AVALIAÇÃO DA POLÍTICA DE EXPANSÃO DO IFCE JUNTO AOS POVOS DO MAR DE CAMOCIM/CE
EVALUATION OF THE IFCE EXPANSION POLICY WITH THE SEA PEOPLES OF CAMOCIM/CE
DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n29.62871.p133-161
Resumo
Este trabalho busca avaliar a política de expansão da educação profissional e tecnológica no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) e sua relação com os povos do mar localizados no município de Camocim/CE. Para tanto, apresenta-se como questão central: em que medida a política de expansão do IFCE vem contribuindo para o desenvolvimento dos povos do mar de Camocim/CE? Metodologicamente, trata-se de uma avaliação de caráter qualitativo, realizada por meio de estudo de caso no IFCE campus Camocim junto aos moradores do bairro Praia de Camocim. Como resultados, os indicadores apontam que a expansão dos IF vem oportunizando o acesso à educação pública, presencial e federal, e que o IFCE campus Camocim contribui para a mudança de vida dos familiares dos pescadores. Contudo, o diálogo com os povos do mar está institucionalmente embrionário, ainda que com potencial para avançar diante da possibilidade do IFCE em rever os seus métodos pedagógicos nos termos de uma educação profissional de caráter emancipatório, e ser coerente com o contexto da comunidade local para alcançar o desenvolvimento no sentido de Furtado (1980). Nesse sentido, sugere-se a incorporação de metodologias mais inclusivas e flexíveis por meio de um projeto institucional articulado com ensino, pesquisa e extensão, respeitando a autonomia dos sujeitos e da comunidade dos povos do mar.
Palavras-chave: avaliação de política pública; política de educação profissional e tecnológica; desenvolvimento; povos do mar.
Abstract
This work evaluates the policy of expansion of professional and technological education at the Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), and it's relationship with coastal people located in the municipality of Camocim/CE. Therefore, the central question is: to what extent has the IFCE expansion policy been contributing to the development of the coastal people in Camocim/CE? Methodologically, this is a qualitative assessment, carried out through a case study at the IFCE Campus Camocim with residents of the Praia neighborhood in Camocim - Ceará. As a result, the evidence shows that that the expansion of the IF provides access to public, face to-face and federal education and that the IFCE campus Camocim contributes to a change of life for the family of the fishermen. However, the dialogue with the maritime peoples is institutionally embryonic, although with the potential to advance in the face of the possibility of IFCE in revising its pedagogical methods in terms of an emancipatory professional education and being consistent with the context of the local community. to achieve development in the sense of Furtado (1980). In this sense, it is suggested to incorporate more inclusive and flexible methodologies through an institutional project articulated with teaching, research and extension, respecting the autonomy of the subjects and the community of the “peoples of the sea”.
Keywords: public policy assessment; professional and technological education; development; peoples of the sea.
1 Introdução
A Educação Profissional e Tecnológica (EPT)[1] pública federal no Brasil possui uma trajetória de 110 anos, passando por diferentes orientações de governos, propostas curriculares e de financiamento. Mas as transformações pelas quais essa política passou nos últimos anos foram significativas. O fortalecimento da EPT ocorreu mediante o "Plano de Expansão da Rede Federal de Educação Tecnológica” de 2005 (BRASIL, 2005), seguido dos demais planos de expansão. Estes estabeleceram os objetivos e critérios da expansão dos IFs.
Na lei 11.892 de 29 de dezembro de 2008, que cria os IFs (BRASIL, 2008a), observa-se a nova proposta de escolha das cidades, ao levar em consideração a dimensão geográfica, e as características históricas, culturais, sociais e econômicas (Art. 01, § 3º) das cidades para a implementação dos campi. Nesse sentido, a política de expansão da EPT se caracterizou, basicamente por introduzir na sua organização estrutural e espacial uma outra institucionalidade, preocupada com o desenvolvimento local e regional com inclusão social, e uma nova territorialidade por meio da interiorização dos campi.
O documento “Concepções e Diretrizes da Educação Profissional e Tecnológica: política da EPT 2003- 2010” define o desenvolvimento local e regional como a melhoria do padrão de vida da população de regiões geograficamente delimitadas (BRASIL, 2010, p. 14). Para Pacheco (2011), o desenvolvimento local significa o diálogo vivo e próximo dos IFs com a realidade local e regional, o que requer uma atenção mais criteriosa em busca de soluções para a realidade de exclusão que ainda neste século castiga a sociedade brasileira no que se refere ao acesso ao direito aos bens sociais e, em especial, à educação. Assim, cada IF, formalmente, deve ter a agilidade para conhecer a região em que está inserido e responder mais efetivamente aos anseios dessa sociedade.
Diante disso, este trabalho se baseia na dissertação de mestrado da autora, que busca integrar o contexto da política de Expansão da EPT de 2003 a 2016 ao desenvolvimento local de uma comunidade tradicional, a dos povos do mar de Camocim. Os povos do mar são compreendidos, neste estudo, como uma comunidade tradicional que possui atividades de subsistência no mar, com tradições próprias e conhecimento aprofundado sobre a natureza passado por gerações (DIEGUES et. al., 2000, p. 18). A comunidade em questão fica em uma cidade litorânea do extremo oeste do Estado do Ceará, com 141 anos de emancipação política. Vizinha à praia de Jericoacoara, Camocim possui uma distância da capital de 379,3km, conta com mais de 63 mil habitantes e 1.158 km2 (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2010). Possui 64 km de praias, o que representa cerca de 10% do litoral cearense, com diversas belezas naturais, como as praias das Canoas, Praia das Barreiras, do Farol, Praia das Caraúbas, Praia do Maceió, Praia das Imburanas, Praia do Xavier, Praia do Guriú, Praia de Tatajuba, Barra dos Remédios, Laguinho da Torta e Ilha do Amor.
A pesquisa versa sobre o IFCE[2] campus Camocim, inaugurado em 27 de dezembro de 2010, como parte da 2ª fase da Política de Expansão da EPT, na transição entre Centro Federal de Educação Tecnológica CEFET/CE e IFCE. Na sua implantação em Camocim, o IFCE havia a expectativa de a Instituição atuar no arranjo produtivo da pesca, tendo em vista que a cidade é considerada a “cidade da pesca” no Estado do Ceará. Foram criados os Cursos Técnicos Subsequente em Restaurante e Bar, Manutenção e Suporte em Informática, e os superiores de Tecnólogo em Processos Ambientais, Licenciatura em Letras Português e Inglês e Licenciatura em Química, escolhidos por assembleia local.
Por diferentes mediações, o IFCE esteve presente junto aos povos do mar em Camocim, sobretudo na oferta dos seguintes cursos: 2 cursos técnicos e 3 superiores; cursos de formação inicial e continuada (FICs) de Ostreicultura, Merendeiras Escolares, Aquicultura, e Agentes de desenvolvimento socioambiental; oferta de minicurso de aproveitamento de pescados com familiares dos pescadores; presença de pescador em projeto de extensão Avançar de Letramento de Adultos; projeto de limpeza das praias. Contudo, como se verá ao longo deste trabalho, carece de cursos adaptados às características específicas dessa comunidade tradicional, que gerem desenvolvimento direto no arranjo produtivo da pesca.
Porém se considera como pressuposto orientador da avaliação, que a referida expansão reconfigurou o perfil estudantil das instituições públicas federais de ensino. Um público como os povos do mar, quando chega ao IFCE, tem muito a aprender, mas também muito a ensinar. A chegada dos IFs em muitas localidades do interior do estado representa a experiência de ter as primeiras gerações das famílias com acesso à formação superior, à pesquisa, à extensão e à organização política. Soma-se a isso, a chegada de alunos com outras demandas, como a baixa proficiência, com tempo escasso para participar de qualquer outra atividade acadêmica além do ensino (PEREIRA; ALBUQUERQUE, 2015, p. 49). Observa-se, nos povos do mar, histórias de superação, as sabedorias acerca da natureza, a participação ativa nos cursos, a evasão escolar por limitações financeiras, os obstáculos de quem mora em zona rural, a dificuldade de entregar documentação porque o pai ou esposo estava no mar etc. Os alunos dos povos do mar têm um diferencial, pois são herdeiros de uma sabedoria popular diferente dos demais, e são aguerridos, no sentido de serem participativos, de valorizarem a experiência na instituição, ou então, de não desistirem tão fácil dos estudos.
