NARRATIVAS NA METODOLOGIA DE PESQUISA EM SOCIOLOGIA
NARRATIVES IN SOCIOLOGY RESEARCH METHODOLOGY
Elias Festa Paludo *
Resumo
O objetivo do presente trabalho consiste em discutir, teórica e metodologicamente, o emprego de narrativas nas pesquisas em ciências sociais. O artigo está disposto em dois principais tópicos, sendo que o primeiro apresenta a relação entre epistemologia e metodologia, debatendo como a escolha de metodologias e técnicas, bem como objetos aparentemente empíricos são construídos com base em pressupostos teóricos. O argumento principal trata de que situando a narrativa dentro de um espaço social de possibilidades, pode-se conciliar as dimensões diacrônicas e sincrônicas de pesquisa, implicando numa metodologia mais robusta e que rompe com os obstáculos metodológicos das ciências sociais elucidados pela bibliografia. Para justificar o argumento, é feita uma explanação e revisão bibliográfica acerca do emprego de narrativas e histórias de vida como metodologias de pesquisa.
Palavras-chave: metodologia; narrativas; história de vida; pesquisa qualitativa.
Abstract
The objective of this paper is to discuss theoretically and methodologically, the use of narratives in social science research. The article is divided in two main topics, the first one presenting the relationship between epistemology and methodology, discussing how the choice of methodologies and techniques, as well as apparently empirical objects, are constructed based on theoretical assumptions. The main argument deals with the fact that by situating narrative within a social space of possibilities, one can reconcile the diachronic and synchronic dimensions of research, implying a more robust methodology that breaks through the methodological obstacles in the social sciences elucidated by the bibliography. To justify the argument, an explanation and literature review is made about the use of narratives and life stories as research methodologies.
Keywords: methodology; narratives; life history; qualitative research.
Introdução
A metodologia qualitativa é amplamente utilizada na sociologia e nas demais ciências sociais, sobretudo em pesquisas que buscam compreender questões mais subjetivas, como experiências e percepções sobre determinado fenômeno. Logo, essa metodologia vem, cada vez mais, ganhando destaque e discussão sobre o seu emprego, de forma a garantir um rigor científico em sua aplicação.
Nesse sentido, as discussões sobre as diferentes formas e métodos de investigação na sociologia são tão antigas quanto a própria disciplina. Não por acaso, encontramos tais discussões em nomes clássicos e/ou de grande relevância para a sociologia, pois, em alguma medida, o esforço em explicar e/ou investigar a sociedade moderna passou também pelo esforço em constituir um método de tornar tal empreitada possível.
Evidentemente, vemos na sociologia um incontável número de discussões sobre tal tema e que, muitas vezes, seguem por distintos caminhos. Assim também foi, e é, na filosofia da ciência ou do conhecimento, desde os filósofos pré-socráticos, passando pelo racionalismo de Descartes, o empirismo de Hume, o criticismo de Kant, chegando aos obstáculos epistemológicos observados por Bachelard.
Portanto, o presente artigo tem por objetivo apresentar uma discussão teórico-metodológica acerca do emprego de narrativas em ciências sociais e, mais especificamente, na sociologia. Tal empenho se justifica pela importância que a metodologia qualitativa tem nas ciências sociais, principalmente, ao empreender análises de questões mais subjetivas, como experiências e percepções sobre determinados fenômenos. Nesse sentido, como alternativa para a metodologia de pesquisa, a narrativa propicia uma série de possibilidades ao pesquisador que vem há muito sendo discutida em âmbito metodológico e epistemológico, de forma a garantir um rigor científico em sua aplicação.
Para construir esse debate, iniciaremos discutindo a relação entre epistemologia e metodologia, apresentando como a concepção de objetos, a escolha de bases teóricas de métodos e técnicas de pesquisa estão, em última instância, intrinsecamente relacionadas. O recorte teórico da discussão se dá principalmente a partir da filosofia de Gaston Bachelard com a noção de ruptura, apropriada por Pierre Bourdieu. A partir desse ponto, a crise do sujeito em face do princípio de não-consciência implica em um desafio ao emprego de narrativas e, a fim de o superar, recorremos à teoria da ação comunicativa de Habermas. Evidentemente, autores como Popper, Lahire, entre outros, são mobilizados para discutir a relação entre metodologia e epistemologia. Após isso, é trabalhado o conceito de narrativas, de forma mais ampla, a fim de observar a produção teórica sobre tal concepção. Por último, estão postas as considerações.
