SOBRE LUTO E DOR, EMOÇÕES E PANDEMIA: encontros com o pensamento de Mauro Koury [1]
ABOUT MOURNING AND
PAIN, EMOTIONS AND PANDEMIC:
encounters with the thought of Mauro Koury
Ednalva Maciel Neves *
https://doi.org/10.46906/caos.n28.63077.p130-141
Resumo
Este texto faz uma homenagem ao professor Mauro Koury (1950-2021), quando do seu falecimento. Ele é a versão impressa de uma Live intitulada “Uma homenagem à vida e à obra de Mauro Koury: a cerimônia do adeus”, realizada pela Revista M. Estudos sobre a morte, os mortos e o morrer (UFRJ), ocorrida em 2021. É consenso entre os colegas que seu legado acadêmico é imenso, em especial pela produção acadêmica e pela atuação na formação de cientistas sociais, mesmo após sua aposentadoria. Como colega do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia/UFPB, busquei abordar seu pensamento a partir dos encontros que tive com sua obra, pois abordamos o tema da morte, porém a partir de perspectivas diferentes. Um desses momentos envolve a leitura de sua obra sobre morte, luto, dor, medo e urbano, na configuração da antropologia e sociologia das emoções. Outro momento diz respeito às reflexões sobre a crise sanitária, sistematizadas em três publicações em que o autor atualiza seu pensamento diante da tragédia da pandemia. Por fim, convido o leitor a se dedicar ao pensamento instigante de Mauro Koury, um cientista social das emoções.
Palavras-chave: morte; pandemia; homenagem; Mauro Koury.
Abstract
This text pays tribute to Professor Mauro Koury (1950-2021), on his death. It is the printed version of a Live entitled “A tribute to the life and work of Mauro Koury: the goodbye ceremony”, held by Revista M. Studies on death, the dead and dying (UFRJ), which took place in 2021. There is a consensus among colleagues that his academic legacy is immense, especially for his academic production and for his work in the training of social scientists, even after his retirement. As a colleague at the Department of Social Sciences and the Graduate Program in Anthropology/UFPB, I sought to approach his thinking from the encounters I had with his work, as we approach the theme of death, but from different perspectives. One of these moments involves the reading of his work on death, mourning, pain, fear and the urban, in the configuration of the anthropology and sociology of emotions. Another moment concerns the reflections on the health crisis, systematized in three publications in which the author updates his thinking in the face of the tragedy of the pandemic. Finally, I invite the reader to dedicate themselves to the thought-provoking thought of Mauro Koury, a social scientist of emotions.
Keywords: death; pandemic; tribute; Mauro Koury.
Como professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPB, penso que é muito importante que Mauro Koury (1950-2021) seja homenageado tanto por sua contribuição para a criação e consolidação quanto por sua participação nesses 10 anos de existência do Programa, além do seu papel na formação de antropólogos que hoje são professores do programa ou estão em outras instituições pelo país. Para o Departamento de Ciências Sociais da UFPB, foram 41 anos de vínculo e dedicação (1979-2000). E, após sua aposentadoria, deu continuidade aos seus trabalhos como professor voluntário do PPGA, mantendo a intensa vida acadêmica que é um de seus atributos. Para se ter ideia, em consulta ao seu curriculum lattes na página do CNPq, entre 2020, ano de sua aposentadoria, e 2021, ele deixou divulgados: 15 artigos completos publicados em periódicos, 02 livros de sua autoria e um livro organizado, além de 04 capítulos de livros e 02 textos publicados em jornais de notícias/revistas.
Dito isso, quero lembrar sua amabilidade/gentileza como um traço presente nos encontros cotidianos na universidade, em especial no Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA), com a comunidade acadêmica, assim como sua posição firme e clara na defesa das suas proposições em reuniões formais do nosso Departamento.
