AS PRÁTICAS ARTÍSTICAS DA ARTE DE RUA NO RECIFE: relações com as técnicas e políticas públicas

 

THE ARTISTIC PRACTICES OF STREET ART IN RECIFE: relations with techniques and public policies

Marianne Muniz Atanazio *

Marco Aurélio Paz Tella **

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n29.62789.p16-34

 

 

Resumo

Toda sociedade se constitui de forma política, econômica e cultural. Nesse sentido, as pluralidades de identidades, bem como as formas técnicas de execução de práticas artísticas servem como propósito de análise de representações. A partir disso, busca-se relacionar a metodologia de Molefi K. Asante (2009), da afrocentricidade, para analisar os efeitos do processo da desconstrução da ideologia racista, dialogando com a consciência histórica da resistência cultural e a epistemologia das práticas culturais (reprodutibilidade técnica artística) de sobrevivência do povo preto, que se manifestam no contexto cultural no centro histórico do Recife, por intermédio de análises de quatro imagens do graffitti e do pixo. Reflete-se sobre as questões: O estado de Pernambuco produz políticas públicas para a integração dessas expressões no meio cultural? E como esses artistas se sentem em utilizá-las ou não? Entende-se que todo indivíduo se desenvolve no meio social, e por consequência disso, os processos criativos e técnicos também permitem nos entendermos socialmente.

Palavras-chave: Recife antigo; arte de rua; políticas públicas; graffitti e pixo.

 

Abstract

Every society is constituted politically, economically and culturally. In this sense, the pluralities of identities, as well as the technical forms of execution of artistic practices, serve for the purpose of analyzing representations. From this, I seek to relate Molefi K. Asante's methodology of Afrocentricity (2009) in order to analyze the effects of the process of deconstruction of racist ideology, dialoguing with the historical consciousness of cultural resistance, and the epistemology of cultural practices (artistic technical reproducibility) of survival of black people that manifest themselves in the cultural context of the historic center of Recife, through the analysis of four images of graffiti and pixo. Questions are considered: Does the state of Pernambuco produce public policies for the integration of these expressions into the cultural environment? How do these artists feel about using them or not? It is understood that every individual develops in a social environment, and consequently, the creative and technical processes also allow us to understand ourselves socially.

Keywords: Old Recife; streetArt; public policies; graffitti e pixo.

 

Introdução

 

O universo da arte de rua no centro do Recife, desenvolvido por artistas negros, vai para além do significado já imposto a essa prática, mostra-se como uma ação de      descolonização por meio da exaltação da resistência e da identidade negra. Esse contexto também traz ressonância sobre as políticas públicas presentes no estado de Pernambuco, especialmente no município de Recife, assimilando a ligação da atribuição dessas políticas, bem como a preocupação com os artistas e os discernimentos das suas condições sociais.

Compreende-se que no centro histórico do Recife, o estado de Pernambuco dá extrema centralidade aos colonos portugueses e imigrantes europeus, onde as representações patrimoniais desses grupos sempre foram exaltadas. Mas há necessidade de isso ser visto de forma crítica. No entanto, existia e existem ações unificadas com foco nos movimentos sociais e culturais da população negra, cuja madeixa está localizada no centro do Recife, por meio do diálogo com as práticas artísticas que exaltam a herança africana.

Portanto, neste artigo, houve a necessidade de trabalhar com três elementos, as noções de consciência, agência e desagência, que ajudaram a confrontar a estrutura histórica, política e social do centro histórico do Recife e suas representações, assim como o uso e exploração da sua cultura material-visual. A descrição das expressões visuais e simbólicas dos contextos das imagens são o resultado de uma reflexão local, sublinhando assim a dimensão política de uma prática artística do cotidiano de jovens negros periféricos, que atuam diariamente no território, bem como a importância de atribuições das políticas públicas, sublinhando o fato de que elas não são tão relevantes para as pessoas que, por elas, deveriam ser atendidas.

Posto isso, a metodologia fundamental, que faz com que haja maior entendimento motivador dessas ações unificadas, advém da epistemologia da afrocentricidade desenvolvida pelo professor Molefi K. Asante[1] (2009). A afrocentricidade é “um tipo de pensamento, prática e perspectiva que percebe os africanos como sujeitos e agentes de fenômenos atuando sobre sua própria imagem cultural e de acordo com seus próprios interesses humanos” (ASANTE, 2009, p. 93).

