O USO DO RETRATO SOCIOLÓGICO COMO RECURSO PARA OBSERVAR AS CONDIÇÕES SOCIAIS NECESSÁRIAS PARA A MANIFESTAÇÃO DO “GOSTO” PELA ARTE

THE USE OF THE SOCIOLOGICAL PORTRAIT TO OBSERVE VISIBLE SOCIAL CONDITIONS NECESSARY FOR THE MANIFESTATION OF THE “TASTE” FOR ART

 

Bernardo Fortes *

 

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n29.63860.p190-215

 

Resumo

Este artigo busca, pelo uso da metodologia do “retrato sociológico”, elaborada por Lahire, observar a gênese das disposições e gosto de um jovem artista de classe média do Recife. Lahire propõe pensar com e contra Bourdieu para refletir sobre o social incorporado, assim, por meio deste trabalho, pretendemos construir um diálogo entre os dois autores a fim de refletir sobre as contribuições de Bourdieu no que tange à sua crítica à ideologia carismática que percebe o “gosto” e práticas culturais como inatas aos indivíduos.

Palavras-chave: capital cultural; disposições; Lahire e Bourdieu; classe média.

 

Abstract

This article seeks, through the application of the “sociological portrait” methodology, as suggested by Lahire, to observe the genesis of the dispositions and taste of a young middle-class artist from Recife. Lahire proposes to think with and against Bourdieu to reflect on the embedded social, and, through this work, we intend to build a dialogue between the two authors in order to reflect on Bourdieu's contributions regarding his critique of the charismatic ideology that perceives “taste” and cultural practices as innate to individuals.

Keywords: cultural capital; dispositions; Lahire and Bourdieu; middle class.

 

Introdução e contextualização teórica

 

Este trabalho foi realizado com um jovem que faz parte de um coletivo artístico e que participa de diversos projetos envolvendo música, artes visuais, motion design, entre outras expressões artísticas. Traçar um retrato sociológico, tal qual sugerido por Lahire (2004), surgiu como estratégia metodológica para observar quais experiências foram relevantes em sua trajetória para nele despertar o interesse e disposição pela arte, bem como averiguar se sua opção por uma carreira economicamente incerta e arriscada despertou conflitos internos e familiares.

Em Lahire, o projeto de “pensar com e contra Pierre Bourdieu” (LAHIRE, 2002, p. 10) deve ser entendido pela relevância que esse autor confere ao social incorporado na produção das práticas dos agentes, assim como seu precursor Bourdieu. Contudo, para Lahire, existem certos aspectos da teoria da prática de Bourdieu, que fazem parte de sua teoria do habitus, que estariam equivocados por se tratar de conjecturas sem uma investigação empírica. Para Lahire (2004, 2005), Bourdieu falha ao negligenciar o longo e complexo processo que leva à incorporação das disposições sociais, a exemplo da formação da disposição estética, pois esta, em Bourdieu (2011a, 1983), apareceria como pressuposto, bastando que o indivíduo estivesse inserido em determinadas condições de existência capazes de propiciar uma distância das necessidades materiais — sendo, que, na percepção de Lahire, essa disposição é fruto de uma longa trajetória de condicionamento, que se dá em diversos âmbitos de socialização, que devem ser demonstrados e detalhados, o que faz necessário sair da mera “constatação” apriorística e abstrata das disposições em prol de se avaliar empiricamente como elas se formam.

Essa é uma das razões que levam Lahire (2004, 2005) a propor sua metodologia de uma sociologia à escala individual, o retrato sociológico, que permitiria um nível tal de imersão que tornaria possível apreender os processos de incorporação das disposições, e não apenas tomá-las como dado prévio, como se fossem apenas um indicativo de determinadas condições sociais de existência estruturadas pelo habitus de classe. Desse modo, sua crítica se dirige ao fato de a noção de habitus consistir em um princípio unívoco balizador de todas as práticas, gostos, percepções e julgamentos dos agentes, marcado pelo caráter de permanência e transferibilidade. O habitus, para Bourdieu, é “uma disposição geral e transponível, realiza uma aplicação sistemática e universal, estendida para além dos limites do que foi diretamente adquirido (BOURDIEU, 2011a, p. 163). Assim, Bourdieu (2011a, 1983) exemplifica que os professores, dada a sua posição de privação relativa de capital econômico, seriam orientados, de forma não reflexiva, pelo princípio do ascetismo aristocrático em todos os seus universos de práticas. Da mesma forma, o modo pretensioso de ser e a “boa vontade cultural” seriam a principal marca daqueles que vivenciam experiências de vida similares às da pequena burguesia (que percebe os rendimentos auferidos através de competências culturais). Logo, esses princípios (habitus) seriam responsáveis por balizar as práticas, nos mais diversos âmbitos e manifestações de gosto, daqueles que ocupam posições no espaço social propensas para seu desenvolvimento.

Portanto é vital enfatizar que Lahire (2002, 2004, 2005) critica a noção de unicidade, permanência e transferibilidade das disposições. Em oposição à teoria de Bourdieu — que entende que, a depender da localização do indivíduo no espaço social, é possível estabelecer qual o princípio gerador de todas suas práticas, sendo estas compartilhadas por todos os demais que ocupam uma mesma posição no espaço social (o que formaria um estilo de vida que possibilitaria identificar os agentes em posições similares) —, Lahire abandona o termo habitus e passa a tratar apenas de disposições, sendo que, no seu entender, elas são plurais para um mesmo ator social, não se tratando mais de um princípio gerador único, mas de um patrimônio composto por diversas disposições que podem ser acionadas ou não, a depender do contexto, de modo mais ou menos consciente ou inconsciente.

Assim, podemos ver que o projeto teórico proposto por Lahire (2004, 2005) continua sendo disposicionalista (como ele mesmo declara), de modo que o mundo social permanece presente no indivíduo, mas, em função da maior ou menor multiplicidade de contextos por ele vividos durante as variadas esferas de socialização, as disposições vão se atualizando e se tornando mais ou menos heterogêneas ou, quando não mais satisfazem as novas situações experienciadas pelo indivíduo, são suspensas (LAHIRE, 2002, 2004, 2005). Constatamos, então, a ruptura com a ideia de um princípio unificador das práticas e do gosto em favor da noção de patrimônio disposicional, que é plural.

Em face dessas considerações, foram realizadas duas longas entrevistas, e utilizado farto material empírico, obtido por meio de anotações etnográficas extraídas do primeiro contato, do local da entrevista e da forma como estas ocorreram, além de observações obtidas por meio de conversas com pessoas próximas ao entrevistado. Tudo isso objetivou uma profunda imersão em seu universo com a finalidade de obter informações detalhadas que permitissem uma visão de seu estoque de disposições. Assim, procurou-se investigar o maior ou menor grau de homogeneidade ou heterogeneidade dos princípios disposicionais e de hábitos do interlocutor, bem como os porquês que explicariam a conformação de seu estoque de disposições (LAHIRE, 2002, 2004, 2005).

Quanto às perguntas feitas durante as entrevistas, elas seguiram os seguintes eixos temáticos: apreensão da origem social, isto é, a posição de classe e estrutura de capitais do entrevistado (capitais cultural, social e material), bem como a evolução no tempo desses capitais no seio familiar, tanto por meio da análise de sua família nuclear quanto das famílias de seu pai e mãe, de modo a definir, de maneira aproximada, a posição no espaço social do entrevistado, ou seja, a classe social a que pertence; vida escolar e infância; vida familiar; consumo de bens culturais e lazer; vida profissional e relação com as artes. Quanto aos eixos orientadores da grade de perguntas, pretendeu-se apreender os efeitos das grandes matrizes de socialização na formação do interlocutor: como a família, a escola, os meios de comunicação de massa e demais instituições culturais impactaram sua socialização? Dessa maneira, buscou-se detalhar a pluralidade de princípios de socialização do entrevistado por meio de questionamentos que permitissem mergulhar nas nuances de cada universo de prática e ação por ele vivenciado, a fim de investigar, por um lado, a gênese de suas disposições e hábitos e, por outro, os momentos de crise que eventualmente levaram à incorporação de novos princípios e disposições, bem como averiguar se o detalhamento dos diferentes universos de práticas do entrevistado permitiria pôr em evidência as situações de variações de disposições em função das propriedades do contexto e das propriedades das pessoas com as quais ele se relacionou ao longo de sua vida.