Quero confessar que fiquei paralisada com a notícia do seu falecimento, porque as informações que tínhamos eram sobre sua recuperação e possibilidade de sair da UTI. Tomei conhecimento pelos canais institucionais do CCHLA e da ADUFPB, confirmadas por uma colega. Passei uns dias muito afetada, sem querer entender e não acompanhei publicações ou quaisquer outros manifestos. Acho que essa é uma atitude de defesa psicológica que desenvolvi diante de experiências anteriores com notícias abruptas/inesperadas. Pensei que precisava viver esse luto, quieta, como ele argumenta em sua obra, acontecendo sem manifestação pública de sentimentos, enquanto uma pessoa desgostosa com o mundo, especialmente com sua insensibilidade e mercantilização de afetos.
Porém o encontro com Rachel Menezes durante a IV Reunião de Antropologia da Saúde, e diante da proposta da Revista M, por meio de Andreia Vicente, se configuraram como uma oportunidade de lembrar o professor e colega numa homenagem em que seu pensamento e vida são acolhidos e apreciados como constituinte das Ciências Sociais no Brasil, seja na produção de conhecimento, seja por sua maestria na formação de pessoas como cientistas sociais.
Quero esclarecer que não sou especialista em antropologia/sociologia das emoções, nem na antropologia da imagem; mas sou uma leitora que teve seu ingresso nas Ciências Sociais em contato com Mauro Koury, eu estudando as representações sobre a morte e o morrer; ele estudando o luto e a dor como expressão de sentimentos. Mantinha-me sempre curiosa sobre dois temas que lhe inquietavam como fenômenos sociais: o luto e os medos. O primeiro desses temas, porque me remetia à morte, ao morrer e aos rituais; enquanto o segundo pela perspectiva da relação entre medos, confiança, insegurança como expressão dos riscos/perigos que era minha chave de leitura sobre discursos e práticas de conhecimento.
Quero assinalar que, nessa homenagem, trago uma leitura breve, buscando pontuar sobre os processos de conhecimento e convivência, marcados pela “interpelação à distância” como ele comentou uma vez sobre nossas relações.
Assim, minha homenagem ao professor Mauro Koury consiste em retomar a vida, num primeiro momento a partir dos encontros — meu encontro — com suas publicações e, num segundo momento, fazendo um convite à leitura de suas publicações sobre/na pandemia.
Falando de encontros, o primeiro deles ocorreu a partir do meu ingresso no mestrado em Sociologia na UFPB, em meados dos anos de 1990, quando temas sobre o rural, trabalhadores, sindicatos, desenvolvimento e fotografia/imagem da morte estão no centro de sua reflexão.
Eu, vinda de uma especialização em Medicina Preventiva e Social, ingressei no mestrado para estudar a desigualdade diante da morte — não qualquer morte, mas as mortes que ocorriam em casa —, morte domiciliar (designada no sistema oficial de saúde, como morte sem assistência), cujo registro estatístico era alto nos anos 1990.
Foi nesse contexto que conheci os Cadernos de Ciências Sociais, uma publicação do PPGS que antecedeu a Revista de Ciências Sociais Política & Trabalho.
Em 1993, Mauro havia publicado no número 28, um ensaio intitulado Pobreza e luto: ensaio sobre cidadania e exclusão social, e, em 1996, publicou outro ensaio no número 38, intitulado A formação do homem melancólico: luto e sociedade no Brasil. Embora ambos me interessassem, o segundo ensaio foi emblemático, porque eu já tinha terminado o meu trabalho de campo. E eu estava indo morar em São Luís do Maranhão, após ingressar na docência na Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
O fato é que, embora o ensaio não fosse sobre as representações acerca da morte e do morrer, foco do meu estudo, ele trazia uma reflexão importante sobre a sensibilidade e os sentimentos, dor e luto numa sociedade cada vez mais urbana, assunto que abordei na minha pesquisa realizada na cidade de João Pessoa. Além disso, apresentava parte da literatura sobre o fenômeno da morte, de modo que encontrava naquela publicação: Manuela Carneiro da Cunha, José de Souza Martins, José Carlos Rodrigues, Norbert Elias, Marcel Mauss, entre outros.
