ESCOLHI SER ALBINO: entrevista com Roberto Rillo Bíscaro
I CHOSE TO BE ALBINO: interview with Roberto Rillo Biscaro
Amanda Cristina Rodrigues dos Santos**
DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n27.61360.p145-156
Roberto Rillo Bíscaro é professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo. Possui graduação em letras (licenciatura plena) pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Penápolis (1993), mestrado em língua e literaturas inglesas e norte-americana (2002) e doutorado em estudos linguísticos e literários em inglês (2006), ambos pela Universidade de São Paulo (USP). É ativista e autor do livro: Escolhi ser albino (2012), uma das primeiras obras no Brasil a falar sobre albinismo e identidade. A entrevista foi realizada e transcrita por Amanda Cristina Rodrigues dos Santos, pessoa albina, no dia nove de setembro de 2021. Por meio de um bate papo, no qual se aborda sua trajetória, o entrevistado — também pessoa albina — fala um pouco sobre sua vida, da infância à fase adulta, rememorando seus medos, anseios e superações, além de narrar um pouco sobre sua vida profissional em meio aos desafios impostos pela sociedade.
Amanda — Olá! Roberto. Hoje estamos aqui reunidos para realizar esta entrevista com um albino muito legal.
Roberto — Boa tarde, Amanda.
Amanda — Agradecemos imensamente por ter aceitado o nosso convite para essa entrevista, pois como já foi explicado, esta edição da Revista Caos trará um dossiê sobre o albinismo e os temas correlatos, cujo conteúdo será produzido por pessoas albinas e, com certeza, sua participação irá abrilhantar a edição da revista.
Roberto — Eu que agradeço. Obrigado!
Amanda — Andei lendo sobre você, e uma das primeiras coisas que me chamou a atenção foi que sua primeira formação foi em letras (1993), fez mestrado (2002) em língua e literatura inglesa e norte-americana pela USP e doutorado em estudos linguísticos e literários em inglês, também pela USP. Por que o interesse pela literatura norte-americana e inglesa? Pois achei formações diferentes.
Roberto — É uma formação bem pouco usual. Bom, sempre gostei do idioma inglês, comecei a fazer curso de inglês desde adolescente, e comecei a lecionar inglês em escola de idioma em 1988. Apenas depois fui fazer letras; na verdade, primeiro fiz o curso de inglês certinho para poder falar, ouvir e escrever fluentemente, sou fluente no idioma. Leio, falo, escrevo e ouço fluentemente. Então fui fazer letras e comecei a dar aulas de português e inglês em outras escolas, e fui chamado para dar aula na faculdade aqui da minha cidade, Penápolis, no estado de São Paulo. Lá, lecionava língua inglesa e literatura norte-americana por ser um curso de letras. Em 1998, decidi fazer a pós-graduação, no caso o mestrado; a área que mais me chamou atenção foi a área de estudos linguísticos da USP porque as outras universidades que pesquisei, como a UNESP, localizada em cidade até mais perto, ofereciam literatura comparada, uma coisa que nunca quis fazer. Queria estudar a literatura sem comparar com outra literatura, e a USP é que me oferecia esse programa. Em 1998, fui como aluno especial; a professora da disciplina que escolhi, Maria Silva Betti, trabalhava com teatro norte-americano e eu já gostava de textos dramatúrgicos, e na hora de desenvolver um projeto para concorrer à vaga que havia sido aberto para seleção para o mestrado, eu fiz um projeto na área de dramaturgia norte-americana, então fui aprovado, e ela me aceitou como orientando. Acabei estudando com um autor, um dramaturgo norte-americano, chamado de Terrence Mcnally, que inclusive faleceu no início da pandemia lá nos Estados Unidos. Foi por uma junção de eu gostar do idioma, da literatura e do teatro é que fui fazer nessa área.
Amanda — Ah sim! Entendi, e achei muito interessante. Qual a intenção que você tinha ao criar o blog: Albino incoerente?[1] O que mudou desde então?