Este artigo apresenta o argumento de que o emprego de narrativas, enquanto metodologia, pode contribuir com a investigação, desde que seja pensada a partir de pressupostos epistemológicos. Assim, desenvolvemos o argumento de que, localizando a narrativa dentro de um espaço social de possibilidades, pode-se conciliar as dimensões diacrônicas e sincrônicas de pesquisa, implicando em uma metodologia mais robusta e que rompe com os obstáculos metodológicos das ciências sociais.
Bachelard (2006), em sua clássica obra A epistemologia, a qual versa sobre a filosofia da ciência, propõe uma série de críticas ao pensamento filosófico absoluto, introduzindo uma noção de ciência enquanto saber contingente e inacabado, em oposição ao dogma filosófico absoluto baseado em uma verdade. Isto é, ao contrário da filosofia, a ciência deve, pois, instruir a razão e não ser a própria. O espírito científico deve, a todo momento, constituir-se em reparação aos erros históricos.
A partir dessa crítica histórica do conhecimento, Bachelard introduz a necessidade de construir o espírito científico em oposição ao espírito não científico, fato que influenciou diversos cientistas sociais, como Pierre Bourdieu e Bernard Lahire, com a necessidade de rupturas com prenoções e com a sociologia espontânea. Essa última preocupação está intimamente vinculada ao cuidado objetado por Bachelard quando diz que “A objetividade científica só é possível depois de termos rompido com o objeto imediato” (BACHELARD, 2006, p. 129).
A tomada da ruptura bachelardiana por Bourdieu, contudo, deve ser também observada pela proximidade com Durkheim. Wacquant (2001) arguiu que Bourdieu compartilha com Durkheim uma filosofia racionalista e um scientific passion, expressos tanto em As regras do método sociológico quanto na obra Ofício de sociólogo. Importante destacar que Durkheim, ao conceber o conceito de fato social e, consequentemente, seu método, também visa uma proposta de ruptura com tudo aquilo que não fosse próprio do rigor científico, a fim de ultrapassar a “fase ideológica que atravessa todas as ciências” (DURKHEIM, 2004, p. 8) e “afastar sistematicamente todas as prenoções (DURKHEIM, 2004, p. 63).
Nesse sentido, a primeira relação entre epistemologia e metodologia, que merece destaque, é a formulação teórica de uma investigação. Se utilizarmos como exemplo uma pesquisa que tenha como foco a escola, teremos que envolver diversas categorias, como professores, alunos, comunidade escolar etc. Dentre essas categorias, podemos abordar, a exemplo, a de classe como um recorte dos estudantes. Entretanto o recorte de classe, apesar de parecer óbvio para o pesquisador, é uma categoria teórica, que não se encontra puramente no mundo da vida. Logo, aquilo que há de mais empírico, na verdade, pode ser encarado como uma fragmentação teórica sobre o empírico.
Assumindo a construção teórica de categorias analíticas do empírico, vamos de encontro à demanda de ruptura com o saber imediato, quase que imanente ao objeto, ou com as prenoções, relativas ao sujeito — ressalta-se que este trabalho não pretende aprofundar a discussão já realizada por Kant com os juízos sintéticos a priori. Assim, Durkheim (2004), ao suscitar a importância da dúvida metódica de Descartes para o constructo científico a partir da ruptura das prenoções, indica que apenas os conceitos cientificamente elaborados devem prevalecer no fazer científico.
Nesse sentido, desde Durkheim e Bachelard até Bourdieu, em Ofício de sociólogo, e Lahire, com El espiritu sociológico, há uma preocupação em romper com os saberes não científicos e propor uma análise que seja fundamentada num espírito científico.
Entretanto, ao postularmos teoricamente, reconhecendo a abstração do real, podemos recair em outros inconvenientes, por assim dizer. Lahire (2006), evidencia um problema recorrente nas pesquisas sociológicas ao utilizarmos as abstrações para pensar a realidade. O autor discute o emprego da metáfora “construção social da realidade”, a partir de duas óticas: os bônus e os ônus de tal emprego. Em primeiro lugar, a ideia de construção social da realidade, para Lahire, foi fundamental para desnaturalizar e desmistificar inúmeros feitos sociais, tidos como naturais ou eternos. Portanto, conceber que algo é socialmente construído, retira do campo da natureza e sujeita o fenômeno à alteração, metamorfose e implica, necessariamente, em algo construído por algo ou alguém etc. Podemos utilizar o exemplo de capital cultural de Bourdieu (1979), o qual apresenta o conceito como uma forma de desnaturalizar as desigualdades culturais na escolarização. Isto é, admitindo a existência de uma cultura herdada ou assimilada de forma heterogênea pelos estudantes, variável em relação à cultura familiar, foi possível desmistificar a ideia de dom natural aos idiomas (claro, os pais daquela criança podiam ter conversado em diversos idiomas na frente da criança, causando uma familiaridade com tais línguas).
