A COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DE SERGIPE E A CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA OS POVOS INDÍGENAS:
reflexões sobre o papel do antropólogo no processo de retomadas das terras Xokó

 

THE SERGIPE PRO-INDIAN COMMISSION AND THE CONSTRUCTION OF PUBLIC POLICIES FOR INDIGENOUS PEOPLES:
reflections on the role of the anthropologist in the process of repossession of the
Xokó land

 

Diogo Francisco Cruz Monteiro *

Estêvão Martins Palitot **

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n29.62849.p114-132

 

Resumo

O artigo tem como objetivo central observar as principais linhas de atuação da Comissão Pró-Índio de Sergipe (CPI/SE) em prol dos Xokó, que contribuíram para o reconhecimento identitário e a regularização da posse da Ilha de São Pedro pelo grupo indígena. Narra o processo de retomada das terras pelos Xokó e examina o papel epistemológico e político da antropóloga Beatriz Góis Dantas, fundadora da CPI/SE, na articulação com o Estado para o estabelecimento de políticas públicas para os Xokó, abordando a sua inserção na militância em favor do grupo indígena, com ênfase na sua participação nos debates sobre etnicidade Xokó como espaço de reivindicação dos seus direitos fundiários, contrapondo-se aos discursos universalistas dos seus antagonistas — instituições e autoridades públicas aliadas aos fazendeiros da família Brito — que buscavam negar-lhes a existência e apropriarem-se de suas terras. Aquela antropóloga acionou em seus discursos as modernas teorias sobre etnicidade, demonstrando a existência e a singularidade da cultura Xokó, que serviram como referência para o desenvolvimento das atividades da CPI/SE, colaborando para o reconhecimento étnico e a regulamentação jurídica da Ilha de São Pedro como terra indígena Xokó. 

Palavras-chave: Comissão Pró-índio de Sergipe; Beatriz Góis Dantas; políticas públicas; Xokó.

 

Abstract

The main objective of the article is to observe the main lines of action of the CPI/SE in favor of the Xokó, which contributed to the recognition of identity and the regularization of the possession of São Pedro Island by the indigenous group. It narrates the process of retaking land by the Xokó and examines the epistemological and political role of the anthropologist Beatriz Góis Dantas, founder of the CPI/SE, her role in articulation with the State for the establishment of public policies for the Xokó, approaching their insertion in the militancy in favor of the indigenous group, with emphasis on its participation in debates on Xokó ethnicity as a space for claiming their land rights, opposing the universalist discourses of their antagonists – institutions and public authorities allied to the Brito family farmers – who sought to deny them existence and appropriate their lands. This anthropologist activated in her speeches modern theories about ethnicity, demonstrating the existence and uniqueness of the Xokó culture, which served as a reference for the development of the activities of the CPI/SE, contributing towards the ethnic recognition and the legal regulation of the Island of São Pedro as Xokó indigenous land.

Keywords: Comissão Pró-índio de Sergipe; Beatriz Góis Dantas; public policy; Xoko.

 

Introdução

 

A Comissão Pró-Índio de Sergipe (CPI/SE) foi uma entidade civil sem fins lucrativos que reuniu, entre os anos de 1981 e 1986, jovens estudantes e pesquisadores da Universidade Federal de Sergipe (UFS), engajados na defesa da causa dos Xokó, grupo indígena de Sergipe que, naquela época, estava envolvido em lutas pela retomada da sua identidade étnica e pela garantia da posse dos seus territórios   — a Ilha de São Pedro e a Caiçara (figura 1) — situados na cidade de Porto da Folha/SE, por aproximadamente um século ocupados por fazendeiros da região.

O artigo tem como objetivo central observar as principais linhas de atuação da CPI/SE em apoio aos Xokó, que colaboraram para o reconhecimento identitário e a regularização da posse da Ilha de São Pedro pelo grupo indígena. Além disso, realizará breve narrativa acerca do processo de retomada das terras pelos Xokó, examinará o papel epistemológico e político da antropóloga Beatriz Góis Dantas — fundadora da CPI/SE — na articulação com o Estado para a definição de políticas públicas para o povo Xokó, por meio da abordagem da sua inserção na militância em favor do grupo indígena, enfatizando a sua participação nos debates em torno da identidade Xokó como lócus de reivindicação de direitos territoriais, contrapondo-se aos discursos universalistas dos seus antagonistas (segmentos do órgão indigenista oficial (FUNAI), instituições e autoridades públicas do estado de Sergipe aliadas aos membros da família Brito, latifundiários que se apossaram dos territórios pertencentes aos Xokó), objetivando invisibilizar a cultura do grupo indígena, negar-lhe a existência e apropriarem-se de suas terras.

Dessa forma, este artigo desenvolverá reflexões que possibilitem equacionar a seguinte questão: qual o papel desempenhado por antropólogos como Beatriz Dantas e entidades de apoio aos índios, a exemplo da CPI/SE, à qual aquela antropóloga estava vinculada, no processo de retomada das terras pelos Xokó, para a definição e elaboração de políticas públicas que possibilitaram a aquisição de direitos relacionados ao reconhecimento étnico e posse do território por aquele grupo indígena?

Em suma, esse artigo poderá colaborar para uma aproximação inicial das ações dos atores (grupo indígena Xokó, antropólogos vinculados às entidades de apoio aos índios, segmentos do órgão indigenista oficial, instituições e autoridades públicas aliadas aos latifundiários locais), das possíveis relações que teceram e, a partir de suas concepções, entender como foram constituídas e efetivadas as políticas de reconhecimento étnico e de delimitação dos territórios do povo Xokó. Nesse sentido, como Hincapié (2015, p. 158), concebemos as “políticas públicas como produto de um processo sociocultural”, que não é apenas técnico, e que inclui diversos atores, além dos tecnocratas e agências governamentais (que as formulam e implementam), as pessoas que se beneficiam das políticas, os grupos de interesse, movimentos sociais, entre outros, revelando suas visões de mundo, as formas de como nele atuar e de se relacionar uns com os outros.

 

Figura 1 – Localização da Terra Indígena Caiçara/Ilha de São Pedro

Interface gráfica do usuário

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Fonte: Fundação Nacional do Índio (2016).