Roberto — Criei o blog em 2009. Eu não era muito interessado em assuntos sobre albinismo para falar a verdade, na época, eu pouco sabia que não podia tomar sol, esse tipo de coisa. Quando decidi, comecei a pesquisar sobre o assunto, e descobri que na internet não havia nada, encontrei um blog apenas e bem desatualizado — não era atualizado há alguns anos —, e aí eu falei: “Nossa! Não tem nenhuma coisa na internet — na época, em 2009 — que desse voz aos albinos, e que não tivesse um discurso assim “biologizante” — vamos dizer assim — pois tudo que eu achava era em tons médicos e genéticos e nenhuma outra coisa.” Então falei que precisava ter outro tipo de informação, algum albino falando ou mostrando coisas. A ideia foi, basicamente, apresentar uma nova voz, um novo discurso e não apenas o médico, o biológico e genético, que é importante, mas não pode ser o único, porque atrás dos cromossomos (AA e aa) existem pessoas, então precisava ter isso. Também porque eu queria mostrar que as pessoas albinas têm condições de fazer coisas. Então a intenção era divulgar informação, mostrar o potencial das pessoas albinas, e que ali fosse um lugar que funcionasse como um centro de dados, e que as pessoas pudessem acessar aquela página e encontrar dados noticiosos, também genético e biológicos. Foi essa multiplicidade de vontades, de dar voz a pessoas albinas. Um espaço onde pudessem encontrar vários tipos de informações, e mostrar a capacidade que as pessoas albinas têm de serem donas da sua própria voz. Acredito que após a criação do blog, o assunto albinismo veio bastante à tona, na mídia em 2010/2011, eu fui chamado para vários programas de televisão importantes, entre eles o programa do Jô Soares; dei depoimento na novela Viver a Vida e coisas na Record, entrei em matérias na folha de São Paulo, Revista Super Interessante. Isso deu uma aquecida no assunto, acho que trouxe à baila não só a minha história, mas a partir disso, algumas pessoas e jornalistas começaram a procurar outras personagens, outras pessoas com albinismo para contar a sua história. Percebi também que teve uma maior incidência de pessoas albinas criando blogs, às vezes efêmeras, mas criaram. Acho que durante o período que atuei, porque hoje em dia tenho o blog ainda, mas deixei de atuar nele porque tenho outro projeto (como o canal no YouTube e que depois falarei sobre ele), eu acho que deu uma visibilidade maior. Chamou a atenção aqui no estado de São Paulo de um deputado estadual, onde se criou um Projeto de Lei para distribuição de protetor solar e óculos gratuitamente para pessoas com albinismo, mas essas coisas demoram, esse projeto está rolando na Assembleia Legislativa de São Paulo há dez anos, mas está lá, e outros projetos também surgiram. Senti que deu uma maior visibilidade, e hoje há uma nova geração de pessoas combativas fazendo coisas nas mais diversas áreas, acho que nisso tem uma contribuição do blog.
Amanda — Sim, com certeza! Você chegou a mensurar a proporção que o blog tomaria e onde isso te levaria?
Roberto — Mensurar aonde ele chegaria, no começo não. Eu sou muito competitivo, por exemplo, fui fazer meu mestrado e doutorado na USP, que é universidade de ponta, eu entrei na jogada para ganhar; da mesma forma, eu entrei na jogada para o blog ter sucesso, então eu trabalhei bastante no sentido de divulgação, mandando a ideia do blog, literalmente, para centenas de veículos de comunicação, desde o Acre até o Rio Grande do Sul, eu entrava na internet, pesquisava os e-mails, os sites de jornais e revistas da época, e mandava o texto do blog, eu não sabia que ele ficaria tão reconhecido como ficou, mas eu tinha a intenção de torná-lo assim, e em parte eu consegui. Teve matéria divulgada no jornal O Estado de São Paulo, e ele foi bem divulgado enquanto ele era novidade e enquanto eu trabalhei com afinco nele. Não sei se respondi à pergunta?!
Amanda — Sim, respondeu sim. Agora cheguei a uma parte bem interessante, da qual você gosta muito pelo que andei lendo ao seu respeito. Nas suas entrevistas, não vi você falar diretamente sobre essa vertente, mas como é para você a representação albina no cinema e na literatura, visto que você dedica seu tempo também à escrita?
