“EU SOU A CONSTITUIÇÃO!”: governo Bolsonaro e utilização de instrumentos coercitivos em nome do Estado
“I AM
THE CONSTITUTION!”: Bolsonaro government and
use of coercive instruments on behalf of the State
Andréa Joana Sodré de Sousa Garcia *
Ana Carolina Torrente Pereira **
Karlene Carvalho Marinho de Araujo ***
DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n30.65545.p202-224
Resumo
O artigo apresenta análise teórica e crítica sobre as relações Estado/governo/indivíduos, a partir de três situações reais nas quais o governo de Jair Messias Bolsonaro (2019-2022), utilizou de mecanismos e instrumentos coercitivos para punir indivíduos que se manifestaram contra seu governo. O objetivo deste artigo é analisar o discurso e a ação do governo Bolsonaro frente às manifestações contrárias ao seu exercício. Reflete também sobre os conceitos de Estado, democracia, e como eles são utilizados pelos governantes em uma dinâmica de interesse e manutenção de poder, resgatando-os como elementos simbólicos presentes no imaginário social. Balizados por fatores presentes na antropologia política, que, através de suas percepções aproximadas da realidade objetiva e subjetiva dos indivíduos, orientam-nos a um entendimento da realidade social mais ampla, em que elementos que aparentemente demonstram-se incongruentes, a exemplo das falas autoritárias e antidemocráticas do presidente Bolsonaro, fazem sentido na dinâmica subjetiva e simbólica de alguns grupos sociais. Questionou-se então, por que, mesmo diante de gestos antidemocráticos, o referido governo se manteve no poder? Metodologicamente adotou-se a pesquisa bibliográfica, bem como a análise de três reportagens de repercussão nacional. Assim, foi possível observar os jogos de interesse e de poder que permeiam as relações políticas nos estados democráticos. A análise desse campo teórico, com as comparações de material jornalístico, demonstrou a realidade ampliada, para além de modelos e conceitos estabelecidos, compreendendo a singularidade da democracia brasileira a partir da realidade social dos indivíduos e de seus grupos.
Palavras-chave: bolsonarismo; poder; democracia-liberal; símbolos.
Abstract
The article presents theoretical and critical analysis on the State/Government/Individuals relations, from three real situations in which the government of Jair Messias Bolsonaro (2019-2022) used coercive mechanisms and instruments to punish individuals who manifest against his government. The objective of this article is to analyze the discourse and action of the Bolsonaro government, in face of these manifestations. It also reflects the concepts of State, democracy and how these are used to interest and maintenance of power, rescuing them as symbolic elements present in the social imaginary. Based on factors present in political anthropology, which, through its perceptions of the objective and subjective reality of individuals, guide us to an understanding the social reality, in which elements that apparently are incongruous, such as the authoritarian and anti-democratic speeches of President Bolsonaro, make sense in the subjective and symbolic dynamics of some social groups. Methodologically, a bibliographic research was adopted, as well as the analysis of three news with national repercussion. Thus, it was possible to observe the interest and power games within political relations in democratic states. The analysis of this theoretical field, with the comparisons of journalistic material, demonstrated the expanded reality, beyond established models and concepts, understanding the singularity of Brazilian democracy from the social reality of individuals and their groups.
Keywords: bolsonarismo; power; liberal democracy; symbols.
Toda sociedade real é um processo no tempo.
Edmund Leach (1996, p. 69).
Introdução
A frase, título deste artigo, “Eu sou a Constituição!”, foi proferida em 20 de abril de 2020, por Jair Messias Bolsonaro, à época presidente do Brasil desde 2019. Tratava-se de uma resposta aos brasileiros após receber críticas por participar de ato político em favor da intervenção militar no país. Historicamente, sabe-se que o Brasil vivenciou durante 21 anos uma ditadura militar (1964 a 1985, e que a partir de 1985 iniciou-se o processo de redemocratização do Estado, que culminou no atual e relativo novo regime democrático (pelo menos teoricamente). Todavia esse regime democrático começou a dar sinais de fragilidade com o referido governo.
Autores como, Moisés (2005); Carneiro (2008) e Bobbio (1986) entendem que, após o período referido anteriormente, vive-se um “ciclo virtuoso da democracia” (BAQUERO, 2008, p. 381). Isso se dá pelo fato de seguirmos regras e procedimentos que ajudam a regular a vida política, tais como as eleições regulares, pluripartidarismo e as eleições transparentes. Entretanto, pensar os procedimentos políticos reais, é algo bem mais complexo do que somente pensar teoricamente o conceito da democracia (BAQUERO, 2008).
Assim, Baquero (2008) analisa que a “[...] democracia contemporânea requer uma cidadania ativa que se envolva na arena política via discussões, deliberações, referendos e plebiscitos, ou seja, por meio de mecanismos formais e informais, sem que isso comprometa as instituições convencionais de mediação política” (BAQUERO, 2008, p. 381).
Compreende-se que para termos uma democracia real é preciso que tenhamos cidadãos mais ativos que possam colaborar com opiniões, sugestões e mesmo com as decisões a serem tomadas em prol da sociedade.
Conforme o Relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, divulgado em 2004, um Estado democrático não pode ser entendido e sintetizado unicamente pelo ato eleitoral, ou seja, é necessário que haja eficiência em seus serviços, além de transparência das instituições responsáveis, para que se tenha credibilidades e a confiança da população. Além disso, é importante que haja uma cultura social e entendimento que aceite a legitimidade da oposição política, a fim de reconhecer os direitos de todos (PNUD, 2004).