Diante do que foi apresentado, chega-se aqui ao objetivo deste trabalho: avaliar a política pública de expansão da educação profissional e tecnológica no âmbito do IFCE e sua relação com o desenvolvimento dos povos do mar, localizados no município de Camocim/CE. Trata-se de responder à seguinte pergunta de partida: em que medida a política de expansão do IFCE vem contribuindo para o desenvolvimento dos povos do mar de Camocim/CE? E de qual desenvolvimento se trata, diante do contexto local em que vivem os povos do mar?
A perspectiva teórico-metodológica avaliativa adotada se fundamenta nos parâmetros de análise experiencial de Lejano (2012) e sua proposta interpretativa, próxima à abordagem etnográfica. Em linhas gerais, trata-se de uma proposta inovadora da área de avaliação de políticas públicas, que insere os conhecimentos das ciências sociais e da ciência política na pesquisa avaliativa, e se contrapõe aos modelos clássicos positivistas que vêm orientando os estudos em políticas públicas. Lejano (2012) compreende a análise e a avaliação das políticas públicas partindo da experiência dos participantes, apreendendo a complexidade do cotidiano em que a política é implementada e efetivada, com o intuito de ir além dos aspectos meramente normativos. Segundo o autor, a partir da dimensão prática, o avaliador deve integrar múltiplos conhecimentos, observando a relação entre suas normativas (texto) e o contexto no qual são executadas no cotidiano, e assim elaborar uma descrição densa, ou seja, uma fusão de diferentes linhas de informação para uma percepção mais completa do todo que envolve a política.
Coadunada à perspectiva de Lejano, neste trabalho, a pesquisa de avaliação tem caráter qualitativo, realizada primeiramente por meio da ampla compreensão da experiência de campo com os pescadores e seus familiares no bairro Praia, zona urbana de Camocim, entre 2018, 2019, e posteriormente a experiência institucional no IFCE campus Camocim.
A estratégia metodológica implementada utilizou os seguintes métodos e técnicas: a pesquisa bibliográfica e documental, observação de campo e entrevistas semiestruturadas com 6 alunos, 4 docentes, 2 técnico-administrativos, 1 gestor e 2 colaboradores. A pesquisa de campo consistiu em diálogos informais com os povos do mar, pessoas que moram e trabalham na beira-mar, com observação do cotidiano da pesca em terra e no mar, bem como visita a duas casas de alunos filhos de pescadores. As ferramentas de registro utilizadas nessa etapa foram o diário de campo, entendido como um caderno de notas sobre impressões pessoais, observação de falas, comportamentos, relações (GIL, 2014, p. 295), como também foi realizado registro fotográfico.
Este trabalho se organiza, inicialmente com esta introdução, abordando acerca das questões iniciais, dos objetivos e da perspectiva avaliativa. Na seção 2 — “Uma discussão acerca da política de expansão dos IFs, desenvolvimento e educação profissional” —, tem-se a discussão teórica e análise das categorias “desenvolvimento” e conceitos de educação profissional. Na seção 3, apresenta-se breve relato da observação de campo. Na seção 4 — “A experiência do IFCE junto aos povos do mar de Camocim: síntese avaliativa” —, descreve-se o contexto local para onde se deslocou institucionalmente o IFCE, e apresenta-se os resultados da integração dos dados deste estudo, encerrando-se com as “Considerações finais”.
2 Uma discussão acerca da política de expansão dos IFs, desenvolvimento e educação profissional
Ao estudar os aspectos que favoreceram a chegada do campus do IFCE em Camocim, em um contexto nacional, depreende-se que esta unidade foi resultado de uma conjuntura histórica política, o da expansão da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (RFEPCT), promovida durante o Governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), e que teve continuidade no primeiro mandato da presidenta Dilma Rousseff (2011-2014). Representou, outrossim, uma transformação na história dos IFs, hoje reconhecidos como instituições de grande porte, que não permitem comparação internacional em país algum do mundo, como aponta Arcary (2015).
Desse modo, comparando com o período de 1909 a 2002, o Brasil teve 24 presidentes e construiu um total de 140 escolas técnicas federais. No período de 2003 a 2016, apenas durante a gestão de dois presidentes, foram construídas e inauguradas 504 novas unidades federais. Consequentemente, foi possível o aumento das matrículas, contratação via concurso público de professores e técnicos administrativos. Todavia as mudanças foram tanto quantitativas, com o aumento do número de campi, mas, sobretudo, quanto às estratégias políticas que se fundam a partir do modelo de desenvolvimento que norteou as ações do governo do Partido dos Trabalhadores (PT), inaugurando uma outra institucionalidade e uma nova territorialidade (SANTOS, 2018, p. 113).
Assim, gerenciada pelo Ministério da Educação (MEC), a expansão e interiorização da EPT tiveram como objetivos descentralizar a oferta da educação pelo território nacional, ampliando o acesso à educação, bem como formar mão de obra qualificada para a então crescente economia do país e diminuir as desigualdades sociais (BRASIL, 2012). Os marcos regulatórios dessa época, conforme o artigo 6º da Lei nº. 11.892/2008 (BRASIL, 2008a), dão ênfase ao desenvolvimento socioeconômico local, regional e nacional, e dentre seus objetivos (artigo 7º), encontra-se apoiar processos educativos que levem à geração de trabalho e renda e à emancipação do cidadão.
A relação entre educação e desenvolvimento entrou na agenda política brasileira pelas condições favoráveis à retomada do crescimento econômico do país nos anos 2000. Gerou, portanto, a exigência de trabalho qualificado e elevou a importância da formação profissional em todos os níveis. Nesse sentido, Rezende (2013) apresenta as principais razões para alavancar a EPT: o fato de que a ciência e tecnologia são fatores determinantes do desenvolvimento econômico e do bem-estar social das nações; que o desenvolvimento científico e tecnológico não é privilégio de países centrais, que já possuem tradição; e que o desenvolvimento científico e tecnológico de cada país depende diretamente de investimento em políticas, atitudes e ações de seus governos.
Os IFs foram vistos como espaços estratégicos de qualificação da mão de obra, uma frente estratégica visando o desenvolvimento socioeconômico de diversas regiões do país. A relação da educação com as necessidades do desenvolvimento econômico e social é, portanto, a bandeira de modernização do país levantada pelo governo da época
Diante disso, a discussão teórica sobre desenvolvimento constitui a chave analítica para a compreensão do processo avaliativo aqui proposto sobre a expansão da EPT, no período de 2003 a 2016, em suas interfaces com o contexto desta pesquisa, os povos do mar em Camocim. Isto, porque determina que tipo de educação profissional é ofertada para as cidades na expansão da EPT: mais emancipadora ou mais atrelada aos ditames do mercado? Para tanto, será norteada pelas reflexões do economista Celso Furtado (1980) junto à categoria desenvolvimento como mudança de estrutura, e as ideias de Bresser-Pereira (2010) acerca do neodesenvolvimentismo.
Ao longo de sua obra, Furtado conclui que, dentro desse cenário do sistema econômico mundial, o subdesenvolvimento não é uma etapa para o desenvolvimento, mas uma forma específica deste último, na coexistência entre setores modernos e atrasados. Portanto o autor defende que as causas do subdesenvolvimento estão interligadas ao processo de modernização periférica e à tendência à concentração de riqueza, sonegação de direitos sociais, precarização do mundo do trabalho, submissão à divisão do trabalho e a inserção internacional subalterna (FURTADO, 1974 apud PAULA, 2013, p. 16). Em resumo, Celso Furtado concebe o desenvolvimento como uma mudança de estrutura do modelo econômico, priorizando as necessidades humanas e levando em consideração a cultura. O subdesenvolvimento, para o autor, ocorre não por acaso, mas intencionalmente, pois acompanha o projeto de sociedade das lideranças econômicas mundiais que se desenvolveram e “jogaram a escada fora”.
