RACISMO, EUGENIA E DESIGUALDADES: uma leitura crítica da obra de Gobineau

RACISM, EUGENICS AND INEQUALITIES: a critical reading of Gobineau’s work

 

Anderson dos Santos Cordeiro *

 

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n30.65402.p250-260

 

 

 

GOBINEAU, Arthur de. Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas. Curitiba: Antonio Fontoura, 2021.

 

A questão racial no Brasil, durante muito tempo, foi permeada por interpretações e análises feitas por intelectuais estrangeiros, que vinham ao território brasileiro em viagens e expedições ou que se valiam de informantes para observar as dinâmicas raciais, classificadas como inconclusas, confusas e exóticas. Do período colonial à República, foram diversos os que se propuseram a pensar a questão racial sob vertentes, perspectivas e dissonantes conceitos, que amparados nas teorias europeias, atrelavam, de distintas formas, as causas da permanência e inferioridade dos mestiços, indígenas, asiáticos e africanos aos modelos europeus de comparação, a exemplo do evolucionismo, eugenismo, positivismo e darwinismo social. Arthur de Gobineau, intelectual francês do século XIX, escreveu um dos livros mais conhecidos sobre a questão racial do ponto de vista europeu. Essa obra foi vastamente difundida e utilizada com fins políticos ao longo dos séculos XIX e XX (SOUSA, 2018) como base e esforço intelectual para as doutrinas do arianismo, do racismo científico e das desigualdades ditas inatas vinculadas à raça, como o título da própria obra exalta: Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas (GOBINEAU, 2021).

O ensaio de Gobineau se tornou conhecido por suas pretensas e densas justificativas sobre a inferioridade racial negra e mestiça, obra que acaba de ser publicada em português, dando aos leitores brasileiros a possibilidade de perceber melhor como autores, a exemplo de Gobineau, influenciaram a questão racial entre intelectuais brasileiros, como Oliveira Vianna, João Batista Lacerda e Nina Rodrigues. Esse conjunto de ideias se tornou a base para a criação de mitos e estigmas[1] vinculados à população que não era branca (SKIDMORE, 1976).

A obra de Arthur Gobineau ganha sua primeira tradução em português, feita pela editora Antonio Fontoura em 2021. Mesmo após 169 anos desde sua primeira publicação em 1853, ela continua despertando interesse, não mais pelos argumentos que o autor evoca, amplamente contestados e superados. Mas pelo modo como serviu de perspectiva e base para o racismo e outras ideias que ainda pairam sobre o pensamento científico a respeito da questão racial contemporaneamente.

A tradução da obra chegou tardiamente ao público brasileiro. O livro contém 26 capítulos, nos quais o autor constrói seu argumento sobre a base da desigualdade das raças humanas dentro do processo histórico da França pós-revolução e dos destinos da humanidade. Nesses capítulos, Arthur de Gobineau, de maneira bem objetiva na linguagem e sincrética, define, conceitua e caracteriza o que considerava como um dos maiores problemas da questão científica e intelectual de seu tempo, a miscigenação.

Não serão expostos nesta resenha, de maneira exaustiva, os títulos dos vinte e seis capítulos que compõem a obra a fim de esmiuçá-los individualmente. Esta resenha crítica se propõe, então, a identificar os argumentos, pontos chaves e métodos utilizados por Gobineau para sistematizar suas ideias dentro da obra.

O entendimento sobre “raça” como conceito criado é unanime dentro do campo sociológico e científico atualmente (GUIMARÃES, 2021). Entretanto a busca ao longo do século XIX por uma definição acerca da questão racial guiou diversas pesquisas e intelectuais das mais variadas áreas a encontrar estas respostas. O conceito de raça surge nesse processo para dimensionar as diferenças raciais entre povos e grupos, buscando diferenciá-los a partir de questões biológicas, fenotípicas e morais — colocando o europeu branco como padrão e norma para comparação racial, cultural e civilizacional. Além de servir como justificativa de dominação, expropriação e violência na estrutura colonial em terras africanas e na América Latina (BANTON, 2010).