Seguindo os dados e o raciocínio do referido relatório, a dimensão social deve ser considerada ao se pensar a democracia. Isso ocorre porque as desigualdades sociais e os altos índices de pobreza acabam gerando a desconfiança dos cidadãos em relação às instituições políticas, bem como em relação a seus representantes. Esses elementos provocam incertezas e questionamentos sobre sua legitimidade, isso se dá porque muitas vezes os eleitores não se reconhecem naqueles que os representam, pois percebem que eles estão mais interessados em suas próprias vantagens do que na coletividade social (PNUD, 2004).
As teorias estudadas na antropologia política nos permitem entender, como já foi visto, que as sociedades são heterogêneas e devem ser analisadas em suas próprias realidades, evitando, assim, uma comparação hierárquica com outras sociedades e a imposição de modelos a serem reproduzidos.
Embora aparentemente simples, trata-se de uma proposta complexa de ser executada e que implica pelo menos dois pressupostos. O primeiro, de que a sociedade é heterogênea, formada por redes sociais que sustentam e possibilitam múltiplas percepções da realidade. O segundo, de que o “mundo da política” não é um dado a priori, mas precisa ser investigado e definido a partir das formulações e dos comportamentos de atores sociais e de contextos particulares. (KUSCHNIR, 2007, p. 163)
No que tange aos processos metodológicos utilizados na produção deste artigo, realizou-se pesquisa bibliográfica, que consiste nos estudos em materiais já elaborados, principalmente por livros e artigos científicos, de autores como, Leach (1996), Durkheim (2013), Weber (2000), Dumont (1993), Geertz (1997), Bourdieu (1996), Herzfeld (2016), Foucault (2005) e Agamben (2002). É nessa lógica que se pretende edificar o objeto deste estudo, com vistas a expor a chave explicativa de cada um destes autores, como conceitos, categorias e abordagens, relacionando-as com as situações escolhidas para análise.
Concomitante à pesquisa bibliográfica, foram analisadas três reportagens publicadas no Brasil em 2021, que tiveram grande repercussão nacional devido à violência física, psicológica e simbólica, à qual os envolvidos foram submetidos, tendo em vista a imposição arbitrária do governo que utiliza recursos violentos legitimados pelo poder político do Estado para se instituir e se personificar como uma Constituição e símbolo máximo de soberania.
Ressalta-se que os autores selecionados utilizam alinhamentos teóricos e perspectivas diferentes, oferecendo chaves analíticas relevantes para a compreensão do tema aqui proposto. Assim sendo, o presente artigo está dividido em quatro seções principais: 1) “Eu sou a Constituição!”; 2) Estado e governo, com a proposta de trabalhar as diferenças e definições; 3) Governo Bolsonaro, a fim de abordar os limites e o fundamento do Estado; 4) Análise das reportagens e relação com as teorias: Estado como vida e morte. Essas seções fazem parte dos resultados das análises e reflexões realizadas, seguidas por uma discussão e conclusão do artigo.
Como nos afirma Kuschnir (2007), “[...] como intelectuais, temos que evitar que nosso desejo de melhorar a qualidade da democracia interfira na forma como coletamos e interpretamos os dados de pesquisa. Senão, ficaremos perpetuamente rotulando as pessoas em vez de tentar compreendê-las” (KUSCHNIR, 2007, p. 165).
Assim, a proposta deste artigo não está em emitir juízo de valor sobre o governo Bolsonaro, mas em analisar como seu comportamento é recebido pela população, tendo em vista o conceito de democracia que se tornou naturalizado no imaginário social.
“Eu sou a Constituição!”
Ao analisarmos a fala de Bolsonaro, é impossível não fazer relação com uma das frases mais conhecidas no mundo:[1] : “L’État c’est moi" (“O Estado sou eu”), atribuída ao Rei Luís XIV (1638-1715), que governou a França e Navarra entre os anos de 1643 e 1715. É necessário, no entanto, que se faça jus ao tempo em que ambas foram pronunciadas e verificar que um longo tempo histórico as separam, porém suas pretensões as aproximam.
A frase do Rei Luís XIV está localizada num contexto de um Estado absolutista, que possuía centralização total do poder nas mãos da figura do rei, ou seja, o controle dos aspectos fundamentais da sociedade, como acordos políticos, segurança, logística de guerra, entre outros, que eram controlados por uma única pessoa (FUKS, 2018). Mais de trezentos anos após essa frase, Bolsonaro surge, no contexto de Estado democrático, que se caracteriza em oposição ao primeiro contexto tratado, e diz ser a própria Constituição, colocando-se como lei máxima e inquestionável no Brasil.
Vive-se no Brasil o Estado democrático de direito, que se caracteriza como democrático, dando ao cidadão a legitimidade do poder, embora este seja exercido por meio de representação. Autores da política como Soares (2019) e Canotilho (2003) entendem que o Estado democrático de direito chega no Brasil juntamente com a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), a fim de tentar tornar a “sociedade brasileira, a mais possível organizada, subordinando os cidadãos a esta Constituição e, fazendo desta um meio para tentar alcançar a igualdade, a organização dentro da sociedade” (CASTRO, 2007, p. 19).
Um dos conceitos permite a reflexão do Estado democrático que temos hoje e que nos faz crer que os direitos conquistados, não só sociais e civis, mas também políticos, são garantidos e efetivados no dia a dia. Assim, é com base nesses direitos legítimos que a população pode manifestar-se a favor ou contra os governos.
