ANTROPOLOGIA E POLÍTICAS PÚBLICAS: apresentação do dossiê

 

ANTHROPOLOGY AND PUBLIC POLICIES: presentation of the dossier

Alicia Ferreira Gonçalves *

Alberto dos Santos Cabral **

Maristela Oliveira de Andrade ***

 

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n29.64759.p10-15

 

 

Resumo

O texto realiza uma breve análise da relação entre antropologia e políticas públicas como um novo campo de estudos e apresenta o conteúdo dos artigos que compõe o dossiê antropologia e políticas públicas: confluências epistêmicas.

Palavras-chave: antropologia; políticas públicas; políticas culturais; território.

 

Abstract

The text offers a brief analysis of the relationship between anthropology and public policies as a new field of study and presents the content of the articles that make up the dossier — anthropology and public policies: epistemic confluences.

Keywords: anthropology; public policies; cultural policies; territory.

 

A alteridade cultural que se estabelece nas relações entre nosso grupo e o Outro é a problemática fundante da antropologia que emerge no final do século XIX. Ela nos possibilita, a partir dos anos 2000, uma aproximação e diálogo no campo das políticas públicas, especialmente mediante estudos etnográficos sobre a diversidade de grupos étnicos e sociais, crescentemente nos últimos vinte anos, tornando-os alvo dessas políticas. A Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS) instituiu em 2010 a área de antropologia das instituições e da governança (SPIESS, 2016). Segundo Leiner (2013), esta área tem apresentado distintas abordagens: a primeira privilegia os efeitos das políticas públicas sobre as identidades e a cultura dos grupos; a segunda aborda a gestão pública e o papel dos antropólogos e antropólogas como mediadores entre o Estado e o grupo alvo; e a terceira compreende as relações entre Estado e política pública como linguagem e tecnologias de poder com seus agentes (LIMA; MACEDO E CASTRO, 2008).

Nesta perspectiva, este dossiê propõe debater as confluências epistêmicas que emergem das relações entre a antropologia e as políticas públicas nas abordagens descritas por Leiner (2013), considerando ainda os confrontos entre os princípios universalistas das políticas e os perfis particularistas dos grupos sociais (GONÇALVES; GUSSI, 2011). Esse debate vem sendo desenvolvido no âmbito das atividades do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa em Cultura, Sociedade e Ambiente (GIPCSA)[1], que atua junto ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal da Paraíba, coordenado por Alícia Gonçalves.

Este dossiê foi motivado a partir da disciplina Cultura, Políticas Públicas e Desenvolvimento ofertada ao PPGA e ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente (Prodema) em 2021, estudo coordenado pelas organizadoras deste dossiê, com a colaboração do pesquisador Alberto Cabral realizando então seu estágio pós doutoral no PPGA, desenvolvendo o projeto “A cultura como eixo de desenvolvimento”.

Pensada a partir das confluências entre cultura e políticas públicas em articulação com teorias do pós desenvolvimento (SILVA, 2010), que apontam para horizontes de decrescimento ou decrescimento sereno (LATOUCHE, 2009), a disciplina buscou ainda articular a temática às teorias indígenas do “bem-viver”. Neste quadro teórico, as políticas públicas, em especial as políticas culturais, se configuram como ações de Estado direcionadas para o fortalecimento das identidades, da redução das desigualdades e, simultaneamente, como matriz de geração de renda para parcelas crescentes da sociedade.

O debate construído no âmbito da disciplina se materializou em um conjunto de experiências etnográficas e análises produzidas por mestrando(a)s e doutorando(a)s que cursaram a disciplina e articularam a discussão dos teóricos das políticas públicas e culturais às suas etnografias em andamento. As experiências relatadas sinalizam o fomento público às políticas culturais e diferentes artes no contexto do direito à cidade, ao território e à segurança alimentar, tendo como protagonistas diferentes grupos sociais, como jovens e crianças, negros e moradores da periferia, indígenas e pescadores.

As políticas culturais foram alvo dos primeiros artigos, o de Marianne Muniz Atanazio e Marco Aurélio Paz Tella — As práticas artísticas da arte de rua no Recife: relações com as técnicas e as políticas públicas —, no qual observam a arte de rua e a política cultural na cidade do Recife, analisando os efeitos do processo da desconstrução da ideologia racista, dialogando com a consciência histórica da resistência cultural e a epistemologia das práticas culturais (reprodutibilidade técnica artística) de sobrevivência do povo preto. Os autores analisam como a arte de rua se manifesta no contexto cultural do centro histórico do Recife, por intermédio de análises de imagens do graffitti e do pixo.