Sendo assim, procura-se conscientizar sobre outras formas de conhecer que estão dialogando entre os saberes, os sujeitos e as práticas, por meio da agência da arte de rua, da etnografia, a partir da seleção de quatro imagens de graffittis e pixos de artistas negros, que expressassem e trouxessem aspectos que colocassem corpos negros como evidência, — sendo capazes de fornecer mecanismos de recentralização e de expansão para uma nova realidade de conhecimentos, práticas e experiências de nós negros como agentes e atuantes.

 

Giro sobre o cenário histórico do centro do Recife e de movimentos políticos negros

 

Os apontamentos dos aspectos da construção histórica do centro do Recife — que integra o bairro do Recife, juntamente com os bairros de Santo Antônio, São José e Boa Vista (INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL, 2010) — requer uma imersão pela sua dimensão material, pela arquitetura das suas construções, seus traçados urbanos e suas características artísticas. 

Essa imersão se inicia a partir do nascimento do Recife — nome advindo de “uma estreita faixa de areia protegida por uma linha de arrecifes que formam um ancoradouro.” (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2014) —, cuja origem remonta “à terceira década do Século XVI” (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2014), sendo uma das primeiras cidades a sofrer o processo de colonização portuguesa a partir de  1500. Trinta e sete anos depois, recebeu o registro de Vila do Recife (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2014). Em 1595, foi invadida pela Espanha e Inglaterra, no episódio que ficou conhecido como  “saque do Recife”; em seguida, sofreu a “invasão holandesa” (1630-1654) “sob o comando de Maurício de Nassau, que se estabeleceu no Recife, fazendo-a capital do Brasil holandês” (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2017). São experiências múltiplas que delinearam sua estrutura arquitetônica e espacial.

Sendo uma cidade colônia, portuária e rota de comércio, com grande facilidade, Recife sofreu influência de vários aspectos de movimentos artísticos, como o barroco, o estilo neoclássico, Art déco, o neogótico e o modernismo — “no século 20, por exemplo, a cidade se tornou uma referência modernista, com suas residências, prédios e estabelecimentos com elementos simples, mas surpreendentes, característicos do movimento artístico” (ALVES, 2021).

Por meio da história do centro histórico do Recife, entendendo como a colonização funciona e depois visualizando os colonizadores desse território, é possível compreender os conceitos e as percepções formadoras sobre os aspectos artísticos que foram construídos ao longo do tempo no centro histórico do Recife, já que o olhar colonial diz o que é importante historicamente.

Mas, por mais “poderoso” que esse olhar tenha sido, ele não deve obscurecer a história igualmente importante das sociedades negro-africanas, tanto das gerações anteriores que foram escravizadas quanto das gerações atuais. Importância que se revela pela resistência negra no território, marcada por lutas, continuidades e formação de quilombos,[2] como o quilombo dos Palmares, localizado na antiga capitania de Pernambuco — atualmente a localização se encontra no estado de Alagoas —, cujo líder, Zumbi, foi um “general das armas” responsável por vários embates (GOMES; LAURIANO; SCHWARCZ, 2021) em favor da sobrevivência do povo preto. Além dos Palmares, destacam-se o quilombo do Catucá, localizado "próximo ao eixo urbano Recife/Olinda” (CARVALHO, 2006, p. 4) e o quilombo Nação Xambá, fundado em 1930, sendo o primeiro quilombo urbano do Nordeste e uma referência na “preservação das expressões culturais de origem africana. O local histórico abriga, há 90 anos em Pernambuco, o Terreiro de Xambá, sendo 21 no Recife e 69 anos em Olinda” (VIVER/DIARIO, 2020).

 

Cenário da arte de rua      

 

A atuação dos movimentos políticos negros, no contexto histórico do centro do Recife e da conexão da cidade com o espaço urbano, transforma a produção cultural de práticas artísticas (do graffitti e da pixação) em base para exaltações e representações da identidade negra, procurando romper com as várias formas de racismo que se colocam sobre os negros.