Por essas e outras razões, a frase proferida por Bolsonaro destoa do momento em que se vive, ainda mais ao levarmos em consideração que ele foi eleito por voto direto em eleição regular, de acordo com as leis políticas eleitorais e garantidas pela democracia brasileira. Dessa maneira, pergunta-se então: — Por que Bolsonaro, mesmo tendo poder legitimado por meio do voto democrático, desconsidera a legitimidade da liberdade de expressão, a ponto de ser antidemocrático em suas falas e ações? Por que há uma aceitação dos mandos e desmandos de Bolsonaro?
Para além desses questionamentos, é preciso, como nos diz Leach (1996), entender que as sociedades reais não estão em equilíbrio, visto que elas são dinâmicas e possuem suas próprias relações. Dessa forma, o autor referido critica pesquisadores como Radcliffe Brown, que em seus estudos tenta enquadrar as sociedades em modelos conceituais fechados e equilibrados. Apesar de Leach (1996) também construir modelos conceituais, seu diferencial está no entendimento e reconhecimento de que eles são artificiais, pois as contradições fazem parte dos sistemas, e são elas que mobilizam as transformações sociais. Ora, a democracia é um modelo conceitual, e sendo ele algo reproduzido cientificamente e também pelo senso comum, acaba por nos fazer pensar e analisar, com base na antropologia política, se, e como a fala de Bolsonaro atinge de forma diferente os brasileiros.
Há um entendimento de que uma das funções dos governos é manter a ordem social, além de contribuir com a execução das atividades do Estado. Durkheim (2013) explica que o Estado tem relações diferentes com os indivíduos, de acordo como o tempo e espaço. Nas sociedades menos complexas, o Estado controla mais de perto os indivíduos a partir das disciplinas e da moral, utilizando-se do caráter religioso. Já nas sociedades mais modernas, é possível perceber uma maior complexidade a partir da diversidade de grupos secundários, com interesses distintos e muitas vezes conflitantes. Dessa forma, o Estado equilibra-se num jogo com os diferentes grupos, surgindo dessa relação as liberdades individuais. Todavia, no caso em questão, o que se percebe é a negação da diversidade e o resgate de ideias que buscam maior equilíbrio e ordem a partir do cumprimento de uma antiga moral e disciplinas pensadas com cunho religioso.
Ao pensar na fala de Bolsonaro (“Eu sou a Constituição!”), causa estranheza que alguém que se candidatou e se elegeu em um estado democrático esteja proferindo algo contrário aos ideais de democracia. Todavia, analisar a ideia do poder nos faz enxergar algo além de uma simples fala antidemocrática. Mas sim de escolhas conscientes ou não, a fim de não só adquirir, mas, sobretudo, assegurar o poder impregnado no cargo (LEACH, 1996).
A proposta da antropologia política não está em criticar as práticas políticas, mas em “entender a maneira pela qual as relações de poder emergem numa situação determinada, adquirindo significado para os atores sociais” (KUSCHNIR, 2007, p. 165). Nessa perspectiva, é que analisaremos três situações ocorridas no Brasil após o início do governo Bolsonaro, a fim de refletir de que formas essas ações são percebidas socialmente.
Estudar e analisar o Estado do qual fazemos parte e se afastar das pré-noções naturalizadas e reproduzidas cotidianamente é sem dúvida um grande desafio ao pesquisador, que deve buscar meios para compreender e refletir cientificamente o seu objeto de estudo, a fim de romper com os conhecimentos prévios. Bourdieu (1996) entende que “as administrações públicas e seus representantes são grandes produtores de problemas sociais que a ciência social frequentemente apenas ratifica, retomando-os por sua conta como problemas sociológicos” (BOURDIEU, 1996, p. 95). Dessa forma, entendemos que fazemos parte desse Estado, mas que para entendê-lo é importante que tenhamos um olhar diferente e não naturalizado.
Estado e governo
Nas salas de aula da educação básica, da qual fazemos parte, é possível perceber que muitos estudantes confundem os conceitos de Estado e governo. Para muitos, quando se fala em Estado, faz-se referência principalmente ao estado como unidade federativa e não como instituição social. Verifica-se a dificuldade em personificar o Estado e toda sua representação social e política e, além disso, acabam por vezes confundido os conceitos governo e Estado. Vale ressaltar, como nos faz pensar Bourdieu (1996), estamos ali na aula, como professores, representando e reproduzindo o que é determinado pelo Estado.
A escola é a escola do Estado, na qual transformamos jovens em criaturas do Estado, isto é, nada mais do que cúmplices do Estado. Quando entro na escola, entro no Estado, e como o Estado destrói os seres, entro na instituição de destruição dos seres. [..] O Estado me fez entrar nele obrigatoriamente, como fez com todos os outros, e me tornou dócil em relação a ele, Estado, e fez de mim um homem estatizado, um homem regulamentado e registrado e vestido e diplomado e pervertido e deprimido, como todos os outros. Quando vemos homens, só vemos homens estatizados, servidores do Estado, que, durante toda sua vida, servem ao Estado e, assim, toda sua vida servem à contra-natureza." (BERNHARD, 1988, p. 34 apud BOURDIEU, 1996, p. 92).
Envolvidos nessa proposta, faremos aqui, inicialmente, uma distinção entre governo e Estado. Em seguida veremos estes conceitos a partir de três autores que nos ajudarão nesse processo de construção e análise de conceitos: Weber (2000), Durkheim (2013) e Dumont (1993). A partir da percepção de Rocha (2008/2009), o Estado pode ser entendido como “toda a sociedade política, incluindo o governo” (ROCHA, 2008/2009, p. 140). Já o governo “é principalmente identificado pelo grupo político que está no comando de um Estado” (ROCHA, 2008/2009, p. 140). Esses conceitos dizem respeito principalmente à ideia de Estado moderno, não representando o todo, evidentemente, já que temos organizações e estruturas sociais diferentes em tempo e espaço.
