A INVIABILIZAÇÃO DO CORPO GORDO NAS REVISTAS FEMININAS BRASILEIRAS: estudo de caso sobre capas da revista digital Elle Brasil
THE INVALIDATION OF THE FAT BODY IN BRAZILIAN FEMALE MAGAZINES: a case study on the covers of the digital magazine Elle Brasil
Jayane Souza *
https://doi.org/10.46906/caos.n28.61924.p21-37
Resumo
O mundo globalizado fez com as plataformas midiáticas e de comunicação tivessem que se reinventar, como foi o caso das revistas impressas que convergiram, e algumas ressurgiram no formato digital. O presente artigo tem como objetivo discutir a inviabilização do corpo gordo feminino nas revistas femininas brasileiras, mais especificamente na revista digital Elle Brasil. A pesquisa ancora-se nos conceitos de gordofobia com Santos e Jimenez (2021), corpo ideal midiático com Siqueira e Faria (2007) e Oliveira (2018), explicando a moda como instrumento cultural. Para compor o artigo, três capas, cujos modelos estampados no produto eram gordos, foram objeto para análise textual e de imagem. Foi feito também um apanhado, de maneira bibliográfica, de como funcionam as escolhas editoriais e de como essas estruturas corpóreas foram representadas nas capas estudadas.
Palavras-chave: corpo gordo; moda; Elle Brasil; revista.
Abstract
The globalized world has meant that media and communication platforms have had to reinvent themselves, as was the case with printed magazines that converged and some re-emerged in digital format. This article aims to discuss the invalidation of the female fat body in Brazilian women's magazines, more specifically in the digital magazine "Elle Brasil". The research is anchored in the concepts of fatphobia of with Santos and Jimenez (2021), media ideal body of Siqueira and Faria (2007), and Oliveira (2018) explaining fashion as a cultural instrument. To compose the article, three covers, whose models stamped on the product were fat, were the object of textual and image analysis. A bibliographic survey was also made of how editorial choices work and how these corporeal structures were represented in the studied covers.
Keywords: body fat; fashion; Elle Brasil; magazine.
Introdução
A globalização traz consigo diversas plataformas comunicativas que convergem entre si, assim como uma pluralidade de assuntos pautados nos meios de comunicação que conseguem se difundir de maneiras diferentes. Adentrando nesse panorama, é interessante perceber que questões sociais vão mudando de abordagem com o passar do tempo. O autor Castells (1999), no livro A sociedade em rede, justifica que essa revolução tecnológica não se configura somente na centralidade de conhecimento e informação, mas coloca-os em plataformas digitais, que causam a renovação do ciclo e do uso. Portanto, essa transformação pode acontecer em diversos assuntos que permeiam a sociedade.
O jornalismo impresso, a partir da última década do século XX, passou por algumas transformações no que diz respeito à tecnologia, como também no conteúdo veiculado. Não apenas essa ferramenta, mas as mídias de massa, como rádio e televisão, também passaram por alterações. O suporte físico se modificou e, por isso, foi possível notar uma mudança nas palavras e performances utilizadas para falar sobre o corpo feminino (MATTOS, 2013).
Desse modo, tem-se como exemplo as revistas femininas brasileiras que, ao longo dos anos, vêm passando por mudanças em suas configurações e, ainda assim, conseguem reproduzir formas, conceitos de corpo e comportamento ideal para cada época, ou seja, sínteses de representações do imaginário. Logo, se forem observadas as capas que foram publicadas ao longo dos anos e compararmos com as abordagens obtidas atualmente, pode-se perceber uma série de transformações, tanto na linguagem visual quanto de palavras e estruturas textuais. Esses pontos podem ser testemunhados no interior desses produtos, mas também perpassam pelas capas das edições, e esse é o foco deste artigo (SIQUEIRA; FARIA, 2007).
Portanto este artigo tem como tema “a inviabilização do corpo gordo nas revistas femininas brasileiras”, no qual constará também um estudo de caso sobre capas da revista digital Elle Brasil. A escolha do assunto central se deu por aproximação pessoal da autora, já que ela produz material acadêmico desde a graduação acerca de gênero, corpo e identidade, além de ser mulher, gorda, consumidora de produtos comunicacionais impressos e em plataformas digitais, e, mais do que isso, por ser formada na área da comunicação e saber que toda produção possui algo por traz, algum discurso na retaguarda, além do objetivo comercial e social.