Já Bresser-Pereira analisa o desenvolvimento das últimas décadas como “novo desenvolvimentismo”. Representa o “terceiro discurso” entre o velho discurso desenvolvimentista e a ortodoxia convencional, fundamentando-se na macroeconomia keynesiana e na teoria econômica do desenvolvimento. Consiste em um conjunto de valores, ideias, instituições e políticas econômicas por meio das quais, no início do século XXI, os países de renda média procuram alavancar o desenvolvimento (BRESSER-PEREIRA, 2010, p. 17) por intermédio de (i) uma política macroeconômica consistente, baseada em equilíbrio fiscal, taxas de juros moderadas e taxas de câmbio competitivas; (ii) concebe os mercados como o mecanismo principal, com um mercado interno forte; (iii) os programas sociais universais, em especial os programas de transferência de renda. Dessa forma, não há mercado forte sem Estado forte, amplia-se o papel do Estado como regulador e estimulador dos investimentos privados e da inovação (BRESSER-PEREIRA, 2010, p. 36).
Bresser-Pereira indica que esse modelo é semelhante ao que ocorreu nos anos 2000, ou seja, a busca por uma alternativa ao modelo neoliberal por meio de um Estado forte dentro dos moldes capitalistas. Assim, não se compromete com a mudança de estrutura, o que, na prática, gerou contradições e um modelo de crescimento limitado.
E estas reflexões estão relacionadas diretamente à noção de educação profissional. São de maior importância para compreender a influência internacional para a concepção do tipo de EPT que foi idealizada nos anos 2000, uma vez que a proposta de capital humano, as noções de empreendedorismo, Arranjos Produtivos Locais e desenvolvimento local estão ligadas ao neodesenvolvimentismo, e, pode-se assim dizer que a proposta de politecnia[3] para a emancipação humana e transformação social de Saviani (2007) estão mais coerente com as ideias de Celso Furtado.
Entende-se, neste estudo, que houve uma limitação da política de expansão da EPT na materialização de um modelo da EPT mais progressista da formação de cidadãos críticos, de acordo com a politecnia e educação integrada como estava previsto nos documentos oficiais. Atravessado pelas tendências das disputas políticas internas, limitou o projeto de desenvolvimento local para reduzir as desigualdades sociais. Isso, porque a redução das desigualdades sociais não ocorre exclusivamente em âmbito micro, requer um projeto maior de nação, na superação das desigualdades estruturais de desenvolvimento proposta por Furtado (1980).
3 Breves relatos sobre campo
A lógica da prática desafia o formal, e por isso foi preciso desapegar do olhar institucionalizado da pesquisadora para olhar a natureza não formal da política, o que está além das legislações, do cotidiano institucional. Em suma, foi determinante a pesquisa de campo começar pelos povos do mar para haver uma maior sensibilidade aos saberes e demandas locais, e somente depois analisar o ambiente institucional. Assim, apresenta-se, brevemente, um relato das experiências da pesquisa no campo da comunidade do bairro Praia em Camocim, com o cotidiano da pesca, seus perrengues, alegrias, pescas em alto mar, em resumo, muitas histórias de pescador. E acima de tudo, muito respeito e admiração pelos pescadores e suas famílias.
O primeiro obstáculo da pesquisa envolveu a questão de gênero, que se estendeu por toda a experiência sem ser superada, e representou o primeiro indicador sociocultural observado. Houve o receio enquanto mulher diante dessa interação com os sujeitos da pesquisa. Como exemplo, tem-se o primeiro dia de observação de campo, quando um jovem pescador, sob efeito de drogas, sentou-se ao lado da pesquisadora, com o interesse de conversar. Temendo pelo assédio, de pronto foi possível sair do local. De início, houve o estranhamento por parte deles com a presença da pesquisadora. Mesmo assim, foi possível presenciar o cotidiano da pesca, a chegada das canoas e dos botes com a produção do dia, muitos homens na beira-mar com as bicicletas, movimentação de saída de barcos, abastecimento de gelo, movimentação nas ruas paralelas com a volta dos pescadores para casa, e alguns marisqueiros.
No dia 22 de novembro de 2019, à tarde, foi possível visitar a casa de uma aluna filha de pescador, com objetivo de pedir apoio para fazer a observação e tirar dúvidas. A mãe da aluna fez diversas considerações sobre a forma e os lugares mais seguros para observação na beira-mar. Aproveitou-se para dialogar com o pai, pescador; na ocasião, ele não lembrava do que se tratava o IFCE. Depois relembrou e falou que já viu alunos do IFCE e outras escolas fazendo limpeza da praia. Combinou-se de acompanhá-lo em um dia de trabalho, e assim, o pescador agendou para o mesmo dia, à meia-noite de uma sexta-feira.
Ao chegar na casa dessa família, à meia noite, acompanhada de uma ajudante de pesquisa, observou-se a rotina deste pescador em terra, desde o começo, no caso, a preparação do material de trabalho. A família mora a dois quarteirões da beira mar. Dois ajudantes chegaram em seguida. A mulher ajudou o esposo a preparar o material. A rua é a mais tradicional da pesca, com muitas casas de pescadores e seus motores de rabeta guardados na frente das moradias. A madrugada no bairro Praia tem ruas e becos movimentados pelos pescadores, e as calçadas são ponto de encontro. Homens esperavam na esquina para o início da jornada de trabalho. Pescadores com seus baldes, afiando suas facas.
Na beira-mar, o pescador foi para o porto das canoas. Observando o pai da estudante preparar a embarcação, percebeu-se que, paralelo ao trabalho da pesca, existe a movimentação noturna do turismo, dos bares e restaurantes da cidade, ou seja, a diferença entre o labor dos pescadores de um lado e o turismo do outro. A observação da pesca em terra foi uma oportunidade de ver de perto o preparo da embarcação, a colocação do motor, da vela de pano, além da questão econômica, os tipos de peixe e os instrumentos de trabalho. Uma pescaria de multiespécies, com inúmeras embarcações de madeira de pequeno porte, medindo entre 3 e 8 metros, e tripulação em média de 3 pescadores por embarcação. A forma como é feita a pesca permanece desde as antigas gerações, as mudanças observadas foram a utilização de GPS, a rede de pesca industrial em alternativa da rede costurada artesanalmente e o motor de rabeta. O investimento em uma canoa nova de madeira custa em média R$ 14.000,00, o motor de rabeta R$ 4.000,00, e em média, R$ 800,00 de materiais diversos. O rendimento é incerto; no período do início do ano, período chuvoso chamado de inverno, a pesca é mais produtiva, a sua canoa já chegou a ganhar até R$ 800,00 na produção de um dia nesse período, mas é uma exceção, geralmente a produção total é vendida entre R$ 80,00 a R$ 160,00 por dia (valor ainda a ser dividido). Em outras ocasiões, ele volta só com os peixes para alimentar a família. Por fim, acompanhou-se a saída de sua canoa, bem como as outras embarcações, até às 2h30 da madrugada.
Figura 1 – Mosaico “observação de campo: cotidiano da pesca” |
|
Fonte: arquivos pessoais da autora, 2019. |
O retorno da canoa ao porto das canoas no bairro Praia ocorreu às 8h30. A canoa chegou em terra, e rapidamente negociou a produção de peixe em uma espécie de leilão de quem dá mais pela produção inteira do dia, voltado para os atravessadores.
Este pescador e os pescadores auxiliares foram bem receptivos e responderam a todas as perguntas de forma bem solícita. Explicaram que a negociação ocorre com os atravessadores, quem der o maior preço fecha a compra. O proprietário da embarcação tem o ganho de 50%, os outros 50% são divididos entre os pescadores. É perceptível que a negociação não é tão vantajosa, mas continua sendo tradicional para a pesca em canoas.
Em seguida, foi feita a observação da pesca em alto mar, planejada com apoio de um funcionário do IFCE. A pesquisadora foi com a ajudante em um domingo, às 4h00 da madrugada, encontrar-se com este outro pescador que se prontificou a mostrar o cotidiano da pesca em alto-mar no seu dia de folga, para não atrapalhar o dia de trabalho da semana. Previamente, o pescador também optou por não usar o método tradicional de pesca com a rede grande estilo caçoeira[4], apenas a pesca de linha. Esta saída ao mar fora da dinâmica do trabalho é rara, ocorre somente em casos especiais. No total, foram cinco pessoas, sendo a pesquisadora acompanhada da ajudante de pesquisa, o pescador mestre e dono da embarcação, e dois ajudantes. A proteção da pele era a roupa e um boné. Uma madrugada tranquila, pois o domingo não é dia de trabalho; para eles, aquele momento era um passeio, e para nós a oportunidade de conhecer, pelo menos em parte, a rotina laboral dos pescadores no mar.