Ao pensar o Estado democrático e de direito, a partir do conceito de Rocha (2008/2009), entende-se que há uma perspectiva de diminuir a participação do governo, por entender que este deve ser passageiro e não deve se tornar maior que o próprio Estado. Efetivamente a “Constituição, o conjunto de servidores públicos estáveis, o patrimônio público, a máquina burocrática pública, as forças públicas” (ROCHA, 2008/2009, p. 141), entre outros, fazem parte do Estado e não de um governo específico. Assim, é importante entender que essas instituições devem ser e permanecer estáveis e impessoais, para que não sejam submetidas às mudanças e rupturas de acordo com os governos eleitos, pois entende-se que elas pertencem à sociedade e não devem, dessa forma, buscar interesses daqueles que se encontram temporariamente no poder. Essa é uma forma de garantir que os governantes tenham limites em seus governos e que possam ser vigiados, julgados e punidos dentro de leis estabelecidas por cada sociedade (ROCHA, 2008/2009).
Em contato com teorias da antropologia política, demos conta de que o conceito de Estado apresentado aos alunos é o de Estado moderno, tendo como base a ideia de Estado racional de Weber (1999), que compreende o ocidente como espaço que possuía um conjunto de condições e possibilidades (burguesia, capitalismo etc.) para criação de um Estado e que este se define por meio da coerção física.
Para nossa consideração, cabe, portanto, constatar o puramente conceitual: que o Estado moderno é uma associação de dominação institucional, que dentro de determinado território pretendeu com êxito monopolizar a coação física legítima como meio de dominação e reuniu para este fim, nas mãos dos seus dirigentes, os meios materiais de organização, depois de desapropriar todos os funcionários estamentais autônomos que antes dispunham, por direito próprio, destes meios e de colocar-se, ele próprio, em seu lugar, representado por seus dirigentes supremos. (WEBER, 1999, p. 529).
Em contrapartida, Durkheim (2013) propõe um estudo sobre as relações do indivíduo com o grupo político. Tais relações estão atreladas à moral cívica, que é um conjunto de regras sancionadas e que determinam como devem acontecer essas relações. Antes, contudo, o autor traz uma análise sobre a sociedade política e inicia sua fala sobre o elemento essencial na noção de todo grupo político, que é a oposição entre governantes e governados. Esta relação, que parece ser essencial, nem sempre o foi, ao considerarmos sociedades que possuem de forma escassa essa oposição e até outras que não as possuem. Contudo, Durkheim (2013) acreditava que as sociedades em que não existem tal oposição, não há necessariamente política, pois considera que está “significa antes de tudo organização pelo menos rudimentar, constituição de um poder, estável ou intermitente, fraco ou forte, a cuja ação os indivíduos estão sujeitos, seja ela qual for” (DURKHEIM, 2013, p. 60).
O referido autor ainda analisa e percebe que essa construção, do território como essencial, é recente, tendo em vista que existem sociedades nômades que não são apegadas ao território, mas que não devem ser desconsideradas.
Para Durkheim (2013, p. 71), “(...) o Estado é um órgão especial encarregado de elaborar certas representações que valem para a coletividade. Essas representações distinguem-se das outras representações coletivas por seu maior grau de consciência e de reflexão". Dessa forma, entende-se que o Estado não executa, e sim fornece ideias, sentimentos, representações coletivas.
Já Dumont (1993) buscou compreender a gênese e os fundamentos da ideologia individualista moderna e explicou por que a sociedade ocidental moderna passou a enfatizar tanto o aspecto individual em detrimento do social e do espiritual, ou seja, mais a dimensão mecânica do que a orgânica da sociedade. Isso se dá muito pelo rompimento do Estado com a igreja, na qual a vida mundana passou a ter uma importância decisiva, orgânica, em face dos assuntos espirituais e divinos. Todavia, essa valorização do individual sobre o social, do societas sobre o universitas, acaba por estabelecer uma compreensão incompleta sobre o mundo e sobre nós mesmos de forma global, conjunta e social.
Após a reflexão conceitual sobre governo e Estado, a análise seguinte versa sobre o governo de Bolsonaro, quem ele é, quando inicia seu governo etc.
Governo Bolsonaro
Jair Messias Bolsonaro assumiu em janeiro de 2019 o cargo de presidente do Brasil, após vencer no segundo turno as eleições que ocorreram em 2018, nas quais obteve 55,13% dos votos válidos, juntamente com seu vice-presidente, o militar Hamilton Mourão. Ambos conquistaram e assumiram a função do executivo com data prevista para terminar em dezembro de 2022. Bolsonaro é militar reformado e foi deputado federal por 28 anos, e até então nunca tinha ocupado cargo executivo (BERNARDO, 2020).
O governo de Bolsonaro, desde a época da campanha eleitoral, fundamentou seu discurso na ideia de rompimento com a corrupção e com a chamada “velha política”, o que lhe fez ganhar muitos eleitores. Meses passaram-se após sua posse e logo nos deparamos com comportamentos que iam de encontro ao discurso empregado como diferente. Além das denúncias de corrupção, Bolsonaro teve comportamento visto por parcela da população como não adequado ao cargo que ocupava, pois, como dito anteriormente, conceitualmente, vivemos um modelo de Estado moderno e democrático, e é a partir da reprodução desse conceito que se infere certa apreensão com o comportamento do presidente.
Todavia, Bourdieu (BOURDIEU,1996, p. 97) alerta que o Estado “reivindica com sucesso o monopólio do uso legítimo da violência física e simbólica em um território determinado e sobre o conjunto da população correspondente”. Dessa maneira, dá início, a partir das próprias instituições (escolar, militar, igreja etc.), a produção de novos símbolos, que possam ser aceitos e reconhecidos pela população, utilizando-se de violências simbólicas e física, que aparecem como legítimas.