 

As políticas públicas seriam vistas como o resultado da relação de forças entre esses atores, representada por alianças, disputas, acordos e jogos de poder assimétricos para concretizar as suas exigências no campo de conflito de interesses. Nesse particular, uma “antropologia da política pública” como uma abordagem dedicada à interpretação e compreensão dos processos e dinâmicas organizativas de grupos populacionais que conduzem à criação de políticas públicas voltadas para os seus benefícios, tende, numa perspectiva hermenêutica, a focar no marco de referência dos atores, levando em consideração a interpretação dos significados culturais daquelas políticas para os que as formulam, executam e vivenciam (HINCAPIÉ, 2015, p. 158; RODRIGUES, 2019, p. 186-188).   

A composição deste artigo se baseou na realização de pesquisa bibliográfica de obras que tratam das políticas públicas e suas relações com movimentos sociais, das incongruências entre as perspectivas de desenvolvimento universalistas e particularistas, da ideia de identidades como instrumentos políticos de reivindicação de políticas públicas locais (GONÇALVES; GUSSI, 2011), além das relações entre a elaboração do conhecimento antropológico e as questões éticas nela implicadas (OLIVEIRA, R., 1996a).

Para o desenvolvimento do artigo, também se realizou pesquisa em arquivo. Nesse sentido, foi de fundamental importância a consulta ao dossiê “Xokó — notícias nos jornais”, pertencente ao acervo particular da antropóloga Beatriz Dantas, que reúne recortes de jornais de circulação local e nacional com informações sobre os principais fatos envolvendo as retomadas de terras pelos Xokó a partir dos anos finais da década de 1970. O artigo contou ainda com dados coletados de depoimentos extraídos de entrevista realizada com aquela antropóloga, que tratou principalmente da sua trajetória de atuação indigenista em apoio aos Xokó no interior da CPI/SE. Dessa forma, levando em consideração o conjunto de fontes aqui elencadas, este artigo tratará ainda das formas como a CPI/SE colaborou, a partir da sua instalação no ano de 1981, com o desenvolvimento do processo de retomada de terras pelos Xokó, apoiando o grupo indígena, entre outras tarefas, na regularização jurídica da posse da Ilha de São Pedro.

O artigo está dividido em três partes. A primeira narrará o processo de luta dos Xokó pela retomada da Ilha de São Pedro a partir dos anos finais da década de 1970, que resultou na expedição de decretos e leis governamentais para a compra e doação daquele território à União em favor daquele povo indígena; a segunda examinará o papel epistemológico e político da antropóloga fundadora da CPI/SE Beatriz Dantas na articulação com o Estado para a definição de políticas públicas para o povo Xokó, por meio da abordagem da sua inserção na militância em favor da causa fundiária do grupo indígena, destacando a sua participação nos debates acerca da identidade indígena Xokó, como espaço de reivindicação de direitos territoriais diante dos discursos homogeneizantes dos antagonistas, que pretendiam invisibilizar a cultura Xokó, negar-lhe a existência e apropriarem-se de seus territórios; a terceira e última seção apresentará as principais linhas de ação da CPI/SE em apoio aos Xokó, que colaboraram para o reconhecimento identitário e a regularização jurídica da posse da Ilha de São Pedro por aquele grupo indígena.

 

As retomadas Xokó e as lutas pela regularização da posse da Ilha de São Pedro

 

Após um longo histórico de expropriação de seus territórios pelo Estado e latifundiários[1], os Xokó se envolveram, entre os anos de 1978 e 1979, num processo de retomada das terras[2] da Ilha de São Pedro, vinculado a iniciativas de luta pelo reconhecimento étnico como povo indígena. No ano de 1978, os “caboclos da Caiçara”, como ficaram conhecidos os remanescentes de indígenas Xokó, quando foram proibidos pelos fazendeiros da família Brito, antigos proprietários da região, de trabalharem para o seu próprio sustento em suas terras, deslocaram-se da Caiçara e ocuparam a Ilha de São Pedro com o objetivo de efetivar a retomada daquela propriedade. Os caboclos da Caiçara foram obrigados, por força de Ação Liminar de Reintegração de Posse movida pela família Brito, a deixar a Ilha de São Pedro, para a qual retornariam em definitivo ainda em setembro de 1979, desobedecendo decisão da Ação Liminar anterior.

Assim, uma das questões centrais para os Xokó durante o processo de retomada dos seus territórios foi a regularização jurídica da Ilha de São Pedro, ancorada em procedimentos que legitimassem publicamente o seu reconhecimento enquanto grupo indígena. Para isso, aquele povo indígena pôde contar com o apoio de diferentes agentes e entidades da sociedade civil, entre eles: estudantes e professores universitários, intelectuais, membros de segmentos progressistas da Igreja Católica e da imprensa, sindicatos e federações de trabalhadores rurais. Esses apoiadores da causa Xokó prestaram-lhe auxílio nas mais diversas frentes de atuação, desde assessoria jurídica nos litígios judiciais pela posse da terra até a realização de denúncias à imprensa sobre a violência e perseguição dos fazendeiros contra os Xokó e seus aliados.

O crescimento da repercussão da luta dos Xokó pela posse da Ilha de São Pedro e a intervenção de uma ampla rede de instituições e atores em apoio à causa daquele povo indígena parecem ter precipitado as ações do Governo de Sergipe no intuito de solucionar os conflitos fundiários entre os Xokó e a família Brito. Das iniciativas oficiais resultaram a desapropriação da Ilha de São Pedro por meio de compra aos Brito pelo Estado de Sergipe, pela quantia de dois milhões e quatrocentos mil cruzeiros, declarando aquela propriedade como de utilidade pública conforme Decreto 4.530, de 7.12.79 (SERGIPE, 1979), e a sua posterior doação para a União, como forma de garantir a sua administração pela FUNAI e o consequente usufruto pelo povo Xokó, conforme Lei Estadual 2.263, de 25.06.80 (SERGIPE, 1980).

