FRAGMENTOS DE UMA TRAJETÓRIA[1]
FRAGMENTS OF A TRAJECTORY
Jacob Carlos Lima *
https://doi.org/10.46906/caos.n28.62247.p119-129
Resumo
O texto faz uma homenagem ao professor Mauro Koury, desaparecido em 2021, vitimado pela Covid-19. O autor relembra momentos da parceria intelectual e docente que desenvolveu com o homenageado desde o início da década de 1980 na Universidade Federal da Paraíba. Recupera memórias dessa convivência marcada por coleguismo, conflitos, afastamentos e aproximações, que refletem a complexidade do convívio social, das idiossincrasias de cada um, do caráter aleatório e imprevisto de todo percurso individual. Apresenta fragmentos de trajetórias cruzadas e descontinuas, mas que possibilitam a compreensão do momento de expansão e consolidação do sistema federal de universidades, da pós-graduação, a partir da descrição de encontros e desencontros pessoais.
Palavras-chave: Mauro Koury; Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba; memória.
Abstract
The text pays tribute to Professor Mauro Koury, who departed in 2021, victim of Covid-19. The author recalls moments of the intellectual and professorial partnership he developed with the honoree since the early 1980s at the Federal University of Paraíba. It recovers memories of this coexistence marked by collegiality, conflicts, distancing and approximations, which reflect the complexity of social interaction, of the idiosyncrasies of each one, of the random and unforeseen character of the entire individual journey. It presents fragments of cross-trajectories and discontinuities, but which allow an understanding of the moment of expansion and consolidation of the Federal University system, of graduate studies, from the description of personal encounters and divergences.
Keywords: Mauro Koury; Department of Social Sciences; Federal University of Paraíba; memory.
Como em todo exercício de memória, o passado é sempre reinterpretado pelo presente. Além disso, para falar do outro, temos que falar de nós mesmos, numa recuperação autobiográfica na qual a vida pessoal imbrica-se ao contexto social vivenciado, em busca de um sentido, mesmo que ilusório, de continuidade (BOURDIEU, 1998).
Quando fui convidado para escrever sobre Mauro Koury para a seção da revista Caos que o homenageia, fiquei pensando no que dizer. Creio que outros autores se dedicaram a sua obra, relatos de pesquisas conjuntas ou experiências enquanto alunos e orientandos. No meu caso, foram 39 anos de contato intermitente, primeiro, como colega de departamento na UFPB de 1982 até 2004. Posteriormente, mantivemos encontros esporádicos em congressos da área, seguido de uma retomada mais próxima quando Mauro fez seu doutorado no PPGS-UFSCar (2008-2010). A partir de então, o contato continuou por meio dos e-mails ou redes sociais, até o início da pandemia.
Mauro foi um dos primeiros colegas que conheci assim que assumi meu cargo de professor auxiliar na UFPB em abril de 1982. O Departamento de Ciências Sociais (DCS) ficava num galpão, hoje ocupado pelos prédios da área de comunicação, do outro lado da rua do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA). Era um prédio relativamente grande, sem forro e bem quente, com alguns poucos ventiladores. O DCS contava na época com aproximadamente 50 professores, sendo que uns 10 ministravam “Estudos de Problemas Brasileiros”, disciplina criada durante a ditadura para a “educação moral e cívica” da juventude. Era obrigatória em todos os cursos, e os professores que a ministravam tinham formação diversa, sendo que nenhum deles, que eu me lembre, era oriundo ou habilitado em ciências sociais em algum nível. Os outros 40 docentes atuavam no departamento, participando de atividades que atendiam ao campus de João Pessoa, onde quase todos os cursos tinham aulas de sociologia, seja como matéria obrigatória, seja optativa. Desses 40, sete estavam afastados para fazer o doutorado, e uns dois ou três professores tinham afastamentos diversos ocupando cargos na administração da universidade ou em outros órgãos do governo estadual e/ou federal.