Todavia, Lahire também tece uma crítica muito oportuna à construção social da realidade. Tomemos o exemplo do capital cultural novamente. Lahire criticou Bourdieu no emprego de tal conceito, pois, segundo Lahire (1997), a exposição da criança a um livro (capital cultural objetivado) por si só não representa uma assimilação, pois, a criança ou os pais dela podem nunca ter aberto ou lido tal livro. Exatamente nesse ponto, Lahire expõe a problemática do emprego de metáforas teleológicas, a construção social da realidade acaba por não explicar mais nada, pois ela encontra um fim em si mesma. Não responde como foi construído, por quais atores, de qual forma e em quais circunstâncias, apenas desnaturaliza o fenômeno, naturalizando e mistificando a construção do social pelo social.
La citada metáfora empieza a volverse embarazosa em la medida en que se convierte en un tic del lenguaje que nadie interroga y que deviene a veces en el refugio obligado de todo tipo de lugar común hiperrelativista, antirrealista, antiobjetivista y acrítico (LAHIRE, 2006, p. 93).
Nesse ponto, as técnicas de rupturas propostas por Bourdieu, Chamboredon e Passeron (2010), tanto com o senso comum quanto com o senso comum erudito, baseadas no princípio que Popper (1972) apresenta sobre a orientação teórica até nos atos mais práticos da ciência, nos são fundamentais para perceber que a metodologia mobilizada numa pesquisa sociológica, está intrinsecamente relacionada à concepção teórica do problema. Portanto, ao falarmos de escala de investigação/análise, delimitação do objeto e problemática de pesquisa, estamos falando em questões teóricas fundamentais, para adotar corretamente o esquema metodológico.
Se tomarmos como exemplo uma investigação que tem por objeto experiências escolares de estudantes, e que busca identificar o social individualizado, no sentido de Lahire (2008), podemos definir que a investigação deve ter como principal ponto de dados as narrativas dos indivíduos, pois trata-se de uma problemática com tal escala. Após isso, é importante considerar a teoria social mobilizada, em forma de habitus ou disposições, que versa sobre atribuição de sentido e de identidade pelo próprio agente em sua vivência e processos de socialização. Isto é, a narrativa enquanto método de pesquisa, possibilita que o próprio agente mobilize e organize as experiências, ainda correspondendo às categorias analíticas que o sociólogo determina como eixos da investigação.
A própria utilização de fontes secundárias de dados não se trata unicamente de uma precaução metodológica, mas possui uma dupla função. Em primeiro lugar, dentro do esquema teórico da pesquisa, para investigar a construção da identidade, das experiências e da própria narrativa, é proposto que a sociologia localize o indivíduo dentro do espaço social, conforme Bourdieu (2009) aponta. Ou, ainda, de escapar aos encerramentos sociológicos do objetivismo determinista ou do subjetivismo da filosofia da ação (BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 2010).
Em segundo lugar, as fontes secundárias de dados não apenas situam o indivíduo no espaço social, servindo de amparo ou correção às narrativas, mas servem de subsídio analítico ao pesquisador, evitando a atribuição forçada de sentido, fato que Lahire (2006) chama de sobreinterpretação, a qual pode se dar por três formas: 1) a falta de dados para sustentar a tese; 2) pelas lacunas não objetivadas ou contempladas nos modelos analíticos e; 3) os exemplos perfeitos, narrativas exemplares que podem não condizer com o contexto da ação ou com a ação em sua totalidade (LAHIRE, 2006, p. 45).
As situações de sobreinterpretações também estão presentes no vocabulário bourdieusiano. Bourdieu, Chamboredon e Passeron (2010) indicam a necessidade de compreender a necessária crítica ao método, inclusive a risco de cair no falso profetismo:
Mais do que todos os outros especialistas, o sociólogo está exposto ao veredito ambíguo e ambivalente dos não especialistas que sentem com a autoridade de dar crédito às análises propostas, com a condição de que estas despertem os pressupostos de sua sociologia espontânea, mas que são levados, por essa mesma razão, a contestar a validade de uma ciência que eles só aprovam na medida em que ela coincide com o bom-senso (BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 2010, p. 36).
A necessidade de submeter a metodologia à crítica, reconhecendo a relação epistemológica, é uma segurança ao próprio pesquisador. Seja para não haver um enviesamento de dados, seja para não haver interpretações equivocadas.