No entanto minha alteridade era com o discurso médico, especificamente sobre a morte no hospital — a morte higiênica e interdita, nos termos de Ariès (1989). De fato, como sanitarista tinha interesse sobre a desigualdade social, pensada a partir da morte e o morrer como um fenômeno definido pela posição social dos indivíduos, estabelecendo quem, de que e como as pessoas morriam. Por outro lado, eu tinha a alteridade com a categoria de “morrer no meu lugar”, como as famílias diziam ser o desejo do falecido, que identificava a escolha cultural pela boa morte. Uma perspectiva simbólica que confrontava a morte hospitalar.
Mauro Koury abordava o fenômeno após a morte, as dores e sofrimentos dos vivos urbanos de classe média. Foi fascinante para mim ler, em 1996, todo o seu diálogo em torno das transformações no sistema cultural de morte a partir da ascendência do individualismo, fazendo a morte recuar para a interioridade do indivíduo, em especial sobre a privatização das emoções e emergência de outra sensibilidade coletiva.
De fato, Mauro Koury argumenta em torno da ambiguidade entre a presença da dor da perda do ente querido e o estranhamento de sua expressão pública pelos segmentos médios urbanos, incluindo a “classe média intelectualizada”. Em suas palavras, “O luto como expressão social é encoberto por uma espessa malha que delimita contornos e o expulsa para dentro da pessoa.” (KOURY, 1996, p. 6).
Por isso, o autor define a “economia moral da dor da perda na sociedade brasileira” como regida por dois domínios: o individualismo e as relações mercantis — mutuamente implicadas. De fato, considera que as “relações mercantis do individualismo [são] movimentadas pela ideia do ser discreto enquanto conduta do comportamento civilizado.” (KOURY, 1996, p. 9)
O interessante é que ele toma as “relações mercantis” para expressar, não a dimensão econômica e material da vida cotidiana, mas as trocas simbólicas entre a expressão pública da dor pela “domesticação da individuação” e pelo “princípio do desempenho” de modo a “não perturbar o bom funcionamento dos papéis em representação pelos sujeitos em relação.” (KOURY, 1996, p. 13).
Essa reflexão sobre mundo exterior e interioridade, leva-o a estabelecer uma distinção entre individuação e individualismo. Para ele, a individuação consiste num processo integrativo da pessoa na sociedade. Assim,
quanto mais abafada e constrangida se encontre a pessoa, quanto mais a subjetividade for tratada como problema pessoal, íntimo e não social, como indizível, mais o individualismo parece comandar os destinos individuais, parecendo enfatizar a morte, como desilusão, como código básico de conduta.” (KOURY, 1996, p.10).
Daí, emerge “a vergonha da demonstração pública da dor ou da expressão de solidariedade, ou o não saber o que fazer à dor do outro, resulta num automatismo de relações, movido pelo grau de afastamento ou abandono do sujeito de sua perda.” E o sujeito “fecha-se, então, em sua privacidade, intensificando a sua desilusão com o mundo e consigo mesmo. Receia, ao mesmo tempo, que esse mundo perceba a sua dor e dele reclame significados.” (KOURY, 1996, p. 14).
Evidente que esse sujeito melancólico, psicológico, aparecia no meu trabalho, naquelas recusas da classe média em conceder entrevistas, por exemplo. Mas eu estava longe de entender a atualidade e profundidade do pensamento de Mauro Koury naquele momento, visto que partia do estranhamento do hospital como lugar de morrer e encontrava nas famílias com quem conversei outras perspectivas sobre o “morrer e a morte”, uma expressão cultural e simbólica que valorizava o sujeito, a partir da localidade — o lugar de morrer — como experiência de vida, impregnada pela história pessoal e familiar, pelas relações familiares e seu entorno. Eu encontrava uma relação com a morte que estava nas bordas, nas franjas do sistema social dominante e do modelo biomédico, inspirada numa chave de leitura da cultura, na perspectiva de Thomas (1993), Hertz (2016), Mauss (2003).