Cheguei sozinho a João Pessoa, e fiquei hospedado por algum tempo na casa de um colega que fazia mestrado em São Paulo, onde nos conhecemos, Marcos Pequeno, que depois se tornou professor de Filosofia no então campus de Cajazeiras da UFPB. A casa, no conjunto Castelo Branco, estava com os móveis, mas ele e a mulher ainda não tinham se mudado.
Passava meus dias entre a casa e o DCS, bem próximos um do outro. No DCS, fui recepcionado pela chefe de departamento: Maria Lucia Barbosa e sua vice, Sânia Bezerra, que foram me buscar no aeroporto. Como o espaço do Departamento não era muito confortável, poucos professores ficavam lá, utilizando as salas apenas entre as aulas ou para atender alunos. Mauro, que morava em Recife, era um dos que lá permaneciam, geralmente de terça a quinta-feira, ou em seus dias de aula. E foi assim que, recém-chegado, eu o conheci: um dia, ele se apresentou na minha sala e ficamos conversando. A partir daí, quase toda semana tomávamos um café, almoçávamos juntos ou eventualmente saíamos para uma cerveja. Outra professora, que conheci nesses primeiros dias, foi Fátima Lucena, hoje na UFPE, que fez um tour comigo por João Pessoa em seu carro. Nas salas, ficavam também dois alunos do mestrado de Ciências Sociais, João Lavieri, professor do Departamento de Arquitetura, e Beatriz Lavieri, também arquiteta e pesquisadora na UFPB, que utilizavam o espaço para estudar. Esse pequeno grupo foi a minha introdução à UFPB e à cidade. Posteriormente, fui me aproximando de outros colegas como José Arlindo Soares, Alberto Cignoli, Maria Angela Wanderley, Maria Yara Matos, Maria de Fátima Araújo, Eliana Monteiro Moreira, Teresa Queiroz e Eleonora Menicucci.
Mauro era conversador, mas pouco falava sobre sua vida pessoal. Contou que era “veterano” na UFPB, tendo entrado em 1979 quando retornou de seu doutorado na Universidade de Glasgow, na Escócia. Pesquisava trabalho, sindicalismo e movimentos sociais de trabalhadores rurais, um dos temas centrais naquele período em que a ditadura militar enfrentava uma crise econômica, uma inflação galopante e perdia legitimidade entre seus apoiadores da elite, além de uma crescente insatisfação popular com o regime. O governo Geisel (1974-1979) tinha começado a chamada abertura “lenta e gradual”, continuada por seu sucessor, o general Figueiredo (1979-1985). Espocavam pelo país protestos, greves e movimentos de trabalhadores urbanos e rurais por melhores salários e condições de vida. Esses movimentos se reorganizavam, com a retomada de sindicatos e organizações das mãos das diretorias pelegas “oficiais”, dando início ao que veio a constituir o novo sindicalismo, do qual o ABC paulista aparecia como o epicentro dessas mobilizações. Nas ciências sociais, as temáticas trabalho e sindicalismo e movimentos sociais urbanos e rurais catalisavam as pesquisas na universidade.
O DCS, que existia desde 1973, aprovou seu primeiro curso em 1978, o Mestrado de Ciências Sociais (MCS), inaugurando sua primeira turma em 1979. Sua área de concentração juntava temas como saúde, questões urbanas e trabalho, refletindo a composição do corpo docente naquele momento. Com a entrada de novos professores no DCS, o mestrado foi reformulado e alterou sua área de concentração, que passou a ser, em 1981, Política e Trabalho.