Portanto, a técnica, por mais neutra que aparente ser, utiliza-se mesmo que implicitamente uma teoria do social (BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 2010). Assim, considerando a construção do objeto e das técnicas a partir de pressupostos, é importante compreender a falsa neutralidade das metodologias e analogias, a fim de compreender a construção metodológica como um fazer vigilante, não apenas reconhecendo a intrínseca relação entre epistemologia e metodologia, mas entre metodologia e contexto de investigação.
Embora seja muito importante para as ciências sociais, a assimilação da tradição da ruptura, isto é, a incorporação de Bachelard na metodologia não se fez de maneira unânime na sociologia. Pelo contrário, a herança positivista que faz Bachelard mais próximo de Comte, foi assimilada por Bourdieu como um paradigma que tende ao contraditório, em que o princípio da não-consciência se aplica ao ator, mas não ao sociólogo que é naturalmente neutro, como um observador privilegiado, além de implicar na ideia de “má-fé do ator” criticada por Luc Boltanski (DOSSE, 2020).
Em última instância, ao pensarmos a tradição epistemológica de Bourdieu quando aplicada metodologicamente às narrativas, encontramos o seguinte problema: se o ator é não-consciente e, portanto, pode fazer ilações sobre sua história a fim de promover uma coerência biográfica, como pode a narrativa ser uma fonte de dados confiável a partir de um emprego teórico que submete o agir individual como reflexo das estruturas incorporadas ou do contexto linguístico?
Portanto, a seguir, iremos discutir, a partir do emprego da narrativa enquanto opção metodológica, um caminho que evoque as contribuições tanto das rupturas necessárias à ciência quanto a presença do ator e sua consequente importância como fonte de dados a partir de narrativas.
As narrativas, evidentemente, não são ferramentas recursivas exclusivas das ciências sociais. Pelo contrário, é talvez uma das mais antigas formas de comunicação e produção de significados:
Narrative inquiry is an old practice that may feel new for a variety of reasons. It is a commonplace to note that human beings both live and tell stories about their living. These lived and told stories and talk about those stories are ways we create meaning in our lives as well as ways we enlist each other’s help in building our lives and communities. What does feel new is the emergence of narrative methodologies in social science research. With this emergence has come intensified talk about our stories, their function in our lives, and their place in composing our collective affairs (CLANDININ, 2006, p. 44).
É bem verdade que o conceito de narrativa também tenha sido explorado por autores vinculados ao paradigma pós-moderno, que entrelaça história e narrativa (FORTES, 2014), como Lyotard (1979), que concebe uma crítica às metanarrativas, ou Foucault. Contudo, o enfoque do presente trabalho não inclui uma abordagem da virada linguística e, portanto, a correlação entre discurso/narrativa e poder, como em A microfísica do poder (FOUCAULT, 1978), foge da presente proposta.
O que nos interessa não são apenas as primeiras utilidades atribuídas às narrativas, mas sim como as narrativas têm sido usadas na investigação sociológica e como podem contribuir para a investigação qualitativa. Entretanto, considerando que o próprio Bachelard é conhecido pela sua posição favorável ao positivismo, bem como a influência do determinismo e buscas por leis universais (espelhadas nas ciências da natureza) que explicassem a sociedade, é fundamental destacar a particularidade do cunho qualitativo, considerando que a metodologia qualitativa “trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis” (MINAYO, 2002, p. 22).
Portanto a discussão acerca das narrativas tem vinculação direta ao estudo qualitativo. Deste modo, as narrativas estiveram presente nas pesquisas das ciências sociais brasileiras desde muito cedo, porém em diferentes estágios e momentos. A partir do início da segunda metade do século passado, mais precisamente entre 1950 e 1980, se deu o emprego de histórias de vida, porém mais voltado a análises de minorias e interessado em dar voz aos seus representantes, reproduzindo discursos (SANTOS; OLIVEIRA; SUSIN, 2014).
Ainda na segunda metade do século passado, também no Brasil, prevaleceu a ruptura bachelardiana que visava uma ruptura com o subjetivo e, ao final do século, culminou na crise do princípio da não-consciência, quando teorias que suprimiam a capacidade do agente ou que defendiam a não-reflexividade do ator social — como é possível notar em Bourdieu ao longo de A ilusão biográfica (1994) ou do princípio reflexivo apenas do sociólogo capaz de captar o habitus daqueles que agem de acordo com esquemas de ação externos a si mesmos — propiciando uma virada narrativa ou virada do sujeito, conforme apontam Santos, Oliveira e Susin (2014), instigando uma nova significação do emprego das narrativas e valorização do ator individual.