Com isso, buscou-se investigar os princípios e esquemas de disposição que estão por trás das práticas de consumo cultural de um jovem artista da classe média: estes são homogêneos, influenciados pela sua posição de classe e, por isso, mais próximos da cultura entendida como legítima pelo campo cultural; ou heterogêneos, expressando-se através de um consumo de bens tanto legítimos quanto menos legítimos, em função de experiências de socialização pelas quais o entrevistado passou? E, finalmente, considerando a riqueza de detalhes proporcionada pela metodologia do retrato sociológico, no que tange à apreensão da formação das disposições, buscou-se investigar os processos desencadeadores do gosto pela arte, o que se revela mais propício em se tratando de um artista, justamente pela crença corriqueira da existência de um talento e sensibilidade inerentes àqueles que produzem arte. Logo, tal exercício, ao procurar explicitar as marcas do social incorporado no indivíduo, pode ser de grande valor para melhor compreendermos a gênese do interesse e gosto pela arte e, assim, contribuir com um dos esforços de Bourdieu de criticar a ideologia carismática da relação com a arte como algo inato e um dom, do qual apenas alguns poucos seriam dotados.

Assim, pretende-se, com o auxílio do aparato metodológico de Lahire, demonstrar, em consonância com o pensamento de Bourdieu, que, por trás do aparente encontro mágico entre espectadores ou produtores com a arte e a forma legítima de consumi-la, há muito esforço e familiaridade prévios (sobretudo por meio do empenho da família e, em menor medida, da escola), ainda que invisibilizados.

 

Posição no espaço social

 

Villa[1] nasceu em Recife, tem 23 anos, mora com seus pais e irmã (de 24 anos) em um apartamento próprio da família, no Bairro de Boa Viagem. É formado em jogos digitais pela Universidade Católica de Pernambuco. Nessa mesma instituição, sua irmã estudou bacharelado em direito, mas não chegou a concluir o curso e, posteriormente, iniciou outra graduação em publicidade, a qual está próxima de finalizar. Quanto aos seus pais, ambos têm formação superior, sendo seu pai engenheiro civil, pela mesma universidade dos filhos, e, sua mãe, arquiteta formada pela Universidade Federal de Pernambuco.

Villa tem poucas informações a respeito da vida profissional de seus avós, bem como de suas origens. Soube informar apenas que seu avô materno tinha envolvimento com política na cidade de Caruaru, e que sua mãe nasceu e foi criada no mesmo município, onde também passou a infância e parte da juventude, mudando-se para o Recife para iniciar sua formação em arquitetura. Sobre tal mudança, Villa narra que, a princípio, sua mãe veio morar com uma tia, mas que posteriormente, conforme os demais irmãos também se mudavam para entrar na faculdade, seus avós maternos optaram por proporcionar aos filhos uma casa própria, para que pudessem continuar os estudos na capital com conforto e comodidade. Percebemos, portanto, a importância central da educação e um nítido projeto de reprodução de classe social por parte da família materna de Villa. Tal preocupação também pode ser constatada quanto aos avós paternos, pois, embora Villa não saiba informar a profissão de seu avô, apenas que sua avó era dona de casa — certamente um indício da falta de necessidade de trabalhar fora —, seus avós matricularam seu pai para estudar, ao longo de toda a sua formação escolar, no Colégio Santa Bárbara, uma das instituições de ensino privado mais tradicionais do Recife e, também, uma das escolas com mensalidades mais caras. A seguir, seu pai estudou engenharia civil na Universidade Católica, uma instituição privada respeitada e que também tem mensalidades elevadas. Tal centralidade e preocupação quanto à educação e à escolha de uma carreira profissional também estão presentes na experiência familiar de Villa, portanto percebemos que estas foram preocupações transmitidas por seus avós aos seus pais.

Dessa forma, por meio da verificação dos esforços e da mobilização de apoio e recursos por seus avós maternos e paternos, podemos constatar não apenas uma condição material favorável transmitida por uma geração anterior, mas também a presença de ideias valorativas que ressaltam o desempenho individual e que refletem um projeto de ascensão social ou de reprodução de classe. Percebemos que a importância dada à formação e à educação é uma herança que Villa encontra em seu seio familiar, estando presente também na origem social de seus pais. Assim, a boa condição social de Villa vem de muito antes, uma vez que seus pais não viveram situações de privação, que os obrigassem a se dispor como mão de obra para atender a necessidades de sobrevivência impostas por um ambiente familiar marcado pela penúria. Ao mesmo tempo que seu pai e mãe foram poupados de se inserir precocemente no mercado de trabalho, esse adiamento foi acompanhado pela preocupação de suas famílias em proporcionar uma melhor formação educacional por meio de um bom preparo para um ensino superior de qualidade, de modo a assegurar a reprodução de classe.

Velho (2012), ao estudar famílias de frações médias urbanas brasileiras na década de 1970, percebeu que em tais contextos familiares, marcados pelo elevado investimento educacional, o baixo aproveitamento escolar de um filho é visto com apreensão, portanto esse filho está sujeito a pressões que visam corrigir o desinteresse acadêmico e a falta de comprometimento com um projeto profissional seguro economicamente. Reside justamente nesse aspecto da vida do entrevistado um dos momentos de angústia e conflito por ele vividos. Todavia abordaremos essa questão posteriormente, por ora nossos esforços concentram-se em identificar, de forma aproximada, a classe social do entrevistado — e, até aqui, temos percebido um alto capital cultural desde a origem de sua trajetória.

Outra estratégia para apreender a posição no espaço social de Villa foi lhe perguntar como descreveria o bairro em que mora e as pessoas que nele vivem. Villa conta que por muito tempo pouco pensou sobre seu bairro e vizinhança. Como explica ele, isso se deu “porque era muito jovem e ficava muito em casa”, e complementa que foi apenas ao longo de seu crescimento e amadurecimento que passou a refletir e tentar melhor compreender o lugar em que vive, mas ressalta que uma ideia sempre esteve presente: a de que Boa Viagem seria um lugar perigoso. Atualmente, ele não questiona essa percepção, mas a explica em decorrência de se tratar de “um dos bairros mais nobres da cidade, como falam”, tratando-se de um local central, “onde as coisas acontecem”, e que, por isso, chamaria muita atenção. Refletindo, ainda, sobre se tratar de um bairro nobre, Villa diz que, em razão de o bairro ter muitas pessoas ricas, muito se fala que seria um lugar em que as pessoas seriam egoístas e “otárias”. Ele concorda com essa crítica, mas frisa que não se pode generalizar, uma vez que lá também moram pessoas, incluindo ele próprio e seus amigos, que criticam esse comportamento, e finaliza dizendo que não se pode definir um local pela maioria das pessoas que nele vivem. Vemos, portanto, que Villa reconhece o bairro em que sempre morou como “nobre” e habitado por pessoas ricas, mas ele não se identifica com certas atitudes e práticas de seus vizinhos, adotando uma postura crítica e de distanciamento.