 Gobineau se propõe a pensar a questão a partir de sua percepção da superioridade racial dos brancos europeus e franceses, tese que será desenvolvida nas 532 páginas que compõem sua argumentação distribuída nos capítulos da obra. Gobineau, já na introdução — dedicada ao rei Jorge V da Inglaterra —, define seu trabalho como fruto de “longas meditações” e “inquietações dos tempos modernos” (GOBINEAU, 2021, p. 9). Essas inquietações contestavam os pressupostos científicos da História, entre eles a cronologia do homem e da terra e dos objetos encontrados nas escavações de paleontólogos e historiadores. Segundo Gobineau, a história deveria seguir baseando-se nos dados bíblicos, conceituando, então, o período histórico a partir do teocentrismo cristão e não dos intelectuais chamados de pré-históricos. Estes intelectuais refutavam as ideias baseadas na bíblia a partir de estudos históricos que evidenciavam que, diferentemente dos dados dispostos nas “escrituras sagradas”, a terra e os seres humanos tinham idade e origens que diferiam da visão monogenista de Gobineau.

Nos primeiros capítulos de sua obra, Gobineau discute como a decadência das sociedades estava atrelada a uma causa comum, para isso cita explicitamente os casos do Egito, Grécia, Roma e Assíria que vieram à ruína devido às sucessivas formas degenerativas que transformaram a sociedade, a exemplo da miscigenação. O autor demonstra que não foram ações isoladas, mas coletivas que favoreceram seu esfacelamento. E descreve que a causa latente que ao longo da história consumava-se como fator para sua decadência para além da mistura sanguínea entre povos e culturas era a aglomeração intelectual antirreligiosa.[2]

O discurso científico contra os argumentos da religião afetava diretamente as alegações de Gobineau, por isso o autor refuta os estudos de sua época para justificar as premissas cristãs como base e fundamento de sua percepção. Em sua obra, o autor argumenta que além da irreligião, outros fatores corroboraram para que a decadência das sociedades fosse pautada e observada, descrevendo as ações que iam contra os fundamentos cristãos, como a imoralidade e a sexualidade, fatores para sua desestruturação, mas que não necessariamente seriam apenas estes fatores isolados que levariam as sociedades à ruína e perecimento.

Gobineau fundamenta suas inquietações apoiando-se na história de desestruturação das sociedades que tiveram marcas do fator político, moral, cultural, racial e religioso, essa história é a base para se pensar sua decadência. Segundo o autor, o fator político e de longevidade do povo não estaria diretamente ligado à forma como a moral, a cultura e a religião permeavam a sociedade e suas classes sociais. Para isso, ele conceitua em quatro tipos o que poderia ser descrito como características de um mau governo, e como esse tipo de governança empobrecia e influenciava de sobremaneira as questões relativas à sobrevivência: 1) quando é imposto por influências estrangeiras que não são da própria sociedade, ocasionando a tirania; 2) por falta de projeto, “[...] se baseia em pura e simples conquista” (GOBINEAU, 2021, p. 48); 3) a partir do momento que se deixa viciar por medidas e ações que fogem de suas características iniciais, o governo perde os atributos que o fizeram surgir. E por último define que “um governo ainda é pior quando, pela natureza de suas instituições, autoriza o antagonismo, seja entre poder supremo e a massa da nação, seja entre as diferentes classes” (GOBINEAU, 2021, p. 49).  Ainda assim, é no contato interétnico que as sociedades estariam fadadas a sua desgraça, diante da pureza inata que a raça branca teria geneticamente em atributos e características, diferentemente das aptidões oriundas da mistura com outros grupos e etnias.

O autor destaca o capítulo quatro, intitulado Sobre o que significa palavra degeneração; sobre mistura de elementos étnicos, e como as sociedades são formadas e desaparecem, para analisar o que conceitua como degeneração. Residindo nesse sentido o ápice de sua argumentação e o início de um discurso que vai se pactuar com as manifestações de racismo, como ocorreu com as doutrinas da pureza racial, amplamente utilizadas com a ascensão do partido nazista na Alemanha no século XX, o eugenismo e, sobretudo, com a lógica colonial — não é à toa que o ensaio foi dedicado a Jorge V da dinastia dos Windsor, então rei da Inglaterra.

Gobineau define a degeneração como resultado de um povo que não compartilha mais da sua pureza racial intrínseca que um dia pôde desfrutar,[3] revelando-se em pura decadência genética, moral, cultural e, sobretudo, racial. Ele recai na tese da pureza racial como efeito, meio e saída para a sobrevivência das sociedades e da própria humanidade. O argumento de Gobineau vai de encontro às teses lançadas pelos biólogos, médicos e naturalistas, que ao longo do século XIX lançavam luz à temática racial a partir da questão da pureza genética, mas, agora, pela visão poligenista. Ao conceituar a raça branca como base para o desenvolvimento da humanidade, o autor distingue de maneira objetiva como a destruição das sociedades e os encontros interétnicos fomentavam a própria erradicação social, moral, cultural e, sobretudo, genética.