O segundo encontro se deu durante a orientação e coorientação do discente José Felipe de Lima Alves do PPGA, nos anos de 2015 e 2016. A dissertação de Felipe Alves — Segura na mão de deus e vai...”: etnografia dos rituais de despedida na cultura fúnebre do Crato-CE/Brasil — enfatizava os fenômenos ligados à morte e ao morrer, incluindo sua captura pelo sistema capitalista e a emergência dos planos funerários.
Essa orientação conjunta se configurou como momentos de convivência e aprendizado, demarcando nossas experiências e perspectivas analíticas. Mauro sempre atento às subjetividades, às emoções, as interações e configurações sociais engendradas nos contextos urbanos, e eu ancorada numa perspectiva cultural e simbólica sobre a morte e seus rituais, mais interessada na abordagem antropológica sobre experiências de adoecimentos e políticas de saúde, risco e produção de conhecimento.
Esse período de convivência me levou a prestar mais atenção às publicações dos GREM/GREI. Foi quando tive a oportunidade de ganhar a dedicatória de Mauro Koury, numa publicação intitulada Da subjetividade às emoções: a antropologia e a sociologia das emoções no Brasil, publicada em 2015, junto com Raoni Borges Barbosa (KOURY; BARBOSA, 2015). No primeiro capítulo, Mauro apresenta e reflete sobre a obra de Gilberto Velho e sua contribuição como um dos precursores da antropologia/sociologia das emoções. No segundo capítulo, Raoni Barbosa apresenta o “esquema conceitual” do pensamento de Mauro Koury como um dos precursores desse campo no Brasil, o que me ajudou a compor estas anotações.
O texto de Raoni Barbosa contribui, não só para o entendimento sobre as filiações filosóficas e antropológicas de Mauro Koury, mas, principalmente, para dimensionar como a categoria analítica “emoções” compõe uma chave de leitura e inteligibilidade das relações entre indivíduo e sociedade na experiência urbana contemporânea.
Para Barbosa (2015), o esquema conceitual de Mauro Koury, enquanto um dos teóricos da antropologia e sociologia das emoções, filia-se a uma tradição de pensamento simbólico-interacionista ancorado na filosofia social de Simmel, na sociologia figuracional de Elias e nos trabalhos de Mead, Goffman, Scheff, Velho, DaMatta, dos estudiosos da escola de Chicago, entre outros.
Entendi que os “sentimentos de luto, medos, constrangimentos, vergonha, gratidão, pertença, segredos, confiança e confiabilidade, lealdade, amizade, solidariedade e outros” (BARBOSA, 2015, p. 62) eram os processos subjetivos a partir dos quais o fenômeno das emoções pode ser compreendido no modelo societário vigente. Por conseguinte, a trajetória de pesquisador se volta para a microanálise, com ênfase na dimensão relacional e na intersubjetividade.
A discussão sobre a “emergência de uma nova sensibilidade ou cultura emotiva no Brasil” movimentada a partir das classes médias urbanas integra um processo de transformações estruturais no plano cultural, conforme analisa Barbosa (2015, p. 68-69), destacando-se o processo de privatização das emoções, impessoalidade e individualismo, insegurança e medos nas relações cotidianas.
A partir dessa leitura, dei-me conta como Mauro Koury vinha se dedicando a essa reflexão desde finais dos anos 1990, como aquela publicação do Cadernos de Ciências Sociais do PPGS/UFPB. Segundo Raoni Barbosa, o pensamento de Mauro Koury expõe as tensões e conflitos que se expressam no espaço interacional entre o público e o privado na medida em que tais transformações questionam a etiqueta tradicional. (BARBOSA, 2015, p. 69).
Nessa leitura, em 2016, eu me defrontei com sua elaboração sobre a construção do sujeito moderno, encapsulado numa economia das pulsões e das emoções baseada na repressão dos sentimentos. Deparei-me com o processo que vivi oito anos antes, com a morte de meu pai. Com algumas diferenças, naqueles momentos, sentia-me acometida pela vergonha do sentimento de perda de um ente querido, era impelida a agir com discrição e manter o engajamento no trabalho como parte do exercício de ocultar o luto e o sofrimento, encarados como fenômenos de ordem pessoal e de foro íntimo e subjetivo. O enlutado, ao expressar seus sentimentos, expõe sua vergonha e culpa; ao mesmo tempo que expõe sua vinculação com a morte — aquilo que contamina e ameaça a vida (DOUGLAS, 1976). Na urbanidade, a morte está cada vez mais confinada aos espaços mínimos da individualidade e dos familiares, de modo a não perturbar a produtividade consumista neoliberal.