Na aurora, a canoa saiu do porto, atravessou o rio Coreaú e chegou ao mar. A passagem pelo rio foi tranquila, porém, ao chegar ao mar, começou um movimento forte contra as ondas. Ir contra as ondas fazia levantar a frente da canoa até o alto e depois descer com a força do mar, e os gritos foram a reação das pesquisadoras. Uma cena forte para estreantes. Mesmo como primeira experiência em alto-mar, a pesquisadora não sentiu muito enjoo. Destaca-se que esse pequeno fato, de uma mulher na embarcação enjoar pouco, chamou a atenção de forma positiva dos pescadores, o não enjoar é um motivo de grande elogio, de força, e contaram que até homens — engenheiros de pesca, marinheiros, homens fortes — enjoavam e passavam mal no fundo da canoa. E, uma mulher, considerada mais “frágil”, não passou mal.
Ao chegar ao ponto indicado pelo Sistema de Posicionamento Global (GPS), o pescador surpreende-se com outra observação que envolve a relação de gênero: a pesquisadora e a ajudante foram as primeiras mulheres que ele levou ao local onde costuma pescar. Conseguimos pescar alguns peixes e depois retornamos.
Na volta, antes do previsto, uma situação inédita aconteceu, uma verdadeira história de pescador. A maré estava baixa e a canoa encalhou no banco de areia que se formou próximo ao rio Coreaú, na Ilha do Amor de Camocim. Os pescadores desceram para empurrar a canoa, sem sucesso, era preciso esperar a maré subir. Duas horas encalhados no encontro do rio com o mar, e aproveitou-se para conversar mais. Perguntou-se, por exemplo, se eles presenciaram alguma aparição sobrenatural, e eles disseram que sim, lembraram ter visto uma bola de fogo brilhar no céu. Muitas conversas, enquanto isso, encontrava-se no banco de areia, sururu, estrela do mar, água viva, caranguejo; uma experiência também única e inédita para os próprios pescadores.
Figura 2 – Mosaico: “Observação de campo em alto mar” |
|
Fonte: arquivos pessoais da autora, 2019. |
Com certeza, esse momento foi uma experiência com mais afinidade e maior vínculo possível com os povos do mar. Aprendeu-se rapidamente a mensagem deles, o grande respeito pelo mar. Assim falou o mestre: “o mar ensina, não tenho estudo, mas o mar ensina”. Cada explicação do pescador foi uma aula, como também a atitude corajosa diante das manobras, o costume com o sobe e desce da canoa, o imprevisto da maré baixa. A união de todas essas experiências foi intensa, valorizando ainda mais esses trabalhadores.
Passou-se, portanto, pelas fases da pesquisa de campo segundo Gil (2014), menos a fase final de uma pesquisa de cunho antropológico em que ocorre o vínculo total com os sujeitos, por exemplo, de estar junto aos pescadores como um deles, sem o estranhamento, andar com eles, sentar nos abrigos com eles, isso não ocorreu na pesquisa de campo do bairro Praia, mas a observação participante no mar cumpriu o papel de maior vínculo e identificação possível com os povos do mar. Dali em diante, o respeito pelos povos do mar chegou a outro patamar. Esse respeito pelos povos do mar está presente nos resultados deste trabalho.
4 Contexto: Camocim e os povos do mar
A história de Camocim é escrita por grandes homens e mulheres, inúmeros índios, pescadores, salineiros, agricultores e gente simples do povo que enfrentou as condições inóspitas de nossa região e, muitas vezes, no anonimato de suas vidas, deixaram o patrimônio que permitiu erguer e compor a história desse lugar tão singular que é Camocim.
Para Santos e Freitas, compreender a história da origem de Camocim é resgatar as características da ocupação cearense e a variedade de povos que habitavam o território. A própria etimologia da palavra Camocim é reveladora de sua origem, pois a versão mais aceita pelos pesquisadores é de que Camocim estaria associada a palavra da língua Tupi “Camucis”, que significa potes ou vasos de barro nos quais realizavam seus ritos de morte, espécie de urna funerária (SANTOS; FREITAS, 2017, p. 14-15).
No século XVIII, a fama do excelente porto atraiu desbravadores. Chegaram com o objetivo de trabalhar como “práticos”, ou seja, como guias para condutores de navios em áreas de trânsito naval difíceis ou desconhecidas. Contudo eles somente conseguiram fazer a “praticagem” (trabalho do prático) com a ajuda de um velho índio Tremembé, um dos únicos moradores do lugar (MONTEIRO, 1984 apud SANTOS; FREITAS, 2017, p. 35). A figura do índio é reconhecida como mestre, que através da sabedoria dos primeiros povos do mar, tiveram função primordial para o desenvolvimento de Camocim. A cidade se ergue à beira-mar, e o porto passa a ser um destino econômico dos navios de grandes companhias da época (SANTOS; FREITAS, 2017, p. 35).
Camocim guarda as heranças da pesca e da mariscagem como importante fonte de subsistência das famílias da região. A atividade é considerada parte significativa para a economia local, e registra os maiores rendimentos da pesca no Ceará, com grande abundância de desembarque de peixes.
O bairro Praia é o mais antigo do município, onde se iniciou a ocupação urbana de Camocim, e é onde se localiza uma grande parcela dos pescadores artesanais e suas famílias. Os outros bairros com aglutinação de famílias de pescadores são os bairros vizinhos, São Pedro e Coqueiros. No bairro, encontra-se a Colônia de Pesca e Aquicultura Z1 de Camocim, popularmente conhecida por Colônia de Pescadores. Fundada na década de 1920 por Sotero Lopes da Silva, avô do atual presidente, Francisco Xavier Filho, desde 1997. A colônia foi a primeira instituição de representação dos trabalhadores em Camocim, tendo poder equivalente ao sindicato.
Cerca de 2.000 famílias vivem da pesca como principal fonte de renda atualmente, compreendidas neste estudo como povos do mar. Os trabalhadores da pesca são, antes de uma profissão, uma comunidade tradicional, semelhante aos quilombos e tribos indígenas. Dessa forma, o conceito de povos do mar se estende aos familiares, filhos, esposas, netos, dentre outros. E, enquanto comunidade tradicional, domina historicamente os saberes da pesca desde as primeiras povoações da cidade, com raízes na cultura indígena dos Tremembé. Já a presença do famoso porto e da estação de trem fortaleceram o desenvolvimento da cidade. A pequena vila de pescadores (atualmente bairro Praia) se transformou.
Assim, Camocim, aos poucos, recebeu o título de cidade da pesca, sendo um ofício passado de pai para filho, tendo o mar como maior professor. As tradições culturais da procissão de São Pedro, as regatas, a dança do coco e as idas à praia como lazer fizeram parte da história de vida dos entrevistados. Os pescadores são chamados de guerreiros e heróis, e isso não é por acaso, mas por atravessarem adversidades, como a dificuldade financeira, as parcerias desvantajosas, os naufrágios e acidentes, a falta de acesso ao aprimoramento e tecnologias que possam dar mais segurança e conforto e aumentar a produtividade, elevando a renda do pescador artesanal.
No que se refere à saúde dos povos do mar, os pescadores estão vulneráveis a diversos determinantes na interação entre meio ambiente-saúde-trabalho. Os sujeitos da pesquisa descreveram esses riscos, as doenças adquiridas, o alcoolismo, a aposentadoria por invalidez. Além dessas, as doenças crônicas e acidente vascular cerebral (AVC), exposição a riscos de desenvolvimento de algumas doenças ocupacionais, como desidratação, insolação, estresse ocupacional, o esforço físico e até câncer de pele.
Na dimensão educacional, segundo Silva e Aguiar (2014), na década de 1960, não havia educação pública na cidade. A ação da sociedade civil foi crucial na ampliação do acesso à educação. Por volta de 1967, existiam apenas quatro escolas (José de Barcellos, Padre Anchieta, Colégio das Irmãs e Patronato São José), em sua maioria, particulares e localizadas no centro da cidade, sendo mais acessíveis para as famílias com maior renda. A taxa de analfabetismo chegava a 68% da população, tendo como causas principais: a falta de escolas; exigências de materiais escolares e fardamento que a população, em geral, não podia comprar; e a falta de sensibilidade dos pais para a importância dos estudos para os filhos.