Cabe observar que Villa, apesar de vir de uma situação familiar em que desfruta de capitais cultural e econômico em abundância, ainda assim tem uma estrutura de capitais assimétrica, pendendo mais para o cultural em oposição ao econômico. E, uma vez que o bairro em que ele mora é notoriamente percebido na cidade como morada de pessoas que possuem capital econômico muito elevado, o que não é de todo a realidade do entrevistado, talvez sua postura de distanciamento seja a rejeição a um estilo de vida e a um habitus de classe que sua posição no espaço social não permite desenvolver. Dessa maneira, temos uma situação de necessidade tornada virtude (BOURDIEU, 2011a, 2011b; PETERS, 2013), pois o entrevistado enfatiza que, apesar de ser parte daquele meio, não se vê plenamente inserido, e faz esse reconhecimento emitindo um comentário de desprezo ao caracterizar certos aspectos de gostos e práticas como fúteis e elitistas. Cabe relembrar que Bourdieu (2011a) coloca que as rejeições de gosto, práticas e estilísticas, são uma forma simbolicamente potente de traçar fronteiras entre as frações de classe: ao mesmo tempo que se valoriza os capitais que se possui, minimiza-se aqueles que se tem em menor quantidade em comparação aos agentes que pertencem a outra fração do espaço social, sendo este um modo de buscar maior legitimidade para os capitais de que se dispõe. Vemos, então, que o julgamento de Villa, de maior valorização do estilo de vida próprio de sua posição de classe, que goza de maior capital cultural em detrimento do econômico, está inserido em uma disputa simbólica de classes sociais. Villa, podemos dizer, busca hierarquizar o mundo das classes a seu favor, o que fica mais claro quando ele trata das disposições estéticas de sua família em comparação com as de outras pessoas.

O apartamento em que ele mora com sua família tem mobília de madeira antiga e é decorado com quadros e objetos que remetem à cultura popular pernambucana. Em sua ampla sala, há uma parede completamente ocupada por uma coleção de vinis, contudo, como apenas a vi muito apressadamente, enquanto esperava Villa para iniciarmos a entrevista, pedi para que ele próprio descrevesse sua casa. Ele elenca uma mesa de centro da sala e seus enfeites (mas não soube precisar origem nem o que significam dos enfeites) e uma cristaleira com copos e vasos de cristal (uma espécie de relíquia da família, presente de casamento de seus pais dado por sua avó paterna). Ainda sobre a sala, cita cinco ou seis quadros que lá se encontram, alguns pintados por sua avó materna — ele comenta que a avó pinta, embora não profissionalmente. Ele também menciona que há muitas plantas e flores adornando a casa, e que uma parte da mobília foi comprada na loja de decoração Tok & Stok. Porém Villa é mais preciso, e parece mais interessado em informar sobre os livros, CDs, vinis e DVDs de sua casa, contando que há cerca de cinco mil CDs e mais de mil vinis. Sobre os livros, diz que, em geral, são sobre música e biografias de artistas como Eric Clapton e David Bowie. Destaca, orgulhoso, que seu pai é um colecionador que começou sua coleção de LPs (com gêneros como MPB, bossa nova, rock progressivo e bandas e artistas, como Led Zeppelin, Beatles, Tom Waits, Bob Dylan) ainda jovem, na década de 1970.

Villa comenta que seu apartamento sempre chamou a atenção e despertou elogios de amigos que iam visitá-lo, o que levava a uma frequente especulação sobre sua condição econômica. Assim, as pessoas comentavam que ele deveria ser muito rico em razão de sua casa ser muito bem decorada e demonstrar bom gosto. Ele menciona que esse tipo de observação se intensificou quando entrou na faculdade, quando passou a receber novos amigos em casa (possivelmente porque passou a ter colegas de outras classes sociais na faculdade). Mas ele logo diz que sempre fez questão de questionar ideias que associavam a beleza de sua casa a um status de riqueza, explicando tratar-se do esforço de sua mãe arquiteta, que tem como uma de suas principais prioridades embelezar o apartamento. Seria, portanto, graças à capacidade de sua mãe e à própria natureza de sua profissão que o apartamento em que mora despertaria tantos elogios, e não devido a uma condição econômica privilegiada. É importante destacar que essa competência distintiva de sua mãe quanto às escolhas no âmbito decorativo, esse “gostar de arrumar a casa”, como o entrevistado coloca, é a disposição estética em ação, própria de um habitus de classe que permite a estilização de vida. Assim, as escolhas estilísticas da mãe de Villa representam a realização e manifestação de disposições e práticas próprias de uma fração de classe, da condição de existência burguesa. Porém elas são tidas pelo entrevistado como mera habilidade proveniente da formação de arquiteta, o que nos mostra como a incorporação das disposições e gostos se dá de maneira inconsciente pelos indivíduos e grupos, sendo a realização do social incorporado.

Logo, a partir da análise sincrônica e diacrônica do volume e da estrutura de capitais de Villa e, sobretudo, de sua família, podemos constatar que ele cresce em um ambiente de socialização marcado pelo alto capital cultural. E ele próprio parece intuir, embora de maneira não elaborada, a preponderância do capital cultural sobre o capital econômico em sua família, o que fica evidenciado em sua fala: “Quando ia pra casa das outras pessoas, eu conseguia ver a diferença entre, mesmo que eu conseguisse ver que essa pessoa fosse até mais monetariamente privilegiada, eu conseguia ver a diferença entre a casa dela e a casa de uma arquiteta, que foi arquitetada por alguém” (informação verbal).[2]

Assim, o capital cultural elevado de sua família mostra-se pela posse de diplomas superiores de seus pais em prestigiosas instituições, mas também pelas práticas culturais de seus pais e das preferências estéticas exemplificadas pelo apartamento da família, reconhecido por terceiros como símbolo de “bom gosto” e resultado direto de investimentos da mãe de Villa, e, menos diretamente, pelos objetos de seu pai que compõem a sala de estar. Importa enfatizar o caráter autoral que seus pais exercem na montagem do apartamento, não necessitando recorrer a profissionais, pois eles próprios são dotados de disposições quanto ao que é entendido como agradável, o que é somado aos fatos de existir mobília herdada e de que, como dito, uma de suas avós tem como hobby a pintura, sendo inclusive sua obra usada para enfeitar a casa, o que demonstra ter ela qualidade (até mesmo pela preocupação da mãe arquiteta com a decoração). Tais elementos demonstram uma disposição estética no seio familiar de Villa que evidencia uma ascendência no capital cultural de sua família proveniente de gerações passadas.

Quanto à posse de capital econômico, isto é, de bens materiais, o interlocutor afirmou que o apartamento em que mora é próprio, e que a mãe e o pai têm empregos estáveis. Mas, talvez, os dados mais relevantes sejam os obtidos indiretamente, como o de que seus pais pagaram para ele e sua irmã, durante toda a vida, escolas renomadas e de alta mensalidade, aulas de reforço escolar, um bom curso de inglês e faculdades privadas, sendo que, inclusive, os dois filhos chegaram a abandonar cursos que já haviam iniciado. Essa boa vontade em financiar uma boa e dispendiosa educação para os filhos, viagens internacionais mencionadas, além dos próprios investimentos em sempre estar decorando o apartamento, são indícios de um capital econômico confortável. Portanto, ao invés de usar conceitos como classe média ou elite para definir sua posição e de sua família, talvez seja mais interessante apreender a estrutura de capitais em que o entrevistado cresceu para elaborarmos, de forma mais acurada, um panorama de parte dos estímulos que influenciaram a gestação de suas práticas culturais e comportamentais.