A partir disso, dentre o leque de assuntos existentes e que abarcam todas essas temáticas, era importante encontrar um objeto de estudo que fosse viável para análise, que estivesse disponível nas plataformas digitais, que falasse com o público feminino, tivesse alcance nacional ou internacional, mas que ao mesmo tempo não tivesse um volume tão grande de conteúdo, o que impossibilitaria a análise. Existem algumas revistas de grande repercussão no Brasil que falam sobre comportamento feminino, entres elas estão: Cláudia, Marie Claire, Capricho, TodaTeen. Porém, em respeito a história da Elle Brasil no país e, por produzirem conteúdo especialmente digital e recente, essa foi a escolhida para compor o corpus do artigo.
Após a seleção do objeto de estudo, inicia-se a fase que fomenta o arcabouço bibliográfico. Como a autora já se aprofundava nos estudos da área, algumas das referências já eram conhecidas, porém, como todo material novo, foi necessário adentrar mais especificamente em temas como revista impressa, linha editorial, relações de gênero, moda como instrumento de exclusão e inclusão social, corporalidade e estruturas coletivas. Portanto este artigo passou por uma revisão bibliográfica para trazer embasamento sólido, real e previamente desenvolvido.
Logo em seguida, foram observadas todas as capas existentes da revista online Elle Brasil (edição digital) até o mês de novembro de 2021, pois elas começaram a ser veiculadas em julho de 2020. Portanto, ao explorar as 16 capas, foi decidido que somente três iriam ser analisadas, com a justificativa de que somente este quantitativo teria corpos gordos estampando as edições, já que o foco principal desta pesquisa é esmiuçar o objeto de estudo e entender como esse tipo de corpo é visto, fotografado, representado e falado no produto comunicacional escolhido. Mais do que isso, é importante compreender até que ponto essas questões podem refletir na forma como as grandes marcas comerciais da moda brasileira e internacional veem essa estrutura física, e até mesmo como a revista aborda e pauta esses assuntos, principalmente como a imagem fala com o leitor e com a coletividade.
A análise será feita de acordo com critérios fundamentados em imagem e linguagem, porém é possível que a opinião pessoal e vivência da autora sejam levadas em consideração. Entretanto, é importante falar que todas as caracterizações, explanações e justificativas serão baseadas nos estudos e leituras previamente feitos. As observações serão desenvolvidas a partir do conteúdo imagético e textual, ou seja, o sentido das roupas utilizadas, corpos escolhidos, tamanhos, cores, posições, além de palavras escolhidas nos títulos, subtítulos; assim como o período em que a revista está sendo veiculada. Pois, como será falado e justificado adiante, o espaço colabora para a compreensão e formação cultural das pessoas.
Outro ponto que colabora com a compreensão deste artigo é o fato de que o aumento no acesso a informações e a possibilidade de se comunicar em grandes redes, e a individualidade, são características afloradas na sociedade digital e que explicam segmentação e personalização de conteúdos (GIARRANTE, 2012). A individualização traz a possibilidade de escolher os assuntos que serão consumidos, quando serão consumidos e por qual motivo serão consumidos, e é justamente por isso que a digitalização das revistas contribui para abordagem de outros tipos de temas.
É interessante lembrar também que discussões acerca de termos como “gordofobia”, “gorda”, “padrão estético” vêm ganhando força desde 2018, quando houve os primeiros passos do movimento Corpo Livre no Brasil. E, apesar de o corpo da mulher ser uma pauta bastante falada nas revistas femininas, a representatividade do corpo gordo em capas de revistas de moda feminina ainda é escassa como iremos observar ao longo deste artigo.
Além de adentrar em questões de corporalidade, este estudo traz a questão da moda como ferramenta social e coletiva, em que se pode justificar a exclusão ou inclusão de um determinado tipo de corpo no mercado e na sociedade.
1 Mercado da moda e exclusão social do corpo gordo
De acordo com a Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (ISAPS) e Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCPO Brasil), o Brasil é o país líder no ranking de procedimentos cirúrgicos estéticos; são mais de 1,5 milhão de cirurgias realizadas por ano, desse total, 15,8% são de cirurgias de implante de silicone feitos no público feminino. Esse número pode refletir a insatisfação das mulheres pelo próprio corpo e a necessidade de mudá-lo para alcançar a perfeição. Essa questão se expande para diversos campos, inclusive para o da moda. Porém, quando se fala de vestuário e mulheres gordas, as problemáticas vão além do descontentamento corporal, muitas vezes existem a falta de acesso e exclusão social do corpo gordo (PORTAL HOSPITAIS BRASIL, 2021).