Vale lembrar que, a partir de 1976, a UFPB teve uma grande expansão capitaneada pelo seu então reitor Lynaldo Cavalcanti (1976-1980), com bom trânsito junto aos militares e que recrutou professores brasileiros e latino-americanos exilados, além de professores de outros estados e regiões do país. Naquele momento, não havia concurso público de acesso ao corpo docente regular; os professores eram contratados como colaboradores e, quando estrangeiros, como visitantes. O DCS recebeu vários colaboradores e visitantes. Alguns não se adaptaram e rapidamente se desligaram da universidade; outros saíram para a realização de seus doutorados com apoio da Capes e do CNPq. Lynaldo Cavalcanti, após seu período como reitor, foi presidente do CNPq entre 1980-1985 com uma política de incentivo à titulação docente, da qual a UFPB foi bastante beneficiada. A partir de 1981, o ingresso passou a ser por concurso público e, posteriormente, os professores colaboradores e visitantes tiveram sua situação regularizada na condição de docentes efetivos. Fiz o concurso em dezembro desse ano, realizado no DCS para as áreas de sociologia e ciência política. Entrei pela Sociologia juntamente com as colegas Esther Vaisman e Elisa Cabral. Na Ciência Política, entraram os colegas Christian Azais, Clemilda Maria de Oliveira e Ivo Ferreira Brito.
Voltando a Mauro, ele participou da reformulação do mestrado, sendo um de seus proponentes, ministrando disciplinas, orientando e participando do conselho editorial da Revista Política & Trabalho em 1985, quando ela surge e, depois, no período 1994-1997. Em sua origem, em 1981, a revista chamava-se “Cadernos de Textos” e era feita de forma artesanal pelos seus editores, e mimeografada no próprio DCS. Mauro editava também os “Cadernos de Ciências Sociais”, sem muita regularidade, mas com alguns números publicados no período 1985-2000. Ele sempre escreveu muito, já tinha incorporado, pela sua trajetória anterior na UFPE e no exterior, a cultura do publish or perish, como condição de sucesso na carreira acadêmica. Na UFPB, essa cultura estava em construção. Assim, vários números dos dois cadernos continham artigos seus.
Como professor, era extremamente atualizado, introduzindo autores ainda pouco usuais entre nós na época. Ministrava disciplinas como História do Trabalho no Brasil e Movimentos Sociais. Tinha orientandos de formação diversa, dada a inexistência de curso de graduação de Ciências Sociais em João Pessoa. Era comum os alunos serem oriundos dos cursos de História, de Direito ou mesmo Medicina — geralmente da Saúde Coletiva —, sendo que alguns deles eram docentes da própria UFPB, em busca de titulação. Orientou colegas do próprio DCS, e atuava também no mestrado de Serviço Social.
O mestrado de Ciências Sociais penava com a rotatividade de seu quadro docente. Depois da primeira crise, quando mudou sua área de concentração, a saída de colegas para o doutorado desfalcou a equipe. A partir de 1983, o DCS começou a receber os retornados dos doutorados no exterior e mesmo do país: do México, a exemplo de Deise Siqueira e Maria Carmela Buonfíglio; da França, como Ana Maria Quiroga Fausto Neto e Lourdes Maria Bandeira; e Francisco Foot Hardman, de São Paulo, recompondo então o quadro de professores credenciados. O mestrado ganhou novo fôlego, culminando com a realização do “Seminário Movimentos Sociais: para além do rural e urbano” em 1985. O seminário resultou na articulação dos mestrados da região, inicialmente com projetos de pesquisa conjuntos, seguido por uma ação política junto a ANPOCS (criada em 1977) e a órgãos de fomento nacionais, para garantir a representação do Nordeste em suas diretorias e equipes. A partir do encontro de 1985, ficou estabelecida a realização bianual de congressos regionais, posteriormente conhecidos como CISO — Encontro de Ciências Sociais do Norte-Nordeste —, cujos encontros se mantiveram até 2012. Mauro esteve inserido em grande parte dessas atividades.
Além dos mestrados e do DCS, Mauro atuava ainda em outras frentes. Em 1982, foi um dos coordenadores de uma pesquisa nacional capitaneada pela UNICAMP: “Fontes para a história da industrialização no Brasil”, com financiamento da FINEP e CNPq, sediada no Núcleo de Documentação Histórica Regional, o NDHIR. O NDHIR era, então, o único centro de pesquisa interdisciplinar em humanidades. Entre 1982 e 1985, parte da equipe do projeto saiu para realizar doutorados, e Mauro assumiu a coordenação do projeto com os membros que permaneceram, convidando novos pesquisadores e, entre eles, estava eu. Coube a mim fazer levantamento documental no Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba. Comigo, nessa ação, esteve um historiador que retornava à Paraíba depois de um tempo em São Paulo, e que ingressou no MCS sob a orientação de Mauro, tornando-se, posteriormente, colega de departamento, Ariosvaldo da Silva Diniz.