Como nos diz Foucault, uma racionalidade que se imiscui lá onde deveria prevalecer o que não pode ser mercantilizado ou margem de empreendedorismo (FOUCAULT, 2010). O indivíduo se encontra sem o suporte/apoio dos sistemas coletivos como religião, família e comunidade, os custos recaem sobre os indivíduos, subjetividades e selfs, a exemplo da melancolia (BARBOSA, 2015, p. 71).
O desafio de Mauro Koury era compreender as figurações contemporâneas das relações entre indivíduo e sociedade, nas quais a cultura emotiva se constitui como fato social total (BARBOSA, 2015). A dimensão empírica dos seus estudos é muito ampla (rural, sindicalismo, desenvolvimento, juventude), mas a sociabilidade urbana, ethos e suas transformações se tornam o seu grande laboratório. A cidade se configura como o espaço-tempo das relações sociais e das emoções, engendrando medos corriqueiros, medos, insegurança, violência, desconfiança, confiança e confiabilidade, amizade, segredo e sofrimento social.
Esses são alguns elementos que elenquei para lembrar sua obra, naquilo em que ela me afetou como interlocutora e como pessoa, urbana e de classe média. Agora, passo para o convite que quero deixar aqui registrado. Após visitar esses textos, que estão longe de dar conta do conjunto da obra de Mauro Koury, perguntei-me: como ficam as emoções num contexto de pandemia?
Acho que Mauro Koury nos oferece uma análise crítica do contexto institucional-político e sanitário brasileiro, enfatizando uma sociedade cingida entre aqueles que podem permanecer no isolamento social e os que não compartilham dessa condição — os pobres, ou o homem comum, como ele diz. São três publicações que resumo aqui, como parte desse convite.
A primeira, o leitor encontra em Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, na seção Reflexões na pandemia, publicada em 2020. Nesse texto, ele (KOURY, 2020a) exalta como a antropologia tem se apropriado da categoria analítica da violência para abordar a “destruição de costumes e formas de viver e produzir locais” e dialoga com Veena Das (2020) quando esta convoca os antropólogos a compreender o humano nesse contexto de crise pandêmica.
Convido à todes a lerem esse artigo, porque ele é primoroso em expor as mazelas vigentes de um modelo civilizatório que não tem o humano como referência, mazela que foi explicitada pela pandemia. De uma política genocida e segregacionista, às formas de colonização e à “guerra santa” das igrejas direitistas neopentecostais (braço teológico do capital neoliberal), à destruição do meio ambiente, à produção do ódio à diferença, à retomada de hierarquias (dominação masculina e branca) e retiradas de direitos sociais são partes de um projeto.
Ainda nesse texto, Mauro Koury examina a escalada de produção de medo, angústia e incertezas no destino da pessoa/coletividade a partir da crise do modelo capitalista neoliberal radical e a ascensão da direita, que se agrava no contexto da crise sanitária. Por um lado, uma “população pobre, carente e sem recurso algum para se proteger, e excluída das demandas públicas de proteção” (KOURY, 2020a, p.1). Do outro lado,
o sentimento de angústia toma conta do país. Ela revela nos estratos médios da sociedade um sentimento de torpor e uma sensação de perigo eminente, movidos pela incerteza sobre o dia de hoje e de um futuro próximo no país e no mundo. E essa sensação e esse sentimento só fazem aumentar o medo e a insegurança pessoal e coletiva presentes na situação-limite[2] vivida (KOURY, 2020a, p. 1).
Dito isso, seus argumentos são críticos quanto às crises que avançam no país, até os dias atuais: sanitária, político-institucional e econômica com o retorno da pandemia.