Roberto — É uma representação bem problemática, bem pouco desenvolvida ainda, na maioria das vezes, os albinos são retratados em situações fantasiosas, ou são os vilões ou têm poderes sobrenaturais. Acho uma representação bem pouco louvável. Na maioria das representações midiáticas das pessoas albinas nunca é uma representação que mostre como eu vejo hoje em dia, e gosto muito, como dos gays, dos negros, e acho muito importante essa representatividade. Eu vejo que ainda falta para os albinos uma boa representatividade que mostre mais o lado real da questão, sem abordar temas fantasiosos de um albino com superpoder ou uma pessoa albina que seja o vilão da história, ou que ele esteja na história apenas para acrescentar a ela um elemento exótico, acho que esse dar um elemento exótico, dar um exotismo à história é uma coisa muito prevalente nas representações dos albinos. Acho que precisa ter uma representação mais verossímil, mais real, assim como outros grupos minoritários estão tendo, ainda fica aquém do necessário, faltam ainda representações mais consistentes, mais realistas das pessoas com albinismo.
Amanda — Você fala em relação ao papel mesmo, na produção?
Roberto — Isso! E no que você vê na tela. Eu vejo muito a produção das pessoas com autismo, de pessoas portadoras do espectro autista, embora essas representações ainda sejam problemáticas, porque os autistas que aparecem nos filmes, geralmente são os casos menos graves, parecem mais “nerds” que autistas, mas pelo menos eles já têm isso. Pessoas com Down (síndrome de Down), dificilmente vejo... acredito que o único filme que me lembro que tem uma personagem albina, que tem uma personagem mais positiva, é um filme brasileiro que se chama Andaluz (2011) de um diretor do estado de São Paulo que se chama Guilherme Mota. Quando ele estava escalando o elenco, eu que indiquei o Flávio, que depois veio a ser o ator principal. Fora esse filme, o Andaluz que foi um filme para a TV Cultura, rede de TV pública do Estado de São Paulo, eu vejo a representação das pessoas com albinismo nas telinhas e telões nesse viés que falei, fantasioso ou vilão, acho complicado.
Amanda — Com relação à escrita, por exemplo, escrever um roteiro de um filme ou de alguma coisa assim, você vê da mesma forma?
Roberto — Eu não conheço ninguém que tenha escrito. Eu sei de alguns albinos que escrevem contos, crônicas e romances. Tem um que se chama Helder Maia, ele escreve contos de terror. Tem o próprio Flávio que também tem um canal no YouTube com outra pessoa que até já me entrevistou. Eu sei que tem uma produção literária de contos e outras coisas. Porém, de produção audiovisual de roteiristas albinos, eu não conheço.
Amanda — No seu livro (BÍSCARO, 2012) e em algumas entrevistas a que assisti, não vi nada bem específico sobre a escolha do título. Qual o motivo para o título: Escolhi ser albino? Como você chegou a essa conclusão?
Roberto — É uma questão de assumir identidade, porque durante muito tempo eu nem me importava, nem pesquisava e nem entendia sobre o assunto. Eu nasci com albinismo, mas eu não me via, não tinha nenhuma atuação como albino, então quando eu decidi ter essa atuação foi quando escolhi me representar como albino. Por isso tem esse título. É aquela história das políticas das identidades de gays se assumirem, de negros assumirem a negritude, então foi esse processo de eu mesmo assumir, eu nasci com albinismo, mas eu só passei a atuar como uma pessoa com albinismo a partir de um determinado momento da minha vida, depois dos 40 anos. Por isso que chama: Escolhi ser albino, é uma questão de tomar para mim essa parte da minha identidade, porque também eu não penso o tempo todo como pessoa albina, 24 horas por dia, mas pelo menos passei a fazer e falar coisas pertinentes para esse grupo social.
Amanda — Entendi. Quando eu li o livro, entendi mais ou menos isso. É como se a gente tivesse chegado a um determinado momento — falo isso por mim também — e decidisse tentar não ser igual a todo mundo, assumindo nossa identidade.
Roberto — Isso! Exatamente.