Se o Estado pode exercer uma violência simbólica é porque ele se encarna tanto na objetividade, sob a forma de estruturas e de mecanismos específicos, quanto na "subjetividade" ou, se quisermos, nas mentes, sob a forma de estruturas mentais, de esquemas de percepção e de pensamento. Dado que ela é resultado de um processo que a institui, ao mesmo tempo, nas estruturas sociais e nas estruturas mentais adaptadas a essas estruturas, a instituição instituída faz com que se esqueça que resulta de uma longa série de atos de instituição e apresenta-se com toda a aparência do natural. (BOURDIEU, 1996, p. 98, grifos do autor).
Devemos entender, portanto, que o Estado possui o domínio da produção simbólica e contribui, dessa forma, para a naturalização de situações que anteriormente não seriam vistas assim. No governo Bolsonaro, percebe-se, também, a utilização da estrutura do Estado para construção de símbolos que o sustente no poder. Esse tipo de mobilização (distribuição de capital simbólico, construção de símbolos) tem sido importante no processo de naturalização, que reforçam o poder do governo sobre a população.
James Scott (2013) chama atenção para como a dominação impõe as deferências entre os grupos, mas principalmente ressalta a importância de analisar e pensar como os grupos subordinados resistem a tais imposições. Ele apresenta a indução dos progenitores em ensinar seus filhos os rituais de homenagem para assegurar sua segurança. Esses rituais, normas, cortesias socializadas, apesar de serem impostas, seu cumprimento e aceitação pública é entendida por Scott (2013) como estratégica. Ele, porém, avalia como é difícil perceber o grau de conformação, bem como as mágoas e ressentimentos presentes na representação, tendo como base somente os comportamentos exteriores. Isso significa que só será possível entender as relações reais de deferências a partir da ausência do dominante e num espaço de confidencialidade (SCOTT, 2013, p. 56).
Bourdieu (1996) revela ainda a emergência de um capital específico, propriamente estatal, que irá permitir que o Estado exerça poder sobre os diversos campos, bem como sobre os diferentes tipos específicos de capital. Dessa maneira, analisa a construção do “campo do poder”, visto como “espaço de jogo no interior do qual os detentores de capital (de diferentes tipos) lutam particularmente pelo poder sobre o Estado, isto é, sobre o capital estatal que asseguram o poder sobre os diferentes tipos de capital e sobre sua reprodução” (BOURDIEU, 1996, p. 100).
É nesse campo de poder que acontece o jogo entre os indivíduos (representantes políticos) que possuem os mais diversos capitais (culturais, econômicos, social, simbólico) e que muitas vezes não estão preocupados com a população (governados), mas com o poder que exercem, o poder que ainda podem adquirir ou mesmo preservar, política, social e economicamente. Por se tratar de um jogo de interesses, observa-se que tais ações têm feito a população não só deixar de acreditar na eficiência e importância política, mas também tem atraído famílias que já possuem os diversos capitais e que enxergam nesse jogo a oportunidade de ter mais poder.
Ao chegar ao poder, o governante está imbuído de um estereótipo sobre como e qual deve ser seu comportamento, para caber nas expectativas daquilo que temos como modelo social e moral. O presidente Jair Bolsonaro foi alvo de críticas de alguns grupos por não corresponder às expectativas de comportamento e discurso que se espera de um governante. No entanto, há também grupos que consideram suas falas e comportamentos como apropriados e necessários, pois acreditam que ele fala em nome de uma moral comprometida com valores importantes. Daí pode se perguntar: quem determina o comportamento correto? Historicamente, observa-se que já tivemos comportamentos similares em séculos passados — e hoje também em alguns países —, mas não é essa a abordagem agora, em que governantes, com o poder em mãos, tinham comportamentos tiranos e autoritários, mas que com o passar dos anos houve um rompimento e modificações nas estruturas sociais e políticas vigentes, levando em consideração que temos sociedades dinâmicas.
Aqui está claro que o que para alguns parece ser um comportamento autoritário e desnecessário em uma democracia pode ser, para os governantes, o estereótipo de bom comandante, de alguém que não se cala diante do contraditório ao seu governo e que, de certa forma, assegura o poder e mostra que está tudo sob controle, utilizando-se da retórica para convencer a população (HERZFELD, 2016). A exemplo destas falas:
Vamos fuzilar a petralhada aqui do Acre. Vou botar esses picaretas para correr do Acre. Já que gosta tanto da Venezuela, essa turma tem que ir para lá (CARTA CAPITAL, 2018, online).
[O policial] entra, resolve o problema e, se matar 10, 15 ou 20, com 10 ou 30 tiros cada um, ele tem que ser condecorado, e não processado (CARTA CAPITAL, 2018, online).
E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre (REVISTA PLURAL, 2020, online).
Tal estereótipo, bem como os símbolos utilizados,[2] acabam por forçar a obediência e a conformidade. É o que percebemos nas conversas informais, nos noticiários e nas redes sociais, que apesar de não concordarmos com o que é falado, com o comportamento do governante, havia, por vezes, uma aparente conformação com a ideia de que não havia muito a ser feito, já que se tratava de um sistema político engessado e com representantes que mais pensam nas suas particularidades do que propriamente nos governados.