A atuação de Mauro como coordenador da pesquisa teve vida curta. Indispôs-se com alguns colegas e com a coordenação do NIDHIR, retirando-se assim do grupo. Em 1986, a equipe que escreveu o relatório final estava reduzida a quatro pessoas: Tamara Egler (Departamento de Arquitetura), Lucia Guerra (Departamento de História), Neiliane Maia (pesquisadora do NDHIR) e eu (Departamento de Ciências Sociais). Seu temperamento era cordial, mas intempestivo, o que, às vezes, tornava problemática a continuidade de trabalhos conjuntos.
Nesse período, Mauro atuava também junto ao Centro Josué de Castro de Pesquisas Sociais em Recife, do qual foi sócio fundador, e na condição de presidente da Associação dos Sociólogos do Estado de Pernambuco.
A década de 1980 foi marcada por crises — econômica, política e social — dentro do processo de democratização do país. Na universidade, o crescente corte de verbas tornava seu funcionamento insustentável — às vezes, sem condições nem mesmo de pagar despesas básicas, como contas de energia e de água. Greves intermináveis se sucediam umas às outras, exigindo reposição de salários defasados pela inflação e, sobretudo, reivindicando mais verbas para a educação.
Com a saída de Mauro da coordenação da pesquisa no NDHIR, nós nos afastamos, seja pela dificuldade de encontros no próprio campus, seja pela diversificação dos interesses acadêmicos e pessoais. Embora efêmeros, mantivemos os contatos, sempre cordiais.
A partir de 1987, as saídas de alguns docentes para o doutorado (eu inclusive, de 1987 a 1991) e a transferência de outros para universidades do Sudeste enfraqueceram mais uma vez o mestrado de Ciências Sociais. Embora novos concursos tenham sido realizados pelo DCS nessa década, os contratados, em geral, não tinham o doutorado, o que era uma exigência crescente da CAPES. Isso implicava na saída, após curto tempo de atuação no DCS, desses docentes para a realização de seus doutorados.
Em 1992, com a transferência da professora Lourdes Bandeira, então coordenadora do MCS, para a UnB, Mauro, que era vice coordenador, assumiu como coordenador em exercício. Voltamos, então, a trabalhar mais proximamente em duas frentes: na proposta de criação do curso de graduação em Ciências Sociais e na reestruturação do mestrado.
O curso de graduação, velha demanda do DCS, foi aprovado no segundo semestre de 1993, com o apoio da professora Maria Angela Sitonio Wanderley, entusiasta da proposta, e então diretora do CCHLA. O curso teve sua primeira turma em 1994. A partir daí, o DCS contava com uma formação graduada e uma pós-graduada na área, o que possibilitou, progressivamente, a formação e consolidação de grupos de pesquisa, com o acesso dos alunos a bolsas de monitoria e iniciação cientifica e a preparação para a pós-graduação.
No caso do mestrado, a intenção era transformá-lo em Programa de Pós-Graduação em Sociologia, com mestrado e doutorado, o que foi realizado parcialmente quando assumi a sua coordenação (1994-1996). Mauro tornou-se editor da Revista Política & Trabalho, agora com ISSN, e com a expectativa de torná-la uma revista nacional. A capa foi reformulada, assim como seu formato, acompanhando tendência de outras revistas nacionais, mantendo uma regularidade anual e impressa em gráficas da cidade.
Formávamos uma troica na coordenação: eu, como coordenador; Theophilos Rifiotis — que entrou no DCS por concurso realizado em 1985, e que cursou seu doutorado no período 1987-1991 —, como vice, e Mauro Koury na edição da revista e de publicações. Em 1995, o agora PPGS promoveu dois grandes eventos com grande visibilidade nacional: o VII Encontro de Ciências Sociais do Norte-Nordeste e a IV Reunião de Antropologia do Norte-Nordeste. Após os eventos, organizamos três coletâneas com parte dos artigos apresentados pelos participantes.