Esse movimento é perceptível, como exemplo, na tradição bourdieusiana, tanto na obra mais madura do ator A miséria do mundo (BOURDIEU, 1993), em que a “herança cultural” já não é mais tratada como automaticamente transmissível e depende também do agir do herdeiro, quanto em Lahire e seus Retratos sociológicos (LAHIRE, 2004).
Portanto esse novo momento da teoria social que implicou em maior alcance e aproveitamento das narrativas está fundado no sujeito e sua capacidade compreensiva sobre sua própria vivência.
A virada narrativa nas ciências humanas nas últimas décadas trouxe uma priorização de visões construtivistas sobre a narrativa como prática social e criadora de sentido. Tais referenciais teóricos sobre a construção social de histórias de vida passam, necessariamente, pela discussão dos mecanismos de construção e reconstrução da memória (SANTOS; OLIVEIRA; SUSIN, 2014, p. 367).
Nesse sentido, a utilização das narrativas como método implica diretamente no reconhecimento da agência individual. Porém tal esforço não deve ser feito de maneira radical, desconsiderando as condições estruturais ou externas ao indivíduo, uma vez que
os métodos biográficos podem ser considerados o território mais amplo onde se inscrevem os diversos recursos e abordagens para a análise de auto-relatos e de trajetórias de vida. A contribuição de uma abordagem hermenêutica a partir de Gadamer e Paul Ricouer reitera a fronteira entre sujeito e história como o ambiente epistêmico por excelência da pesquisa biográfica e rompe com uma possível orientação realista. Ao tomar os relatos biográficos como modalidades narrativas, estes deixam de ser produções individuais e factuais e evidenciam a interpenetração entre sujeito e história bem como entre os acontecimentos e sua reconfiguração na tessitura de vidas narradas. Nessa perspectiva, o universo comum que engloba um campo de práticas e discursos, como o ambiental, por exemplo, também pode ser visto, ele mesmo, como uma grande narrativa que engloba e torna plausíveis as narrativas individuais (CARVALHO, 2003, p. 293).
A narrativa, portanto, não diz somente ao relato vivido individualmente. Trata diretamente da relação entre o sujeito, os acontecimentos e o sentido atribuído. Assim, o método narrativo não se constitui como um método inteiramente subjetivo. Entretanto, retomando as técnicas de ruptura e os obstáculos metodológicos já observados em Bachelard e Bourdieu, é fundamental observar criticamente como a narrativa ou a história de vida também está ligada ao senso comum: “A história de vida é uma dessas noções do senso comum que entram de contrabando no universo do saber [...] Falar de história de vida é pelo menos pressupor, e é muito, que a vida é uma história e que a vida é inseparavelmente o conjunto de acontecimentos de uma existência individual, concebida como história e a narrativa dessa história” (BOURDIEU, 1996, p. 74).
Bourdieu chama atenção para a concepção imediata de que a narrativa é o conjunto individual e que tende a organizar os acontecimentos em sequências ordenadas a partir de relações inteligíveis (BOURDIEU, 1996), ou seja, cria conexões causais entre os fatos, na preocupação de “atribuir sentido” e “descobrir uma lógica [...] como a do efeito e causa” (BOURDIEU, 1996, p. 75). Assim, a narrativa pressupõe um fim teleológico, não explicando e tampouco observando o encobrimento de aspectos históricos ou individuais a partir da aceitação da causa pelo efeito ou início pelo telos.
Nesse mesmo sentido, “a premissa-chave por trás da ideia de narrativas é que pessoas interpretam suas vidas como um conjunto de narrativas, ou histórias, que têm um início, um meio e um fim e que contém sequências de eventos causalmente interligadas” (SMALL; HARDING; LAMONT, 2011, p. 103).
Entretanto a organização e o sentido atribuído às histórias são de grande valor ao pesquisador. Mesmo que observemos a ilusão biográfica anunciada por Bourdieu ou o objeto imediato a ser rompido segundo Bachelard, há um fator que opera enquanto sintetizador das experiências. Se todos atribuímos significados aos acontecimentos mais aleatórios a fim de justificar um fim, há um fator anterior que orienta tal conduta.
Para discutir esse fator, Bourdieu retoma, indiretamente, a noção kantiana de juízo sintético a priori, a fim de compreender que há um “princípio ativo, irredutível às percepções passivas, de unificação das práticas e das representações (isto e, o equivalente, historicamente constituído, logo, historicamente situado, desse eu cuja existência devemos postular, de acordo com Kant, para dar conta da síntese da diversidade sensível intuída e da coerência de representações em uma consciência)” (BOURDIEU, 1996, p. 77).