Considera-se que as pluralidades de identidades, bem como as formas técnicas de execução de práticas artísticas servem como base para análises de representações. O poder estrutural e sistêmico do racismo e do epistemicídio (RAMOSE, 2011) acaba dando ilegibilidade a produções feitas por jovens negros. O epistemicídio representa o extermínio de produções intelectuais negras de maneira mais abrangente, pois como diz Nogueira, no seu artigo “A ética da serenidade: o caminho da barca e a medida da balança na filosofia de Amen-em-ope”, no qual aponta seu entendimento sobre sua análise em comum entre o conceito defendido por Mogobe Ramose e outros autores: “a filosofia africana foi invalidada pelos critérios ocidentais de filosofia” (NOGUEIRA, 2013, p. 143).

Se por um lado, na concepção cultural da sociedade brasileira, em específico no contexto social do centro histórico do Recife, os elementos culturais (de identidade, técnicas, religiosidade, memória, corporeidade) da arte de rua são utilizados/vistos pelo viés de mecanismo de dominação, apagamento, invisibilidade e ocultação, por outro lado, eles são processos vinculados à noção de luta e resistência negra.

Alicia Gonçalves (2010) pontua que o contexto social da cultura deve ser compreendido como “algo dentro do qual os acontecimentos, as instituições, os comportamentos e os processos podem ser descritos com densidade” (GONÇALVES, 2010, p. 69). Dessa forma, utiliza-se neste estudo os três níveis propostos por Molefi K. Asante (2009)  do desenvolvimento da afrocentricidade: o primeiro se refere à conscientização, sendo o aspecto que orienta os seres humanos no conhecimento sobre as opressões que sofrem, como também sobre as vias possíveis de libertação por meio de sua agência (ASANTE, 2009); o segundo é da agência, que é “a capacidade de dispor dos recursos psicológicos e culturais necessários para o avanço da liberdade humana” (ASANTE, 2009, p. 94); e o terceiro é a desagência, vista como “qualquer situação na qual o africano seja descartado como ator ou protagonista em seu próprio mundo” (ASANTE, 2009, p. 95). Com esses conceitos é possível pensar em formas de mudar os reflexos colonizadores e capitalistas sobre a arte de rua, a identificação do lugar e os corpos/identidades que estão produzindo tais manifestações.

Dessa maneira, considerando que tais práticas artísticas, em sentido amplo, incluem murais figurativos e técnicas que vão além do uso do spray, buscaremos produzir uma compreensão das expressões artísticas de pinturas e dos escritos urbanos (graffitti e o pixo).

Foi durante as décadas de 1970 e 1980 que o graffitti e o pixo aterrissaram em São Paulo, inicialmente por intermédio da influência do movimento em Nova York e em Berlim. Chegaram ao estado de Pernambuco entre as décadas de 1964 e 1985 com o caráter de um movimento político e social (COSTA, 2017). Entende-se que a street art (“arte de rua” ou “arte urbana”) consiste em ser um movimento artístico que parte da movimentação e união do povo negro para uma luta coletiva e cultural como “uma maneira de descrever o comportamento” (BARTH, 2000, p. 25) da juventude negra e periférica. Essa prática artística parte da percepção da necessidade de reivindicar direitos iguais, protestar contra a discriminação racial (racismo), busca por liberdade de expressão, protesto contra a brutalidade policial, a identificação com “[...] o continente africano como um berço, uma nascente” (SEBADELHE; PEIXOTO, 2016, p. 12) a partir da exaltação da estética negra. Além de representar os mais variados propósitos e dialogar com os repertórios e tradições de cada lugar.

Apesar de coexistirem, o graffitti e o pixo, e um pode ser complemento do outro, pela sua diversidade contextual, socialmente, eles acabam sendo definidos de formas diferentes a partir do aspecto de valor, em que o graffitti acaba tendo o caráter de “busca pela melhoria e pelo embelezamento do espaço público” (MOREN, 2009, p. 44), ou seja, o olhar sobre ele tem a perspectiva da forma artística. Já o pixo é marginalizado e visto como não-arte, pois “não há um planejamento mais meticuloso sobre os grafismos, as formas ou aplicação de técnicas artísticas'' (NARDUCHI, 2016, p. 32).