A degeneração aparece ao longo de todo livro se referindo às raças pretas, amarelas, mestiças, asiáticas e orientais de maneira negativa, pois eram fruto da decadência genética e moral. Segundo o autor, a mistura interétnica afetaria o desenvolvimento das sociedades que estavam em busca da “modernidade”, e seria permanente e irremediável, pois não haveria maneira de retornar à pureza racial “original”, ocorrendo a sua destruição devido ao contato de raças heterogêneas. Gobineau assume a posição e argumento de que o contato interétnico trazia aos seus frutos a esterilidade e seria levada de maneira permanente aos seus descendentes. Esse fator que o autor exemplifica sobre a aridez do mestiço, teria exemplos no que ocorreu na Grécia, Egito e Assíria, e ocorreria também com as sociedades ao longo dos anos se seguissem a mesma maneira de pautar a questão racial. A noção de civilização empregada pelo autor diz respeito à civilização europeia, especialmente a francesa, que teria todas as qualidades originais fruto do desenvolvimento da raça branca-ariana. Da mesma forma, a concepção de “modernidade” adotada por Gobineau se baseia nas noções de sociedade adotadas pelos europeus do século XIX, classificando como bárbaras e degeneradas todas as sociedades que fugissem da norma e padrão europeu. Portanto a visão do autor se refere à concepção de modernidade na França pós-revolucionária com a ascensão de uma sociedade massificada e individualista (SOUSA, 2018).

Para Gobineau a “modernidade” é um pressuposto intrínseco à pureza racial, não podendo haver civilização aos moldes eurocêntricos de sua época (século XIX) para indivíduos degenerados. Dessa forma, a argumentação de Gobineau retira do Estado a sua importância no processo de “sanar” as desigualdades e realoca sob a cultura o fator para as desigualdades étnicas e a degeneração se perpetuarem no corpo social dos indivíduos. Em contrapartida, destaca a relevância das formas de governo, que aparecem como partes do Estado, cuja importância está ligada à “prosperidade do corpo social” ao impedir as formas deletérias que possam levar a sociedade ao seu esfacelamento — sendo enfático na afirmação: “se equivocada, ela a impede ou a destrói; se sábia, ela serve e a desenvolve” para a manutenção da sociedade e sua prosperidade (GOBINEAU, 2021, p. 103).

Na visão do autor, a independência das culturas sobre o Estado vai ser a causa para que junto com a variabilidade geográfica, habitada pelos indivíduos das mais longínquas culturas, seja motivo para tantas desestruturações de sociedades permeadas pela miscigenação a partir da cultura. Resulta dessa percepção sobre o Estado e a cultura o argumento no qual a concepção de modernidade seria um pressuposto inerente da raça branca, devido a sua pureza e à soberania das sociedades que não foram destruídas ou permeadas pela degeneração racial e moral, pois as sociedades tidas como modernas tinham bons governos e Estados que sabiam o peso e influência das culturas no corpo social da coletividade.

Não obstante, ao conceituar a degeneração como entrave ao progresso, o autor destaca ainda que, para além da esterilidade — que é fruto do contato interétnico —, a desigualdade entre a raça branca, descrita como pura, e as demais, degeneradas, deve ser considerada a partir da noção de força e beleza. Essas desigualdades assinalam os pressupostos alimentados por Gobineau para a diferenciação da raça a partir de critérios morais, sociais, físicos e fenotípicos excludentes, reforçando estereótipos e a própria dinâmica do racismo.

Permeada por essa noção, o autor vai definir conceitualmente no capítulo oito, sob o título de Definição da palavra civilização; o desenvolvimento social resulta de uma dupla origem, o que considera ser civilização e seus usos para o processo de análise das sociedades. A partir de uma concepção eurocêntrica, Gobineau descreve que ao falar “frequentemente de civilização, e com razão, pois é apenas pela existência relativa ou ausência absoluta desta grande característica” que ele classifica e considera os méritos da raça — e conclui deixando explícito que fala de um lugar social e político a partir “da civilização europeia [como centro], e a diferencio das civilizações que digo serem diferentes” (GOBINEAU, 2021, p. 102).