Pacheco e colaboradoras (2019) contextualizam que a realidade vivenciada pelas mulheres obesas — de não encontrarem vestimenta adequada e que as agrade para os seus respectivos corpos — constrange e limita em termos de convívio social. Além disso, os autores trazem a concepção de que o Brasil ainda é um país que pouco pensa em incluir essas pessoas e numerações das lojas de vestuário:
O Brasil ainda é incipiente quando se trata de estudos acerca das medidas do corpo feminino, portanto não existe padronização de tamanhos. Confeccionar roupas adequadas a fim de atender pessoas acima do peso não é algo simples para uma empresa de confecção, mas com o crescente número de mulheres com sobrepeso e obesidade no Brasil, é necessário voltar os olhos para este público ávido por participar da moda e lhes permitir a inclusão a partir do ato de vestir o corpo e, assim, proporcionar o sentimento de identidade e pertencimento (PACHECO et al., 2019, p. 452).
Ou seja, apesar de existirem a necessidade e o interesse dessas pessoas em roupas que caibam em seus corpos, o mercado não se dispõe a produzir esse tipo de produto. E, por isso, muitas mulheres se sentem inviabilizadas. As autoras citadas acima (PACHECO et al, 2019) complementam ainda que além desses percalços, existe o fato de que essas mulheres acima do peso não possuem informação de moda, bom caimento e conforto, são frustradas ao se sentirem traídas pelo próprio corpo, discriminadas, e sofrem com atributos pejorativos que a sociedade lhes atribui. Esses pontos, em conjunto com as representações da mídia sobre os corpos, podem inflar estereótipos em relação a padrão de beleza e de corpo da moda.
Uma questão que contribui para que exista inviabilização desse corpo é a forma como a medicina trata o assunto. Lopes (2014) explica que essa área divide a questão corporal em categorias e a partir daí chega-se ao “corpo da moda”:
O saber da medicina confere-lhe o poder de criar categorias que separaram/separam os sujeitos em loucos e sãos, normais e anormais, magros e gordos. É dessa forma que chegamos ao que chamamos nesse texto de “corpo da moda”. Para falarmos dele respaldamo-nos na perspectiva foucaultiana que desvinculou o sujeito de sua individualidade para considerá-lo em uma posição constituída a partir dos discursos que o interpelam socialmente. É por isso que podemos considerar que o “corpo da moda” é uma construção histórica, social, enraizada nos discursos que o produziram. (LOPES, 2014, p. 4)
Logo é interessante observar que a percepção sobre o comportamento e performance do corpo é baseada na construção histórica, social e no ambiente em que ele se relaciona. E, apesar da individualidade de cada pessoa, os fatores externos também contribuem para a solidificação do conceito de “corpo da moda”. Pensando nessa perspectiva, Pacheco e colaboradoras (2019) correlacionam estruturação da mulher, estética e moda com a mídia, explicando que um dos modos de controle é a imposição pelos discursos midiáticos que delegam ao feminino a responsabilidade de gerir o corpo, em que se associa ao belo ou o antônimo disso, que justificaria um fracasso ou incapacidade individual.
Adentrando essa concepção, as autoras Santos e Jimenez (2021) determinam que gordofobia é um estigma que pessoas gordas sofrem e, por isso, passam por discriminação e, consequentemente, exclusão social, que corrobora para a perda de acessibilidade e direitos básicos dessas pessoas. Dessa forma, pode-se perceber que a conceituação desse termo e as implicações sociais que os indivíduos vivem estão diretamente associadas às relações corpo-padrão de beleza-moda.
O conceito de saúde, formulado em 1946 pela Organização Mundial de Saúde (OMS), é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não somente uma ausência de doença ou enfermidade. Por ser considerado algo difícil de ser alcançado e um padrão ideal e utópico, esse conceito sofreu muitas críticas. Nos dias atuais é constantemente colocado em pauta por ativistas contra gordofobia e em prol do Movimento Corpo Livre.
