Novo Testamento não é, em sentido algum, um Deus do amor, e sim, um Deus vingativo, terrivelmente vingativo, que até mesmo sacrifica o seu próprio filho para que ele se livre de seu aborrecimento. As coisas se encaminham dessa forma. A situação psíquica do homem espelha-se claramente nisso. É completamente impossível imaginarmos um criador do mundo que não seja um par de opostos. Ele tem que ser opositivo, caso contrário não teria energia. Não haveria a criação da luz a partir da escuridão. Quando não há escuridão, também não existe luz a partir dela e, se não há luz, não existe escuridão. Assim é. Mas quando as duas coisas são separadas, a questão se torna complicada. Há uma representação ambivalente de deus que constantemente ocultamos de nós mesmos. Os teólogos a ocultam de si mesmos. (JUNG, 2015, p. 28-29).
Para a filosofia umbandista, o bem e o mal são complementares. Como o próprio yin e o yang, conceito oriental do taoísmo, exemplo entre tantos outros conceitos antagônicos que se somam.
Dentro da umbanda, a dualidade se encontra no seio da própria ideia de Deus. Deus não está contra o mal. Mas o próprio Deus se articula através do mal. Ou seja, parte de Deus é má. O livro O guardião da meia-noite, psicografado por Rubens Saraceni (1991), mostra como os exus — que são demônios — trabalham com e para a evolução dos povos. Os exus também são recebidos através de incorporações no terreiro que fui.
Obrigações e lembretes
Ao final da gira, sabemos que o cavalo do pai de santo vai voltar a viajar de caminhão a trabalho. Segundo o preto-velho incorporado nele, o terreiro está lindo fisicamente, e energeticamente, está forte. Contudo, esta mesma entidade alerta que se ao voltar, o terreiro tiver piorado, ele faria algo de mau, como já havia feito antes. Aqui vemos a cobrança pela continua espiritualização e esforço dos fiéis que ali estavam.
O pai de santo é irmão do cavalo de Maria. A mãe do pai de santo também está ali, assim como suas filhas e filho, criança que deve ter uns quatro anos. Mostrando, assim, o parentesco deste terreiro no interior de Rondônia. Que não responde a nem um outro terreiro; as grandes hierarquias religiosas, aqui, não são presentes.
Todos os membros do Terreiro do Pai Baiano do Rio Vermelho da Areia Branca são cobrados para que tragam os objetos que suas entidades precisam: cocares, bengalas, cachimbos, saias etc. O preto velho os alerta para que haja maior concentração e entrega durante as giras, o tom de voz usado é incisivo.
Visitas a outros terreiros da cidade
Também fui a outros terreiros da cidade. No Terreiro Cosme & Damião, sempre havia cerca de oito visitantes, em média, dezoito pessoas entre médiuns, instrumentistas e a mãe de santo. Perguntei sobre o parentesco do local para uma médium, já que algumas vezes ouvia um ou outro médium chamando a mãe de santo — quando não estava incorporada por alguma entidade — de vó. Então a jovem médium[15] me respondeu que todos que estavam ali — excluindo os visitantes — eram netos da mãe de santo. Fiquei com isso na cabeça. Em outra oportunidade, não em uma visita ao terreiro, um dos médiuns do local me relata que, na verdade, ela não é vó de sangue dos médiuns, mas os acolhe, e, então, pede que eles a chamem de vó.
Aqui, eu cometi um erro grave ao recolher informações, pois facilmente acreditei que todos os médiuns desse terreiro eram netos consanguíneos da mãe de santo, o que me aludia ao parentesco do Terreiro de Umbanda Pai Baiano. Mas isso faz diferença em um mundo de religião e afetos? Em um texto que se propõe acadêmico, sim. Pois se espera que as informações venham depuradas. Por isso é tão caro à etnografia o tempo e a exposição alongada ao campo.
Nas minhas duas idas ao Terreiro Cosme & Damião pude perceber que as dinâmicas de tempo eram praticamente iguais se comparadas ao Terreiro do Pai Baiano do Rio Vermelho da Areia Branca. Ou seja, os ritos começavam por volta das 19h30min, e terminavam por volta da meia-noite. Havia também um clima muito familiar entre todos os presentes. Como dito, a mãe de santo chamava todos os cerca de quinze médiuns de netos ou filhos. Absolutamente todos.