No contexto dos povos do mar, percebe-se que os anos de estudo são sacrificados pela rotina de trabalho que dificulta a inclusão na educação formal. Em geral, o começo da vida profissional como pescador se iniciava ainda criança. Assim, a sazonalidade com que estava ora no mar, ora na terra, além do preconceito com o modo de vida (exemplo, o cheiro de peixe), fragilidade do ponto de vista da vulnerabilidade social, somados a políticas públicas de educação insuficientes explicam em parte a baixa escolaridade dos povos do mar (sem indicadores formais), e consequentemente na limitação das oportunidades, com grande incidência de analfabetismo e ensino fundamental incompleto.
A única educação formal destinada aos pescadores atualmente ocorre com o Curso de Habilitação de Pescador Profissional (POP) da Marinha do Brasil, obrigatório para o registro como aquaviário. Não há, contudo, a continuidade desses estudos, sendo um desafio para a política de educação profissional.
Tais observações de campo indicam demandas dos povos do mar, que foram apresentadas no intuito de fundamentar a avaliação sobre quais respostas, de fato, o IFCE realiza para essa comunidade.
4.1 A expansão no contexto do IFCE campus Camocim
O Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) representa uma instituição de educação superior, básica e profissional, pluricurricular e multicampi, especializada na oferta de educação profissional e tecnológica nas diferentes modalidades de ensino, com base na conjugação de conhecimentos técnicos e tecnológicos com as suas práticas pedagógicas, e é equiparado às universidades federais (BRASIL, 2008b). Em 110 anos de existência, possui em média 3299 servidores e 39 mil alunos (em 2019).
A expansão da EPT, como abordado no item 2, iniciou-se no Ceará — primeira etapa — com a criação do campus Maracanaú, ainda CEFET, inaugurado em 2007. A segunda fase do plano de expansão teve início também em 2007 e obteve êxito ao garantir a construção, a partir de 2008, com os processos de implantação, escolha do terreno, aprovação dos projetos arquitetônicos e licitação para início das obras de mais seis unidades de ensino, localizadas nos municípios de Acaraú, Quixadá, Sobral, Canindé, Crateús e Limoeiro do Norte, tendo recebido investimentos para essa finalidade em 2007, da ordem de R$ 4.107.020,00 (quatro milhões cento e sete mil e vinte reais) como apontou o relatório de gestão (CENTRO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA DO CEARÁ, 2007).
Ainda em 2007, em consonância com a política governamental, o então CEFETCE estabeleceu parceria e fez gestão estratégica junto à bancada cearense no Congresso Nacional, contando com a participação do governador do estado, liberando por meio de emendas parlamentares mais recursos para a segunda fase de expansão, na ordem de R$ 18,25 milhões, aplicados em 2008 na implantação (obras e equipamentos) de 10 (dez) unidades de extensão (dentre estes os campi avançados), a princípio com a proposta de serem instaladas em terrenos doados pelas prefeituras dos municípios de Aracati, Baturité, Camocim, Caucaia, Morada Nova, Tabuleiro do Norte, Tauá, Tianguá, São João do Jaguaribe e Ubajara. O objetivo inicial era a estruturação, em 2008, de 10 (dez) Centros Vocacionais Tecnológicos e 01 (um) Núcleo de Informação Tecnológica, iniciando como unidades de extensão do CEFETCE, e no futuro próximo, transformarem-se em suas unidades descentralizadas de ensino (CEFETCE, 2007). Os municípios foram escolhidos pelo próprio MEC, mediante manifestação de interesse por parte das prefeituras municipais. No total, o IFCE chegou em 2020 com 35 campi, e implementando a 5ª fase de expansão.
Dessa forma, a concepção, formulação e implementação do IFCE campus Camocim está fundamentada nos objetivos e critérios da política de expansão da EPT apresentada anteriormente, em sua segunda fase de implantação, correspondendo ao recorte histórico do período de 2003 a 2010. Segundo o gestor entrevistado[5], a etapa de implantação em Camocim é conhecida como “dois e meio” da expansão, oficializada no último mandato do governo Lula, tendo em vista a verba de emendas parlamentares.
O início do IFCE Camocim data de 2007, quando se iniciou a construção do prédio. O campus — tipo avançado, de menor porte — era vinculado administrativamente ao IFCE Acaraú. Em 2008, as obras foram orçadas, no primeiro momento, em 960 mil reais, e com aditivos chegaram a R$ 1.089.217,57, e a construção foi concluída em 05 de dezembro de 2009, segundo dados da Reitoria do IFCE. Teve inicialmente uma área construída de cerca de 1.595 m² nessa primeira fase de implantação e mais de 6 hectares para expansão. O terreno foi doado pela Prefeitura Municipal de Camocim.
O campus está localizado no bairro Cidade com Deus, considerado um bairro periférico do município, construído por famílias de classe trabalhadora de menor poder aquisitivo, dentre eles, famílias de pescadores. O historiador professor Carlos Augusto dos Santos teve a oportunidade de explicar o histórico do bairro durante o Seminário da Territorialização organizado pelo Setor de Assistência Estudantil do campus Camocim em 2014. Segundo ele, o bairro era popularmente apelidado de “Cidade sem Deus”, pois na região havia histórico de violência e tráfico de drogas, além do preconceito com as classes populares. A população do bairro, sentindo-se prejudicada e injustiçada com o apelido pejorativo, pressionou a prefeitura para uma solução, e propuseram o nome de “Cidade com Deus”.
O IFCE chegou a esse bairro após a mudança de nome para Cidade com Deus, e despertou curiosidades e dúvidas. Existia apenas uma informação, a placa “CEFETCE”. A partir da construção do campus em conjunto com a construção de uma outra escola estadual, a Escola Profissionalizante Monsenhor Expedito da Silveira de Sousa (de tempo integral), um movimento de mudança se iniciou no bairro. Em 2010, começaram a chegar os primeiros trabalhadores a compor a equipe de terceirizados.
O campus Camocim foi inaugurado em 27 de dezembro de 2010 em Brasília, como parte da 2ª fase da Política de Expansão, na transição entre CEFETCE e IFCE. Após a sua inauguração, o IF Camocim permaneceu vinculado administrativamente ao IFCE de Acaraú, e com estatuto de campus avançado, sendo o diretor geral de Acaraú também responsável administrativamente por Camocim. Instalado na rua Dr. Raimundo Cals, n° 2041, bairro Cidade com Deus, representou um marco histórico na educação da cidade, ao ser a primeira instituição de ensino pública, presencial, gratuita e federal na região (INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO CEARÁ, 2015).
Tem como abrangência de atuação o atendimento às microrregiões que integram a 4ª Coordenadoria Geral de Desenvolvimento da Educação (4ª CREDE), a saber, os municípios de Camocim, Barroquinha, Chaval, Granja, Martinópole e Uruoca (INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO CEARÁ, 2019).
Entregue oficialmente à comunidade de Camocim em 2011, por meio da Portaria MEC nº 806 de 22/06/2011, o campus contou no início, entre outras dependências, com 5 salas de aula, 5 laboratórios, gabinete da diretoria, sala dos professores, secretaria, sala de videoconferência, auditório, biblioteca, área administrativa, portaria e recepção, cantina para merenda escolar, banheiros e estacionamento (INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO CEARÁ, 2018).
Em setembro de 2011, chegaram os primeiros servidores, sendo três docentes e dois técnico-administrativos. Segundo os entrevistados, a forma como foi materializada a política de expansão em Camocim é semelhante aos resultados de outras pesquisas sobre expansão dos IFs. Em comum, tem-se o ritmo acelerado, que iniciou o funcionamento sem a condição ideal, o descompassado face à estrutura existente e a demanda educacional, principalmente em Camocim, com o modelo de menor padrão “campus avançado”, sem infraestrutura física adequada de laboratório, de salas, a indeterminação na direção que se iria tomar, dentre outros.