No início da década de 1980, apesar dos avanços representados pela desapropriação da Ilha de São Pedro e sua doação para a União via atos governamentais, a regularização da posse daquele território pelos Xokó continuava em aberto do ponto de vista jurídico. Levando-se em consideração que, de acordo com a legislação indigenista brasileira, as terras habitadas pelos indígenas são de propriedade da União, os dispositivos jurídicos (decreto e lei estaduais) que tratavam da desapropriação e transferência da Ilha para o Executivo Federal não mencionavam os indígenas Xokó, indicando que aquela propriedade se destinaria “à criação ou melhoramento de centro de população e seu abastecimento regular de meios de subsistência”. Essa associação implícita dos Xokó a uma ideia genérica e ambígua de “população” (que poderia ser camponesa, ribeirinha, quilombola, Xokó ou qualquer outra) significou uma recusa estatal ao reconhecimento daquele povo como grupo indígena e, consequentemente, um obstáculo jurídico para a regularização da posse definitiva daquele território pelos Xokó, servindo ainda como pretexto para que a FUNAI, mesmo após ter reconhecido a indianidade Xokó, não assumisse os encargos na prestação de assistência àquele povo nas áreas da saúde, educação, entre outras, e nas tarefas de delimitação e demarcação da terra indígena Xokó. Dessa forma, o processo de regularização fundiária da Ilha de São Pedro só foi concluído no dia 27 de junho de 1984, quando o governo de Sergipe transferiu definitivamente para a FUNAI aquela propriedade que seria, a partir daquele momento, usufruída legalmente pelos Xokó.

 

A inserção de Beatriz Góis Dantas na militância em favor dos Xokó

 

Beatriz Góis Dantas, fundadora e ex-membro com participação ativa na CPI/SE, é professora emérita de Antropologia da UFS. Ainda como estudante do mestrado em Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que cursou entre 1978 e 1982, Beatriz Dantas informava-se sobre o agravamento dos conflitos fundiários entre os Xokó e a família Brito por meio de notícias de jornais, enviados por seus familiares, por intermédio dos quais percebeu que a Ilha de São Pedro era o território de uma antiga aldeia indígena, sobre a qual encontrara farta documentação no Arquivo Público do Estado de Sergipe (APES). Nesse ínterim, Beatriz Dantas iniciou uma rede de relações intelectuais com a Diocese de Propriá/SE em apoio aos Xokó, por meio da troca de cartas com o seu bispo Dom José Brandão de Castro.[3]

A Diocese de Propriá, por intermédio da atuação do bispo Dom José Brandão e sua equipe diocesana de padres missionários e religiosos leigos, diante dos avanços da mobilização em torno da causa Xokó, constituiu novas alianças, acionando redes de apoio àquele povo indígena nos diversos setores da sociedade civil, entre os quais destacamos os membros da universidade, historiadores e antropólogos. Beatriz Dantas, àquela época professora de Antropologia da UFS, inseriu-se na militância pela causa indígena no período em que cursava mestrado em Antropologia na Unicamp. No contexto de abertura da ditadura militar, em que os movimentos sociais, incluindo-se aí os das ditas minorias sociais compostas por segmentos étnicos e de gênero (negros, indígenas, mulheres, homossexuais, entre outros), que se sentiam fora dos esquemas de poder, passaram a intensificar sua oposição ao regime político vigente e a reivindicar direitos específicos; a Unicamp, então frequentada pela estudante de pós-graduação Beatriz Dantas, vivenciava clima de “efervescência” e “debates”, com grande parte de seus professores engajados em atuações práticas,  apoiando seguimentos específicos da sociedade que, seguindo a tendência global de emergência de particularismos da época, mobilizavam-se afirmando suas singularidades e exigindo direitos (DANTAS, 2017, p. 352).[4] Nessa conjuntura, Beatriz Dantas disponibilizou para Dom José Brandão a documentação sobre os Xokó por ela coletada e organizada no APES, além de um resumo da história da Missão de São Pedro, que considerava úteis para o melhor entendimento e resolução do conflito fundiário entre os Xokó e a família Brito.

Inspirada pela antropóloga Maria Manuela Carneiro da Cunha (sua orientadora no mestrado), Beatriz Dantas participou como membro da recém-criada Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI/SP)que se tornaria uma espécie de matriz coordenadora das ações da CPI/SE —, constituída como entidade de oposição ao projeto de emancipação dos índios da FUNAI,[5] que visava, por meio da estratégia ideológica de deslegitimação das identidades indígenas, integrá-los à massa genérica da sociedade nacional, inibindo o surgimento e a atuação de lideranças indígenas, eximindo-se da responsabilidade de garantir apoio estatal aos índios.

A documentação sobre a antiga Ilha de São Pedro — englobando a Caiçara — foi apresentada por Beatriz Dantas a Manuela Carneiro da Cunha e, posteriormente, encaminhada por ambas ao jurista Dalmo de Abreu Dallari, professor de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e membro da Comissão de Justiça de São Paulo, de quem receberam a orientação de que aquele material poderia servir de suporte na defesa dos direitos imemoriais dos caboclos da Caiçara sobre as suas terras. Essa documentação seria a base para a produção do livro Terra dos índios Xocó, escrito em coautoria por Beatriz Dantas e Dalmo Dallari, publicado em 1980 sob os auspícios da CPI/SP, figurando, em fases posteriores dos litígios fundiários entre os Xokó e os fazendeiros, como importante referência bibliográfica a embasar os argumentos de juristas sensíveis à causa daquele povo indígena, considerada pela FUNAI como um dos casos mais bem documentados com os quais já havia se deparado[6] (DANTAS, 2017, p. 353).

Beatriz Dantas se inseriu nos debates acerca da etnicidade indígena Xokó ainda no início do ano de 1980, quando publicou no jornal Porantim artigo intitulado Xokó, os filhos da Ilha: morrer, matar ou correr (DANTAS, 1980).[7] Esse artigo figurou ali como resposta a uma declaração do Senador biônico[8] por Sergipe e aliado dos fazendeiros Lourival Batista, negando a identidade indígena dos Xokó, que na sua percepção “não são índios, mas sim caboclos”. Diante de tal postura, Beatriz Dantas, em seu artigo, fez uma síntese da história da ocupação da Ilha de São Pedro pelos Xokó, destacando as tentativas das elites de invisibilizar as suas identidades no intuito de se apropriarem das antigas terras doadas àqueles indígenas, resultando no constante esbulho e resistência dos Xokó para a manutenção dos seus territórios (DANTAS, 1980).