 

Formação, vida familiar e escolhas profissionais

 

Villa conta que seus pais sempre estiveram muito ocupados no trabalho e que, por isso, pouco ajudavam os filhos com os deveres escolares, embora ele reconheça que, até o término do ensino fundamental 1, eles se mostravam mais presentes, e o auxiliavam com o conteúdo escolar. Ele também menciona que até, aproximadamente, os seus cinco anos de idade, seus pais costumavam ler para ele, em geral, livros infanto-juvenis, tendo destacado a leitura da série Harry Potter. Contudo o pouco tempo de seu pai e mãe para ajudá-lo com as tarefas escolares não significou que eles estivessem pouco interessados em sua educação, de modo que, quando Villa tinha apenas oito anos de idade, foi matriculado em uma das melhores e mais caras escolas de inglês da cidade.

Diz o entrevistado que, como aos 13 anos de idade já dominava o inglês, isso acabou por facilitar o consumo precoce de músicas, seriados e filmes que seus colegas conheceriam apenas mais tardiamente, isso quando chegaram a conhecer tais obras. Portanto, ele próprio diz que ser fluente em inglês foi fundamental para a formação de sua personalidade, por ter ampliado seu acesso a bens de consumo culturais, e porque, uma vez que tais bens não são tão acessíveis, Villa familiarizou-se com uma série de referências culturais que poucos conheciam, de modo que a constituição de sua rede de amigos baseou-se em grande parte na aproximação e simpatia por jovens que tivessem afinidade com seu universo de referências. Assim, a constituição de suas amizades teve como elemento importante o compartilhamento de uma cultura internacional. Isso fica evidenciado com o fato, por ele contado, de que seus amigos mais íntimos frequentemente usam algumas palavras-chave em inglês porque as percebem como mais apropriadas para exprimir o sentido de determinadas ideias que querem expressar.

Quanto ao ensino regular e às escolas em que Villa estudou, também houve uma nítida preocupação de seus pais em escolher instituições de referência para o filho, mas, ao longo de sua vida escolar, ele passou por um processo de queda em relação ao seu desempenho. Embora isso tenha preocupado seus pais e implicado em diversos momentos de conflitos, cobranças e punições brandas (como proibição do acesso à televisão e, sobretudo, ao computador), em geral, eles adotaram uma atitude tolerante frente às notas baixas, ainda que constantemente o alertassem com frases como: “o que é que você vai fazer quando crescer? Uma hora seus pais não vão tá mais aqui”. Esses alertas causavam bastante angústia e preocupação em Villa, contudo, antes de abordarmos esse drama e seus desdobramentos, é importante nos atermos aos processos desencadeadores que fizeram com que ele passasse de bom aluno para aluno medíocre e, por fim, mau aluno — contudo é digno de nota adiantar que, apesar seu desempenho ruim, Villa nunca foi um aluno bagunceiro que atrapalhasse o andamento das aulas.

A primeira escola em que Villa estudou localiza-se a poucos metros de distância da rua em que ele sempre morou, sendo uma pequena escola primária limitada ao ensino do fundamental 1. Villa conta que sua mãe é amiga próxima de uma das donas do educandário e, também, que foi a arquiteta responsável por projetá-lo. Em face de toda essa proximidade, ele destaca que todos os funcionários, de professoras a faxineiras e porteiros, o conheciam bem. Na verdade, ele fala com certo gosto que, até hoje, quando passa próximo à escola, os funcionários ainda se lembram dele, mesmo após tantos anos. Ele descreve essa fase da vida escolar como “um tempo muito bom”, e lembra com certo saudosismo de momentos de sucesso escolar, como as vezes em que terminou as atividades do caderno escolar bem antes do previsto. E conta que, além do horário de conteúdo regular, a escola oferecia um pós-horário com atividades extracurriculares como natação, futsal, aula de canto, flauta-doce e outras. É justamente enquanto relembra dessas atividades, que ele deixa transparecer com mais força o saudosismo desse período, mas mesmo os momentos de ensino expositivo tradicional são descritos como divertidos: havia certo caráter lúdico no andamento das aulas. Percebemos como Villa sentia-se confortável nesse primeiro ambiente escolar e como ele o descreve com entusiasmo e riqueza de detalhes, mas, em contraponto, sua vivência escolar mais recente é descrita, a princípio, com certa vagueza: o entrevistado, por exemplo, diz lembrar-se somente de alguns poucos professores, havendo se esquecido da maioria.

Esse “silêncio” evidencia um desconforto por remeter a uma fase difícil da vida do entrevistado, contudo seria apressado diagnosticar essas dificuldades em razão do declínio de suas notas.  Na verdade, tal fato foi antes o resultado de questões mais íntimas, como a falta de disposições para esse novo universo escolar, que exigia uma disciplina e ascetismo que Villa não estava preparado para desempenhar e, principalmente, do “tempo de decisão profissional” que se acentuava à medida que a conclusão da vida escolar se aproximava. Entretanto foi preciso paciência e a reelaboração de questões, em diferentes momentos da entrevista, para melhor entender o conflito interno pelo qual o entrevistado passava, além de certa perspicácia para apreender e articular as informações não ditas.

Após concluir o ensino primário, Villa foi matriculado no Colégio Impacto e, posteriormente, no Santa Bárbara, sendo que ambas as instituições se localizam no bairro em que o entrevistado reside. No primeiro colégio, Villa passou apenas dois anos, dando como razão de sua saída a não adaptação à escola, pouco detalhando esse ocorrido. No Colégio Santa Bárbara, ele permaneceu até finalizar sua vida escolar. Ele diz que, a partir da oitava série, quando estava no segundo colégio, suas notas caíram significativamente, e ele passou a ter cada vez mais dificuldades para ser aprovado, embora nunca tenha passado por uma reprovação.

Ainda que não tenha oferecido explicações para a queda de seu rendimento escolar, é de se pensar que talvez o próprio Villa não entenda muito bem as razões desse processo, ou que prefira esquecer esse momento de sua vida: suas falas trazem algumas pistas desarticuladas que, ao serem reunidas, oferecem-nos um melhor entendimento acerca de sua decadência escolar. Desse modo, enquanto Villa descreve que a primeira escola em que estudou era pequena, com poucos alunos, e que todos o conheciam, o universo escolar do Impacto e do Santa Bárbara é descrito como completamente oposto, com quase uma centena de alunos em uma única sala de aula. Assim, Villa muda de uma situação em que havia forte integração, sentimento de grupo, que ele próprio define como “familiar”, para um contexto marcado pela impessoalidade, no qual ele era apenas um nome na chamada de seus novos professores.

Além da passagem de uma situação familiar para uma de alta impessoalidade, o caráter radical da mudança de universos e da lógica de princípios que os regem acentua-se quando contrapomos o programa metodológico da escola em que Villa fez o ensino primário com o de seus colégios posteriores. Assim, se na primeira situação as salas contavam com no máximo 20 estudantes, o ensino era transmitido de forma dialógica e, portanto, participativa; em oposição, o novo universo é marcado por uma orientação pedagógica em que as aulas são eminentemente expositivas, em que os alunos interagem de forma muito pontual — trata-se, portanto, de uma situação muito próxima da definição de “ensino bancário” elaborada por Paulo Freire (1970), isto é, o aluno é colocado em uma situação de passividade quanto ao conteúdo, e este é uma imposição de uma verdade exterior, e não fruto de uma construção em que o estudante é percebido como agente do processo. Enfim, as duas últimas instituições em que Villa estudou são marcadas pela alta competitividade e por um ensino focado no vestibular. A publicidade dessas escolas, inclusive, enfatiza o alto rendimento de seus alunos, celebrando a elevada aprovação em vestibulares de cursos concorridos, como direito e medicina, e destacando os nomes dos alunos bem-sucedidos.