Amanda — Pretende escrever a continuação de sua autobiografia? Fazer segunda, terceira parte?
Roberto — Uau! Não! Não penso, porque, hoje em dia, eu tenho o blog, alimento ele, porém dei um passo atrás, deixei um pouco de lado esse projeto do blog porque acho que já fiz bastante coisa e agora eu tenho um canal no YouTube que se chama Robertando,[2] e ele é sobre críticas de cinema, literatura, música e séries. Então, há uns dois anos, parti para outras coisas. Como eu deixei de mandar e-mails e outras coisas, agora eu nem sou mais chamado para entrevistas, e isso nem é uma reclamação, estou só constatando; foi algo que fiz de pensado. Assim, lá por 2019, tive alguns problemas pessoais, então parti para fazer umas coisas que também sempre queria fazer, que era na área de crítica cultural, e hoje em dia, o blog fica em segundo plano, às vezes, algumas pessoas ainda me escrevem, alguns jornalistas, mas é cada vez menos, e quando acontece é mais para pedir indicação de algum albino para ser entrevistado em alguma cidade; eu coloco em alguma rede social, como o Facebook, falando que estão precisando de um albino para dar entrevista. Mas, então, não faz mais parte dos meus planos continuar minha autobiografia por esse motivo, pois me reinventei, agora sou Robertando que faz críticas de cinema, séries, minisséries e músicas no YouTube.
Amanda — Eu ia perguntar sobre isso, mas já que falou, ficou ótimo.
Roberto — De alguma forma é uma presença. Não fico falando sobre o albinismo no canal, pois não acho que seja o espaço, mas quando a pessoa clica, é uma pessoa albina que está falando, então começa minha “resenha”. De vez em quando, se for preciso, eu falo sobre o albinismo.
Amanda — Quando alguém pergunta?!
Roberto — Isso!!
Amanda — Em um trecho do seu livro, você diz ter usado a expressão “não tenho cor” para afugentar os eleitores do ex-presidente Fernando Collor de Mello, você afirma que nem sempre é bom ser colorido. Achei muito interessante. O que quer passar com essa afirmação?
Roberto — Na verdade, vocês são muito jovens, talvez não se lembrem da eleição do Fernando Collor; color é a mesma grafia para cor em inglês, pelo menos na ortografia norte-americana, apesar de Fernando Collor ser escrito com dois “l”. Isso foi uma brincadeira, uma pontada irônica dizendo que eu não era eleitor do Collor, um trocadilho falando que nem sempre é bom ser colorido porque “se eu fosse colorido provavelmente eu seria do Collor”. Mas é claro que sendo uma fala literária ela acaba tendo outras interpretações. O que eu quis dizer é que eu não era eleitor do Collor, tanto é que o governo dele terminou em um grande escândalo de corrupção e com o seu impeachment, então ainda bem que eu não fui colorido com dois “l”.
Amanda — Levando em consideração todos os limites que a sociedade nos impõe por sermos albinos, o que você diria para outros na busca pela superação? As suas experiências de vida que você passaria adiante?