Mas não é desse modo que muitos dos pixadores definem e veem a pixação. É interessante a proposta de definição que a pixadora Carol, no documentário PIXO (2009).  Ela define a pixação como “a arte da pobreza, que expõe tudo o que sentimos. Sentimento que ninguém quer ver, sentimento que todo mundo fecha os olhos, que não quer prestar atenção”.

Por essa razão, é possível entender que a arte é uma epistemologia de sobrevivência do povo negro, entendendo que “na cosmovisão africana e afro-diaspórica, assim, o objeto artístico não pode ser concebido apenas como um objeto de arte, ele, necessariamente possui uma função social que implica a sua existência” (NJERI, 2021, p. 23). Ou seja, “para curar a cisão entre mente e corpo, nós, povos marginalizados e oprimidos, tentamos resgatar a nós mesmos e as nossas experiências” (HOOKS, 2013, p. 233) por meio da arte.

Um resgate que envolve a noção da sua produção corporal, pois “o corpo constitui a sede material de todos os aspectos da identidade” (MUNANGA, 2020, p. 19) como ação afirmativa — o que seu corpo em diáspora é, o que ele remete, o que significa —, negramente por meio da sua negritude. E das suas vivências (da afro-perspectiva), que são marcos para construções de produções artísticas, teóricas e para a “conquista de espaços sociais que até então lhe têm sido vedados” (PEREIRA, 2002, p. 69).

Assim, impactando a corrente imposta pelo Estado do nosso exílio, mas não da percepção do exílio, como aponta Said (2003), de ser separado do seu local natal ou do seu verdadeiro lar, mas sim do sentimento de não se ver em nenhum lugar, de se sentir sozinho, não valorizado, esquecido, de não saber a sua história, sempre à margem. Porém, como diz a lógica de Seyferth (2002), de perturbar a ordem natural imaginada para o Estado.

Acrescenta-se que tomar consciência histórica da resistência cultural no centro histórico do Recife, da importância da arte de rua desenvolvida por artistas negros, especialmente por meio de obras que expressam a negritude, é entender que há uma tomada de consciência por meio da “revalorização e aceitação da sua herança africana” para “reconstruir positivamente sua identidade” (MUNANGA, 2020, p. 20). Nesse sentido, conforme Munanga, “a negritude torna-se uma convocação permanente de todos os herdeiros dessa condição para que se engajem no combate para reabilitar os valores de suas civilizações destruídas e de suas culturas negadas” (MUNANGA, 2020, p. 20).

Contudo, se as epistemologias das práticas culturais (reprodutibilidade técnica artística) de sobrevivência da comunidade negra se manifestam no contexto cultural, e se todo indivíduo se desenvolve no meio social, como o estado de Pernambuco produz políticas públicas para a integração dessas expressões no meio cultural? E como esses artistas se sentem em utilizá-las ou não?

 

Dilemas e políticas públicas: breve abordagem

 

Para conseguir compreender o contexto das políticas públicas no meio cultural, é necessário um entendimento seguro sobre as formas como elas operam e, especialmente, se existe ou não o reconhecimento social dessas políticas como um fenômeno de quebra de uma estrutura.

Considerando que existem normas orientadoras de políticas públicas de cultura desenvolvidas pelo governo de Pernambuco, percebe-se que o “[...] poder público tem promovido uma série de ações de requalificação urbana no bairro [Recife]: recuperação patrimonial com projetos de restauração, reforma e novas ocupações de espaços públicos [...]” ( DUTRA et al, 2018, p. 1). Destacam-se entre todas as ações os projetos da Funcultura-PE (Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura) que foi lançado em 2003 com objetivo de “financiamento direto de projetos artísticos e culturais por meio de seleção pública” (FUNCULTURA-PE, 2002); o projeto “Salva-Arte Recife[3] que teve duas edições, mas sendo a de 2021 a que teve a proposta de incentivar as artes urbanas por meio de cores e sons revitalizando “os seis postos salva-vidas, relíquias urbanísticas que acompanham o litoral recifense desde 1940” (PREFEITURA DO RECIFE, 2021) no bairro de Boa Viagem; o “Mais Vidas nos Morros que “envolve estratégia de convivência na comunidade, incentivando a parceria e o sentimento de pertencimento. Ao mesmo tempo, estimula a população a se envolver com os problemas da comunidade e melhorar as condições de vida do entorno” (PREFEITURA DO RECIFE, 2016); e o evento Festival R.U.A. – Recife Urbana Arte, que é caracterizado pela Secretaria de Turismo e Lazer de Pernambuco como:

 

Evento [que] é pautado na necessidade de democratizar o acesso aos espaços públicos da cidade e a valorização da arte urbana. A proposta é trazer para o Bairro do Recife diferentes grupos sociais através de uma programação multicultural e tecnicamente qualificada. Além das tradicionais linguagens ligadas ao hip hop como o grafite, o break dance e o Rap, uma grande variedade de expressões artísticas e também esportivas serão proporcionadas de forma gratuita para toda família. O festival propõe uma nova forma de olhar a produção cultural da cidade, estimulando o diálogo de linguagens e a utilização da tecnologia nos processos artísticos (PREFEITURA DO RECIFE, 2018, p.1, grifos do autor).

 

Apesar da existência desses projetos, ainda há complexidades sociais envolvidas, já que há “estigmas históricos ligados à negritude, as pressões prementes da pobreza, bem como as diferenças ideológicas e políticas entre os negros politicamente engajados sobre a importância de afirmar as diferenças raciais [...]” (ALBERTO, 2017, p. 408), bem como as diferenças culturais. Uma vez que esses artistas negros e periféricos utilizam suas práticas artísticas, do graffitti e do pixo, como mecanismos de transgressão — como forma de ultrapassar as violências, mas mostrar as dificuldades sociais, dos limites impostos, dos padrões de beleza impostos por meio da exaltação da sua negritude — e como fomento de ações, muitas vezes, guiadas pelo “código cultural de propriedades concretas que rege a ‘utilidade’ e, com isso, continua-se incapaz de explicar o que é de fato produzido” (SAHLINS, 2004, p.180), ou seja, o Estado desenvolve essas ações públicas, simplesmente para os artistas se engajarem politicamente dentro das comunidades por meio do graffitti e do pixo, o que não quer dizer que haja aí envolvido o reconhecimento do verdadeiro valor das obras.

Como uma forma de quebrar esses estigmas e as propriedades de “utilidades” (valor, legibilidade), a arte de rua entra como forma de se afirmar no espaço, compreendendo que, como diria Munanga (2020), abandonando a assimilação do “branco”— pode-se colocar pelo viés do olhar do Estado —, a libertação efetua-se pela reconquista de si e de uma dignidade autônoma. Mas isso tanto pela sua afirmação no espaço quanto pela compreensão de que esse território também é seu, já que o território do centro do Recife também é um território quilombola, e por saber que a arte de rua é, normalmente, vista pelo plano epistemológico dominante — “[...] é o campo dos significados, das verdades derivadas, motivo pelo qual é considerado” (PERES, 2020, p. 101) —, a essência do graffitti e do pixo é ser ilegal.

Ou seja, o fato de todos esses projetos de ações públicas ajudarem a construir essa conexão da “profissionalização” sobre o tipo de fazer as torna extremamente importantes. Entretanto deveriam ser mais respeitosos, principalmente quando se fala de uma cultura da arte de rua (do graffitti e do pixo); careceria de ser algo que não ficasse pautado por um modelo de edital convencional, mas que procurasse trazer retribuição sobre as obras que já foram feitas, pelo tanto que já acontecem e pelas pessoas que se arriscaram de várias maneiras para investir na essência do movimento da arte de rua.

 

O graffitti e o pixo: correspondências entre técnica e identidades

 

Stuart Hall (2006) discute, em seu livro A identidade cultural na pós-modernidade, o movimento/deslocamento de identidades influenciadas pela globalização; na sua argumentação, ele se vale da perspectiva da descolonização. Segundo Mignolo, a “opção descolonial é epistêmica, ou seja, ela se desvincula dos fundamentos genuínos dos conceitos ocidentais(MIGNOLO, 2008, p. 299). Consequentemente é um movimento de resistência teórico, prático e político de “aprender a desaprender” (MIGNOLO, 2008, p. 299) o que muitas vezes nos é ensinado ou imposto. Esse movimento abre espaço para outro olhar em relação às práticas da arte de rua, mostrando que elas não são redutíveis à prática de sujar o que já está limpo, ao contrário, são práticas que revivem, revelam, dão cores e vibrações a algo que estava invisível aos olhos, resultado de exercícios e atos que são próprios da arte e do ofício do artista.