Já o artigo Cultura como um eixo de desenvolvimento: os museus universitários e os espaços museais da Universidade Federal da Paraíba, de Alberto dos Santos Cabral, David Holanda de Oliveira e Marisa Pires Rodrigues, analisa a elaboração do Plano Museológico para espaços museais na UFPB, com foco na Pinacoteca. A arte e a cultura são vistas como componentes capazes de contribuir para o desenvolvimento sustentável, elas são traduzidas nos planos estratégicos e ações para a Pinacoteca. Como signatária da Agenda 2030 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a UFPB se compromete com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), ao cumprir a exigência legal do Plano Nacional Setorial de Museus que reafirma a ligação entre museu, cultura e desenvolvimento.

O artigo Do Skate street ao skatepark: as políticas públicas nas ruas e nas praças de Imperatriz/MA, de autoria de Jesus Marmanillo Pereira, analisa as políticas públicas de esporte e lazer, a partir da construção do skatepark (pista de skate) da Praça Mané Garrincha, localizada na cidade de Imperatriz, no sul do estado do Maranhão. Com o aporte da antropologia, o autor traça reflexões sobre o tema para compreender como os agentes públicos dialogaram com os praticantes de skate sobre a aplicação dos recursos orçamentários em esporte e lazer na cidade. As tensões advindas do diálogo revelaram a luta dos skatistas pelo direito ao espaço público ou direito à cidade, aliado à expressão cultural e afirmação identitária.

Aliás, o direito à cidade foi debatido nos artigos seguintes, cujas pesquisas visaram as políticas públicas direcionadas às crianças, como no artigo Interfaces antropológicas em políticas públicas: algumas repercussões advindas da “Cidade da Criança” situada em Natal/RN,  de autoria de Milene Morais Ferreira, Beatriz Soares Gonçalves e Flávia Ferreira Pires,  que nos convida a refletir acerca da relevância epistemológica da prática antropológica na elaboração de políticas públicas com foco nas crianças. Nessa perspectiva, as autoras observaram o debate sobre política pública, ética e ação na construção de políticas públicas, cujo referente empírico é a Cidade da Criança, circunscrita em Natal/RN.

Na mesma sintonia de pensamento, temos o ensaio sobre o Reflexões antropológicas sobre políticas públicas centradas nas crianças: um estudo inicial sobre o “Projeto Cidade das Crianças” e sua realização no município de Jundiaí (SP), igualmente articulado à uma antropologia das crianças. O ensaio de autoria de Beatriz Soares Gonçalves e Flávia Ferreira Pires tem como objetivo analisar uma iniciativa internacional de gestão municipal (fundada na Itália, em 1991), apropriada por um município do estado de São Paulo, que busca colocar as crianças no foco das políticas públicas voltadas para o direito à cidade.

Quanto às políticas de direito ao território, o artigo A Comissão Pró-Índio de Sergipe e a construção de políticas públicas para os povos indígenas:  reflexões sobre o papel do antropólogo no processo de retomadas das terras Xokó, de Diogo Cruz Monteiro e Estevão Palitot, realiza uma imersão na história de lutas da etnia Xocó por seu território no Porto da Folha, estado de Sergipe, e reflete sobre o papel político e epistemológico da antropóloga Beatriz Góes, fundadora da Comissão Pró-Índio em Sergipe. Como contribuição epistemológica para o movimento, a antropóloga fez os estudos de reconhecimento étnico dos Xocó com base em teorias contemporâneas sobre etnicidade. Como contribuição política exerceu uma militância séria e comprometida com o fortalecimento das lutas territoriais dos Xocó que garantiram o acesso a políticas públicas que lhes asseguraram direitos étnicos e territoriais.

O artigo Avaliação da política de expansão do IFCE junto aos povos do mar de Camocim/CE, de autoria de Anniely Silva Brilhante e Alcides Fernando Gussi, vinculados à Universidade Federal do Ceará, avalia a política de expansão da educação profissional e tecnológica no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), e sua atuação junto aos povos do mar, cujo território está localizado no município de Camocim, estado do Ceará. Para tanto, apresenta-se como questão central, saber em que medida a política de expansão do IFCE vem contribuindo para o desenvolvimento dos povos do mar de Camocim/CE por meio de inovações na atividade de pesca.