A localização espacial também se dá em uma zona periférica da cidade. O terreiro também está dentro do quintal de sua mãe de santo. Mas, por se tratar de uma chácara, há mais espaço.
O terceiro terreiro que visitei é o Terreiro da Mãe Suzi e Pai Roque, que também apresentou as mesmas características de tempo, espacialidade e parentesco. Ou seja, o terreiro estava no quintal da família da mãe de santo, muitas relações consanguíneas e duração ritual de cinco horas em média.
Parentesco do Terreiro de Umbanda Pai Baiano do Rio Vermelho da Areia Branca
Na figura a seguir apresentamos o parentesco consanguíneo do terreiro:
Figura 4 – Parentesco do Terreiro de Umbanda Pai Baiano do Rio Vermelho da Areia Branca |
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Fonte: elaborada pelo pesquisador a partir da etnografia. |
Portanto o pai de santo é o grande chefe da casa. Mas, por ser caminhoneiro, não está presente na maioria das reuniões. Sua irmã, então, toca os trabalhos, quase sempre incorporada por Maria. Os fiéis da casa, portanto, obedecem a essas lideranças.
Considerações finais
Em todos os terreiros visitado na cidade, o local de celebração dos cultos era parte do quintal da família do pai ou mãe de santo. Assim, podemos aferir a estruturante noção de família dentro destas celebrações no interior de Rondônia. Todos esses locais eram pequenos, com média de quinze pessoas por culto.
Muitas vezes, nós, antropólogos, como pessoas reais, revestidos ou não do arquétipo científico, vamos a centros como esses esperando um sinal claro de que há um mundo dos mortos. Esperamos um segredo que ninguém mais sabe, algo que comprove a existência do “além”. Mas esse mundo não parece tangível a olhos nus, e não está disponível para reles visitantes, é necessária a reiteração do compromisso com as dinâmicas do culto para que as entidades, de alguma forma, ajudem a vida dos fiéis.
Jeanne Favret-Saada, em 1977, percebe que a bruxaria não se submete à descrição etnográfica, ao menos não ao que se pode obter por meio do distanciamento eficaz:
Descrever a bruxaria de Bocage [...] só é possível voltando a essas situações em que me designavam um lugar. As únicas provas empíricas que eu posso fornecer da existência dessas posições e das relações que elas mantêm são fragmentos de relatos (FRAVET-SAAD, 1977, p. 51, tradução nossa).
Portanto o alcance de qualquer pesquisa que se faça em uma casa de umbanda é limitado, pois as únicas provas empíricas passíveis de serem fornecidas são fragmentos de relatos.
Minha busca que teve como nascituro este texto, nunca teve intenções puramente acadêmicas. Havia uma ligação emocional com os lugares pesquisados, que nunca me deixaram de ser estranhos, mas que também nunca me atraíram a ponto de chamar de lar. Portanto fiz uma pesquisa que me interessava em diversos níveis, e não há por que negligenciar tal fato neste texto.
Referências
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BUTLER, Judith. Corpos que importam: os limites discursivos do sexo. São Paulo: n-1 edições, 2019.
FAVRET-SAADA, J. Les mots, la mort, les sorts. Paris: Gallimard, 1977.
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GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1978.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Brasileiro de 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2012.
JUNG, Carl Gustav. Sobre sentimentos e a sombra: sessões de perguntas de Winterthur. 2. ed. Petrópolis: Vozes. 2015.
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LIMA, M. V. Barracão de Santa Bárbara em Porto Velho-RO: mudanças e transformações das práticas rituais. 2001. Dissertação (Mestrado em Antropologia) — Programa de Pós-Graduação em Antropologia Cultural, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2001.
MAGNANI, José Guilherme Cantor. Religião e metrópole. In: ALMEIDA, Ronaldo de; MAFRA, Carla (org.). Religiões e cidades: Rio de Janeiro e São Paulo. São Paulo: Terceiro Nome, 2009. p. 19-28.