Ainda na primeira metade da década de 1980, a FUNAI desenvolvia política indigenista de caráter assimilacionista, tal como expressa no seu projeto de emancipação dos índios que visava, por meio de estratégia de deslegitimação das identidades indígenas, integrá-los à massa genérica da população, inibindo o surgimento de novas lideranças, eximindo-se da atribuição de garantir apoio estatal aos indígenas, além de tornar suas terras disponíveis para a especulação. Havia também a tentativa de criação dos “critérios de indianidade” para a definição das identidades indígenas através de caracteres biológicos e culturais fixos (pele acobreada, cabelos lisos, manutenção de uma língua originária), aos quais os indígenas deveriam se adequar caso desejassem manter a tutela e usufruir do apoio da FUNAI (CUNHA, 1981; DANTAS, 1981). Essa adequação aos perfis fenotípicos e culturais definidos pelos critérios de indianidade era algo impossível de corresponder à realidade dos povos indígenas do Nordeste, como os Xokó, que vivenciaram constantes mudanças culturais e biológicas devidas ao intenso contato com os não-índios, sendo identificados pela sociedade envolvente como “mestiços”, “caboclos” ou “sertanejos” (OLIVEIRA, J., 2018, p. 11-12). 

Contrapondo-se às propostas assimilacionistas da FUNAI, Beatriz Dantas empregou esforços para a constituição de discursos que contribuíssem para a construção de uma nova consciência acerca dos Xokó, lastreando-se nas modernas teorias sobre etnicidades, sobretudo naquelas difundidas pelas obras de Fredrik Barth (2000), opondo-se à tradicional definição biológica da identidade indígena, observando-a como um dado social, relacional e dinâmico, independente de critérios fenotípicos.[9]

Ao responder criticamente à diretriz ideológica da pureza racial propalada pela FUNAI, Dantas (1981) orientava que, pelos critérios consagrados pela Antropologia, os povos indígenas não poderiam ser definidos por caracteres fixados em dados biológicos, contrários à essência dinâmica das culturas humanas em contato, pois nenhum povo pode exibir intactos os mesmos traços biológicos e culturais dos seus antepassados. Dessa forma, tal como Barth (2000, p. 32), Beatriz Dantas entendia que os grupos étnicos seriam definidos pela distinção que percebem entre eles próprios e os grupos com os quais interagem, existem enquanto se consideram diversos, não importando se a diversidade se manifesta ou não em traços culturais, sendo que a vinculação étnica individual a um determinado grupo dependeria apenas de uma autoidentificação e do reconhecimento pelo grupo de que determinado indivíduo lhe pertence.

Ao tratar especificamente da associação entre os critérios de indianidade propostos pela FUNAI e a situação dos Xokó, Dantas (1981) apontou que as tentativas de eliminar as identidades indígenas por decreto não eram inéditas em Sergipe, lembrando medidas oficiais que determinavam a inexistência de índios, confundidos com a massa da civilização pela mistura com o não-índio, que resultariam, por exemplo, na extinção e apropriação da antiga Missão de São Pedro pelo Estado e por particulares. Assim, Beatriz Dantas reforçou sua postura teórica acerca da ideia de etnicidade, questionando sobre quais seriam as novas estratégias acionadas por aqueles que defendiam a mistura de raça como critério para decretar a extinção de povos indígenas. Naquele momento, a Antropologia consolidava a orientação de que os pressupostos tradicionais de raça e cultura eram inadequados para a definição de grupo étnico; este se define pela autoidentificação adotada pelo grupo.

 

Principais linhas de ação da CPI/SE em apoio aos Xokó

 

Na contracorrente das propostas assimilacionistas do órgão indigenista oficial, a CPI/SE, instalada em 29 de agosto de 1981, entidade civil de apoio aos índios, composta principalmente por professores do setor de Antropologia da UFS (entre eles, citamos, além de Beatriz Góis Dantas, Luiz Alberto dos Santos, Fernando Lins de Carvalho e Hélia Maria de Paula Barreto), mobilizou-se na tarefa de constituição de uma nova consciência acerca dos Xokó, lastreada nas modernas teorias antropológicas sobre etnicidade, difundidas por Beatriz Dantas nos já citados debates sobre a identidade indígena Xokó.

A CPI/SE foi tributária de uma lógica apoiada no vínculo ético entre pesquisa e militância, em que a construção do conhecimento sobre a diversidade cultural lançava os pilares para as ações coordenadas em apoio aos índios. Dessa forma, a criação da CPI/SE pode ser percebida como resultado das iniciativas de pesquisa engajada sobre os Xokó, promovidas pela antropóloga Beatriz Dantas — entre elas apontamos os já mencionados esforços de organização de acervos documentais e produção de estudos sobre os índios em Sergipe — e demais professores do setor de Antropologia da UFS.

Roberto Cardoso de Oliveira (1996a, p. 23-24), ao refletir sobre as implicações éticas e morais presentes no processo de construção do conhecimento antropológico, quando converge para a promoção da mudança social induzida dos grupos analisados por meio da intervenção de projetos, aponta mais uma vez as contradições entre uma ética universalista e particularista, sendo que a primeira, ao impor perspectivas globalizantes, não se coaduna com os problemas de grupos ou culturas locais.

Nesse sentido, o autor chama a atenção para a necessidade de se evitar o etnocentrismo no conhecimento produzido para ser aplicado na elaboração de projetos sociais voltados para as comunidades. Isso se daria pela promoção do diálogo dos pesquisadores com as comunidades étnicas, a partir da ideia de “fusão de horizontes”, constituída pelo “encontro etnográfico” que privilegie a democratização nas relações entre “interlocutores” e não mais entre “pesquisador” e “pesquisado” (visto como mero objeto inerte de estudo), baseada numa interação dialógica, num consenso entre as partes (OLIVEIRA, R., 1996a, p. 19-21).

Nesse sentido, em linhas gerais, a CPI/SE incentivou, por meio das suas ações de mediação entre o problema Xokó e a população não-indígena, a composição daquilo que Roberto Cardoso de Oliveira (1996b, p. 34-35) denominou comunidades de “argumentação” e “comunicação”, como instâncias constitutivas da construção do conhecimento caracterizadas pela intersubjetividade e diálogo entre pares de um dado segmento profissional (científico, técnico ou administrativo) e entre esses e atores sociais pertencentes a dado grupo cultural, estabelecendo a sua faceta interétnica. As comunidades de argumentação e comunicação caracterizam-se pela busca da definição de consensos entre os seus membros em torno dos códigos éticos que orientam as condutas e argumentos inerentes à construção do conhecimento.