A leitura da obra, à luz de seu tempo, mostra que ao conceituar a questão da civilização, Gobineau destaca, indiretamente, como outras percepções estão restritas à raça branca e europeia, sendo possível, então, compreender e perceber como sua obra foi utilizada para embasar as teorias eugênicas, do darwinismo social, arianismo e do próprio racismo científico.

A partir das definições de degeneração e civilização, Arthur de Gobineau vai descrevendo as consequências e fatores que estão no processo de crescimento e decadência de uma sociedade. Propondo uma perspectiva que resulta na preponderância da raça branca como medida eficaz contra a miscigenação e a degeneração da raça, pois apenas a raça branca teria efeito e possibilidade de buscar a modernização sem resultar em destruição ou decadência genética e moral. Além de manter sua pureza como padrão de qualidade, a exemplo das sociedades europeias e francesas que não desmoronaram com o tempo.

Os semitas, chineses, egípcios, indígenas americanos e africanos ganham capítulos que reforçam a lógica europeia e colonialista, ressaltando os modelos de contato interétnico e suas falências enquanto projeto de sociedade. Segundo Gobineau, as raças humanas em sua origem sempre buscaram o grau de pureza ou melhoramento racial a partir do contato interétnico para fins de sobrevivência, mas algumas “raças” degradaram e decretaram o fim a partir da má seleção desses contatos. Dessa maneira, Gobineau sistematiza como os contatos interétnicos fizeram parte do processo de melhoramento racial da população negra, como ressalta ao destacar que “muito antes da chegada dos Arianos, invasões de povos amarelos haviam chegado para modificar o sangue dos aborígenes negros, e os mestiços da Malásia” (GOBINEAU, 2021, p. 374).

As conclusões de Gobineau são marcadas por analogias que destacam o papel das raças degeneradas: pretas e amarelas, sendo tão ínfimas ao motor da história que não caberia ressaltar. Mas a “benevolência” dos arianos fez misturar sua prata e ouro trazendo algo de positivo nessa junção ao trazer as influências boas dos “mestiços brancos”.

A mistura e benevolência que Gobineau sistematiza para falar das qualidades que a raça branca teria frente às outras não é interétnica, racial, mas sim colonial. A mistura entre povos que o autor tanto repudia acaba sendo descrita como base para o melhoramento racial, mas apenas quando é feita sob povos suscetíveis ao melhoramento. Em outras palavras, os povos brancos e europeus; ou aqueles que o autor chama de “mestiços brancos” (GOBINEAU, 2021, p. 374).

Não há como deixar de notar que Gobineau era um intelectual francês branco, fruto da aristocracia que perde parte de seus poderes pós-revolução, mas que não deixa de ter influências. E ao dedicar sua obra ao rei da Inglaterra ele deixa claro os interesses por trás de tamanha ousadia: adentrar e ser aceito nos círculos intelectuais da França como seu amigo Tocqueville, que já era reconhecido como um grande escritor e intelectual político (SOUSA, 2018). A lógica seguida por Gobineau ressalta de maneira bem pragmática, a partir da dedicatória de seu livro, sua intenção de mostrar como o colonialismo levava cultura e modernidade aos povos sem “alma, sem “cultura” e sem “moral”, sendo justificado como método utilizado por franceses e europeus para o progresso da humanidade e das raças.

Arthur de Gobineau, a princípio, não tinha pretensão de seguir carreira diplomática, queria ser escritor de romance, mas as sucessivas tentativas não surtiram efeito. Ficou conhecido tardiamente por escrever seu livro: Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas. Começou a ser exaltado por suas ideias e como teórico do racismo no fim de sua vida por parte dos estudiosos europeus, que começaram a utilizar sua obra para justificar as desigualdades com fins biológicos, políticos e ideológicos como se sucedeu com as doutrinas arianas partidas do regime nazista. A leitura de Gobineau nos dias de hoje pode despertar no leitor uma extrema repugnância pela maneira objetiva e clara que propaga suas ideias e preconceitos de maneira tão natural. É sobre essa linguagem fácil e acessível em que descreve os motivos, em sua percepção, da inferioridade racial dos negros e mestiços, que serviu de base para discursos racistas que angariavam inúmeros adeptos ao longo do final do século XIX e início do XX sob os regimes totalitários e segregadores. Discursos esses que posteriormente viriam a ser adotados como práticas de Estado como ocorreu na Alemanha, nas políticas eugênicas do início do século XX no Brasil, e na própria dinâmica racial de apagamento histórico que ocorreu com os afro-argentinos na Argentina (KEINDÉ; MELLO, 2019).