Do outro lado, governantes e representantes políticos garantem a disseminação de outros estereótipos, chamando os que são contra seu governo de “esquerdopatas”, “comunistas”, além de distribuírem notícias falsas a fim de propagar a inferiorização e o preconceito, que passam a ser reproduzidos pelo grupo de apoio ao governo, como verdades irrefutáveis. A força do Estado tem a ver com o monopólio simbólico, e este acaba sendo usado pelos governantes, não para garantir em si o Estado e toda sua representação, mas sim para garantir o poder aos que ocupam o cargo (HERZFELD, 2016).
Na próxima sessão, faremos uma análise de três reportagens de situações reais que aconteceram no ano 2021 e que demonstram as violências simbólicas e físicas vivenciadas no Brasil. O primeiro caso ocorreu em 31 de maio em Goiás: relata a prisão do professor Arquidones Bites Leão, que foi detido por policiais militares por se recusar a retirar uma faixa colocada no capô de seu carro com a mensagem "Fora Bolsonaro Genocida". O segundo caso aconteceu no dia 10 de julho de 2021, no Rio Grande do Sul, onde uma mulher, batendo panela, manifestou-se publicamente contra o presidente Jair Bolsonaro, que participava de uma motociata. O terceiro caso aconteceu no dia 13 de julho de 2021, no Rio de Janeiro, onde um casal que vestia camisa com os dizeres: “A segunda dose da vacina nos livra do Covid-19; o que nos livrará do Bolsovírus será o impeachment ou o seu voto em 2022”, foi impedido de receber a dose da vacina até que mudassem a camisa.
Análise das reportagens e relação com as teorias: Estado como vida e morte
O conceito de política é pensado de diferentes formas, por diversos autores como já vimos até aqui. Dentre esses conceitos, é possível pensar a política como um meio de acesso aos recursos públicos, e isso inclui os próprios direitos, nos quais temos o político como mediador entre comunidades locais e os diversos níveis de poder existentes na sociedade. Tal “fluxo de trocas” é ajustado “pelas obrigações de dar, receber e retribuir” (KUSCHNIR, 2007, 164). Esse fluxo não pode ser desconsiderado, mas sim analisado de forma científica, já que ele não é um modelo único, pois entende-se que as realidades são diferentes, em tempo e espaço.
Os políticos estão dando acesso a bens e serviços públicos a pessoas que não os teriam de outra forma. Nesse contexto, a palavra “público” não significa “recursos que pertencem a todos”, mas “recursos monopolizados pelas elites políticas e econômicas”. Ou seja, pessoas “ordinárias” — de estratos inferiores da sociedade — não participariam dessa definição de “público”. Por isso mesmo, o acesso às fontes públicas de bens e serviços precisa ser intermediado pelo político e é visto como um bem extraordinário, “que não tem preço”. (KUSCHNIR, 2007, p. 164)
A autora e pesquisadora Kuschnir (2007) mostra que as relações não estão fechadas dentro dos conceitos já formulados e reproduzidos no meio acadêmico, e que as realidades observadas devem ser analisadas como são, a fim de entender a realidade estudada.
Com base nesse pensamento, analisaremos três casos ocorridos no ano de 2021, nos quais cidadãos tiveram sua liberdade de expressão e manifestação desrespeitados e tolhidos. Vejamos abaixo três quadros com informações retiradas de sites jornalísticos, que tratam das reportagens que iremos analisar. A apresentação delas se dá na ordem cronológica dos acontecimentos.
Nesta sessão, faremos análise dos casos a partir de autores como Foucault (1979), Agambem (2002) e Norbert Elias (1994).
Os casos aqui relatados, quando lidos sem conhecimento do país em que aconteceram, pode-se de imediato pensar em um país autoritário, onde não existe democracia. Entretanto, todos os casos aconteceram em 2021 no Brasil que, pela Constituição Federal de 1988, é um país democrático, e que, de acordo com a referida Constituição, garante, a partir do artigo 5º, inciso IV e IX, a livre manifestação de pensamento e a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença, respectivamente (ALVES; CARVALHO, 2019).
Figura 1 — Primeira reportagem: 31/05/2021 |
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Fonte: Oliveira (2021, online).
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Figura 2 — Segunda reportagem: 10/07/2023 |
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Fonte: Rede Brasil Atual (2021, online). |
Figura 3 — Terceira reportagem: 12/07/2021 |
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Fonte: Raoni Alves (2021, online). |
A mesma Constituição também garantiu às “Forças Armadas o papel de garantidora de lei e da ordem, abrindo precedentes para a arbitragem de tensões entre os Poderes e de conflitos no interior da sociedade” (NOZAKI, 2021, p. 04). Dessa forma, o Estado, como já vimos, possui, segundo Weber (1999), legitimidade para a utilização da violência física, e este recurso tem sido utilizado pelos governos como forma de manter a ordem social, mas também como forma de manter a autoridade e o poder dos governantes diante daqueles que se manifestam contra o seu governo.
Ao analisar as situações dos quadros, percebemos algo em comum: as prisões foram realizadas por policiais militares e um bombeiro (caso 3). No caso 1, o policial militar que dá a voz de prisão evoca, como legitimidade a sua ação, calúnia contra o presidente Jair Bolsonaro, tendo como base a Lei de Segurança Nacional.[3]
Já no caso 2, a polícia militar garantiu que a cidadã que se manifestava contra a “motociata”[4] fosse presa por desobediência durante o ato que aconteceu no Rio Grande do Sul. No caso 3, o casal que já tinha recebido a primeira dose da vacina no mesmo local (sede do corpo de bombeiros) usando camisas com frases contra o governo, foi surpreendido com o comunicado do soldado que dizia que, de acordo com a “ordem do comando”, não seria mais permitido vacinar pessoas com cartazes, camisas ou qualquer manifestação política.