Por isso, o artigo convoca a antropologia para repensar suas bases epistemológicas e reflexivo-crítica como uma contribuição à construção de uma “humanidade solidária”, como um futuro possível, contrapondo-se à opressão e “afirmando categorias que apontem para a diferença, a autonomia e a diversidade do humano como instâncias tensas e solidárias do pertencer.” (KOURY, 2020a, p. 05).
O convite se estende à leitura do artigo publicado em maio de 2020, intitulado O Covid-19 e as emoções: pensando na e sobre a pandemia, que pode ser encontrado na RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, em seu suplemento especial. Nele, Mauro Koury (2020b) traz uma análise do contexto de crises no Brasil, a partir das narrativas de suas/seus interlocutoras/es sobre as condições de vida e emoções decorrentes desse contexto social hostil e desumano. São relatos contundentes que enfatizam o trabalho de campo do pesquisador apesar dos limites do isolamento social, a exemplo das reflexões realizadas por Sônia Maluf (2021) a partir de suas “janelas”.
A terceira publicação é o livro organizado e publicado ainda em 2020, intitulado Tempos de pandemia: reflexões sobre o caso Brasil (KOURY, 2020c). Trata-se de uma coletânea de pesquisadores do Norte e Nordeste
para se manifestarem com artigos e ensaios – textuais ou visuais – sobre a pandemia, com reflexões a partir dos seus estados ou municípios; ou para pensá-la em termos mais amplos. Nos dois casos, todavia, sempre vinculando a reflexão às teorias social e da cultura no interior da relação emoções, sociedade e cultura. (KOURY, 2020c, p. 6).
Além da introdução, a obra nos brinda com um capítulo intitulado As emoções em tempo de isolamento social. O capítulo reforça os argumentos presentes nas demais publicações, enfatizando o cenário de crises e
a construção insegura de novas rotinas diárias de segurança pessoal e familiar, em que o medo, a ansiedade, a tristeza, e a desesperança são tematizadas na ambivalência de um sentimento de culpa pessoal de não se ter certeza da saída da crise, associado a uma tentativa de “pensar positivamente” para não agravar a insegurança familiar. (KOURY, 2020c, p. 8, grifo do autor).
Para concluir, quero dizer que, no estudo sobre o luto e a dor, Mauro Koury se dá conta da privatização das emoções ancorada num sistema moral orientado pelo individualismo e desempenho, em razão do desaparecimento da vida coletividade e do mundo comum, da pessoa relacional e suas formas de solidariedade.
Olhando o conjunto da obra, dei-me conta de que suas publicações entre 2008 e 2010 marcam uma ampliação de sua abordagem sobre o fenômeno, passando do estudo sobre a “emoção” para a antropologia e sociologia das emoções. Acho que essa passagem marca uma inflexão não conceitual, mas empírica na medida em que percebe a pluralidade e fragmentação do alcance do individualismo, num processo iniciado historicamente nos anos 1970 para a primeira década dos anos 2000.
Da mesma forma, vislumbro que essa inflexão é resultado dos deslocamentos que realiza nos estudos entre a classe média e o homem comum — dos bairros (Varjão/Rangel) — para grupos como o Delta, multiplicando seu campo de pesquisa e investigação. Acrescente-se a cidade de João Pessoa, que se torna seu laboratório, assim como a UFPB.
Para encerrar, apoio-me numa citação do próprio Mauro Koury, presente no ensaio publicado na revista Dilemas, no ano passado, quando descreve a “situação-limite” em que vivemos, segue: “E, no entretom de piada grosseira dos insensíveis, riem ao dizerem que, no final, as pessoas morrem, e, se morrem umas a mais ou a menos não faz diferença, faz parte da vida.” (KOURY, 2020a, p. 2).
Só queria avisar aos insensíveis que não é bem assim, nós estamos hoje aqui testemunhando a perda de uma pessoa que fazia a diferença, incluindo também tantas outras que perderam a vida, professores da UFPB, servidores, amigos próximos e distantes, parentes de nossos alunos/as, alunos/as de graduação e pós-graduação, de populações vulneráveis, tradicionais e quilombolas. Estamos atentes aos mais de 100 mil órfãos que herdamos, e a quem devemos muito afeto e uma vida digna.