Políticas públicas no âmbito da segurança alimentar são extremamente relevantes para o desenho das ações de combate à fome no Brasil contemporâneo. De autoria de Nadja Silva dos Santos e Maristela Oliveira de Andrade, o artigo Pensando a antropologia no campo das políticas públicas: reflexões sobre a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional propõe discutir a emergência e extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), refletindo sobre os contextos políticos, econômicos e socioculturais. No Brasil atual, as conjunturas política e sanitária, especialmente com a eclosão da pandemia da Covid-19, revelaram-se para as autoras como um cenário de necropolíticas (MBEMBE, 2018), que criam mundos de morte para grupos sociais específicos.

Para finalizar este dossiê, o ensaio visual Revisitando o Talhado, de José Vandilo dos Santos e Lara Amorim, retrata a memória da comunidade quilombola do Talhado da Paraíba por meio de um acervo fotográfico do autor em dois momentos da sua pesquisa, com intervalo de duas décadas. Os autores buscam agregar à antropologia visual o compromisso de dar visibilidade aos processos vividos pelo povo do Talhado em suas lutas para o acesso a políticas públicas, e suas conquistas.

É importante mencionar o contexto em que as pesquisas foram realizadas e articuladas para a formação desse dossiê. Os estudos transcorrem em paralelo a sindemia: no contexto da Covid-19, da crise ecológica, sanitária e crises políticas e institucionais causadas durante o governo Bolsonaro, demonstrando desta forma, a resiliência dos pesquisadores brasileiros, da universidade pública, bem como seu papel relevante nos territórios etnografados.

Referências

GONÇALVES, Alícia Ferreira; GUSSI, Alcides Fernando. Visões sobre o desenvolvimento e as políticas públicas: os dilemas entre particularismo e universalismos. In: CONFERÊNCIA DO DESENVOLVIMENTO (CODE), 2., 2011 Brasília, Anais [...]. Brasília: IPEA, 2011. p. 1-20. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/32508/1/2011_eve_afgoncalvesafgussi.pdf. Acesso em: 22 nov. 2022.

LATOUCHE Serge. Pequeno tratado do decrescimento sereno. Editora: ‎ WMF Martins Fontes, 2009.

LEIRNER, Piero de Camargo. As políticas públicas segundo a antropologia. In: MARQUES, Eduardo; FARIA, Carlos Aurélio Pimenta de (org.). A política pública como campo multidisciplinar. São Paulo: Unesp; Rio de Janeiro: Fiocruz, 2013. p. 69-90.

LIMA, Antônio Carlos de Souza; MACEDO E CASTRO, João Paulo. Política(s) pública(s). In: SANSONE, Livio; PINHO, Osmundo Araújo (org.). Raça: novas perspectivas antropológicas. 2. ed. Salvador: Associação Brasileira de Antropologia: Edufba, 2008. p. 351-392.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed. N1 Edições: São Paulo, 2018.

SILVA, José de Souza. Aridez mental, problema maior: contextualizar a educação para construir o “dia depois do desenvolvimento” no semiárido brasileiro. Campina Grande: Embrapa/INSA, 2010.

SPIESS, Marcos Alfonso. Relações entre antropologia e políticas públicas no Brasil: uma análise da institucionalização do campo de pesquisa. Perspectivas em Políticas Públicas, Belo Horizonte, v. 9, n. 17, p. 169-191, 2016. Disponível em: https://revista.uemg.br/index.php/revistappp/article/view/783. Acesso em: 26 nov. 2022.

 

Recebido em: 06/11/2022.

Aceito em: 23/11/2022.

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n29.64759.p10-15

 

 



* Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba/Brasil. Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)/Brasil. E-mail: aliciafg1@gmail.com.

** Doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília (UnB)/Brasil. E-mail: gracianocabral@yahoo.com.br.

*** Professora titular aposentada da Universidade Federal da Paraíba/Brasil. Doutora em Étude Latino-Americaine/Anthropossociologie des Religions pela Universidade de Paris III/França. E-mail: andrademaristela@hotmail.com.

[1] O Gipcsa possui cadastro no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq desde o ano de 2012. Cf.: https://gipcsa.wixsite.com/ufpb.

 

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Desenho de um círculo

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