Evidentemente, esse princípio é o habitus. Isto é, uma condição histórica e socialmente localizada que norteia as práticas sob um signo comum. Além disso, o habitus desempenha a mediação entre as estruturas objetivas e as práticas dos agentes, conduzindo, assim, às ações possíveis dentro de tal contexto (BOURDIEU, 2009). Bourdieu ainda define o habitus como um princípio gerador das práticas, ao assimilar e interiorizar as estruturas e exteriorizar a individualidade, garantidor de orientações que muitas vezes são vistas como escolha e vocação, ou ainda tomada de consciência. Isso tudo “não é outra coisa senão o habitus, sistema de disposições inconscientes que constitui o produto da interiorização das estruturas objetivas e que [...] tende a produzir práticas” (BOURDIEU, 2013, p. 202).
Vejamos a noção de habitus a partir do esquema analítico de Bourdieu:
O esquema que leva à análise empírica é sistêmico. Deriva do princípio de que a dinâmica social se dá no interior de um /campo/, um segmento do social, cujos /agentes/, indivíduos e grupos têm /disposições/ específicas, a que ele denomina /habitus/. O campo é delimitado pelos valores ou formas de /capital/ que lhe dão sustentação. A dinâmica social no interior de cada campo é regida pelas lutas em que os agentes procuram manter ou alterar as relações de força e a distribuição das formas de capital específico. Nessas lutas são levadas a efeito /estratégias/ não conscientes, que se fundam no /habitus/ individual e dos grupos em conflito. Os determinantes das condutas individual e coletiva são as /posições/ particulares de todo /agente/ na estrutura de relações. De forma que, em cada campo, o /habitus/, socialmente constituído por embates entre indivíduos e grupos, determina as posições e o conjunto de posições determina o /habitus/ (THIRY-CHERQUES, 2006, p. 31, grifos do autor).
Portanto o juízo sintético a priori ganha sentido, pois, mesmo que o juízo seja sobre algo externo a nós (mesmo que consideremos a nossa vida vivida como um objeto apartado do eu presente), tal juízo sintético (exterior) é constituído a partir de condições apriorísticas (o habitus e as condições históricas de interpretação dos fatos).
Muito embora a tentativa de evitar uma concepção teleológica da narrativa por Bourdieu demonstre um cuidado interessante e importante metodologicamente, a tomada da narrativa, enquanto expressão de um habitus e, ao mesmo tempo, como uma tentativa do ator em atribuir sentido, a partir de ilações de causa e efeito criadas em retrospectiva, remonta ao axioma do sociólogo enquanto observador privilegiado e único dotado de reflexividade. Portanto a tentativa de Bourdieu de localizar as narrativas biográficas como produto de um contexto socialmente imposto, implica na dominância do externo e consequente perda de validade do discurso individual.
Desse modo, a narrativa enquanto metodologia de pesquisa enfrenta, por um lado, a necessidade de romper com o princípio da não-consciência, como diz Boltanski (2011) e, por outro lado, de sustentar a validade frente ao tempo, como Ricoeur fez ao superar a fenomenologia transcendental de Husserl, a partir de mediação do tempo histórico pela narrativa (BARROS, 2012).
Esse duplo movimento metodológico que a narrativa possibilita, isto é, reconhecer as duas dimensões do tempo (em termos da história) ou da ação e seu sentido (na clássica relação entre indivíduo e sociedade, ação e estrutura), demanda um aporte teórico que o sustente. Se vimos que o habitus bourdieusiano, ainda que “relativizado” em obras mais maduras ou por herdeiros como Lahire, ainda pressupõe o princípio da não-consciência e um positivismo que dilacera as dimensões subjetivas.
Portanto é necessário se voltar para os agentes envolvidos no processo de narrar e compreender que a organização dos fatos em uma narrativa, a fim de produzir sentido, pode ser compreendida (e deve!) a partir da relação entre quem narra e quem escuta: “narratives exist and have meaning only with in networks of tellers and audiences” (EWICK; SILBEY, 2003, p. 1342-1343). Portanto, se considerarmos a expressão de um habitus no interior das narrativas, é necessário compreender que as narrativas também dizem respeito à construção de identidade e de sentido pelo indivíduo frente à sociedade: “as narrativas fornecem explicações de como os indivíduos veem a si mesmos em relação aos outros e, por isso, são centrais para a forma como construímos identidades sociais. Elas afetam nossas ações, porque indivíduos escolhem ações consistentes com suas identidades e narrativas pessoais [...]. As narrativas são importantes porque, como histórias que as pessoas contam sobre si mesmas e sobre outros, as narrativas revelam como as pessoas conferem sentido às suas experiências, restrições e oportunidades” (SMALL, HARDING, LAMONT, 2011, p. 103).