Há, dessa forma, a utilização de um recurso legítimo por parte do governo para fins próprios, que vai de encontro às leis estabelecidas na Constituição,[5] e à própria democracia. Para Moisés (2008):
Instituições e procedimentos são vistos, portanto, como meios de realização de princípios e valores adotados pela sociedade como parte do processo político. Sem elidir que a disputa por interesses e preferências envolve conflitos, a idéia é que as instituições se constituem — com base nos objetivos normativos que lhes são atribuídos — na mediação mediante a qual os conflitos podem ser resolvidos pacificamente. (MOISÉS, 2008, p. 15)
Todavia, o que se percebe são comportamentos arbitrários no intuito de não tolerar manifestações contrárias ao governo, colocando os manifestantes como agressores para justificar seu comportamento autoritário. E aqui é importante lembrar da fala dita por Bolsonaro: “Eu sou a Constituição!”. As ações, falas e comportamentos vão determinando o jogo das relações de poder, que, de acordo com Elias (1994), dependem das ações dos indivíduos, devido às relações de interdependência.
Os militares, no governo Bolsonaro, têm tido uma participação significativa, ocupado vários cargos em diferentes setores. Até o final de 2020, eles chegaram a ocupar 10 ministérios. Além disso, observou-se também o aumento da projeção de militares nos cargos políticos (legislativos e executivo). A chapa presidencial na qual Jair Bolsonaro (capitão reformado) foi eleito era também composta por um general, Hamilton Mourão. Já nas eleições de 2020, tivemos o maior número de candidatos militares dos últimos 16 anos: foram 6.755 no total (NOZAKI, 2021).
Essa relação estreita do governo com os militares reforça que existe um jogo de poder no qual cada segmento se apoia um no outro na tentativa de sustentar o poder já adquirido. Entendemos o poder não como algo que alguém detém, mas como algo que faz parte de um conjunto de mecanismos, procedimentos e discursos, ou seja, está presente em todas as relações (FOUCAULT, 1979).
Estando o poder em todas as relações, há, sem dúvida, formas de impor suas vontades dentro das relações, bem como de mostrar aos que fazem parte do jogo quem possui mais poder. Nessa perspectiva, Foucault (2005, p. 305) diz que “a morte do outro, da raça ruim é o que vai deixar a vida em geral mais sadia, mais sadia e mais pura”, ou seja, é com base nos padrões normalizadores e em nome dos que devem viver, é que se estipula quem deve morrer. Dessa forma, entendemos que Jair Bolsonaro se utiliza tanto do poder soberano, no qual consegue punir e proibir através de mecanismos legais, quanto do “poder disciplinar” que controla e vigia a população, como no caso da camisa com frases contra o governo. Há uma vigilância e punição a algumas pessoas que resistem ao poder do governo, mesmo quando há um entendimento de que o bom governante deve ter paciência, sabedoria e diligência” (FOUCAULT, 1979, p. 279).
Nos casos analisados, não se percebe somente a violência física, mas também a violência simbólica. O que se percebe, como explica Bourdieu (1996), é que “a ‘ordem simbólica’ tem seu apoio na imposição, ao conjunto dos agentes, de estruturas cognitivas que devem parte de sua consistência e de sua resistência ao fato de serem, pelo menos na aparência, coerentes e sistemáticas e estarem objetivamente em consonância com as estruturas objetivas do mundo social. E nesse acordo imediato e tácito (oposto em tudo a um contrato explicito) que se apoia a relação de submissão tóxica que nos liga, por todos os liames do inconsciente, à ordem estabelecida (BOURDIEU, 1996, p. 118).
Assim, percebe-se que não há linearidade dos acontecimentos reais. Sendo assim, as configurações não seguem necessariamente as regras, já que não temos o controle do que irá acontecer.
Apesar de entendermos que as regras existem, estão postas e deveriam ser seguidas, as relações acabam por extrapolar as limitações pensadas quando as leis são formuladas. A democracia existe em seu conceito e é testada diariamente nas sociedades que buscam nela a idealização de um país perfeito e justo. Mas, de fato, observamos que, mesmo com as afirmações de que caminhamos para um país mais democrático, o que temos são tentativas de calar essa democracia e tudo que ela representa.
Embora eleições sejam indispensáveis para a existência da democracia, como advogam as definições convencionais, tornou-se evidente que elas não garantem per se a instauração de um regime democrático capaz de assegurar princípios como o primado da lei, o respeito aos direitos dos cidadãos e o controle e a fiscalização dos governos (MOISÉS, 2008, p. 13).
Para Agamben (2002), existe um poder privilegiado e este exclui demais as formas de vida, considerando-as inexistentes e, portanto, excluídas de vários processos, inclusive fazendo-as se sentirem fora da sociedade. O autor chama de “vida nua”, ou seja, aquela vida “matável e insacrificável do homo sacer, sobre a qual se baseia o poder soberano” (AGAMBEN, 2002, p. 148). Em outras palavras, é a vida que se pode deixar morrer.
A população, já na vigência do governo Bolsonaro, iniciou uma resistência maior diante das situações que haviam se tornado corriqueiras. Mesmo aqueles que anteriormente viam no Bolsonaro uma mudança, passaram a discordar de tais situações. Nota que também existiam análises políticas que se manifestavam no cotidiano, como a posição a favor do impeachment não apenas por questões legais, mas também por entender que remover Bolsonaro do cargo abriria espaço para uma alternativa política fora da dualidade entre os candidatos com maior pretensão de votos para a próxima eleição.