Por isso, quero reforçar meu agradecimento por essa iniciativa à Revista M; à Rachel Menezes e à Claudia Rezende por compartilharem esse momento comigo.
Referências
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BARBOSA, Raoni. Koury: uma história das emoções. In: KOURY, M. G. P.; BARBOSA, R. B. Da subjetividade às emoções: a antropologia e a sociologia das emoções no Brasil. Recife: Bagaço; João Pessoa: GREM, 2015. p. 61-112.
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DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1976.
FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Lisboa: Ed.70, 2010.
HERTZ, Robert. Sociologia religiosa e folclore. Petrópolis: Vozes, 2016.
KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Antropologia e situações-limites: neoliberalismo e pandemia. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Rio de Janeiro, p. 1-8, 2020a. Disponível em: https://www.reflexpandemia.org/texto-43. Acesso em: 15 maio 2022.
KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. O Covid-19 e as emoções: pensando na e sobre a pandemia. RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, João Pessoa, v. 19, n. 55, p. 13-26, abr. 2020b. Disponível em: http://www.cchla.ufpb.br/rbse/. Acesso em: 11 maio 2022.
KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. (org.). Tempos de pandemia: reflexões sobre o caso Brasil. João Pessoa: GREM-GREI; Florianópolis: Tribo da Ilha, 2020c.
KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Um excurso em torno das noções de situação limite, situação crítica e vulnerabilidades interacionais em contextos de co-presenças engolfadas. RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 17, n. 51, p. 27-37, 2018. Disponível em: http://www.cchla.ufpb.br/rbse/KouryArt_RBSE_dez2018.pdf. Acesso em: 15 maio 2022.
KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro; BARBOSA, Raoni Borges. Da subjetividade às emoções: a antropologia e a sociologia das emoções no Brasil. Recife: Bagaço; João Pessoa: GREM, 2015.
KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. A formação do homem melancólico: luto e sociedade no Brasil. Cadernos de Ciências Sociais/PPGS, João Pessoa, n. 38, 1996.
MALUF, Sônia. Janelas sobre a cidade pandêmica: desigualdades, políticas e resistências. Tomo, São Cristóvão, SE, n. 38, p. 251-285, jan./jun. 2021. Disponível em: https://seer.ufs.br/index.php/tomo/article/view/14280. Acesso em: 11 maio 2022.
MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
THOMAS, Louis-Vincent. Antropología de la muerte. México: Fondo de cultura económica, 1993.
Recebido em: 10/05/2022.
Aceito em: 15/05/2022.
https://doi.org/10.46906/caos.n28.63077.p130-141
[1] Texto apresentado na Live intitulada “Uma homenagem à vida e à obra de Mauro Koury: a cerimônia do adeus”, realizada pela Revista M. Estudos sobre a morte, os mortos e o morrer (UFRJ), com Rachel Aisengart Menezes, Claudia Rezende, Ednalva Neves, Andreia Vicente e Renata Machado. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=aabGYFIcDqM.
* Professora do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Paraíba/Brasil. Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul/Brasil. E-mail: ednalva.neves@academico.ufpb.br.
[2] “As situações-limites de um social são situações de quebra do sistema de expectativas no interior do jogo simbólico-interativo social, o que produzem e aprofundam cenários de crise. Cenários em que os agentes vulnerabilizados necessitam confirmar a realidade de um modo mais explícito e intenso. As situações-limites provocam choques de realidade pela sensação de destruição do universo simbólico e moral construído e vivido. As emoções de vergonha e de medo avançam causando uma sensação ansiosa do não saber o que fazer e como agir. O que promove nos agentes em cena sofrimentos psíquico e social, que levam à desesperança, ou a um estado de latência ou espera, de um lado. Ou, de outro lado, a uma rejeição da situação de desordem e a possibilidade de descoberta do engodo em que se encontram perante os elementos dispostos e de que não têm controle” (KOURY, 2018).
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