Nesse particular, os membros da CPI/SE surgiriam como “especialistas da significação”, agentes que, a partir do encontro etnográfico e da consideração dos saberes, perspectivas e anseios dos Xokó, buscaram entendê-los em suas especificidades, apresentá-los e relacioná-los à comunidade nacional, introduzindo-os na esfera da memória, solucionando nessa esfera a questão dos limites e da forma de seu pertencimento à nação (LIMA, 2015, p. 435).

Assim, a CPI/SE, durante o seu período de funcionamento (1981-1986), atuou regularmente em duas vertentes. A primeira era voltada à conscientização do público externo acerca da situação social e das especificidades da cultura Xokó, por meio de ações educativas direcionadas aos estudantes e professores do 1º e 2º graus, além do ensino superior, por meio de palestras, seminários, exposições fotográficas e arqueológicas, entrevistas, campanhas de esclarecimento, com divulgação de cartazes, camisetas e distribuição de textos volantes em escolas (informação verbal).[10]

Entre as ações educativas da CPI/SE direcionadas ao ensino superior destacamos a Semana de Estudos sobre os Índios do Nordeste, realizada entre 26 e 30 de outubro de 1981, em parceria com o Departamento de Psicologia e Sociologia (DPS) da UFS, considerada o primeiro ato público da CPI/SE e que lhe deu visibilidade no âmbito universitário. Esse evento contou com palestras ministradas por pesquisadores e militantes da causa indígena, como Ordep Serra (UFBA e ANAÍ) e Francisco Moonen (UFPB), além de mesas redondas engajadas, com a participação dos Xokó e seus aliados — Diretório Central dos Estudantes da UFS, a CPI/SE e a Diocese de Propriá (informação verbal).[11]

Com a organização das exposições fotográficas e arqueológicas, a CPI/SE visava transpor de maneira didática para estudantes e professores de 1º e 2º graus, conteúdos sobre os povos indígenas que incorporavam o já mencionado viés teórico sobre etnicidade como um dado social e não biológico. Entre essas exposições, divulgadas ao público escolar por mais de uma década[12], podemos citar: Xokó hoje. Exposição de fotos sobre grupo indígena (1981); O nu e o vestido. Exposição de fotos sobre a diversidade dos índios brasileiros (1982); Índios: ontem e hoje. Exposição de peças arqueológicas e etnográficas (1983); Índios em preto e branco. Exposição de cartazes e jornais sobre a questão indígena (1984); O Índio em revista. Exposição de periódicos sobre questão indígena (1985) e Os índios nos jornais. Recortes de notícias sobre índio (1986).

A segunda vertente das ações da CPI/SE foi desenvolvida no bastidor junto aos Xokó, mediando os seus contatos com outros grupos indígenas por meio de encontros promovidos por entidades diversas em diferentes regiões do Brasil, providenciando passagens e hospedagens para os Xokó que participavam daqueles eventos (informação verbal).[13] Os contatos promovidos pela CPI/SE entre os Xokó e indígenas de outras etnias por meio da participação em eventos serviam como meio para a efetivação da “maiêutica identitária”[14] entre aqueles indígenas, pois, como apontou Dantas, aqueles encontros “[...] ajudaram a criar nos Xokó o sentimento de pertença ao segmento indígena do Brasil (percebiam-se como “índios do Brasil”), desenvolver pautas comuns de demandas e estratégias de luta, bem como a confeccionar artefatos culturais que lhes imprimiam “aparência diferenciada” tão exigida pelos não-índios como critério de identificação dos índios com uma pretendida cultura originária” (informação verbal).[15]

 

No seio da segunda vertente de ações, a CPI/SE pleiteava ainda, junto aos órgãos oficiais, a regularização jurídica da Ilha de São Pedro, por meio da coleta e disponibilização de documentos posteriormente juntados aos processos judiciais e administrativos que envolviam o problema fundiário Xokó, além do acionamento de suas redes de relações pessoais e institucionais, entre entidades congêneres e intelectuais, para a promoção dos direitos dos índios, tanto no setor educacional (como a manutenção de escola na Ilha e a solicitação de material didático aos representantes de órgãos estatais) quanto no jurídico, angariando o apoio de advogados para a defesa dos índios contra as pressões dos fazendeiros sobre as terras da Ilha de São Pedro (informação verbal).[16]

Portanto, como resultado da atuação da CPI/SE aliada à mobilização do povo Xokó, no dia 27 de junho de 1984, o Governador de Sergipe João Alves Filho transferiu em definitivo para a FUNAI, por intermédio de seu presidente Jurandyr Fonseca, as terras da Ilha de São Pedro que seriam, a partir daquele momento, usufruídas legalmente pelos Xokó. Como apontou Dantas (informação verbal)[17], o reconhecimento oficial da Ilha como Terra Indígena trouxe tranquilidade aos Xokó, a FUNAI passou a ter presença efetiva na Ilha, instalando Posto Indígena com um chefe, escola e barco para levar os alunos mais avançados para estudar em Pão de Açúcar (Alagoas), além de outros serviços que foram fornecidos em decorrência da demarcação da terra indígena.

 

Considerações finais

 

Este artigo realizou breve narrativa sobre o processo de retomada das terras pelos Xokó, examinou o papel epistemológico e político da fundadora da CPI/SE, Beatriz Dantas, na articulação com o Estado para a definição de políticas públicas para o povo Xokó. Abordou a inserção dela na militância em favor daquele grupo indígena, com ênfase na sua participação nos debates sobre a identidade Xokó como lócus de reivindicação de seus direitos fundiários, contrapondo-se aos discursos homogeneizadores dos seus antagonistas (instituições e autoridades públicas locais aliadas aos fazendeiros da família Brito) que pretendiam invisibilizar sua identidade, negar-lhes a existência e apropriarem-se de seus terras.  O artigo debruçou-se ainda sobre as principais linhas de atuação da CPI/SE em prol dos Xokó, que contribuíram para o reconhecimento identitário e a regularização jurídica da posse da Ilha de São Pedro por aquele grupo indígena.

O artigo buscou equacionar uma questão central, relacionada ao papel desempenhado por antropólogos como Beatriz Dantas, vinculados a instituições como a CPI/SE, no processo de retomadas de terras pelos Xokó, para a elaboração e efetivação de políticas públicas que possibilitaram a aquisição de direitos vinculados ao reconhecimento étnico e posse do território pelo grupo indígena.