A discussão que se segue é fruto de uma análise mais ampla das práticas artísticas da arte de rua (graffitti e do pixo), com o propósito de encontrar certas correspondências entre as técnicas e identidades, pois o graffitti e o pixo são práticas de afirmação identitária, uma vez que são desenvolvidas majoritariamente por jovens negros. A intenção principal é contribuir para uma análise iconográfica para frisar as implicações características dessa relação.

A figura 1 mostra a exibição de uma grandeza ao expor uma criança negra, em um espaço aberto, com expressões tensas em seu rosto e olhar. Seu coração está envolto em luz e brilho que emergem do centro do seu peito, mostrando toda sua vulnerabilidade frente a duas mãos negras que tentam tocar ou evidenciar o seu coração. Atrás dele, nota-se a presença, do lado esquerdo, de um campo colorido com vários girassóis remetendo simbolicamente à luz; e no lado direito, encontra-se um campo em preto e branco com um único girassol; ao fundo, vê-se montanhas, planícies, quatro árvores, um avião, um conjunto de moradias e uma fila de pessoas negras com vestes brancas como se estivessem observando, acompanhando, rezando ou preocupados com essa criança, dando a entender que ela pertence a essa comunidade. Podendo ser também uma analogia em relação aos seus antepassados, as pessoas que vieram antes dele, seus ancestrais.

 

Figura 1 – Graffitti, Recife Antigo

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Fonte: Arte de rua do Recife fotografada pelos autores, 2020.

           

A pintura da figura 2 apresenta, no seu centro, a escritura: “PODER AO POVO NEGO!”, com uma composição que retrata dois corpos engajados em performances diferentes, ou estando na mesma performance, mas um estando muito mais imponente e destacado com mais cores que o outro. Em uma dessas performances, é perceptível que não há uma distinção de gênero, mas é um corpo negro envolto por uma mata com vários símbolos de poder, como pinturas extraordinárias decorando seu rosto em vermelho e detalhes em branco, com um búzio em sua testa; nas suas costas há uma flor da tonalidade vermelha e amarela se estendendo para fora, ligando-se por ramificações roxas a uma flor também roxa no centro do seu peito; no seu pescoço, ela porta um sinuoso adorno, tipo um colar com quatro espirais, alongando-o, há também uma rede de bolinhas preenchendo seu colo. Seu braço esquerdo está estendido, e nele contém uma frase escrita em vermelho “#ESTAMOS VIV#S!”, e percebe-se que ela porta a representação de um pássaro em suas mãos batendo asas, mas contendo um relógio em sua centralidade, como se o pássaro carregasse o tempo. E ao lado dela há uma silhueta, sem muita dissociação de gênero, mas acaba remetendo a um corpo feminino, que está agachado com vários padrões repetidos em sua volta, menos em volta da sua cabeça, com representações que lembram asteriscos.

 

Figura 2 – Graffitti, Recife Antigo

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Fonte: Arte de rua do Recife fotografada pelo autores, 2020.

 

A terceira figura mostra uma porta de madeira — emoldurada por uma parede branca — com uma pequena janela no seu centro e com vários pixos em azul, branco, vermelho, preto e dois lambe-lambes.[4] Na sua centralidade há escritas, com letras garrafais em preto, as palavras: “OYÁ”, “BLACK”, “BART”, além da palavra “Jihod” e algumas tags.[5] Desse conjunto, “OYÁ” é a palavra que mais chama atenção, escrita como forma de protesto à intolerância religiosa sofrida pelas religiões de matrizes africanas.