Roberto — Difícil isso, pois cada vida é uma vida, então eu consegui as coisas que consegui muito provavelmente não só porque lutei e tinha vontade, mas também porque eu tinha algumas condições, não necessariamente financeiras, pois eu venho de um espectro econômico bem pobre, minha mãe era empregada doméstica, mas eu não posso esquecer que sou branco de família branca urbana, vivendo no estado de São Paulo, com acesso à educação, então eu ralei, mas tive um entorno que, embora fosse pobre economicamente, ainda me dava um espaço de luta, então eu acho, se é que tenho algum conselho, é que a pessoa deve conhecer bem o seu entorno, seu espaço, suas condições sociais, e dentro dessas condições sociais tentar fazer o máximo que conseguir fazer para, no caso, se ela quiser, se superar, se livrar dessa condição social. Nem sempre é possível fazer, não posso esperar que todos consigam o mesmo que eu consegui fazer. Eu li, por exemplo, a dissertação do Adailton (MELO, 2018), e a realidade daquelas pessoas albinas do interior do estado do Nordeste, vivem uma situação bem distinta da minha, então não sei se eles conseguiriam se expressar; eu sempre me expressei muito bem, faltava dinheiro, mas não falta um meio em que os adultos se expressavam no português padrão, com recursos de uma cidade — não posso esquecer que eu nasci no estado mais rico da federação — que pertencia a São Paulo, quer queiramos ou não, é o estado mais rico. Então dentro da minha especificidade eu lutei com as armas que eu tinha para ir à frente, porque eu também poderia ficar estagnado lá. O que eu dou de conselho, que é uma coisa que não gosto de fazer, porque são situações muito diferentes, é que as pessoas tentem vencer essas limitações, e ver que existem pessoas que, às vezes, podem apoiar, e que é possível, dentro de determinado limite, superar algumas limitações apesar do preconceito; o que acontece é que dependendo do ambiente em que você cresce, esse preconceito é maior ou mais velado ou menos velado. Foi muito mais fácil para eu conseguir ter uma educação formal boa porque eu sempre fui muito bem alfabetizado, eu sempre escrevi, falei e me expressei dentro do português padrão. Eu sempre tive acesso a esse mundo, embora eu não tivesse dinheiro. Agora eu tenho acesso, mas o meu acesso foi muito mais facilitado do que para muitas pessoas. Depois que eu comecei a perceber sobre o albinismo mesmo, eu vi que muitas dessas pessoas não tinham as mesmas condições que eu tinha. Então o conselho seria se unir com mais pessoas albinas, trocarem ideia e tentar fazer da situação que você vive o melhor possível. Talvez um conselho até vago, mas é o máximo que consigo fazer hoje em dia sem cair naquele discurso que acho perigoso e hipócrita: “se eu consegui você consegue também...”. Não quero ser pessimista, mas também não quero ser hipócrita, eu consegui ser doutor na melhor universidade do Brasil porque eu falo inglês fluentemente, tive uma boa educação. Dentro do seu possível, tente fazer o melhor. Vago, né?! Mas é o que eu consigo fazer em termos de conselho.
Amanda: Não é vago, é sensato!
Roberto — Para não cair naquele conselho: “se eu posso, você também pode!” Porque as pessoas podem se sentir até humilhadas ou perdedoras. Mas por outro lado, eu também percebo que existem muitas pessoas que não têm dificuldade visual, que vieram do mesmo lugar, mas também têm medo, então é um conselho valido, né? Para que as pessoas albinas percebam que as pessoas que não são albinas têm seus medos. Eu conheço gente que enxerga bem e que não consegue ir para São Paulo sozinho. É uma metrópole de 20 milhões de habitantes, eu vou e volto, eu ando em São Paulo, é gigantesca; e eu conheço gente que tem medo de ir para cidade. São pessoas que dirigem e que poderiam “tirar de letra”, mas têm medo. Pessoas que não são albinas também têm suas inseguranças e limitações. Cada vida tem sua régua.
Amanda — Sobre o mundo acadêmico, eu vejo uma baixa representação, vejo poucas pessoas albinas na universidade, e muito menos ainda sendo professor universitário. Queria saber sua opinião? Até porque estamos trabalhando nesse dossiê sobre as pessoas albinas, produzido por elas, e muitas acabaram desistindo de participar porque é um processo científico, e a revista tem um protocolo de passar por avalição dos pareceristas, então delas desistiram por não serem acadêmicos. Isso acabou desmotivando em participar do dossiê, e eu vejo que talvez isso seja um problema nas universidades em geral, acho que muitas vezes as universidades excluem muito mais do que incluem. Pelo menos penso dessa forma, e queria saber sua opinião sobre isso? Não vi nenhum trabalho sobre os albinos na educação e nas universidades, sobretudo, não se vê albinos na pós-graduação, que chegam a ser doutor; talvez você seja a única pessoa albina com doutorado que eu conheço. É perceptível a baixa representação e participação de pessoas albinas nas universidades tanto quanto universitários quanto professores. Gostaria de saber qual sua opinião a respeito?