Além disso, a coordenação do PPGS organizou uma “sala de leitura” para a graduação e o mestrado, aproveitando um espaço disponível no prédio do DCS. A sala estava vazia, e o professor Franz Moonen e eu começamos a instalar prateleiras, conseguimos móveis do DCS, e contratamos uma estagiária de biblioteconomia para organizar o acervo. Este foi formado pela doação de professores recém aposentados (o período Collor levou muitos professores a se aposentarem com as ameaças de mudança na previdência social), daqueles ainda em atividade, e com a compra de livros possibilitada pela taxa de bancada que o PPGS recebia da CAPES. Um dos primeiros usuários da sala de leitura foi Giovanni Boaes, hoje professor do DCS e editor da revista Caos, que, então, preparava-se para prestar a seleção do mestrado, passava o dia na sala e nos ajudava, eventualmente, na montagem de prateleiras e com os livros. Posteriormente, na gestão da Professora Maria Yara Matos na direção do CCHLA, a sala tornou-se o embrião da Biblioteca Setorial do Centro.
Na década de 1990, os interesses de pesquisa de Mauro se deslocaram da Sociologia do Trabalho e dos Movimentos Sociais para a Sociologia das Emoções, campo de pesquisa novo no país. Desenvolveu projetos sobre fotografia e imaginário urbano, morte, luto e sofrimento social, temas que passaram a marcar sua produção de livros e artigos. Criou, em 1994, o Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções — GREM — e, em 1995, o Grupo Interdisciplinar de Estudos em Imagem — GREI — juntando alunos de graduação e pós-graduação.
Também nessa década, a Capes expandiu a avaliação dos programas de pós-graduação, mudando as regras do credenciamento, que deveriam ser feitos antes do início do curso e obedecendo os padrões estabelecidos pela agência. Entre essas novas normas, estava a exigência de que a totalidade do corpo docente deveria ter o título de doutor, quando até então bastava o de mestrado, garantindo assim a nota máxima no quesito titulação quando da avaliação bienal. Isso criou problemas no país inteiro, descredenciando progressivamente professores bastante atuantes e reconhecidos, mas sem o título. O PPGS recebeu a partir de 1991-92 a segunda leva de docentes titulados que retornavam de seus doutorados, como José Arlindo Soares, Eliana Monteiro Moreira, Maria Antônia Alonso de Andrade, entre outros, que reforçaram o quadro de credenciados e que possibilitou, no final da década, propor o curso de doutorado.
Quando terminou minha gestão no PPGS, assumiram a coordenação os professores José Arlindo e Eliana Monteiro Moreira. Mauro permaneceu na editoria da Revista Política & Trabalho até 1998.
Entre 2000 e 2001, saí para fazer pós-doutorado. Quando voltei, o doutorado do PPGS tinha sido aprovado, reunindo os programas de João Pessoa e Campina Grande. Essa junção funcionou até 2005. Com o desdobramento da UFPB e a criação da UFCG, a equipe de professores do PPGS em Campina Grande decidiu encaminhar para a Capes projeto de um novo curso, o Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais. O PPGS, em João Pessoa, continuou tal como estava.
Assumi novamente a coordenação do PPGS no segundo semestre de 2001, momento em que reencontrei Mauro, atuando no doutorado e já com três orientandos. A primeira turma tinha se iniciado no ano anterior. Em 2002, com ajuda da sua então orientanda, Maria Cristina Barreto, que possuía conhecimentos técnicos de computação e internet, Mauro criou a revista virtual Revista Brasileira de Antropologia e Sociologia das Emoções, consolidando sua linha de pesquisa.