Com as considerações feitas acima, estamos melhor munidos para entender que a queda no desempenho acadêmico de Villa está relacionada com sua passagem de um universo marcado pelo ensino dialógico, lúdico e participativo para outro calcado em princípios como a alta disciplina e atenção exigidas dos alunos para aulas meramente expositivas, as quais oferecem pouco espaço para interação e que, devido à alta impessoalidade e ao elevado número de alunos, fazem com que estes estejam muito desassistidos quanto ao seu engajamento com o conteúdo transmitido em sala de aula. Portanto, ao contrapormos esses dois universos, podemos melhor entender o processo que levou Villa a deixar de ser um bom aluno para tornar-se medíocre e, posteriormente, um mau aluno, ainda que sendo sempre aprovado, mesmo que no limite, e sempre comportado em sala de aula e respeitoso com os professores, jamais de perfil “bagunceiro” ou “rebelde”.

Apesar de todo o suporte oferecido por seus pais, a partir, por exemplo, da contratação de professores particulares para aulas de reforço, ele não atualizou suas disposições para o novo ambiente escolar, ainda que sentisse certa angústia devido a suas baixas notas. Nesse aspecto, o ambiente familiar de Villa talvez seja elucidativo para entendermos o fato de sua resposta a essa situação ter sido mais uma postura de “fuga” do ambiente escolar do que uma tentativa de se adaptar à nova rotina, ou mesmo a adoção de comportamentos de rebeldia em sala de aula. Sobre sua família, Villa diz que, ao longo de toda a sua vida, lembra-se apenas de uma discussão entre seus pais, ocorrida quando ele era criança, a qual ele descreve como “mais séria” porque durou alguns dias, mas que, não obstante, foi resolvida através da conversa. Assim, ele percebe a relação de seus pais como “uma coisa boa e afetuosa”, e suas falas demonstram que ele cresceu em um ambiente bem estruturado e equilibrado, no qual, quando existiam conflitos e tensões, eram resolvidos por meio do diálogo e da busca pelo entendimento entre as partes.

Ademais, apesar de o entrevistado dizer que seus pais são pessoas muito ocupadas e que, por isso, a família raramente consegue estar reunida — inclusive, há aproximadamente oito anos, seu pai trabalha fora da cidade, voltando para casa eventualmente, para passar alguns dias —, momentos de atividades familiares em conjunto não são raros, e alguns desses momentos estimulam a criatividade e o gosto por atividades práticas e artísticas, além da interação e conversação entre os envolvidos. Villa diz, por exemplo, que aos domingos, quando seu pai ainda vivia intermitente com sua família, ele o chamava para que o auxiliasse no preparo de uma macarronada que foi ensinada por sua avó. Após algum tempo, quando o pai já estava trabalhando fora, Villa, mais confiante quanto à sua habilidade, teve vontade de cozinhar o macarrão, e então tomou gosto e começou a aprender outras receitas através de livros de culinária e, principalmente, de vídeos no YouTube. Assim, Villa nos conta como nasceu seu interesse pela culinária, embora pontue que, dentre as atividades que realiza, ela ocupa uma posição secundária. De fato, as atividades que o entrevistado prioriza são consumir e produzir música e jogos.

Quanto a suas opções de lazer e diversão, Villa faz questão de dizer que tem por princípio transformar tudo o que gosta em trabalho, diluindo a separação entre lazer e trabalho. Sobre sua relação com a música, por exemplo, ele comenta que ela tem sido uma de suas principais fontes de renda, por meio da monetização do acesso mensal de suas composições em um serviço de streaming. Portanto, vemos que ele não diferencia os momentos em que está compondo, ouvindo música ou fazendo jam sessions, ensaios informais de improvisação musical na casa de amigos como momentos sérios de trabalho ou de lazer, pois percebe que faz as duas coisas ao mesmo tempo, isto é, existe uma dimensão lúdica e de prazer, mas também de seriedade e comprometimento de sua parte em relação às atividades mencionadas.

Villa destaca o experimentalismo, a improvisação e a facilidade em quebrar lugares comuns como aspectos que valoriza na composição musical e, quanto aos gêneros que o influenciaram e a partir dos quais define suas músicas, ele cita o lo-fi e o vaporwave, estilos que têm um forte caráter do it yourself, em que as gravações são caseiras e utilizam formas de mixagem acessíveis, geralmente performados por artistas que não dispõem de equipamento, dinheiro ou uma educação musical formal. Até por isso, esses artistas costumam ter produções ousadas, misturando referências bastante distintas, das épocas mais diversas, e chegando a “customizar” músicas consideradas “clássicas”. O vaporwave, mais especificamente, é marcado pela predominância do inglês e pela modificação de músicas já existentes para tornar as vozes robóticas e os ritmos computadorizados. A rejeição a um purismo musical e a valorização da criatividade e da inovação, as quais, no entanto, revelam um apreço por manifestações musicais passadas, muitas vezes mostrando-se quase como uma espécie de tributo, são compatíveis com o que observamos em nosso entrevistado, alguém que valoriza a autonomia e liberdade da produção artística e que teve grandes facilidades ao conhecer bandas e artistas através de seu pai ou da internet. Aliando seu interesse por música com sua paixão por tecnologia, ele não precisa nem mesmo saber tocar instrumentos musicais, mas simplesmente dominar o uso de certos programas de computador.

Portanto, com relação à música, voltamos a um princípio das práticas de Villa que é o consumo de uma cultura internacional, e agora poderemos explorar outro, a influência do universo virtual/digital em sua vida. Quando falou de como valoriza o aprendizado precoce em inglês, ele mencionou que, além de ter ampliado o leque de bens culturais que ele pudesse consumir, a importância também reside no fato de que ele passava muito tempo em sua casa, de modo que o domínio do inglês foi fundamental para ampliar qualitativamente seus momentos de lazer, uma vez que Villa, como muitos jovens de classe média moradores de prédios murados, não estabeleceu uma relação de convívio com a rua e com outros jovens que nela vivem. Nesse aspecto, retornamos ao fato de que ele sempre concordou com a ideia de seu bairro ser um local perigoso. Portanto, o computador e a internet surgem como opções de lazer que representam um acréscimo na rotina de um jovem que vive em um condomínio com áreas de lazer e possibilidades de interação limitadas.

Uma vez que o uso do computador e da internet passaram a ter centralidade na vida do entrevistado, seus pais estabeleceram um controle sobre o conteúdo daquilo que ele jogava e dos sites que acessava, e o puniam ou ameaçavam puni-lo restringindo seu acesso ao computador quando ele ia muito mal na escola. Villa, por exemplo, estava proibido de jogar jogos violentos ou de classificação não apropriada para sua idade, sendo a maioria dos jogos a que ele tinha acesso “educativos” ou “livres”. Apesar dessas restrições, ele coloca que “jogar” sempre foi sua atividade favorita e que isso despertou a preocupação dos seus pais, que o criticavam por “ficar só jogando no computador”. Ele diz que seu grande interesse por jogos se dá pela interatividade que estes oferecem e porque podem (e devem) ser considerados formas de expressão artística, visto que apresentam a narrativa de uma história, projeto gráfico, direção de arte, trilha sonora etc. Villa provoca dizendo que muitos jogos são mais complexos, quanto à estrutura narrativa e à noção de espaço e tempo que muito filmes mainstream, excessivamente lineares e de fácil compreensão. Tais aspectos fizeram-no se interessar cada vez mais por video games, apesar das dificuldades impostas por seus pais. Ele ganhou seu primeiro console apenas aos 14 anos e, conforme narra, era um jogo com uma proposta mais “familiar” e “não sedentária”, tendo sido necessário que sua tia convencesse seus pais de que o jogo não colocaria em risco os valores que desejavam transmitir a ele. Mas, enquanto não tinha seu video game, Villa aproveitava ao máximo os momentos na casa de amigos e primos para satisfazer seu desejo por essa prática que era rigidamente controlada em seu ambiente familiar.