Roberto — Já ouvi falar em advogados, parece que alguém da área de física, não lembro, mas não sei de nenhum colega, nenhum par na universidade que seja albino, é um lugar bastante fechado ainda para pessoas com albinismo, talvez porque muitas dessas pessoas albinas tenham aquela barreira da alfabetização, complicada por enxergar muito pouco, e a universidade, como bem você falou, é excludente, porque se você não domina o português padrão, norma culta, você tem dificuldade de acesso, e a falta de programas para fixar essas pessoas economicamente nas universidades, então nunca vi professor albino. Trabalhos sobre albinismo que não seja na área de genética e biologia são muito escassos, é um ou outro trabalho de conclusão de curso na área de direito. Talvez porque a universidade ainda seja aquele “bastião” das pessoas muito bem alfabetizadas, é uma opinião também. Muitos albinos, pelo que eu percebo, às vezes, não têm essa alfabetização tão boa por conta da baixa visão, problemas de repetência, de exclusão escolar, de abandono escolar. Aqui em São Paulo, eu conheço várias pessoas albinas que têm graduação, um nível superior: por exemplo, Andressa Cavalli é modelo e possui duas graduações na USP, uma de Engenharia e outra de Educação Física, e tem você, Amanda, que está fazendo sua graduação, então eu vejo que conheço um ou outro que faz ou fez. Mas em postos nas universidades nunca vi. Conheço poucos que têm graduação, mas em postos nas universidades nunca vi. Infelizmente!
Amanda — Roberto, queria te agradecer. Muito obrigada pelo seu tempo, pela entrevista, pelas respostas. Dizer que te acompanho e acho você um exemplo, pelo menos para mim, sou albina também, então a gente acaba se espelhando em outros albinos. É igual ao que você falou, construímos junto uma corrente de superação, ninguém consegue superar sozinho. Obrigado pelo seu tempo. Fora da entrevista eu queria voltar à questão da representação dos albinos no cinema, eu fiz seis anos de teatro e o diretor fazia questão de me colocar em papeis principais, acho que ele pensava muito nessa questão que você falou de colocar o albino com superpoder ou como pessoa exótica, ele fazia questão de me colocar em papeis principais ou “normais” (nos termos para os não albinos). Ele foi uma pessoa muito importante na minha vida, e me fez também ser um pouco: “escolhi ser albina”, sabe?! Sobre a questão da minha visão, o meu curso tem muitas demandas, faço muitas aulas de laboratório, 60% são aulas de laboratório e de campo, realmente exige muito da visão. Tenho menos problemas de visão do que muitas pessoas albinas que já conheci. Também tenho as formas de me reinventar, sabe?! De conseguir fazer as coisas, uso o celular para tirar fotos do quadro, meus professores ajudam muito, fazem slides com fundo preto e letra amarela para que eu possa visualizar melhor. Tive uma professora que imprimia as aulas para que eu pudesse acompanhar junto com os colegas. Encontramos pessoas que vão ajudando a gente. Estou terminando minha graduação no começo do ano que vem. Tenho muita coisa para contar desde que entrei na universidade. Realmente como você falou, na universidade que estudo (Unemat/MT), não sei de outra aluna albina que não seja eu.
Roberto — Acho que acontece é que a gente vai ter ou tem esse afunilamento como eu vejo com os negros e outras minorias, você vai ter alguns de nós que vão conseguir fazer bastante coisa, e uma boa parte que não vai, esse que é um dos problemas, mas isso não diminui o nosso sucesso, nem o meu e nem o seu, mas é um dado, como você falou: “não conheço nenhum outro albino na universidade”, vai sendo a “conta gotas”. Achei legal que você falou dos seus professores, hoje em dia eu leciono no Instituto Federal, e as universidades e faculdades estão muito mais abertas para essas questões. Onde eu trabalho tem o NAPNE (Núcleo de Apoio a Pessoas com Necessidades Específicas), do qual eu sou membro. Então a gente faz reunião sobre essas demandas. Tivemos um aluno albino no meu campus, cursava matemática e era brilhante, os professores falavam. Então a gente faz reunião com os professores e vemos o que o aluno “xis” precisa? Parece que essas coisas estão ficando mais rotineiras, pelo menos nas universidades públicas. Beleza, né?! Isso faz com que pessoas como você consigam fazer esses cursos. Porque os professores notam as necessidades específicas. Sempre falo para os alunos: ninguém está fazendo favor para ninguém, é uma necessidade específica que cada pessoa tem, e você tem que usar isso aí. Há alguns alunos que falam: “não sei se vou querer ter. Parece que estou tirando vantagem dos colegas”, e falo que eles não estão tirando vantagem dos colegas, os colegas não precisam de um negócio com letra maior e você precisa. Bom saber que a Unemat/MT também tem esse tipo de coisa.