Conhecer os arquivos que fizeram parte do arsenal intelectual e teórico dos intelectuais brasileiros e da América Latina é uma maneira de (re)conhecer suas premissas e abordagens na fonte. Identificando como os autores utilizaram estas ideias para conceber o racismo em terras onde a estrutura colonial expropriou e desumanizou diferentes etnias e grupos em prol do discurso cristão como ocorreu no período colonial sob a justificativa de trazer fé aos indígenas, e ao mesmo tempo apagar as religiões indígenas e africanas. Da mesma forma, o discurso de “modernização” que reuniu em intelectuais brasileiros justificativas para a eugenia e técnicas de desinfectar a população pobre, mestiça, negra e periférica que poderia trazer “males ao bem-estar social” — como enunciaram Nina Rodrigues, João Batista Lacerda, Edgar Roquete-Pinto, Renato Kehl, entre outros.

Mesmo sendo datado em suas ideias e argumentos, o discurso de Gobineau repousa juntamente com a lógica racial que permeou a realidade brasileira em finais do século XIX e início do XX. Contra a sua vontade veio para o Brasil em missão diplomática e passou a conhecer bem a realidade que aqui se encontrava. Ao chegar em 1869, reafirmou o que já havia consagrado sem seu ensaio sobre a degeneração das raças mestiças: a questão racial brasileira estava fadada a sua decadência devido ao processo de miscigenação desenfreado que aqui se encontrava (SOUSA, 2013, p. 21).

O discurso de Gobineau alimenta a racionalidade do colonialismo a partir da noção de civilização como um pressuposto clássico e intrínseco das sociedades europeias. Em contraposição, Aimé Césaire (2020), intelectual martinicano e negro, ressalva que é sobre essas pretensas justificativas que o colonialismo se apropria e desumaniza os indivíduos. E destaco que a falência das sociedades que Gobineau enunciava sendo fruto de um conjunto de acontecimentos, mas que estava fincado na miscigenação, ao contrário dessa perspectiva, dá-se pelas garras do colonialismo, que de maneira bem objetiva e clara inferioriza e demoniza o que pode soar como diferente das lentes da branquitude, como fez Gobineau.

A obra de Arthur de Gobineau amplamente difundida, mas desconhecida para muitos pesquisadores e curiosos brasileiros, chega em momento oportuno ao público leitor que busca entender como as dinâmicas do racismo foram atreladas, contestadas ou reforçadas por intelectuais ao longo do século XIX e início do XX.

Como parte do processo político de resenhar uma obra de um autor que compactou com perspectivas racistas, trazer vozes silenciadas se torna um posicionamento frente aos trabalhos de intelectuais que auxiliaram e guinaram a exclusão a partir da raça como justificativa “científica” ao longo dos séculos. Como já enunciou Spivak (2010) em seu livro — Pode o subalterno falar?—, a voz do subalterno implica em novos modelos de conhecimento, e durante muito tempo fomos relegados e impossibilitados de falar das mazelas que nos atingem, como o racismo e suas feridas. Como também já descreveu Grada Kilomba (2019) na contracapa de seu livro, “o colonialismo é uma ferida que nunca foi tratada. Uma ferida que dói sempre, por vezes infecta, e outras vezes sangra”. A cura para essa ferida está em reavaliar criticamente os impactos desses trabalhos de forma a não os esquecer, e sim superá-los.

A tradução da obra de Gobineau possibilita entender seus argumentos e compreender as estruturas que possibilitaram o favorecimento dessas ideias. Criticá-las hoje à luz de suas experiências é confrontar um passado sórdido que fez parte e ainda se faz presente dentro das dinâmicas raciais no Brasil e no mundo. A ferida do racismo é uma mazela que infelizmente carregamos, e (re)conhecer as obras que serviram de base para essas errôneas ideias é compreender como esses argumentos foram utilizados para definir como padrão e norma a branquitude. Identificar as circunstâncias históricas presentes na obra de Gobineau é constatar como a demonização da miscigenação serviu de apoio para a estrutura da branquitude, do colonialismo e racismo. Por isso, compreender de maneira crítica como Gobineau sistematizou suas ideias e analisou a questão racial de sua época é uma forma de observar como determinadas teorias, estilos de pensamento e argumentos permearam e influenciaram o entendimento da questão racial no Brasil e de seus intelectuais.