Como foi possível observar no decorrer do artigo, os Xokó foram alvo de um processo histórico de esbulho de seus territórios que, por meio de estratégias ideológicas de invisibilidade da cultura e negação da existência do grupo indígena, resultou nas sucessivas expropriações, arrendamentos e vendas de suas terras pelo Estado aos latifundiários locais, sobretudo aos fazendeiros da família Brito. Esse processo de expropriação não ocorreu sem a mobilização da resistência dos Xokó que, a partir dos anos finais da década de 1970, organizaram o movimento de retomada de seus territórios da Ilha de São Pedro, apoiados por diversos segmentos da sociedade civil (setores progressistas da Igreja Católica, intelectuais, imprensa, estudantes, professores universitários, entre outros), o que culminou na regularização jurídica da posse da Ilha pelos Xokó ainda na primeira metade da década de 1980.

A efetivação do processo de retomada e regularização da posse da Ilha de São Pedro pelos Xokó contou com o imprescindível auxílio da militância indigenista da antropóloga Beatriz Dantas que, por meio de suas tarefas de coleta e organização de acervo documental, e da produção de estudos etno-históricos sobre os índios em Sergipe, reconstituiu a história da ocupação daquele território pelo grupo indígena, subsidiando com suas pesquisas os argumentos de juristas que atuaram nos tribunais em prol da causa fundiária Xokó. Além disso, a antropóloga ocupou importante espaço nos debates sobre a identidade Xokó, acionando as modernas teorias sobre etnicidades para enfatizar a presença e a singularidade da cultura Xokó, contra os discursos dominantes que buscavam invisibilizar sua identidade e negar-lhes a existência com o intuito de possibilitar a apropriação de suas terras pelos latifundiários locais. 

Já a CPI/SE desenvolveu duas linhas de ação em apoio aos Xokó. A primeira, de caráter externo, ao imprimir teor didático às teorias sobre etnicidades difundidas por Beatriz Dantas e seus colegas da CPI/SE, era dedicada à conscientização do público acerca das demandas étnicas e territoriais dos Xokó, viabilizada por ações educativas direcionadas aos estudantes e professores de 1º e 2º graus, além do ensino superior, por meio de palestras, seminários, exposições fotográficas e arqueológicas, entrevistas e campanhas de esclarecimento com divulgação de materiais informativos nas escolas e universidades. Já a segunda, de natureza interna, foi desenvolvida no bastidor junto aos Xokó, por meio da mediação de seus contatos com outros grupos indígenas em encontros promovidos por entidades congêneres de apoio aos índios em diversas regiões do Brasil, demandando junto aos órgãos oficiais a regularização jurídica da Ilha de São Pedro, realizando, para isso, a pesquisa e disponibilização de documentos anexados posteriormente aos processos judiciais e administrativos relacionados ao problema fundiário Xokó. Além disso, a CPI/SE acionava ainda suas redes de relações pessoais e institucionais entre entidades congêneres e intelectuais para a promoção dos direitos dos Xokó, tanto no setor educacional (manutenção da escola na Ilha e aquisição de materiais didáticos dos órgãos estatais) quanto no jurídico, recebendo auxílio de advogados para a defesa dos Xokó contra as pressões dos fazendeiros sobre as terras da Ilha de São Pedro.

Portanto, diante do cenário político recente marcado pelo avanço das discussões legislativas em torno de projetos de lei (PL) que buscam concretizar agendas econômicas ambientalmente predatórias e anti-indígenas — tal como o  PL 191/2020, que visa permitir a mineração em larga escala em terras indígenas, removendo o poder de veto dessas comunidades sobre as decisões que impactam os seus territórios e que, se aprovado, levará ao aumento do desmatamento, da invasão das terras indígenas e da violência contra esses povos — concluímos este artigo ressaltando a atualidade e urgência do aprofundamento de reflexões como as aqui desenvolvidas, que se debruçam sobre a importância da atuação dos antropólogos e das entidades de apoio aos índios aos quais estão vinculados para a aquisição e garantia dos direitos étnicos e territoriais específicos dos povos indígenas.

Referências

ALARCON, Daniela Fernandes. O retorno dos parentes: mobilização e recuperação territorial entre os Tupinambá da Serra do Padeiro, sul da Bahia. 2020. Tese (Doutorado em Antropologia Social) — Universidade Federal do Rio de Janeiro/Museu Nacional, Rio de Janeiro, 2020.

BARTH, Fredrik. Os grupos étnicos e suas fronteiras. In: BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000, p. 25-68.

BARTH, Fredrik. Ethnic groups and boundaries: the social organization of culture difference. Boston: Little Brown and Co, 1969.

BELLEAU, Jean-Philippe. Elites e a cultura dos outros: engenharia do movimento social, povos indígenas e o conselho indigenista missionário. In: MURA, Fábio; SECUNDINO, Marcondes de Araújo; SILVA, Alexandra Barbosa da (org.). Povos indígenas e relações de poder: olhares sobre a América do Sul. Campina Grande: Eduepb, 2019, p. 333-378.

COHEN, Abner. O homem bidimensional: a antropologia do poder e o simbolismo em sociedades complexas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.

COHEN, Abner. Custom and politics in urban Africa: a study of Hausa migrants in Yoruba towns.  London: Routledge and Kegan Paul, 1969.

CUNHA, Manuela Carneiro da. Critérios de indianidade. Gazeta de Sergipe, Aracaju, p. 3, 19 abr. 1981.

DANTAS, Beatriz Góis. Contribuição ao estudo dos índios em Sergipe: depoimento sobre pesquisa e ação. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, v. 2, n. 47, 2017, p. 343-361.

DANTAS, Beatriz Góis. Os Xocó e a questão da indianidade. Gazeta de Sergipe, Aracaju, p. 7. 19 abr. 1981.

DANTAS, Beatriz Góis. Xokó, os filhos da Ilha: morrer, matar ou correr. Porantim, Brasília-DF, jan./fev. 1980.

DANTAS, Beatriz Góis; DALLARI, Dalmo de Abreu. Terra dos índios Xocó: estudos e documentos. São Paulo: Comissão Pró-Índio de São Paulo/Ed. Parma, 1980.

FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO – FUNAI. Etnomapeamento da terra indígena Caiçara/Ilha de São Pedro do povo Xokó. Brasília: FUNAI, 2016. Disponível em: http://cggamgati.funai.gov.br/files/2114/8777/0603/Etnomapeamento-TI-Caicara-Ilha-de-Sao-Pedro.pdf. Acesso em: 20 jul. 2022.

GONÇALVES, Alícia Ferreira; GUSSI, Alcides Fernando. Visões sobre o desenvolvimento e as políticas públicas: os dilemas entre particularismo e universalismos. In: CONFERÊNCIA DO DESENVOLVIMENTO (CODE), 2., 2011 Brasília, Anais [...]. Brasília: IPEA, 2011. p. 1-20.

HINCAPIÉ, Liliana Gracia. Para uma antropologia da política pública: dinâmicas da construção de políticas públicas para comunidades afro-colombianas.  Revista de Políticas Públicas, São Luís, v. 19, n. 1, p. 157-171, jan./jun. 2015. Disponível em: https://doi.org/10.18764/2178-2865.v19n1p157-171. Acesso em: 20 jul. 2022.

LIMA, Antonio Carlos de Souza.  Sobre tutela e participação: povos indígenas e formas de governo no Brasil, séculos XX/XXI. Mana, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 424-457, 2015. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0104-93132015v21n2p425. Acesso em: 20 jul. 2022.

O NU e o vestido. Jornal de Sergipe, Aracaju, 28 e 29 abr. 1991. 

OLIVEIRA, Kelly Emanuelly de. Diga ao povo que avance! Movimento Indígena no Nordeste. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2013.

OLIVEIRA, João Pacheco de. Fighting for lands and reframing the culture. Vibrant, Brasília, DF, v. 15, n. 2, p. 1-21, 2018. Disponível em: http://vibrant.org.br/downloads/v15n2/vb15n2a01.pdf. Acesso em: 10 jul. 2021.

OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O Saber e a ética: a pesquisa científica como instrumento de conhecimento e de transformação social. In: OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Ensaios antropológicos sobre moral e ética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996a. p. 13-32.

OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Práticas interétnicas e moralidade: por um indigenismo (auto)crítico. In: OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Ensaios antropológicos sobre moral e ética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996b. p. 33-50.

PAGANINE, Joseane. Pacote de Abril criou senadores e governadores biônicos. Senado Notícias. 31 mar. 2017. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/03/31/pacote-de-abril-criou-senadores-e-governadores-bionicos. Acesso em: 12 set. 2022.  

RODRIGUES, Léa Carvalho. Avaliação em profundidade e ecologia política: um diálogo possível. Revista Avaliação de Políticas Públicas, Fortaleza, v. 2, n. 16, p. 184-207, 2019. Disponível em: http://www.periodicos.ufc.br/aval/article/view/42844. Acesso em: 20 jul. 2022.

SERGIPE. Lei Estadual nº 2.263, de 25 de junho de 1980. Autoriza o Poder Executivo a doar ao Governo da União imóvel denominado “Ilha de São Pedro”. Aracaju: Governo do Estado de Sergipe, 1980.

SERGIPE. Decreto nº 4.530, de 7 de dezembro de 1979. Declara de utilidade pública imóvel rural denominado “Ilha de São Pedro”, no município de Porto da Folha, no Rio São Francisco. Aracaju: Governo do Estado de Sergipe, 1979.

 

Recebido em: 18/04/2022.

Aceito em: 30/10/2022.

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n29.62849.p114-132

 

 



* Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Sergipe (UFS)/Brasil. E-mail: diogocruz_21@yahoo.com.br.

** Professor do Departamento de Ciências Socais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB)/Brasil. Doutor em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba. E-mail: epalitot@yahoo.com.br.

[1] Após a promulgação da Lei de Terras e a extinção da Missão de São Pedro em 1878, com a morte do seu último administrador, frei Doroteu de Loreto, no bojo das políticas assimilacionistas que davam como extintos os Xokó, suas terras tidas como devolutas foram apropriadas pelos órgãos estatais, arrendadas e vendidas aos fazendeiros da família Brito. Assim, João Fernandes de Brito se apropriou de cinco dos oito lotes de terra aforados pela Câmara Municipal de Porto da Folha em 1897. Em 1963, as terras da Caiçara foram vendidas pela prefeitura aos Brito, após intervenção desses latifundiários para a aprovação de projeto de lei que estabelecia a venda daquele território pelo município. No início da década de 1970, os Brito cercaram terras da Ilha de São Pedro não incluídas na compra de 1963, proibindo os Xokó de plantarem para a sua subsistência (DANTAS; DALLARI, 1980, p. 168-174). Esses indígenas passaram a ocupar a região não mais como seus donos legítimos, mas como camponeses, confundidos à massa da população como trabalhadores rurais a serviço dos Brito.

[2] As retomadas de terras são aqui entendidas como um processo em que as famílias indígenas reocupam e recuperam a posse de áreas ocupadas por não-indígenas no interior de seus territórios, passando a realizar ali a sua vida comunitária, estabelecendo moradias, plantando roçados e praticando a sua vida social e religiosa. Além de constituírem um instrumento de pressão, acionado pelos indígenas para levar a termo os procedimentos demarcatórios pelo órgão indigenista oficial, as retomadas constituem o cerne de uma forma de ação dedicada à construção de um projeto coletivo, um tipo pós-tutelar de exercício da política pelos indígenas, capaz de mobilizar valores tradicionais, emoções, e novas energias intelectuais e políticas, atuando para a construção de cenários futuros mais desejáveis (ALARCON, 2020, p. 16; OLIVEIRA, J., 2018, p. 16-17).

[3] Beatriz Dantas teve seu primeiro encontro presencial com o bispo Dom José Brandão ainda no ano de 1978, durante suas férias de fim de ano, quando participou de missa na Catedral de Propriá em desagravo pelos ataques dos Brito ao bispo dentro daquela igreja. No ano de 1979, Beatriz Dantas ampliou a troca de correspondências com outros membros da diocese de Propriá, integrantes da equipe de Dom José Brandão, tais como frei Enoque Salvador de Melo e a leiga Maria Amélia Leite, acessando materiais sobre os Xokó produzidos por eles, como memórias dos caboclos e a história oral da Missão de São Pedro, recolhidas por meio de entrevistas que realizaram com pessoas da região (entrevista realizada por e-mail com Beatriz Dantas em janeiro de 2021). Esses materiais, somados às notícias de jornais enviados por seus parentes à Campinas e aos papéis sobre os índios organizados no APES por Beatriz Dantas, constituíram o principal conjunto de documentos pelos quais aquela antropóloga se informava sobre a situação dos Xokó e que, possivelmente, orientaram as suas posteriores ações intelectuais em torno da causa daquele povo indígena.   