Na época de início do campus, estavam previstos três eixos tecnológicos que orientaram a abertura dos cursos: o eixo Turismo, Hospitalidade e Lazer; o eixo Controle e Processos Industriais; e o eixo Recursos Naturais. Esses eixos foram modificados futuramente. Os eixos tecnológicos estão definidos, pelo Ministério da Educação (MEC), no Catálogo Nacional de Cursos Superiores de Tecnologia e no Catálogo de Cursos Técnicos. Define-se eixos tecnológicos como a matriz tecnológica que aglutina um conjunto de opções de cursos da educação profissional a partir das características comuns, de acordo com o tipo de conhecimento científico e tecnológico. A partir da escolha do eixo tecnológico, é possível definir quais cursos serão ofertados. Segundo o blog do IFCE campus Acaraú: “A unidade, focada no desenvolvimento dos arranjos produtivos locais, voltados para a área da Pesca e Aquicultura, objetiva a implementação da formação de programas de extensão, de divulgação científica e tecnológica e a valorização da pesquisa aplicada, da produção cultural, do empreendedorismo e do cooperativismo. Descentralizando o ensino da capital, o campus avançado do IFCE em Camocim tem como intuito garantir a fixação dos estudantes em sua região de origem, acabando com a necessidade do camocinense deslocar-se para a capital a fim de dar continuidade aos estudos” (INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO CEARÁ, 2011, online).
Partindo dessas expectativas, realizou-se a aula inaugural no dia 28 de maio de 2012, no auditório do campus, iniciando as suas atividades com a oferta dos cursos de Formação Inicial e Continuada (FICs).
Após o processo de articulação e debate, ocorreu a Audiência Pública Consultiva para definição de novos cursos no dia 12 de setembro de 2013, às 10h, no auditório do IF. Ela foi presidida pelo reitor, com presença do pró-reitor de ensino, diretor geral do campus, prefeita de Camocim, servidores e representantes do poder público, empresários e sociedade civil. A partir dessa audiência, concretizaram-se os seguintes eixos tecnológicos do MEC e respectivos cursos: no eixo Controle e Processos Industriais foi escolhido o curso Tecnólogo em Processos Ambientais; eixo Turismo, Hospitalidade e Lazer foi representado pelo curso Técnico em Restaurante e Bar; eixo Informação e Comunicação o curso Técnico em Manutenção e Suporte em Informática; eixo produção cultural e design, foram escolhidos os cursos Técnico em Instrumentos Musicais e o Superior em Tecnologia em Produção Cultural e Design, mas que na prática não foram implementados. Para os cursos de licenciatura, foram aprovados os cursos de Licenciatura em Química e Licenciatura em Letras Português/Inglês.
Observa-se que os cursos na área da pesca representaram uma promessa inicial para o potencial da área da pesca em Camocim, mas não se concretizaram dentro da agenda institucional do IFCE, e assim apenas o curso Tecnólogo em Processos Ambientais se aproximava indiretamente e poderia contribuir com os povos do mar. Internamente, propôs-se como alternativa atividades de extensão como cursos FICs para a área da pesca, mas não cursos regulares. Houve uma consulta à população da região acerca dos cursos de maior interesse, e no resultado dessa consulta, os cursos da área da pesca aparecem com poucos votos perante os jovens de ensino médio da região, ou seja, a juventude não vislumbrava a área profissional da pesca enquanto sucessão dos pescadores mais antigos. Além desse fato, esteve em debate na gestão a concretização de cursos formais para os pescadores, tendo em vista as características dos povos do mar de sazonalidade, e assim, a provável não adaptação à organização pedagógica do IFCE.
O eixo Recursos Naturais, se levado adiante, poderia ter trazido para Camocim cursos na área de Aquicultura, Produção Pesqueira, além de Fruticultura, Horticultura, dentre outros. Isso porque o eixo de Recursos Naturais compreende tecnologias relacionadas à extração e produção animal, vegetal, mineral, aquícola e pesqueira. Abrange prospecção, avaliação técnica e econômica, planejamento, extração, cultivo e produção de recursos naturais e utilização de tecnologias de máquinas e implementos (BRASIL, 2017).
Atualmente, a área do IF Camocim é de 3.095 m², sendo 1.595 m² do bloco administrativo e 1.212 m² do novo bloco didático. Ao todo são 15 salas de aula, dependências de convivência, setor administrativo, almoxarifado, 7 laboratórios (3 de informática, química, ciências ambientais, cozinha experimental e línguas), biblioteca e outras dependências.
Figura 3 – Mosaico: “ampliação do IFCE campus Camocim” |
|
Fonte: arquivos pessoais da autora, 2020. |
Assim, este estudo aponta que, mesmo sendo uma instituição centenária, o IFCE em sua interiorização passou por dificuldades estruturais e pedagógicas, com a expansão precarizada, sem as condições ideais e com poucos servidores. Em seu histórico, o campus escolheu os seus cursos de forma democrática com audiência pública, mas desvirtuou a expectativa inicial de trabalhar com a área da pesca. Ainda que, no geral, esteja em constante evolução e aprimoramento das ações de ensino, pesquisa e extensão, ampliação da matrícula e da oferta de novos cursos.
Dessa forma, a coerência institucional entre os objetivos de desenvolvimento local e a experiência da política na prática, em Camocim, deu-se em parte. Isso, porque o governo federal preconiza uma política com finalidades e objetivos grandiosos, tais como a identificação de problemas e criação de soluções tecnológicas para o desenvolvimento local e regional, inovação tecnológica e redução das desigualdades sociais, mas, em contrapartida, oferta investimentos limitados. Tais características são fundamentais para entender como se dá a interface dos resultados dessa expansão da EPT para os povos do mar, pois elas potencializam e limitam os resultados da implementação da política no contexto local.
A seguir, apresentam-se os resultados da política de expansão dos IFs no contexto de Camocim, destacando como se materializou a proposta de desenvolvimento socioeconômico local em relação ao contexto da pesquisa avaliativa, sobretudo no tocante aos povos do mar de Camocim.
4.2 Uma síntese avaliativa
Apresentam-se aqui os resultados da avaliação efetuada neste estudo, de acordo com o contexto da pesquisa, com o propósito de sair do plano conceitual do texto da política e adentrar no plano da prática, no mundo real da política, para melhor analisar e avaliar a política de expansão do IFCE, nos termos da avaliação experiencial de Lejano (2012), junto aos povos do mar em Camocim. Comparam-se os objetivos de desenvolvimento, preconizados pela política de expansão dos IFs, à experiência da política junto ao contexto dos povos do mar em Camocim/CE. Ou seja, avaliar a estrutura institucional do IF, formada por suas normas, fundamentos e legislação da expansão dos IFs frente ao campo da prática, do arranjo produtivo da pesca, desenvolvido pela comunidade tradicional dos povos do mar no bairro Praia em Camocim-CE.
De forma detalhada, o Quadro 1 estabelece a relação entre o texto da política e os indicadores de resultados da avaliação, utilizando o Plano de Expansão da Rede Federal de Educação Tecnológica (BRASIL, 2005), a Lei de criação dos IFs (BRASIL, 2008a) e o documento “Concepções e Diretrizes da Educação Profissional e Tecnológica: política da EPT 2003- 2010” (BRASIL, 2010).
Quadro 1 – Resumo: Avaliação IFCE e desenvolvimento dos povos do mar
POVOS DO MAR/DIMENSÃO |
TEXTO DA POLÍTICA |
O QUE MUDOU COM A EXPANSÃO DO IFCE EM CAMOCIM |
DIMENSÃO HISTÓRICA A presença de indígenas Tremembé e Tabajaras (primeiros povos do mar); fama do excelente porto; A cidade se ergue à beira-mar (bairro Praia); Porto e estação ferroviária desenvolveram Camocim. |
– Os IFs, em sua concepção, amalgamam trabalho-ciência-tecnologia-cultura na busca de soluções para os problemas de seu tempo, aspectos que, necessariamente, devem estar em movimento e articulados ao dinamismo histórico da sociedade em seu processo de desenvolvimento. (BRASIL, 2008b, p.34). |
– Projeto de extensão “Trilhas Urbanas: Camocim, um pote de histórias” (suspenso); – Não há projetos específicos do IFCE para os povos do mar. |
DIMENSÃO ECONÔMICA Camocim enquanto maior produtora de pescado, mas com a produção em declínio; parcerias não vantajosas; desigualdade nas relações da pesca.