Outro ponto que é importante compreender para o prosseguindo da análise de imagem proposta pelo artigo, é a concepção de que corpo ideal é transmitido pelos veículos de comunicação, já que na presente pesquisa será explorado conteúdo midiático. Siqueira e Faria (2007) explicam que não é o espetáculo dos suplícios e as dificuldades que existem para se alcançar o corpo de modelo, mas as transformações propostas e acatadas pelas mulheres que auxiliam a busca pelo corpo ideal, que de acordo com as autoras, é o das modelos das revistas.
Dessa forma, esses questionamentos têm impacto em outros campos da sociedade em que o corpo gordo está em pauta. Pode-se citar por exemplo, a performance dessas pessoas em diversas situações em que a saúde é colocada em prova por causa da condição corporal, ou até mesmo, em como ele é representado em produtos midiáticos e comerciais.
Nesse contexto em que está sendo abordado desde o início do artigo, a depreciação corporal quando parte da própria mulher em questão, carrega pressão que perpassa pela cultura que culpa o corpo gordo pela exclusão social em que ele vive. Sobre isso, Pacheco e colaboradoras expressam:
Ao investigar os processos de exclusão pelo vestir, pode-se afirmar que corpo e vestuário andam lado a lado, ao longo da história, e em tempos e espaços diversos há estereótipos normativos de beleza, vestimenta e conduta. Nas sociedades ocidentais contemporâneas, cultua-se o corpo magro e jovem. As mulheres que não estão de acordo com este padrão de beleza, imposto pela cultura do consumo, assimilam certo “fracasso pessoal”, por vezes, incorporando visões depreciativas acerca do seu próprio corpo. Nesse caso, a não correspondência ao padrão exigido tende a ser visto como sendo única e exclusivamente sua culpa e desleixo. Portanto, as mulheres com sobrepeso e obesidade tendem a ser marginalizadas em meio a este cenário (PACHECO et al., 2019, p. 453).
Por isso, é interessante perceber que existe um recorte em que a problemática perpassa por gênero, condição social, pressão estética e preconceitos. Mais do que isso, essa ideia que Pacheco e colaboradoras (2019) trazem de fracasso pessoal de uma mulher que não se encaixa no padrão de beleza corrobora para autodepreciação e autocrítica, juntamente com o cenário de exclusão social do corpo gordo, não só da moda, mas da coletividade como um todo.
Dessa forma, outro ponto interessante de analisar é como a visão que a mulher tem pelo próprio corpo depende de vários fatores externos e internos a ela. E, sobre essas características corporais femininas, Freitas (2002), explica:
Magro e limpo adjetivam a construção de um novo corpo que se combina à forma leve e iluminada de estar no mundo. Em particular, sobre o corpo da mulher, a escultura revestida de falta de excesso de peso, abdome magro e ossatura em evidência, torna-a parte do mercado. E assim ela pode caminhar apressadamente por entre as vias públicas sem se sentir diferente, e, consequentemente, perceber-se mais presente nos acordos com o mundo. Ao sentir-se light e fast, ela se concilia e reidentifica-se no mesmo mundo que a ameaça e pode estigmatizá-la (FREITAS, 2002, p. 25).
Ou seja, fica perceptível que o corpo feminino é uma peça de mercado que é utilizada para fomentar a ideia de que a magreza é um produto que pode ser alcançado na medida que se investe capital nesse objetivo. Portanto se pode considerar que o mercado da moda resulta de uma cultura de magreza e de culto ao corpo perfeito, seja por influência dos conceitos de saúde pela medicina ou por como a estrutura corpórea é representada pela mídia tradicional. Isso faz com que sejam produzidos diversos efeitos na vida das mulheres, o que implica em sua qualidade de vida e bem-estar, sobretudo na percepção de autovalor enquanto pessoa única e sujeito social (HESSEL; FURTADO, 2019).
Apesar de todos esses apontamentos acerca de como a moda exclui corpos que não estão dentro do padrão esperado, é importante perceber que esse deveria ser um espaço para que outros padrões pudessem ser representados. A autora Oliveira (2018) explica que a moda é um instrumento cultural e que pode trazer diversos tipos de movimentos sociais nela:
A moda enquanto instrumento cultural é tradicionalmente confundida com o padrão estético europeu: branco, magro, de cabelos lisos. Essa moda, que historicamente não atende aos corpos negros que por muitos anos precisou se adequar às vestimentas e às formas europeias de produção para assim poder se enquadrar em um padrão aceitável na sociedade, hoje é plural e descentralizada. Falamos de uma moda produzida no seio da cultura popular, dos movimentos sociais e que passou a ganhar uma conotação de enfrentamento (OLIVEIRA, 2018, p. 4).