MAGNANI, José Guilherme Cantor. Umbanda. São Paulo: Ática, 1986.
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PERLONGHER, Néstor. Territórios marginais. São Paulo: Hucitec, 1993.
PREFEITURA DE VILHENA. História de Vilhena. Site da Prefeitura de Vilhena. Disponível em: http://www.vilhena.ro.gov.br//index.php?sessao=b054603368ncb0&id=1501. Acesso em: 02 set. 2021.
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TERREIRO DO PAI BAIANO DO RIO VERMELHO DA AREIA BRANCA. Que hoje toda paz e luz seja parte da nossa caminhada. Que Oxalá traga calma, sabedoria e resistência às intempéries da vida [...]. Vilhena. 20 de dezembro. 2021. Instagram: @terreiropaibaiano_vha. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CZKr3bzJtXw/. Acesso em: 20 jan. 2022.
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VELHO, Gilberto. A utopia urbana: um estudo de antropologia social. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.
Recebido em: 03/09/2021.
Aceito em: 01/03/2022.
https://doi.org/10.46906/caos.n28.60774.p143-162
* Aluno do Mestrado em Antropologia Social da Universidade Federal de Mato Grosso/Brasil. E-mail: heronvolpi@gmail.com.
[1] Os caboclos são espíritos indígenas. Conhecidos por serem guerreiros e sérios. Seus passes energéticos são procurados por serem poderosos.
[2] Os pretos velhos são uma linha de trabalho de entidades da umbanda. Apresentam-se sob o arquétipo de idosos africanos que viveram nas senzalas e morreram de velhice ou no tronco. A prosa dessas entidades costuma ser carregada de expressões linguísticas antigas como: vosmecê, trabuco e carece.
[3] Crianças na umbanda é uma falange de espíritos que se apresenta arquetipicamente com uma mentalidade infantil. Quando esses espíritos “descem” devem ser tutelados e vêm para receber atenção e presentes dos mais velhos.
[4] A umbanda não é uma religião essencialmente maniqueísta, o exu, que mora no “inferno” atua no polo "negativo", e é considerado um ser benigno, por combater o mal com o mal.
[5] São exus mais próximos de arquétipos rebeldes: pré-adolescentes e adolescentes.
[6] São mulheres ligadas à luxúria e aos prazeres da carne. Quando incorporam gostam de vestir saias longas e beber bebidas chiques e finas. Algumas são ex-prostitutas. Vêm à terra para ajudar e proteger os encarnados. Seus conselhos e trabalhos costumam estar ligados ao amor e ao dinheiro.
[7] Um novo Censo deveria ter sido realizado em 2020, mas foi postergado devido à pandemia de Covid-19.
[8] Agradeço aos professores do mestrado em Antropologia Social da Universidade Federal de Mato Grosso pelas críticas recebidas quando apresentei esse artigo como trabalho final de Teoria Antropológica I.
[9] Ressalto que a comunidade do Terreiro Pai Baiano do Rio Vermelho da Areia Branca sabia do relato etnográfico que seria construído. Tendo eles acesso ao texto antes de ser submetido à avaliação da Revista Caos.
[10] Informação dada por Jhonatan Toze sobre os horários do terreiro em 6 de agosto de 2021 via Whatsapp.
[11] Baianos são espíritos alegres que trabalham em giras próprias ou de outras linhas de trabalho. Costumam ter o sotaque baiano, são espirituosos, conselheiros, afetuosos, muito sinceros e líderes. Assim como Maria.
[12] Pontos são os cânticos da Umbanda. Eles ajudam na elevação vibracional e qualificam o ambiente e os médiuns para que recebam as entidades. Cada grupo de entidades: baianos, índios, boiadeiros etc., tem seus próprios pontos.
[13] Mulheres médiuns também são referenciadas pelas entidades no masculino: o cavalo de Maria.
[14] Trabuco é a forma com que Maria se refere ao trabalho.
[15] Todos os médiuns desse terreiro eram jovens que aparentavam ter menos de vinte e cinco anos.
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