Nesse contexto, Moisés (2008) analisa que a institucionalização da democracia como regime não pode estar pautada apenas nas eleições regulares e que a participação da população não pode estar reduzida à escolha do seu representante. Assim, a efetivação de uma democracia de qualidade está na capacidade de “satisfazer as expectativas dos cidadãos quanto à missão que eles atribuem aos governos (qualidade de resultados); confia-se que ele assegurará aos cidadãos e às suas associações o gozo de amplas liberdades e de igualdade política capazes de assegurar que possam alcançar suas aspirações ou interesses (qualidade de conteúdo); e conta-se que suas instituições permitirão, por meio de eleições e de mecanismos de checks and balances, que os cidadãos avaliem e julguem o desempenho de governos de representantes (qualidade de procedimentos)” (MOISÉS, 2008, p. 15).
Essa análise teórica sobre a falta dessa qualidade democrática nos ajuda a entender melhor esse processo democrático no Brasil, bem como os desafios das institucionalizações em manter esse regime, num momento em que parece estar comprometido em meio aos abusos e retrocessos políticos.
Considerações finais
Entender que as sociedades são dinâmicas é um passo muito importante para compreender suas realidades e romper com as ideias dos modelos que são criados a partir das observações, e que nem sempre condizem com a real situação, como nos fazem pensar Roy Wagner (2010) e Leach (1996).
A partir desses estudos e na busca por romper com as pré-noções de quem vive e reproduz a ideia do Estado, tivemos como objetivo analisar o governo do presidente Bolsonaro e algumas de suas ações e falas, para compreender como tais comportamentos autoritários, que destoam da ideia de democracia, puderam, de certa forma, blindá-lo politicamente enquanto se manteve na presidência, tendo em vista que ele nada sofreu.
Weber (1999) e Durkheim (2013) nos ajudaram a perceber, num primeiro momento, as distinções e conceitos diversos sobre o Estado e o governo, ampliando, assim, nossa percepção sobre tais assuntos. Ainda na busca de entendermos melhor o Estado, perpassamos por autores como Bourdieu (1996), que nos trouxe informações a respeito de como os símbolos são criados pelo Estado e de como estes são utilizados pelos governantes, num jogo de interesses, a fim de manter ou buscar cada vez mais domínio e prestígio na sociedade, e assim serem reconhecidos como agentes detentores de poder.
Por fim, a partir da reflexão dos autores, foi possível realizar uma análise de três situações ocorridas no ano de 2021 no Brasil, durante o governo do presidente Jair Bolsonaro, nas quais cidadãos foram punidos por manifestarem-se contra o referido governo. Percebe-se que a realidade ultrapassa os conceitos e modelos estabelecidos e são pensados para promover um maior entendimento das relações sociais. Os casos apresentados e analisados mostram que a ideia de democracia é frequentemente entendida de maneira particular, a partir de grupos dos quais os indivíduos fazem parte. Isso ocorre porque, de acordo com Moisés (2008), os regimes democráticos são “diferentes entre si”, pois sua institucionalização ocorre de diversas maneiras, levando em consideração a história e o tempo de cada espaço social (MOISÉS, 2008, p.13).
Todavia, não estamos aqui, como dito anteriormente, para exprimir juízo de valor sobre o governo do presidente Jair Bolsonaro, mas para analisar as situações arbitrárias ocorridas no regime democrático brasileiro, buscando entendimento sobre as contradições encontradas nesse processo, bem como refletindo a respeito das democracias e a qualidade democrática que falta para que ocorra uma efetivação da democracia liberal.
O governo de Jair Bolsonaro findou em 2022, pois ele não se reelegeu no pleito do referido ano. Assim, Luís Inácio Lula da Silva venceu a eleição e tomou posse em janeiro de 2023, tornando-se o novo presidente do Brasil. Apesar da não reeleição de Bolsonaro, ainda é possível observar situações, comportamentos e falas arbitrárias daqueles que dão continuidade a proposta bolsonarista. Hoje, temos no Congresso Nacional bancadas formadas por partidos políticos que se identificam com a proposta do governo anterior, sendo este um objeto de estudo que deve ser pesquisado a fim de entendermos melhor os objetivos desse grupo que fala em nome da moral e da família. Mas de qual moral e de qual família se fala? A pesquisa se faz necessária para esse entendimento.
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Recebido em: 20/01/2023.
Aceito em: 30/04/2023.
DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n30.65545.p202-224
* Mestra em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Brasil. Professora de Sociologia da educação básica do estado do Maranhão. E-mail: garcia.andreajoana@gmail.com.
** Mestra Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), Brasil. Professora da rede básica de ensino do estado do Maranhão. E-mail: anacaina79@gmail.com.
*** Mestra em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Brasil. Professora do ensino básico técnico e tecnológico do Colégio Universitário (UFMA). E-mail: karlenecarvalho@hotmail.com.
[1] Há controvérsias entre os historiadores sobre a veracidade dessa fala ter sido, de fato, proferida por Luís XIV.
[2] Um dos símbolos utilizados é o que chamam de resgate da bandeira do Brasil, que de acordo com os grupos de apoio do governo está estava sendo substituída pela bandeira vermelha, especificamente a bandeira do Partido dos Trabalhadores (PT).
[3] A Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170, de 1983) prevê, no artigo 26, como crime "caluniar ou difamar o presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação".
[4] Motociata é a reunião de um grupo de motoqueiros. Nesse caso, os motoqueiros organizaram esse ato em favor do presidente Jair Bolsonaro.
[5] De acordo com matéria do site Pragmatismo Político, a Polícia Federal apresentou dados que mostram o crescimento de inquéritos instaurados, que visam investigar temas ligados à Lei de Segurança Pública, durante o governo de Bolsonaro, somando 85 inquéritos já iniciados (MARTINS, 2021).
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