Entretanto, o fato de que ocorre a abertura para uma sociedade plural e descentralizada, não quer dizer que essa é uma realidade constante. Oliveira (2018) traz a concepção de que a moda é uma expressão da cultura popular, ou seja, é a maneira que algumas pessoas encontraram de demonstrar sentimentos, levantar bandeiras e se enquadrar em diversas situações. Porém, apesar de ver esse movimento natural desse instrumento cultural e social, o mesmo não acontece em veículos de mídia impressos e/ou digitais como veremos nas capas da revista Elle Brasil.
2 Movimento Corpo Livre e Elle Brasil edição digital
A Revista Elle é de origem Francesa. Em 1988, chegou ao Brasil pela Editora Abril, e ficou nas bancas brasileiras durante 30 anos. Na França, a revista surgiu em um período pós-guerra e buscava discutir ideais e valores políticos da mulher naquele contexto. Já aqui, ela vem em uma época em que também aconteciam mudanças políticas, mas são as transformações da sociedade que marcaram esse período. Em 2018, houve o fechamento da revista brasileira, mas logo em seguida voltou às bancas reformulada a partir das modificações midiáticas: trouxe o Podcast Ellen News, revista trimestral impressa e revista digital mensal (REIS, 2020). A esta última se dedicará a análise deste artigo.
Como já foi explicitado, a concepção de corpo da moda vai mudando ao longo dos anos e baseados por fatores sociais. Guedes e Pereira (2017) defendem que a mídia também é peça fundamental nessa questão:
A mídia é uma peça de destaque na produção e circulação de discursos tidos como verdades e está implicada nos modos de condições da vida dos sujeitos sociais. Na sociedade contemporânea existe uma pressão cultural para emagrecer, que gera um pavor quase doentio de engordar. E a mídia propaga esse medo através do discurso legitimado de especialistas das mais diversas áreas: nutricionistas, médicos, fisicultores, nutrólogos etc. O corpo gordo, ao ganhar visibilidade nas capas de revista; ao virar notícia; ao ser discursivizado pela mídia, deixa de ser um evento médico para se transformar em um evento social (GUEDES; PEREIRA, 2017, p. 4).
Desse modo, fica claro que o corpo gordo é alvo de estereótipos que são fomentados pela mídia e que, por muitas vezes, consegue inverter essa circunstância ao se posicionar na mídia tradicional de maneira não pejorativa. Porém, ainda assim, se compreende que as concepções acerca desses assuntos são interpretadas e moldadas por ideologias e por relações de poder, as quais interferem nas construções identitárias e nas relações sociais como também nos sistemas de conhecimento e crenças de uma sociedade (GUEDES; PEREIRA, 2017).
Esses debates sobre corpo, gênero, construção de identidade acontecem não somente em ambientes acadêmicos, mas também em ambientes virtuais. Em alguns casos, são discutidos de maneira mais incisiva, o que é chamado de ativismo digital. No final de 2017, Alexandra Gurgel, jornalista e ativista gorda, foi capa de uma matéria veiculada na BBC Brasil, na qual falava sobre saúde e aceitação corporal. Após esse acontecimento, ela foi alvo de piadas consideradas gordofóbicas pelos internautas e pelo apresentador Danilo Gentilli. Depois do episódio, a jornalista trouxe o movimento Body Positive para o Brasil, e o batizou com o nome Corpo Livre, que consiste em promover ações nas plataformas digitais que estimulam as pessoas a aceitarem o próprio corpo e criam uma relação de acolhimento mútuo.