|
– (Lei 11.892) Orientar sua oferta formativa em benefício da consolidação e fortalecimento dos arranjos produtivos, sociais e culturais locais, identificados com base no mapeamento das potencialidades de desenvolvimento socioeconômico e cultural no âmbito de atuação do Instituto Federal (BRASIL, 2008a); – (Plano de Expansão) (...) olhar fixo na realidade local, nas potencialidades estratégicas traduzidas pelos arranjos produtivos locais e no compromisso com a inclusão social dos contingentes menos favorecidos (BRASIL, 2005). |
– Para os estudantes do IFCE pertencentes aos povos do mar, a instituição proporcionou a perspectiva de inserção no mercado de trabalho (fora do setor pesca) da maioria dos entrevistados; – Elevação de renda das mulheres participantes do “Minicurso de aproveitamento de pescados: uma perspectiva de culinária local” para as famílias dos pescadores, para complementar a renda da família; – O campus contribuiu com o desenvolvimento econômico da atividade da pesca de forma incipiente. |
DIMENSÃO LABORAL Maior e mais antiga colônia de pescadores (1.000 pescadores); pesca artesanal sem inovação; profissão de alto risco com histórico de acidentes e naufrágio; embarcações tradicionais; não sucessão da profissão de pai para filhos. |
Desenvolver a educação profissional e tecnológica como processo educativo e investigativo de geração e adaptação de soluções técnicas e tecnológicas às demandas sociais e peculiaridades regionais (BRASIL, 2008a). |
– Pesquisas sobre o trabalho dos pescadores artesanais; – Não há projetos específicos do IFCE para o aprimoramento da pesca, sobretudo a pesca artesanal; – Diálogo embrionário com os atores sociais da pesca. |
DIMENSÃO EDUCACIONAL Baixo nível de escolaridade; abandono escolar; possui apenas um curso preparatório. |
– (Plano de Expansão) Ampliar a área de atuação da Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica, com vistas à formação de cidadãos críticos e profissionais competentes, com autonomia ética, política, intelectual e tecnológica; – (Plano de Expansão) Implantar EPT nos estados ainda desprovidos destas instituições, além de preferencialmente em periferias de grandes centros urbanos e municípios interioranos, distantes de centros urbanos, cujos cursos estejam articulados com as potencialidades locais de mercado de trabalho (BRASIL, 2005). |
– Implantação do IFCE campus Camocim em 2010; – Os pescadores desconhecem a atuação do IFCE; – Os familiares dos pescadores são os que mais procuram o IFCE; – Oferta de 2 cursos técnicos e 3 superiores públicos, gratuitos e presenciais; – Oferta de Cursos FICs Ostreicultura e Aquicultura; – Oferta de “Minicurso de aproveitamento de pescados: uma perspectiva de culinária local” com familiares dos pescadores; – Não há cursos para os pescadores; – Presença de pescador em projeto de extensão de Letramento Avançar; – Não há estratégias de adaptação do ensino do IFCE aos pescadores; – O campus não conta com o eixo tecnológico Recursos Naturais |
DIMENSÃO CULTURAL Tradições culturais, procissões, regata, salão de artes, aniversário da cidade; dança do coco, reisado, dominó, bingo, conversas nas calçadas, praias, capoeira; patrimônio imaterial (paisagem do porto das canoas), barcos artesanais que já não existem mais em outros lugares do mundo. |
Na compreensão de seu trabalho coletivo, os institutos federais reúnem, da diversidade sociocultural, princípios e valores que convergem para fazer valer uma concepção de educação profissional e tecnológica em sintonia com os valores universais do homem, daí a importância de assegurar, nos institutos federais, o lugar da arte e da cultura (BRASIL, 2010). |
– Incentivo ao grupo de dança de coco de praia; – Projeto Capoeira e Letramentos de Resistência; – Apoio no evento Salão de Artes; – Novas metodologias pedagógicas que articulam ciência, tecnologia e cultura; – Não há projetos do IFCE específicos para os povos do mar. |
DIMENSÃO SOCIAL Pescadores “heróis”; relação social “desconfiada”, atividade majoritariamente masculina; filhos detentores de sabedoria popular e perfil participativo dentro do IFCE; condição social de renda; |
Os novos institutos federais atuarão em todos os níveis e modalidades da educação profissional, com estreito compromisso com o desenvolvimento integral do cidadão trabalhador (...) a política pública estabelece-se no compromisso de pensar o todo como aspecto que funda a igualdade na diversidade (social, econômica, geográfica e cultural) e ainda estar articulada a outras políticas (de trabalho e renda, de desenvolvimento setorial, ambiental, social e mesmo educacional, dentre outras). (BRASIL, 2010). |
– Estudantes filhos de pescadores com acesso à assistência estudantil do IFCE; – Estudantes filhos de pescadores bolsistas do IFCE em pesquisa e extensão; – Não há projetos do IFCE específicos para os povos do mar nas temáticas dos direitos humanos e sociais (gênero, raça etnia, diversidade sexual etc.).
|
DIMENSÃO SAÚDE Alcoolismo, acidentes de trabalho.
|
A educação profissional e tecnológica, enquanto política pública estratégica de Estado, estará articulada com um conjunto de outras políticas públicas que estão em curso, tais como: (...) política de saúde (BRASIL, 2005). |
– Estudantes filhos de pescadores com acesso à assistência estudantil do IFCE (setor saúde). |
DIMENSÃO POLÍTICA Relação com a colônia de pescadores, relação com a prefeitura. |
A comunicação entre os institutos federais e seu território torna-se imprescindível na definição de rumos a ser construídos a partir de uma concepção endógena, sob o ponto de vista de projetos locais (BRASIL, 2010). |
– Diálogo embrionário com os atores sociais da pesca; – Fortalecimento da parceria com a prefeitura. |
DIMENSÃO AMBIENTAL Poluição da praia |
Promover a produção, o desenvolvimento e a transferência de tecnologias sociais, notadamente as voltadas à preservação do meio ambiente (BRASIL, 2008a). |
– Projeto de Limpeza das praias e mangues; – FIC Agentes de Desenvolvimento Socioambiental; – Projeto de monitoramento da água Bhoia (suspenso).
|
Fonte: Elaborado pela autora, 2020.
Assim, analisando o deslocamento institucional da política para o contexto do IFCE campus Camocim e dos povos do mar do bairro Praia, a pesquisa localiza indicadores de resultados positivos, pontos críticos e possíveis mudanças na implementação dos cursos. Os resultados positivos foram: ampliação do acesso à educação profissional pública, presencial, federal, com professores qualificados; a mudança do perfil discente, com a entrada da primeira geração dos povos do mar com acesso ao nível superior; maior participação dos discentes com saberes populares do meio ambiente; mudança de vida dos estudantes dos povos do mar; concepção de EPT, que considera a formação teórica relacionada à prática; o aumento do número de atividades de extensão com oferta de cursos FICs e limpeza das praias; e maior compromisso de alguns servidores com os discentes e seu contexto. Esse objetivo geral da política de expansão da EPT foi, em boa parte, coerente no contexto de Camocim, tendo em vista que o campus está em processo de estruturação.
Os pontos críticos da avaliação foram: expansão precarizada; ausência do eixo tecnológico da pesca e desvio da proposta de trabalho inicial; os projetos de pesquisa e extensão para os povos do mar tiveram alcance limitado frente ao potencial da instituição; os pescadores mantêm a sua prática profissional da mesma forma quando o IFCE chegou à cidade; poucas atividades educativas para os pescadores e aprimoramento da pesca; dificuldades de dialogar com os atores sociais da pesca; poucos profissionais comprometidos com o trabalho nas comunidades; proposta pedagógica não flexível para oportunizar o acesso do pescador a um curso regular no IF; o IFCE é pouco conhecido perante os pescadores. Isso leva a considerar alguns pontos para a mudança da implementação da política a nível local, que são: maiores investimentos; o maior diálogo com a comunidade da pesca; oferta de cursos para os povos do mar e para pescadores; organização institucional para garantir o acesso desses sujeitos ao ensino formal; e garantia de uma mudança coletiva da pesca, além da mudança de vida pessoal.
5 Considerações finais
Esta avaliação, considerando as condições de vida dos povos do mar, reconhece a necessidade do IFCE campus Camocim de fortalecer sua organização interna e apoio mútuo a fim de elaborar um projeto institucional amplo, que tenha a perspectiva de desenvolvimento para os povos do mar, no sentido de Furtado (1980), elevando as potencialidades culturais, sociais, laborais e ambientais, não se limitando quanto à formação e mudança individual dos sujeitos. Orientar-se para os povos do mar, portanto, significa ao IFCE atentar para afirmar uma atuação que articule ensino, pesquisa e extensão, adaptando-se e respeitando a cultura local e os saberes populares, por meio de projetos mais flexíveis, articulados e com mais parcerias, com respeito à sua autonomia (BRASIL, 2010).