[4] Entrevista concedida por e-mail aos autores em janeiro de 2021.

[5] A oposição de setores da sociedade civil ao projeto oficial de emancipação dos indígenas motivou a criação por antropólogos, linguistas, juristas, entre outros, de uma série de organizações civis de apoio à questão indígena, entre elas: as Comissões Pró-Índio de São Paulo, Rio de Janeiro e Pará, a Associação Nacional de Apoio ao Índio (ANAÍ) no Rio Grande do Sul e Acre, a Associação Nacional de Ação Indigenista (ANAI), na Bahia e a Comissão Pró-Yanomami (CCPY), originalmente denominada Comissão pela Criação do Parque Yanomami  (OLIVEIRA, K., 2013, p. 87).

[6] Antes de ser concebida a ideia da publicação do Terra dos índios Xocó, Manuela Carneiro da Cunha sugeriu que Beatriz Dantas escrevesse um artigo sobre a questão utilizando a documentação que pesquisou no APES para ser publicado nos Cadernos da Comissão Pró-Índio de São Paulo. Ampliando a proposta do artigo para a de um livro, enquanto o escrevia, por sugestão de Manuela Carneiro da Cunha, que se informava na FUNAI sobre o andamento da questão dos Xokó, com o objetivo de dar maior legitimidade à defesa jurídica dos direitos fundiários daquele povo indígena, Beatriz Dantas providenciou a autenticação das cópias dos documentos recolhidos no APES durante as suas pesquisas, antes de enviá-las à CPI/SP, que as encaminharia, posteriormente, com o carimbo de autenticação do APES, para a FUNAI (entrevista concedida por Beatriz Dantas em janeiro de 2021, por e-mail).

[7] Esse artigo, cujo título baseia-se numa frase de uma cabocla da Caiçara que, depois da dispersão dos habitantes da antiga aldeia, morava em Porto da Folha e dera entrevista a frei Enoque, foi produzido para ser publicado inicialmente nos Cadernos da Comissão Pró-Índio de São Paulo. Porém, por sugestão de Carlos Alberto Ricardo (Beto), figura destacada do antigo Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI) e do atual Instituto Socioambiental (ISA), com quem Beatriz Dantas teve aulas na Unicamp, o artigo foi publicado na edição de janeiro e fevereiro de 1980 do jornal Porantim, ligado ao Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e de circulação nacional. O artigo figurou ainda, com pequenas modificações, como parte do livro Terra dos índios Xocó (informação contida na entrevista concedida por Beatriz Dantas, por e-mail, em janeiro de 2021). 

[8] Senadores escolhidos diretamente pelos presidentes militares ficaram conhecidos como “biônicos”. O termo era uma referência ao seriado de televisão O Homem de Seis Milhões de Dólares, que fazia muito sucesso na época da ditadura militar. O personagem principal da produção norte-americana, exibida então pela TV Bandeirantes, havia sido mutilado em um acidente e teve o corpo reconstituído por meio de implantes “biônicos”. Como não eram escolhidos por voto popular, senadores "biônicos" eram considerados um artifício para interferir nos rumos políticos do país (PAGANINE, 2017).

[9] Cabe aqui destacar que Beatriz Dantas utilizou como referência para as suas reflexões sobre etnicidade aplicada aos indígenas o artigo de Fredrick Barth (1969) publicado em inglês Ethnic Groups and Boundaries: the social organization of culture difference, além de ter recebido a influência de Abner Cohen (1978), que tinha um livro já traduzido para o português no Brasil: O homem bidimensional: a antropologia do poder e o simbolismo em sociedades complexas, mas que trabalhou as questões de etnicidade também em outros livros, tais como Custom and politics in urban Africa: a study of Hausa migrants in Yoruba towns (COHEN, 1969). (Informações contidas na entrevista concedida pela antropóloga em janeiro de 2021, por e-mail).

[10] Trecho de entrevista de Beatriz Dantas concedida por e-mail aos autores em 26 de janeiro de 2021.

[11] Trecho de entrevista de Beatriz Dantas concedida por e-mail aos autores em 26 de janeiro de 2021.

[12] Cabe aqui ressaltar que as exposições criadas e organizadas pela CPI/SE se mantiveram em funcionamento, percorrendo diversos espaços educativos, como escolas e museus, sob os auspícios da UFS, mesmo após o encerramento da atuação formal daquela Comissão, em 1986; há, nesse sentido, informações sobre a itinerância de exposições, tal como O nu e o vestido, montada pela CPI/SE pela primeira vez em 1982, em espaços como o Museu Histórico de Sergipe, em São Cristóvão, no ano de 1991. (O NU, 1991).

[13] Trecho de entrevista de Beatriz Dantas concedida por e-mail aos autores em 26 de janeiro de 2021.

[14] Maiêutica identitária é o processo pelo qual a etnogênese (retomada do orgulho de ser índio) é incitada, através de uma transferência implícita de heurísticas de um indivíduo para o outro com uma etnicidade distinta, para fazê-lo empenhar-se em uma reflexão pessoal sobre a sua identidade cultural. Em suma, a maiêutica identitária consistiria na conscientização do índio pelo não-índio a se entender como indígena e mobilizar-se politicamente enquanto tal (BELLEAU, 2019, p. 352-353).

[15] Trecho de entrevista de Beatriz Dantas concedida aos autores em 26 de janeiro de 2021, por e-mail.

[16] Trecho de entrevista de Beatriz Dantas concedida aos autores em 26 de janeiro de 2021, por e-mail.

[17] Idem.

 

_____________________

Desenho de um círculo

Descrição gerada automaticamente com confiança médiaÉ permitido compartilhar (copiar e redistribuir em qualquer suporte ou formato) e adaptar (remixar, transformar e “criar a partir de”) este material, desde que observados os termos da Licença  CC BY-NC 4.0.