O movimento é novo no Brasil, mas, no campo da moda, o termo plus size apesar de ter sido criado em 1920, vem ganhando força desde o surgimento desse movimento, já que ele incita o autoconhecimento e empoderamento do próprio corpo, o que colabora para que as pessoas consumam mais, já que praticam a aceitação corporal. A expressão plus size é utilizada para designar moda/modelos fora do padrão estético esperado, ou seja, roupas e modelos maiores que os tradicionais manequins 38 a 44. Betti (2014) explica que é um mercado que está em expansão:
O surgimento de mais marcas especializadas no segmento, a presença de coleções para tamanhos grandes na grade de marcas que até então só se dedicavam às numerações tradicionais, a criação de eventos exclusivamente dedicados à moda plus-size e o relativo destaque que esses eventos e que as carreiras das modelos plus-size vêm recebendo na mídia nacional atestam a expansão e a maior visibilidade deste mercado (BETTI, 2014, p. 56)
Ou seja, com o advento do movimento corpo livre e o aumento da representatividade na moda, dá a entender que o mercado está sendo ocupado por essa onda plus size. Nesse sentido, existe procura e a necessidade das mulheres de se sentirem bonitas e vestirem roupas que caibam em seus corpos. E esse cenário só é possível por causa da visibilidade que esses eventos trazem para o mercado da moda e das modelos plus size que conseguem fazer com que as mulheres se identifiquem com o corpo delas e sintam que é possível estar na moda mesmo não possuindo o corpo magro e padrão.
Entretanto, o fato de esse mercado seguir o fluxo das mudanças culturais, não quer dizer que no âmbito comunicacional será da mesma maneira. O próximo passo desta pesquisa é verificar se a mídia tradicional está seguindo esse pensamento.
3 Análises
Desde que a Elle Brasil voltou a ser veiculada no país foram lançadas 16 edições das revistas digitais. Pelo que se pode observar nesses produtos, o objetivo é trazer capas com poucas informações escritas, mas com a fotografia sendo o objeto principal, sem sair da linha editorial, que neste caso, é de ser uma revista de moda. Das 16 edições, 13 possuem opções de capas diferentes para a mesma publicação, já as outras três possuem capas únicas. Para começar a análise, é importante dizer que desse mesmo total (16), somente três têm corpos gordos estampando a revista.
Figura 1 — Capa da edição digital 3 da revista Elle Brasil: setembro/2020 |
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Fonte: Elle Brasil (2021, online) |
A edição de setembro de 2020 (figura 1) tem como tema “Dançar para não dançar”. Nela existem cinco opções de capas, são cinco corpos diferentes, em diferentes posições, todas simbolizando a dança. Em uma delas podemos ver um corpo fora do padrão “magro”, podendo ser considerado gordo, com poucas roupas, aparentemente fazendo um passo de dança. Na foto, pode-se ver as celulites, e como o corpo está em movimento, é interessante perceber as curvas de um corpo real, inclusive pelos traços das pernas. A capa tem cores vibrantes que ornam com a proposta da dança, e todas as fotos escolhidas para as capas seguem a mesma linha de posições.
Figura 2 — Três opções das capas da edição digital 7 da revista Elle Brasil: janeiro/2021 |
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Fonte: Elle Brasil (2021, online) |
A próxima capa a ser analisada é a da edição de janeiro de 2021 (figura 2). A revista é estampada pela cantora Mc Carol, famosa por cantar músicas classificadas com “funks proibidões” que possuem muitos palavrões, exaltam a negritude, a mulher e o dia a dia nas comunidades do Rio de Janeiro. Além disso, ela compartilha a sua vivência diária nas redes sociais, e traz à tona temas como gordofobia, racismo e machismo.
A Mc Carol é gorda maior, ou seja, veste manequim maior que 56/60, negra e periférica. Sem dúvidas, está à margem da sociedade e já traz representatividade por causa disso. Entretanto poderia trazer ainda mais se, em umas das três opções de capa, fosse mostrado o corpo todo da cantora. Pois uma revista do porte da Elle Brasil, cujo tema central é moda, trazer uma capa com uma mulher gorda maior, e mostrar somente o rosto dela é alimentar o estereótipo de que o corpo gordo só é bonito de rosto.
Figura 3 — Capa da edição digital 17 da revista Elle Brasil: novembro/2021 |
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Fonte: Elle Brasil (2021, online) |
A última capa a ser analisada com pessoas gordas é a da edição de novembro/2021 (figura 3). No mês da consciência negra, a revista traz duas cantoras negras nas opções de capa: Alcione e Ludmilla. Nesta opção, Alcione está sentada, com um vestido longo e de manga. Ela tem uma posição mais serena, sem muitos adereços no cabelo e corpo, aparenta ser uma foto mais contemplativa.