No primeiro semestre de 2003, Mauro ministrava “Teoria Sociológica I” no PPGS. A turma de doutorandos vinha reclamando do seu autoritarismo em sala de aula. Vale dizer que Mauro sempre teve um séquito de alunos/as admiradores/as e outro séquito, dos que não se acertavam com ele. Numa das aulas, desentendeu-se com um aluno publicamente, o que fez com que a turma se revoltasse e questionasse a sua atitude. O conflito em sala degringolou, e a turma deixou a sala indo diretamente à coordenação do PPGS. Pediam uma reunião do colegiado para discutir o comportamento e a permanência do professor no Programa. Sempre houve rumores no DCS relativos ao título de doutorado de Mauro Koury. Aventava-se que ele efetivamente não defendera sua tese. O conflito iniciado na sala de aula terminou por acirrar a dúvida, expondo-a publicamente.
Como coordenador do Programa, convoquei uma reunião do colegiado para avaliar a situação. Antes da reunião, contudo, Mauro, visivelmente abalado, solicitou seu descredenciamento do PPGS. A partir daí, deixou o Programa e seus orientandos, continuando com suas atividades junto ao curso de graduação, com seus grupos de pesquisa e na coordenação de programas de extensão.
Em 2004, eu me transferi para a UFSCar e perdemos o contato. No segundo semestre de 2007, recebi um e-mail de Mauro dizendo que gostaria de defender sua tese na UFSCar.
Prestou a seleção para o doutorado em São Carlos e nos reencontramos em 2008, retomando conversas, como se nosso último contato tivesse acontecido no dia anterior. Foi aprovado, passou um ano no bate-volta Recife-São Carlos-Recife, cumprindo os créditos. Foi orientado pela professora Maria Aparecida Moraes, especialista em ruralidades. Em 2010, defendeu a tese: “Práticas instituintes e experiências autoritárias: o sindicalismo rural na Mata Pernambucana, 1950-1974”, uma versão reformulada e atualizada da tese iniciada na Universidade de Glasgow.
Com a tese defendida na UFSCar, Mauro buscou vincular-se novamente no PPGS. Encontrou, porém, resistências de parte dos membros do colegiado, ainda como decorrência da crise de 2003. Acompanhei esse momento à distância, recebendo aqui e ali informações eventuais.
A partir de então, mantivemos contatos esporádicos por e-mail, nos quais informava os lançamentos de novos números da revista, de seus novos livros e de sua inserção no mestrado de Antropologia (PPGAS), recém-criado, dando continuidade a seus interesses que de fato reuniam a Sociologia e a Antropologia.
Sua aposentadoria em 2020, após 41 anos de UFPB, não encerrou a história. Mauro Koury continuou participando do PPGAS como professor voluntario e dedicando-se às suas pesquisas de cunho etnográfico. A tragédia política e sanitária que se abateu sobre o país a partir de 2019/2020 não o poupou. Ativo nas redes sociais, manifestava sua oposição à barbárie bolsonarista, à bandidagem que assumiu o poder no país e ao negacionismo científico que a acompanhou, acarretando mais de 600 mil mortes. Em julho de 2021, Mauro foi contaminado pela covid-19, e depois de dois meses de luta, perdeu a batalha.
Em 2022, completaríamos 40 anos de trajetórias compartilhadas, coleguismo marcado, certamente, por aproximações e, também, por afastamentos. Perdemos Mauro, uma pessoa dinâmica e controversa, que teve papel importante na construção e consolidação do campo das ciências sociais na Paraíba e no país. Provavelmente não teria partido se a história fosse outra e não estivéssemos vivendo este retrocesso civilizatório.
Referências
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Morais; AMADO, Janaina. Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1998. p. 183-191.
Recebido em: 15/02/2022.
Aceito em: 20/02/2022.
https://doi.org/10.46906/caos.n28.62247.p119-129
[1] Agradeço à professora Maria Lúcia Barbosa de Oliveira, chefe do DCS no período 1981-1983, por informações acerca da UFPB nesse período; e às professoras Ana Edite Montoia e Maria Ângela Sitonio Wanderley pela leitura da primeira versão deste artigo.
* Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos/Brasil. E-mail: calimajb@gmail.com.
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