Para além disso, e chegando em referências diversas, também Giddens (1991) explica a importância do uso de narrativas para encontrar a identidade da pessoa: “person’s identity is not to be found in behaviour, nor — important though this is — in there actions of others, but in the capacity to keep a particular narrative going” (GIDDENS, 1991, p. 54).
Assim, ao analisar narrativas, é fundamental considerar a busca do narrador por uma lógica causal entre os acontecimentos, bem como a afirmação de identidade em relação ao seu grupo de origem. A partir desse pressuposto, deve-se considerar que as instituições também são atores sociais, e que os atores estão sempre inseridos no espaço tempo, respondendo a oportunidades e restrições do contexto (EMIRBAYER, 1997).
Nesse sentido, as contribuições de Bourdieu para o emprego das narrativas é a busca por localizar os acontecimentos biográficos no espaço tempo ou espaço social, evidenciando as ligações entre as dimensões sincrônica e diacrônica (BOURDIEU, 1996).
Emirbayer (1997) reforça a necessidade de analisar as narrativas dentro das situações em que ocorrem, como elucidado por Bourdieu. E ainda indica que, ao fazer isso, elimina-se as reificações existentes em torno da ideia de causa e efeito: “the narratives of their responses (together with the situations within which these occur) help to explain how causes actually produce effects in history. Action language, in other words, clears the ground for casual analysis by eliminating reified structures as ‘casual factors’, yet it needs to be supplemented by an explicit concern for the ‘situational mechanisms’ that actually channel flows of events” (EMIRBAYER, 1997, p. 307).
A utilização de narrativas se justifica pela possibilidade de observar a construção da identidade do agente, bem como compreender as atribuições do agente às relações de causa e efeito, ao analisar a narrativa juntamente com as situações em que ocorreram.
Nesse sentido, não apenas as narrativas devem ser investigadas e pensadas juntas ao seu contexto, mas também a metodologia deve observar a necessidade do aparato teórico que constitui o problema de pesquisa. Em ambos os casos, trata-se de revisar a dimensão diacrônica pela sincrônica e vice-e-versa.
No que tange às narrativas, compreender a identidade e as representações individuais apenas como reflexos ou condições a priori de ação inscritas em um habitus pode ser visto como uma retomada à ruptura bachelardiana e ao princípio de não-consciência, criando um hiato entre o constructo teórico e a metodologia, uma vez que na primeira instância a capacidade reflexiva do ator está em suspensão e reduzida aos princípios de ação exteriores a si próprio.
Portanto uma alternativa teórica para a compreensão das narrativas enquanto ferramenta de coleta de dados que foge apenas da experiência subjetiva, mas que também não recai no descrédito do ator ou num determinismo estrutural, reside na apropriação da virada linguística por Habermas a partir do paradigma da comunicação.
Habermas (1985), ao postular a teoria do agir comunicativo, encarou a crise do sujeito, discutindo tanto os determinismos estruturais, como em Adorno e Horkheimer, quanto as relações de poder, a ponto de estabelecer que “o ‘sim’ e o ‘não’ dos atores que agem comunicativamente são de tal modo prejulgados pelos contextos linguísticos e rejeitados no plano da retórica, que as anomalias que se apresentam nas fases de esgotamento só se mostram como sintomas de uma vitalidade em desaparecimento, como processos de envelhecimento análogos aos da natureza — e não como a consequência de soluções errôneas de problemas e de respostas inválidas” (HABERMAS, 2000, p. 289-290).
Assim, os esquemas objetivos observados por Bourdieu estão em nível dos sistemas apresentados por Habermas, com a diferença de que há um mundo da vida onde a ação dos indivíduos, desde que por uma razão comunicativa, expressa a consciência intersubjetiva deles. Enquanto em Bourdieu, o habitus seria a colonização do mundo da vida pelos sistemas, ou, ao menos, por suas estruturas.
Logo, a ação comunicativa de Habermas abrange uma compreensão do indivíduo enquanto ser reflexivo, rompendo com o princípio da não-consciência empregado por Bourdieu, porém sem recair na ação enquanto mero reflexo dos contextos linguísticos.
Ou seja, o reconhecimento do mundo da vida, ainda que atrelado de alguma forma aos sistemas, é propiciar teoricamente a existência de um espaço social onde o narrador viveu sua própria história, experiência fenômenos e, também, esteve exposto às estruturas sociais.