Assim, vemos que, a despeito de todas as dificuldades para consumir jogos, Villa permaneceu muito interessado nessa forma de lazer, ao ponto de querer tê-la como profissão, graduando-se em jogos digitais. Todavia ele conta que o percurso foi conturbado, uma vez que seus pais, a princípio, viam sua principal fonte de diversão com desconfiança — ele ironiza que eles pensavam em video games como “máquinas de psicopatas”, bem como uma fonte “vulgar” e menor de lazer.

Quando estava prestes a terminar o ensino médio, suas notas baixas e desinteresse por matérias escolares tradicionais, além das constantes críticas de seus pais, traduzidas na frase “você passa o dia inteiro jogando”, levaram-no a pensar que não seria capaz de cursar o nível superior, e ele não sabia muito bem qual curso escolher. De início, Villa pensou em jornalismo, talvez por ter algum interesse por literatura (obras de George Orwell, Agatha Christie, Edgar Allan Poe, Conan Doyle, Aldous Huxley etc.) e por artigos sobre música, cultura pop e entretenimento.

Contudo ele conta que a escolha por jornalismo foi motivada por se tratar de uma graduação com respaldo dentro do universo escolar em que estava inserido: havia forte preocupação, por parte da escola, com a aprovação em vestibulares concorridos em faculdades renomadas e, sobretudo, em cursos tradicionais. Jornalismo, apesar de periférica, era opção legítima naquele ambiente escolar. Mas, de fato, a ideia de estudar jornalismo pouco entusiasmava Villa, que acabou por iniciar o curso de cinema em uma faculdade privada, abandonando-o logo após o primeiro ano, pois a Universidade Católica passava a oferecer a formação em “jogos digitais”. Ele explica que a mudança, em parte, deu-se por ele perceber as habilidades requeridas pelo curso de cinema como mais “acessíveis”, sem que fosse necessária uma formação acadêmica para adquiri-las, enquanto as habilidades para criar jogos, como o domínio das linguagens de programação, não seriam tão fáceis de desenvolver de forma autodidata. Além disso, foi fundamental sua maior apetência por jogos e computadores, seu principal divertimento, sendo que o gosto por cinema não era tão intenso, embora, como já mencionado, Villa tenha interesse pelo audiovisual.

Ele conta, a respeito de suas escolhas pelas graduações de cinema e, depois, jogos digitais, que ficou surpreso com a reação de seus pais, que responderam faz todo sentido quando informados. Na verdade, quanto à sua vida estudantil, seus pais, apesar de o castigarem quando estava na iminência de reprovar na escola, não cobravam excelência nas notas, mas que Villa fizesse o necessário para passar de ano sem ir para tantas recuperações. Portanto agora entendemos melhor um dos possíveis motivos pelos quais Villa não desenvolveu as disposições competitivas e disciplinares requeridas pelo universo de suas duas últimas escolas, pois, nem sua família compartilhava completamente dos valores daquelas instituições. A cobrança que os pais faziam sobre ele não era tão dura, eles não exigiram que Villa ingressasse em uma universidade pública ou em cursos tradicionais, e este parece o maior indício da dissonância entre o universo familiar e escolar do entrevistado. Desse modo, Villa conta que apenas esperava a escola terminar, encarando-a como uma obrigação desagradável que um dia acabaria.

Quanto à sua escolha por jogos digitais, ao contar como seus pais, que tanto implicavam com esse passatempo, passaram a respeitar sua opção de transformar sua maior fonte de lazer em trabalho, Villa diz que eles começaram a perceber o trabalho com jogos e programação digital como a “profissão do futuro”. Ele destaca que seu pai chegou a comentar, em uma reunião de família, que o criador do jogo Minecraft havia ganhado mais de 2 bilhões de dólares, vendendo a empresa após o sucesso do jogo. Portanto seus pais percebem a opção profissional de Villa como um campo profissional bastante promissor, mais até que carreiras tradicionais, de maneira que seu pai ironiza, para amigos e familiares, quando diz que seu filho não é engenheiro como ele e que não vai ser “pobre como o pai”.

 

O estoque disposicional de Villa e considerações finais

 

É interessante perceber que, apesar de Villa ter se rebelado contra seus pais, sempre priorizando sua paixão por jogos e computadores, ele apresenta opções de consumo nesse universo que, embora não excluam os jogos mais mainstream, em grande medida são por jogos independentes e o que ele chama de art games. Assim, podemos ver que os pais, ainda que não tenham conseguido reprimir o interesse de Villa por jogos, de maneira indireta — não tanto pelos esforços de controle, mas mais pela socialização rica em aspectos lúdicos e artísticos — acabaram, junto com a primeira experiência escolar, por tornar suas escolhas dentro do universo de jogos bastante marcadas por preocupações estéticas.

No fim das contas, ao invés de Villa ter tomado um caminho no qual tivessem prevalecido as recomendações de seus pais para que diminuísse ou mesmo parasse de se interessar por jogos, ou, ao contrário, ter adotado uma atitude que ignorasse por completo os apelos paternos, na verdade, o resultado foi a formação de uma síntese entre as forças dos múltiplos ambientes de socialização experimentados pelo entrevistado. Desse modo, se seus pais não foram bem-sucedidos em anular o interesse por jogos e pelo universo virtual, por outro lado, tais práticas não foram, e não são vivenciadas por Villa como mero divertimento ou ócio puro e alienante, que “não levasse a canto algum”. Na verdade, constituiu-se em Villa uma opção por uma prática “vulgar”, vista, em geral, como simples entretenimento, contudo esta prática é feita com a mediação de opções éticas e estéticas mais legítimas, tendo elas sido incorporadas sob a influência de valores transmitidos pela contínua influência de seu ambiente familiar e pelo reflexo permanente, mesmo depois de anos, de sua primeira experiência escolar, que foi marcada por atividades que estimulavam o fazer criativo e a autoexpressão por meio das frequentes atividades artísticas que lá eram realizadas.

Quando reflete sobre as influências exercidas por seus pais quanto a seus gostos e práticas culturais, Villa tem dificuldade — talvez por uma procura pela afirmação de sua independência e autonomia, ou porque de fato não as reconheça — em perceber como seu pai e mãe atuaram no desenvolvimento de boa parte de suas práticas de consumo cultural, sobretudo com relação a suas preferências musicais. Assim, o entrevistado manifesta que acha que a influência exercida por seus pais sobre ele se deu de forma mínima, citando que, apesar de seu pai possuir álbuns de Zé Ramalho em sua coleção, ele só veio a conhecer o artista propriamente quando um amigo lhe recomendou sua música. Desse modo, Villa percebe muitos de seus gostos e práticas culturais como espontâneos, sem considerar os vários momentos em que, na sua infância, seu pai ouvia música na sala, como capazes de ter suscitado a disposição de desenvolver o hábito por ouvir músicas que não são tão populares e de fácil consumo, como o álbum “Paêbirú” de Lula Côrtes e Zé Ramalho, que foi o exemplo citado por Villa de algo que ele descobriu “por fora”. Ele conta que seu pai não lhe permitia manusear sua coleção, a qual é organizada com tal minúcia que ele percebe qualquer álbum que esteja faltando ou que tenha sido colocado fora da ordem por ele estabelecida. Todavia, quando Villa passou a ter mais interesse por música, na adolescência, o pai passou a autorizar seu acesso à coleção, desde que o avisasse previamente e tomasse bastante cuidado.