Referências
ARCARY, V. Uma nota sobre os institutos federais em perspectiva histórica. [S.l: s.n], 2015. Disponível em: https://sinasefe.org.br/memoria/2015/03/23/valerio-arcary-lanca-artigo-sobre-institutos-federais/. Acesso em: 07 ago. 2018.
BRASIL. Ministério da Educação. Catálogo Nacional de Cursos Técnicos. Portal do MEC. Edição 2017. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/docman/novembro-2017-pdf/77451-cnct-3a-edicao-pdf-1/file. Acesso em: 27 fev. 2019.
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Relatório de Auditoria Operacional em Ações da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica. TC 026.062/2011-9. Relator: Ministro José Jorge. Modalidade: Auditoria Operacional – Fiscalização de Orientação Centralizada. Brasília, DF: TCU, 2012.
BRASIL Ministério da Educação. Concepções e Diretrizes da Educação Profissional e Tecnológica: política da EPT 2003- 2010. Brasília: SETEC/MEC, 2010. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=6691-if-concepcaoediretrizes&Itemid=30192. Acesso em: 11 ago.2018.
BRASIL. Lei nº 11.892, de 29 de dezembro de 2008. Cria os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, 2008a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11892.htm . Acesso em: 07 ago.2018.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica. Institutos Federais de Ciência , Educação e Tecnologia: concepção e diretrizes. 2008b. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/setec/arquivos/pdf3/ifets_livreto.pdf. Acesso em: 11 ago. 2018.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica. Plano de expansão da Rede Federal de Educação Tecnológica – Fase I. Brasília-DF: MEC, 2005. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/setec/arquivos/pdf/apresentacaocriteriofase2.pdf. Acesso em: 03 maio 2018.
BRASIL. Lei n. 9.394, 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, DF: Presidência da República, [1996]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 27 jul. 2022.
BRESSER-PEREIRA, L. C. Do antigo ao novo desenvolvimentismo na América Latina: texto para discussão. São Paulo: FGV, 2010. v. 274.
CENTRO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA DO CEARÁ. Relatório de gestão exercício 2007. Site do CEFETCE, 2007. Disponível em: https://ifce.edu.br/instituto/documentos-institucionais/processo-de-Contas_arquivos/2007/relatorio_de_gestao_2007.pdf. Acesso em: 02 mar. 2020.
DIEGUES, A. C.; ARRUDA, R. S. Vieira; SILVA, V. C. F. da; FIGOLS, F. A. B.; ANDRADE, D. Os saberes tradicionais e a biodiversidade no Brasil. São Paulo: MMA/COBIO/NUPAUB/USP, 2000.
FURTADO, C. Pequena introdução ao desenvolvimento: enfoque interdisciplinar. São Paulo: Nacional, 1980.
GIL, A. C. Método e técnicas de pesquisa social. 6.ed. São Paulo: Atlas, 2014.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Sinopse do Censo Demográfico 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2010. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/tabelas_pdf/Ceara.pdf. Acesso em: 27 fev. 2019
INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO CEARÁ. Plano de Desenvolvimento Institucional - Instituto Federal do Ceará (2019 – 2023). Ceará: IFCE, 2019. Disponível em: https://ifce.edu.br/instituto/documentosinstitucionais/plano-de-desenvolvimento-institucional/pdi-2019-23-versao-final.pdf/view. Acesso em: 02 mar. 2020.
INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO CEARÁ. Anuário Estatístico 2018. Fortaleza: IFCE, 2018. Disponível em: https://ifce.edu.br/instituto/anuario-estatistico/anuario-ifce-2017_2018.pdf/view. Acesso em: 20 jan. 2020.
INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO CEARÁ. Projeto Político Institucional. Fortaleza: IFCE, 2015. Disponível em: https://ifce.edu.br/instituto/documentos-institucionais/outros-documentos/ppi-ifce.pdf. Acesso em: 10 ago.2018.
INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO CEARÁ. IFCE Campus Acaraú. Blogspot, Acaraú, 8 jul. 2011. Disponível em: https://ifce-acarau.blogspot.com/search?q=camocim. Acesso em: 01 mar. 2020.
LEJANO, R. P. Parâmetros para análise de políticas públicas: a fusão de texto e contexto. Campinas: Arte Escrita, 2012.
PACHECO, E. Os Institutos Federais: uma revolução na educação profissional e tecnológica. Brasília: MEC, 2011. Disponível em: portal.mec.gov.br/setec/arquivos/pdf/insti_evolucao.pdf . Acesso em: 01 mar. 2019.
PAULA, J. A. Celso Furtado, desenvolvimento e transformação social. In: D'AGUIAR, R. F. (org.). Celso Furtado e a dimensão cultural do desenvolvimento. Rio de Janeiro: E-papers; Centro Internacional Celso Furtado, 2013. p. 16 - 43.
PEREIRA, E. M. ; ALBUQUERQUE, C. S. Transformações contemporâneas e política educacional no Brasil: formação profissional em Serviço Social na experiência do IFCE. Revista Labor, Fortaleza, CE, v. 1, p. 80-94, 2015. Disponível em: http://www.periodicos.ufc.br/labor/article/view/6568. Acesso em: 05 nov. 2022.
REZENDE, S. M. Uma década de avanço em ciência, tecnologia e inovação no Brasil. In: SADER, E. (org.). Lula e Dilma: 10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil. São Paulo, SP: Boitempo; Rio de Janeiro: FLACSO, 2013, p. 265-283.
SANTOS, C. A. P; FREITAS, G. Historiando Camocim. Sobral: EdUVA, 2017.
SANTOS, J. A. Política de expansão da RFEPCT: quais as perspectivas para a nova territorialidade e institucionalidade? In: FRIGOTTO, G. Institutos federais de educação, ciência e tecnologia: relação com o ensino médio integrado e o projeto societário de desenvolvimento . Rio de Janeiro: EdUERJ, LPP, 2018.
SAVIANI, D. Trabalho e educação: fundamentos ontológicos e históricos. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 12, n. 34, p. 33-38, jan. abr. 2007. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/wBnPGNkvstzMTLYkmXdrkWP/?lang=pt. Acesso em: 05 nov. 2022.
SILVA, V. L; AGUIAR, A. S. S. "Um oásis dos menos favorecidos da sorte": a experiência do Serviço de Promoção Humana (SPH), Camocim/CE. 1962-1979. Sobral: EGUS, 2014.
Recebido em: 20/04/2022.
Aceito em: 05/11/2022.
DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n29.62871.p133-161
* Assistente Social no IFCE campus Camocim/Brasil. Mestra em Avaliação de Políticas Públicas pela Universidade Federal do Ceará (UFC)/Brasil. E-mail: anielybrilhante@gmail.com.
** Professor da Universidade Federal do Ceará (UFC)/Brasil. Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)/Brasil. E-mail: alcidesfernandogussi@gmail.com.
[1] Por educação profissional e tecnológica (EPT) entende-se uma modalidade educacional prevista na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, e que tem como finalidade preparar “para o exercício de profissões”, contribuindo para que o cidadão possa se inserir e atuar no mundo do trabalho e na vida em sociedade.
[2] O Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) representa uma instituição de educação superior, básica e profissional, pluricurricular e multicampi, especializada na oferta de educação profissional e tecnológica nas diferentes modalidades de ensino, com base na conjugação de conhecimentos técnicos e tecnológicos com as suas práticas pedagógicas, e é equiparado às universidades federais (BRASIL, 2008b).
[3] A politécnica é compreendida como uma especialização com domínio dos fundamentos científicos das diferentes técnicas utilizadas que caracterizam o processo de trabalho moderno. Não significa a formação de técnicos especializados, mas de politécnicos (SAVIANI, 2007, p. 161). Busca, a partir do desenvolvimento do capitalismo e de sua crítica, superar a proposta burguesa de educação que potencialize a transformação estrutural da realidade.
[4] Segundo o pescador, caçoeira é uma rede de arrastão para pesca em alto-mar.
[5] Entrevista realizada em dezembro de 2019, sexo masculino, 41 anos.
É permitido compartilhar (copiar e redistribuir em qualquer suporte ou formato) e adaptar (remixar, transformar e “criar a partir de”) este material, desde que observados os termos da Licença CC BY-NC 4.0.