Aparentemente, a proposta é trazer algo mais familiar, com expressões de felicidade e harmonia. Alcione pode ser vista de corpo inteiro, porém ele se encontra completamente coberto. Também não possui título ou subtítulo, o que deixa a desejar, já que não existem adereços que exaltem o mês temático, nem o fato de o corpo ser gordo, aparece simplesmente o nome da cantora.
Figura 4 — Capas das edições digitais 11, 10 e 9 da revista Elle Brasil: maio, abril e março (respectivamente) de 2021 |
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Fonte: Elle Brasil (2021, online) |
Como uma forma de trazer o panorama de como acontecem as posições dos modelos, cores utilizadas e corpos, pode-se observar outras três capas que trazem modelos magros na figura 4. Esses produtos carregam uma diversidade de cores e raças, já que trazem Paola Antonini, pessoa com deficiência física; Camilla de Lucas, negra, digital influencer e ex-bbb; e um casal negro estampados nas três capas.
A Elle Brasil, desde o seu relançamento em 2020, veio com uma proposta de mostrar a diversidade e representatividade para seus lançamentos, o que de fato podemos considerar ao analisar esses produtos da figura 4. Porém existe um ponto interessante e que deve ser analisado: em todas essas capas são mostrados os corpos por completo de todos os modelos, além disso, eles utilizam roupas que conseguem mostrar toda a estrutura física, o que não se pode ver nas capas analisadas anteriormente. Essa situação acontece em todas as outras capas, exceto nas três anteriores que já foram analisadas. Dessa forma, mostra-se que, apesar da tentativa de abordar e representar todos os corpos, alguns deles ainda saem atrás nessa disputa.
Sobre as representações dos corpos na moda, Betti (2014) explica:
Os discursos produzidos no campo criticam a magreza “excessiva” das modelos magras e exaltam o aspecto supostamente mais real da aparência das modelos plus-size. Segundo esses discursos, enquanto as primeiras representariam um ideal estético impossível para a maioria das mulheres, um ideal que ignora a diversidade de formas e tamanhos de corpos femininos, as segundas seriam uma alternativa a este ideal, representando mais adequadamente as mulheres “de verdade” (BETTI, 2014, p. 68).
Desse modo, essa afirmação consegue mostrar claramente que a revista digital Elle Brasil ainda não conseguiu compreender que a diversidade de tamanhos e a representatividade que essas capas podem trazer para a sociedade é grande. Principalmente quando se observa a grande proporção que a revista tem na vida das mulheres brasileiras e, também, no meio da comunicação de massa.
Além disso, percebe-se que os corpos plus size são os que mais se assemelham aos corpos reais e, ao se verem nesses produtos, as mulheres se sentem parte do círculo da moda. Por isso, é de extrema importância investir nesse mercado, o que não está acontecendo, já que das 16 capas, somente três são estampadas por pessoas gordas.
4 Considerações finais
O corpo é um elemento importante para entender a cultura de um local, a maneira como ele é representado pelas plataformas de mídias tradicionais condiciona as pessoas, pensamentos e estereótipos. Neste artigo, conseguiu-se perceber que a moda pode ser considerada um espaço de inclusão ou exclusão social do corpo gordo e que, apesar de existir consumidoras e mercado para isso, ainda existe uma resistência para que as marcas produzam produtos de tamanhos maiores.
Concomitante a isso, é interessante pontuar também que a existência do Movimento Corpo Livre evidencia e aumenta a aceitação corporal das mulheres e, consequentemente, aumenta a adesão do mercado plus size, tentando obter a normalização do fato de que nem todos os corpos possuem o mesmo padrão e estrutura.
Contudo, ao analisar as capas da revista digital Ellen Brasil em que aparecem modelos gordos(as) estampando o produto, pôde-se perceber que os corpos, em sua maioria, não aparecem como um todo (figura 2), os que aparecem são de pessoas gordas menores (figura 1) ou com o corpo coberto (figura 3). Esse fato colabora para a solidificação do conceito de que corpo da moda não é o corpo gordo, já que aparentemente ele não pode ser representado por completo em uma capa de revista.
Referências
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Recebido em: 16/01/2022.
Aceito em: 01/05/2022.
https://doi.org/10.46906/caos.n28.61924.p21-37
* Bacharela em Jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba/Brasil. Mestranda em Comunicação (PPGC/UFPB)/Brasil. E-mail: jayaneevellen@gmail.com.
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