Talvez essas interdições impostas por seu pai tenham contribuído para a visão distanciada que Villa tem da influência deste, embora conte que diariamente o pai ouvia música por longos períodos, e que gostava de brincar com os filhos, perguntando se eles sabiam o que ele estava escutando. Tais momentos certamente influenciaram Villa a desenvolver familiaridade por composições musicais que, por sua própria complexidade, não são acessíveis por intermédio dos meios de comunicação. Isso explicaria a afirmação de Villa de que, ao ouvir o álbum Paêbirú, quando adolescente, sentiu uma conexão instantânea com a obra, pois na verdade essa predisposição vem de antes, sobretudo se considerarmos que se trata de um trabalho carregado pelo forte experimentalismo da psicodelia brasileira, misturando diversas referências musicais com as quais Villa já estava habituado. Não seria surpreendente, tendo em vista que o álbum consta na coleção de seu pai, se Villa já houvesse escutado o álbum quando criança, ainda que ele não tenha qualquer lembrança disso.

No tocante a seu interesse por cinema e culinária, são práticas que Villa percebe mais diretamente como fruto da influência de seus pais, afinal, ele diz que passou a cozinhar por estímulo do pai e, quanto ao cinema, relata que é frequente sua família reunir-se para assistir a filmes juntos; tendo ele assistido a alguns filmes “cult” ainda criança, a convite de seus pais. Portanto a maior dissonância de Villa em relação a sua família, sendo inclusive uma ruptura com a forma com que seus pais tentaram educá-lo, reside no universo da prática de jogos digitais. Ainda assim, como vimos, estes são escolhidos pelo crivo estético que foi incorporado pela vivência cultural de sua família, experiências que fizeram com que ele passasse a se interessar por expressões artísticas “legítimas” e, inclusive, pela forma como estas são construídas.

Vale destacar que grande parte do interesse de Villa por jogos vem pela oportunidade que eles representam de exercer a criatividade — ressaltamos que ele coloca que, para conceber o atual jogo que está projetando, houve grande preocupação com a forma e com os elementos estéticos, como, por exemplo, não replicar a jornada do herói, algo que ele reputa como um lugar comum; mas sim fazer uso de metalinguagem com programas de televisão e influências da vanguarda moderna surrealista. Vemos, então, que seu interesse por jogos, definitivamente, não se restringe apenas a jogá-los, mas também por transformá-los em formas de expressão criativa e artística, tendo grande satisfação em concebê-los e em fazer uso, como inspiração, das referências culturais que incorporou ao longo de sua socialização. Tais referências são tanto as “legítimas”, provenientes do ambiente familiar quanto as que ele incorporou de maneira mais independente, especialmente do mundo virtual, que incluem a cultura de “memes” e gifs do universo de fóruns virtuais como Reddit e Chans. Além disso, fragmentos de videoclipes, frames de cenários de video game dos anos 1980 e 1990, marcados pelos baixos bytes ou por efeitos toscos em 3D, que são abundantes na internet, têm bastante expressividade em suas criações. Também são as facilidades permitidas pela tecnologia, como a popularização de programas de edição de vídeo e de áudio, bem como de câmeras de filmar mais baratas, que permitem a Villa enveredar por diversas formas de expressão artística, como a musical, já mencionada, e a audiovisual, que por vezes se complementam. Assim, os dois diferentes universos de prática, familiar e virtual, atuam em conjunto como escolhas estéticas de referência em seus trabalhos.

Ao repararmos que as principais amizades de Villa são oriundas da infância, algumas delas de sua primeira escola, e que um dos aspectos que os unem gira em torno de projetos e experimentações criativas, percebemos como a disposição por atividades criativas e expressões artísticas é constante na vida de nosso entrevistado, de modo que, quando ele estudou em colégios voltados para um ensino pouco reflexivo, com reduzidas possibilidades de autoexpressão, sentiu-se em crise pelas novas demandas desse universo, uma vez que sua falta de sucesso despertou inseguranças quanto a suas capacidades. Todavia, como ele contou, apesar de não gostar da escola, um pensamento que o aliviava era o de que se tratava de uma fase passageira: no seu entender, “a missão é terminar a escola, você tá terminando, não é uma questão de força, é de tempo, no final”. Além disso, Villa tinha uma vida fora da escola, com estímulos que o animavam mais e amigos com os quais podia exercer seu lado criativo e sua disposição para realizar e produzir, o que, junto com as influências da família, fez com que sua apetência pelas artes sempre fosse atualizada e com que ele sempre estivesse encontrando satisfação na arte, além de validação nos contextos sociais que mais valorizava.

Ademais, se Villa adotou uma postura evasiva enquanto estava em suas duas últimas escolas, tendo descrito a si mesmo como tímido e pouco participativo nessa fase — inclusive utilizando o adjetivo “nômade”, porque não se percebia como parte de nenhum grupo da escola —, tais traços de timidez e passividade não são generalizáveis a todas as situações que ele vive. Dentro do coletivo de arte de que faz parte, Villa é um dos mais engajados e está sempre instigando os outros membros a produzir e a levar com mais comprometimento os esforços de tornar aquilo que, por enquanto, ainda é mais “diversão” que trabalho, uma relação mais profissional que lhes permita viver apenas das produções artísticas do coletivo.

Observamos também que o estoque de disposições e de princípios de práticas de Villa é caracterizado por poucas variações intraindividuais, de modo que sua disposição para atividades práticas, artísticas e de autoexpressão esteve sempre presente, bem como para a seriedade e para a disciplina, mesmo enquanto ele vivenciava um universo, no caso, a escola, de práticas pautadas não pela criatividade, mas mais pela reprodução de conteúdo de matérias tradicionais. Assim, sua disposição para o comprometimento, embora não tão presente na escola, quando predominou uma postura de “abandono”, manifestava-se quanto aos saberes em que ele tinha interesse, justamente por propiciarem a autoexpressão e terem um forte caráter prático e participativo, como o curso de inglês, o aprendizado da culinária e o envolvimento com música e arte em geral. E vale salientar que, se Villa não experimentou o ensino médio escolar com o comprometimento que demonstrava nas demais áreas de suas práticas, isso foi vivido com certa angústia e autocobrança por estar aquém do desempenho esperado nas avaliações escolares e pelo medo e dúvida de escolher uma profissão vista como legítima dentro daquele ambiente — portanto não se tratou da adoção de um estilo de vida hedonista.

Villa tem apenas 23 anos, assim, por ser muito jovem, é possível que suas disposições ainda sejam bastante modificadas, mas, além da pouca idade e das experiências de vida ainda reduzidas, uma forma de interpretar essa pouca variação talvez venha do fato de ele ser membro de uma fração da classe dominante em uma sociedade periférica e extremamente segregada (o que visualizamos através da própria forma de morar em condomínios murados) e de sempre ter vivenciado experiências em contextos muito pouco diversificados entre si e, em sua maioria, localizados dentro dessa fração de classe. Assim, seus amigos de infância eram aqueles provenientes de sua primeira escola ou filhos dos amigos de seus pais e, mesmo após seu ingresso na universidade, esse quadro não foi muito modificado. A isso soma-se o fato de que o entrevistado sempre passou muito tempo em casa, encontrando na internet e nos meios de comunicação de massa outro contexto de socialização e de apreensão de práticas e gostos culturais que, ainda assim, foram consumidos sob a mediação de princípios, valores e orientações estéticas muito próximos daqueles próprios de seu contexto familiar e de classe.