Para obter dados referentes ao contexto e à dimensão diacrônica da problemática e do objeto de pesquisa, é importante adicionar ao desenho da pesquisa a revisão bibliográfica sobre o tema, análises documentais sobre as instituições envolvidas no fenômeno investigado etc.
Portanto, segundo Bourdieu, Chamboredon e Passeron (2010), a concepção de método de pesquisa desassociado de sua aplicação, constitui-se como um problema da sociologia. Pois, assim, evoca, de forma canônica, um ser pronto, absoluto e impassível de erros, na forma de método. A exemplo daqueles que proclamam a impureza original da empiria, acabam por continuamente desassociar o método da teoria. Ou seja, os autores buscam uma forma não acabada de método, abandonando o saber universal e focando na contingência do saber científico, sobretudo em sua relação com a prática de pesquisa: “É necessário submeter as operações da prática sociológica à polêmica razão epistemológica para definir e inculcar uma atitude de vigilância que conheça o erro e engendre mecanismos a superá-lo” (BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 2010, p. 11).
Contudo é importante ressaltar que, ao mobilizar narrativas na pesquisa em ciências sociais, deve-se reconhecer desde a teoria social implícita, a necessidade de localizar os agentes dentro de seus espaços sociais, estar atento às técnicas de ruptura com explicações teleológicas, além de, é claro, estar atento ao desenho de pesquisa e sua operacionalização a partir das técnicas de levantamento de dados. Isto é, reconhecer os limites, recortes e diretrizes gerais que operacionalizam a problemática sociológica, nos permite pensar num modelo metodológico que gere um controle na qualidade dos dados, superando os empecilhos citados por Lahire, apoiando-se em outras fontes de dados, uma vez que “o ponto-chave no controle de qualidade dos dados em todos os casos [entrevista, história de vida e história oral] situa-se no uso sistemático de dados de outras fontes relacionadas com o fato observado a fim de que se possa analisar a consistência das informações e sua validade” (HAGUETTE, 1997, p. 89).
Em termos gerais, Haguette situa o controle de qualidade de dados na pluralidade de fontes, observando, assim, o mesmo fenômeno por diferentes perspectivas e entendimentos.
Considerações finais
As narrativas estão presentes de diversas formas nas ciências sociais. Considerando isso, o presente artigo apresentou um esforço em discutir a importância do emprego de narrativas como metodologias de investigação, mas não somente. Também evidenciamos, a partir de uma discussão de cunho epistemológico, a necessidade de compreender os fundamentos e pressupostos teóricos envoltos não apenas na construção do objeto de pesquisa, mas também no aparato metodológico.
Portanto, no que tange ao emprego de narrativas nas ciências sociais, reconhecer que questões sobre a objetividade do conhecimento estão postas diretamente, implica num ganho para a investigação. E, também, se faz necessário ressaltar que ao compreender os perigos da ilusão biográfica, da necessidade de atribuir sentido ao conjunto de acontecimentos passados e, até mesmo, compreender a impossibilidade do sujeito de apreender objetivamente a realidade, não é um movimento de desmerecimento ou deslegitimação da fonte de dados. Pelo contrário, as precauções metodológicas, nesse sentido, visam conformar as expectativas dos envolvidos dentro do campo de possibilidades, reforçando os dados.
Portanto, ao considerarmos as contribuições metodológicas de Bourdieu, que atenta para e necessidade de localizar o ator dentro de seu contexto, ou seja, do espaço social, torna-se um ganho para as pesquisas, desde que também considerem aquelas críticas ao princípio da não-consciência. Assim, se projeta um aparato metodológico robusto, de acordo com a importância da variação de fontes expostas por Haguette e sem sufocar as experiências individuais em nome de esquemas de ação anteriores ao indivíduo.
Justamente nesse caminho, a discussão sobre os métodos de pesquisa e investigação, anterior à escolha de técnicas, é fundamental para que as ciências sociais não caiam em argumentações teleológicas. Vemos que as diferentes linhas — desde a etnometodologia, que está vinculada à filosofia fenomenológica de Husserl, até a teoria crítica, que revê ciclicamente seus pressupostos, antes marxistas e/ou hegelianos, agora mais próximos de Kant — não se privam de discutir como operacionalizar seus pressupostos teóricos.
Portanto este artigo contribui para, minimamente, discutir os pressupostos epistemológicos, as fundamentações teóricas que estão implícitas em qualquer análise social, uma vez que não há metodologia e/ou percepção neutra, uma vez que investigamos um mundo no qual também estamos, fazemos parte, mudamos e somos mudados por ele.
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Recebido em: 11/01/2023.
Aceito em: 24/09/2023.
* Mestre em sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: eliasfpaludo@gmail.com.
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