Amanda — Tive uma professora que em toda aula chegava mais cedo para imprimir os slides e me entregava, eu até falava que podia tirar fotos do quadro e copiar, e ela respondeu: “quero que você tenha a oportunidade de ver o que os seus colegas estão vendo na mesma hora”. Ela me dava caminhos diferentes para chegar ao mesmo resultado que eles.
Roberto — Acho isso muito importante. Isso que eu espero que outros albinos encontrem. Não só nós, mas outros. Talvez um dia a gente chegue lá. Demora. Hoje em dia, tem grupos que já estão organizados há mais tempo e ainda penam bastante, imagina os albinos que não estão organizados?! Tem um moço que tem um podcast, o Pod Albino[3], que é o Flávio André Silva (ator do filme Andaluz), em pareceria com Will Fermon. São dois albinos de São Paulo, eles têm um canal no YouTube. Entrevistam pessoas albinas, e eu acho que você seria uma boa personagem para ser entrevistada. Depois te passo o contato. Acho que eles vão gostar de te entrevistar. Essa nova geração, esses meninos fazem isso no YouTube, eles entrevistam toda quinta-feira à noite, e fazem ao vivo. Essas entrevistas são cheias de histórias e, inclusive para motivar outras pessoas, são histórias de sucesso. O Flávio atuou no filme Andaluz, escreve contos e é casado com uma albina e tem filhos. Não tenho muito mais contato com a comunidade albina (se é que já tive) por conta de ter dado uma freada no trabalho do blog e estar mais com o trabalho do YouTube. Mas tenho ainda alguns contatos. Nessas entrevistas, possivelmente eles vão perguntar para você como uma aluna de biologia faz para enxergar.
Amanda — Quando se fala em biologia, nós atribuímos ao estudo da vida, das moléculas, e quando você é uma albina cursando biologia, então se pensa: “Meu Deus, como ela vai ver as coisas tão pequeninhas?” Realmente é assim. Quando vou para aula de campo faço toda uma preparação, fico só com os olhos de fora.
Quero agradecer também pelo seu empenho e coragem em escrever e mostrar sobre você, e deixar que as pessoas leiam sua história e se inspirem nela de alguma forma, porque quando expomos alguma coisa da gente, com certeza isso faz parte da vida de alguém, então queria te agradecer muito por isso.
Roberto: Eu que agradeço. Obrigado!
Referências
ANDALUZ. Produção de Rodolfo Nanni. Direção: Guilherme Mota. São Paulo: TV Cultura, 2011. Telefilme produzido para a TV Cultura, (52 min), son., color.
BÍSCARO, Roberto Rillo. Escolhi ser albino. São Carlos, SP: Ed. EduFSCar, 2012.
MELO, José Adailton Vieira Aragão. Pessoas albinas: nos interstícios da (in)visibilidade e estigma. 2018. 114 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) — Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2018.
DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n27.61360.p145-156
* Doutor em estudos linguísticos e literários em inglês pela Universidade de São Paulo (USP)/Brasil. Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo/Brasil. E-mail: albinoincoerente@gmail.com.
** Discente do curso de Licenciatura Plena em Ciências Biológicas, UNEMAT/MT/Brasil. Membra da Associação das Pessoas Albinas e Amigo de Mato Grosso. E-mail: crissantoslcbgmail.com.
[1] http://www.albinoincoerente.com/
[2] https://www.youtube.com/channel/UCf_MgkKvonvPSTMitnqOdGQ
[3] Ver: https://www.youtube.com/c/podalbino.
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