Marijara Souza Queiroz (2018) pontua que nos cultos aos orixás, a divindade feminina que mais se destaca é “Oyá, mais conhecida no Brasil pelo nome de Yansã ou “Iansã”. Ela representa a energia mítica feminina na tradição Yorubá” (QUEIROZ, 2018, p. 100), na qual os orixás são seres oriundos das quatro forças/elementos da natureza: terra, fogo, ar e água. “Os orixás são, portanto, forças energéticas, desprovidas de um corpo material, dotados de equilíbrio” (SILVA, 2011, p. 66). Em uma grande parte dos mitos, “relata-se a transformação de Iansã em vento; noutra, Iansã é criadora do sopro do ar” (HOFBAUER, 2001, p. 254).

O escrito “BLACK” aparece no flanco direito da porta, grafado com tinta branca, abaixo de um lambe-lambe que contém uma ilustração de um corpo negro, fazendo referência à exaltação da negritude de forma geral, ou apenas ao corpo negro como corporalidade. A palavra “BLACK”, no conjunto, pode ser uma tag ou apelido.

Acima da escritura “OYÁ” há um lambe-lambe com o desenho de um jovem negro com um globo do mundo nas mãos, sobre sua cabeça se vê o pixo “Peso”, e atrás dele, há três zeros em vermelho. O conjunto parece insinuar a importância de ser e ter um corpo negro no mundo.

Figura 3 – Pixo, Recife Antigo

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Fonte: Arte de rua do Recife fotografada pelo autores, 2020.

 

No centro da figura 4,[6] vê-se o escrito: “ARTISTA NÃO MORRE”, e ao lado direito, o pixo: “JAPA VIVE!”, escrito com letras vermelhas em uma parede branca. Os dois escritos são frutos de um movimento de jovens artistas negros, de amigos, familiares e grupos de movimentos sociais e culturais para reivindicar justiça e homenagear um artista negro, conhecido como Japa Rua, ligado aos movimentos da arte de rua, que foi assassinado de forma brutal após uma discussão na Rua Mamede Simões, localizada na área central do Recife.

 

Figura 4 – Pixo, Recife Antigo

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Fonte: Arte de rua de Recife fotografada pelo autores, 2020.

 

Portanto, se forem colocadas todas essas quatro imagens lado a lado, destacam-se, notoriamente, ressonâncias visuais, gestuais e materiais que dão substância à dimensão da exaltação da identidade, da centralidade da negritude, de religiões de matrizes africanas, como também de vivências compartilhadas da comunidade negra. Assim oferecendo o retrato sugestivo de uma continuidade cultural.

 

Considerações Finais

 

Há necessidade em reconhecer a diversidade cultural por meio da compreensão sócio-histórica, da importância e responsabilidade da defesa política e ética “de realidades/agências desconhecidas no senso comum [...]” (PEIRANO, 2014, p. 382) para quebrar as fronteiras herdadas da colonização (MUNANGA, 1993). Dessa forma, a arte pode ser vista coerentemente como resultado de uma permanente recombinação intelectual e social (PEIRANO, 2014).

Neste estudo, partiu-se da perspectiva que busca enxergar as fronteiras do campo das políticas públicas no estado de Pernambuco — perceber as políticas públicas não como fenômenos objetivos, mas enquanto processos com fluxos incertos, conflituosos e muitas vezes desordenado (PERES, 2020) —, o que nos leva a destacar a persistente periferização das centralidades e existências de pessoas negras. Nesse cenário, a arte de rua aparece como “experiências públicas” (potencialidades e “transgressionalidades”), correlacionando seus reflexos nas experiências estéticas (PERES, 2020) e técnicas, considerando as visibilidades e invisibilidades em vários aspectos sociais impostos aos artistas negros e suas práticas.

E não é desse lugar e do olhar de neutralidade, da falta de reconhecimento racial e de manutenção de privilégios, de reprodução de racismo e de discriminação que se espera que o Estado elabore suas políticas públicas voltadas para a cultura, especialmente para a cultura negra, afro-brasileira ou afrodiaspórica, principalmente quando se nota que cada vez mais há a convocatória de projetos e editais artísticos — ou até mesmo leis — seguindo a mesma direção. Na verdade, é necessário um treinamento cuidadoso nas estruturas do Estado que vão/estão se relacionando com as políticas públicas, com esses artistas e com as práticas artísticas.