 

Referências

 

BANTON, Michael. A ideia de raça. Lisboa: Edições 70. 2010.

CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. São Paulo: Veneta, 2020.

GOBINEAU, Arthur de. Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas. Curitiba: Antonio Fontoura, 2021.

GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Modernidades negras: a formação racial brasileira (1930-1970). São Paulo: Editora 34, 2021.

KEINDÉ, Wlange; MELLO, Vitor Rebello Ramos. Relações étnico-raciais na Argentina. Revista de Ciências Sociais: RCS, Fortaleza, v. 50, n. 3, p. 349-371, 2019. Disponível em: http://periodicos.ufc.br/revcienso/article/view/40961/99496. Acesso em: 3 jan. 2023.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2019.

LACERDA, João Batista. Sur les métis au Brèsil. Premier Congrès Universel des Races. Londres, 1911. Rio de Janeiro: Museu Nacional, 1911. Disponível em: https://bdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/35/1/Surlesmetis cdr.pdf. Acesso em: 20 mar. 2023.

PURVINNI, Larissa. Francês previa fim do Brasil. Folha de São Paulo: São Paulo, 1997. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/11/02/cotidiano/6.html. Acesso em: 21 mar. 2023.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870 – 1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

SOUSA, Ricardo Alexandre Santos de. Ciência e responsabilidade social: Gobineau e Tocqueville. Revista Brasileira de História da Ciência, v. 11, n. 2, p. 246-254, 2018. Disponível em: https://rbhciencia.emnuvens.com.br/revista/article/view/86. Acesso em: 20 mar. 2023.

SOUSA, Ricardo Alexandre Santos de. A extinção dos brasileiros segundo o conde Gobineau. Revista Brasileira de História e Ciência, Rio de Janeiro, v. 6, n.1, p. 21-34, 2013. Disponível em: https://www.sbhc.org.br/arquivo/download?ID_ARQUIVO=993. Acesso em: 3 jan. 2023.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

 

 

Recebido em: 03/01/2023.

Aceito em: 16/04/2023.

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n30.65402.p250-260

 

 

 



* Licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB)/Brasil. E-mail: andersondsc97@gmail.com.

[1] Em artigo publicado no Jornal Francês Le Correspondant em 1874, intitulado L'Émigration au Bresil, Gobineau sistematiza que era necessário o incentivo de imigração ao Brasil, devido à baixa qualidade racial e mistura étnica que aqui se encontrava; caso não ocorresse este incentivo, a população pereceria em pouco mais de um século. A tese de Gobineau nesse artigo, anos depois, pode ser observada a partir da influência que exerceu sob o intelectual João Batista Lacerda, que, representando o Museu Nacional no 1º Congresso Internacional das Raças, apresentou o trabalho Sur les métis au Brèsil (1911), no qual destaca que o Brasil, em um século, devido ao branqueamento, apagaria o gene negro.  A respeito desse tema, ver: Purvinni (1997).

[2] Segundo Gobineau, além da miscigenação, o percurso tecnológico e moderno impulsionava a crença antirreligiosa, como ele mesmo descreve: “o reconhecimento do dedo divino na conduta deste mundo, uma base sólida e primária da qual não devemos nos afastar, aceitando-o com todo o escopo que lhe é atribuído pela Igreja Católica” e conclui, “É indiscutível que nenhuma civilização morre sem a vontade de Deus [...]” (GOBINEAU, 2021, p. 32).

[3] Cabe ressaltar que Gobineau, ao deixar um capítulo específico para tratar do conceito de degeneração, não renuncia à noção religiosa para fundamentar sua interpretação (GOBINEAU, 2021, p. 54). Ele parte de uma concepção monogenista para criticar a visão poligenista que vinha ganhando força com os pressupostos científicos da História e da ciência. Segundo Lilia Schwarcz, “a visão monogenista, dominante até meados do século XIX, congregou a maior parte dos pensadores que, conforme às escrituras bíblicas, acreditavam que a humanidade era una”. Em contraposição, “a partir de meados do século XIX a hipótese poligenista transformava-se em uma alternativa plausível, em vista da crescente sofisticação das ciências biológicas e sobretudo diante da contestação ao dogma monogenista da Igreja” (SCHWARCZ, 1993, p. 64). Sobre as visões monogenista e poligenista, ver Schwarcz (1993) e Banton (2010).

 

 

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Desenho de um círculo

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