Por meio do retrato sociológico de Villa, podemos traçar diálogos com as críticas efetuadas por Bourdieu (2011a, 1983) contra a ideologia carismática que percebe as práticas de “gostos”, em matéria de consumo cultural, como se estas fossem a mais suprema manifestação da essência e sensibilidade dos indivíduos. Assim, ao mesmo tempo que o senso comum ignora as condições necessárias para que ocorra a apropriação de determinados bens culturais, a qual exige disposições específicas, o consumo de bens culturais permite, a depender da raridade destes em função do trabalho de apropriação que exigem, que o público seja dividido em duas categorias: aqueles que teriam sensibilidade para fruir de obras artísticas legítimas e os que não a teriam e que, por isso, se contentariam com o que é fácil e pouco desafiador.

Ao traçar este retrato sociológico, foi possível exemplificar como a incorporação do capital cultural é o resultado de um processo incessante em que o indivíduo está continuamente exposto a estímulos que possibilitam ter “gosto” por práticas culturais que não são tão acessíveis e espontâneas quanto são habitualmente percebidas. De fato, ainda que Villa considere que teve um papel de autonomia na construção de seus “gostos” e práticas culturais, a todo momento ele esteve inserido em um contexto familiar que o muniu dos códigos e referências necessários para se envolver com sucesso com o campo artístico.

Bourdieu (2011a, 1983) aponta que a escola e, sobretudo, a família desempenham papel central no desenvolvimento da competência cultural exigida pelo ideal da percepção tal qual o campo artístico convenciona, contudo, a eficácia da escola está diretamente relacionada às condições que a família (origem social) oferece, que podem, previamente e paralelamente, inculcar disposições que permitam um melhor envolvimento da criança em seus jogos “desinteressados”, do contrário, sua importância é diminuída. Assim, apesar de o entrevistado ter estudado a maior parte de sua vida escolar em escolas de perfil pragmático, que estimulavam seus alunos a optar por cursos “tradicionais” e supostamente com maior retorno financeiro, ele escolheu a carreira artística, o que só foi possível com o suporte dos seus pais: tanto porque o muniram das disposições adequadas para saber consumir obras de arte legítimas quanto por serem uma família bem estruturada financeiramente.

Nesse sentido, ressaltamos ainda que a disposição estética só é possível com a “retirada para fora da necessidade econômica” (BOURDIEU, 2011a, p. 54). O estilo de vida das classes dominantes, de elevado capital econômico e cultural, como o do entrevistado, exprime os efeitos dessa condição de existência privilegiada, que permite aos agentes envolver-se em práticas “gratuitas” e “desinteressadas”. Ou seja, há uma espécie de prolongamento da infância que possibilita aos adolescentes — por estarem isentos da necessidade de ingressar precocemente nas atividades econômicas — se engajarem em atividades, como as estéticas, que não envolvem uma função imediata. Logo, a distância das necessidades materiais urgentes leva ao que Bourdieu (2011a, 1983) denomina “estilização da vida”. Foi possível observar que os pais do entrevistado acabaram assumindo um papel de mecenato indireto que permitiu a ele retardar o fim de sua juventude e prolongar seu período de formação. Tal aspecto fica evidenciado quando ele diz que tem muito a agradecer a seus pais por sempre terem sido pacientes e demonstrado apoio incondicional a ele.

Mas, além dessa condição de classe de abastança, fundamental para que o entrevistado desenvolvesse a estilização da vida, Bourdieu dá relevância ao papel da família e da escola para a incorporação do capital cultural e das disposições artísticas. Tudo isso torna-se mais que mero “substantivo” (LAHIRE, 2005) quando se aplica a metodológica do retrato sociológico, que torna mais nítido o lento processo de estímulos fundamentais para a incorporação das disposições necessárias para o interesse pela arte e seu consumo. 

Por fim, se Lahire (2005, 2006) fala em variações intraindividuais, tanto em relação às disposições quanto ao gosto e consumo cultural de um agente, que pode mesclar o consumo de bens culturais legítimos e não-legítimos (por isso sua visão de ator plural), o que vemos, no caso de Villa, é que mesmo o consumo de bens culturais tidos como “vulgares”, como o video game, é feito com a aplicação da disposição estética em seu sentido mais puro, ou seja, ele joga atendo-se muito mais à forma — direção de arte e possibilidades de narrativa dos jogos, por exemplo — do que à função de diversão instantânea, isto é, as experimentações estilísticas possíveis de serem feitas com um jogo têm uma dimensão maior que o mero divertimento. No caso de Villa, especificamente, vemos que o habitus de classe, que permite o desenvolvimento da disposição estética, ou seja, disposições do passado incorporado, como visto ao longo de todo o retrato sociológico, está constantemente em atuação e se atualizando até mesmo em situações inusitadas, como na prática e consumo de video games.

Assim, ao menos no caso de Villa, podemos afirmar uma permanência do mesmo princípio disposicional referente à aplicação geral da disposição estética, particular à sua condição de classe. Quanto a isso, cabe salientar que Bourdieu (2011a) trata das dissonâncias culturais quando reflete sobre agentes com alto capital cultural (produtores culturais) que passam a consumir bens não tão legítimos ou em vias de legitimação, como, fazendo referência à época em que escreveu “A distinção...”, o jazz e o cinema. Porém ele afirma que tais agentes o fazem tendo como base os princípios da disposição estética, sendo esta, inclusive, uma forma de afirmar a segurança e certeza do gosto frente à insegurança dos burgueses e pequenos burgueses; justamente por promoverem bens culturais considerados menores transformando-os em objetos majoritariamente de apreciação estética, isto é, centrando a fruição nos aspectos estéticos e não na função, portanto, exercendo uma forma legítima de consumo. Apesar de percebermos, a partir do retrato sociológico de Villa, uma constância da disposição estética, a qual se estende tanto para âmbitos da cultura legítima quanto para bens culturais menos legítimos, é difícil fazer generalizações a partir de um caso único. Assim, consideramos que persiste a indeterminação a respeito da precedência ou não do modelo bourdiesiano do habitus unívoco sobre a ideia de patrimônio disposicional de Lahire.

 

Referências

BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Zouk, 2011a.

BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2011b.

BOURDIEU, Pierre. Gostos de classe e estilos de vida In: ORTIZ, Renato  (org.). Pierre  Bourdieu:  sociologia. São  Paulo:  Ática, 1983. p. 82-121.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.

LAHIRE, Bernard. A cultura dos indivíduos. Porto Alegre: Artmed, 2006.

LAHIRE, Bernard. O homem plural: os determinantes da ação. Petrópolis: Vozes, 2002.

LAHIRE, Bernard. Patrimônios individuais de disposições: para uma sociologia à escala individual. Revista Sociologia, Problemas e Práticas, Lisboa, n. 49, p. 11-42, 2005.

LAHIRE, Bernard. Retratos sociológicos: disposições e variações individuais. Porto Alegre: Artmed, 2004.

PETERS, G. Habitus, reflexividade e neo-objetivismo na teoria da prática de Pierre Bourdieu. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 28, n. 83, p. 47-71, 2013. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-69092013000300004. Acesso em: 19 nov. 2022.

VELHO, Gilberto. Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

 

Recebido em: 30/07/2022.

Aceito em: 14/11/2022.

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n29.63860.p190-215

 

 



* Mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)/Brasil. E-mail: dinoviscky@gmail.com.

[1] Para preservar a intimidade e a vida privada do entrevistado, alteramos o seu nome, bem como outras informações relevantes, como os nomes das escolas em que ele estudou.

[2] Trecho retirado de entrevista realizada com Villa em sua residência, em dezembro de 2020.

 

 

_____________________

Desenho de um círculo

Descrição gerada automaticamente com confiança médiaÉ permitido compartilhar (copiar e redistribuir em qualquer suporte ou formato) e adaptar (remixar, transformar e “criar a partir de”) este material, desde que observados os termos da Licença  CC BY-NC 4.0.