Mesmo com todas as questões que atravessam as políticas públicas fomentadas pelo estado de Pernambuco, podemos compreender que o bairro do Recife é um lugar em que as pessoas mantêm em si desejos e a vontade de ser artistas das suas próprias narrativas.

Ao mesmo tempo, como a perspectiva da arte de rua é essencialmente social, há certas reivindicações mútuas que são geralmente assumidas, principalmente com a compreensão da interpretação do discurso visual presente nas quatro imagens das práticas artísticas, do graffitti e do pixo, que acabam tecendo múltiplos significados e configuram traços cruciais da conscientização, dos sentimentos e das vivências dos jovens negros quanto à exaltação da sua negritude, da sua herança, os anseios das formas de querer viver, a comunidade/coletividade, a construção de uma arte local, os impactos da discriminação racial e suas dimensões sociais.

No entanto, o deslocamento de olhares impostos ao graffitti e ao pixo surgem através de três grandes forças: da cultura, da arte e da política. Entendo que a arte é uma das linguagens que transforma as organizações políticas, em que a ruptura que ela causa nas estruturas dos atuais modelos políticos, econômicos e culturais exigirá que o estado de Pernambuco reconheça que há mecanismos de poderes nos sistemas de políticas públicas e das práticas artísticas, requerendo formas mais efetivas de interação entre o governo e as comunidades para que se possam abrir possibilidades a outros mundos e mecanismos.

Por fim, ressalta-se que as identidades e representações conferidas às imagens não são propriedades essenciais das obras, mas sim um resultado das suas constantes ocupações e descolonizações entre os artistas, as pessoas e os espaços, em que a cultura da arte de rua suscita a exaltação de uma conscientização negra e materializa subjetividades, narrativas, memórias e discursos. E essas transformações evocam novas histórias e sentidos sobre as obras, bem como uma nova percepção acerca dos elementos sociais e históricos nos quais as obras têm papel relevante.

 

Referências

ALBERTO, Paulina L. Termos de inclusão: intelectuais negros brasileiros no século XX. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2017.

ALVES. Pedro. Demolição do patrimônio arquitetônico demonstra falta de valorização da história do Recife, lamentam especialistas. Portal G1/Pernambuco. Postado em 27/10/2021. Disponível em: https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2021/10/27/demolicao-do-patrimonio-arquitetonico-demonstra-falta-de-valorizacao-da-historia-do-recife-lamentam-especialistas.ghtml. Acesso em: 10 dez. 2021.

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Recebido em: 10/04/2022.

Aceito em: 30/11/2022.

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n29.62789.p16-34

 

 

 



* Graduada em Design pela UFPB/Brasil. E-mail: mariannemunizat@gmail.com.

** Professor da Universidade Federal da Paraíba/Brasil. Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/Brasil. E-mail: marcoaureliopaz@hotmail.com.

[1] Molefi Kete Asante é um cientista, historiador, filósofo, poeta, dramaturgo e pintor afro-americano. Ele é uma figura proeminente nas áreas de estudos afro-americanos, estudos africanos e estudos de comunicação. É professor do Departamento de Africologia e Estudos Afro-Americanos da Temple University, na Filadélfia. Ele também atua como organizador internacional da Afrocentricity International e é presidente do Molefi Kete Asante Institute for Afrocentric Studies. Asante. Também é professor convidado da Universidade de Zhejiang, Hangzhou, China e Professor Extraordinarius da Universidade da África do Sul.

[2] A Fundação Cultural Palmares define quilombos como comunidades oriundas daquelas que resistiram à brutalidade do regime escravocrata e se rebelaram frente a quem acreditava ser dono sobre sua corporeidade e subjetividade (FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES, [ca. 2021]).

[3] O Salva-Arte-Cores Inclusivas é uma articulação da Prefeitura do Recife, por meio da Secretaria de Turismo e Lazer, com a Copergás (realização) e Nuvem Produções (curadoria).

[4] Cartazes artísticos que são colados em um ambiente urbano.

[5] Tag se refere à assinatura do artista.

[6] Trata-se da composição de elementos feitos com spray, estêncil e canetas em tinta coloridas.

 

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Desenho de um círculo

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