IMAGENS DIGITAIS E COMUNIDADES IMAGINADAS: uma analogia entre videogames, imperialismo e indústria cultural
DIGITAL IMAGES AND IMAGINED COMMUNITIES: an analogy
between videogames, imperialism and cultural industry
DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n30.65842.p103-122
Resumo
Este artigo aborda o caráter social do videogame como porta para o debate sobre as possibilidades de análise sociológica desse objeto. Trata-se de pesquisa qualitativa cujo resultado é a discussão aqui proposta, que parte de uma comparação das imagens de um mapa de um videogame e da relação entre imagens históricas e o imperialismo histórico com o que veio a se tornar a indústria dos jogos digitais como parte da indústria cultural. Isso é realizado apontando para conexões entre os papéis de objetos da cultura na teoria de Benedict Anderson sobre “comunidades imaginadas” e como é possível identificar nos videogames formas sociais que correspondem ao que a indústria dos jogos hoje representa para as produções culturais e de guerra de impérios.
Palavras-chave: videogame; indústria cultural; império; comunidades imaginadas.
Abstract
This paper approaches the social character of videogames as a gateway to discuss the possibilities of sociological analysis of these objects. The qualitative research that results in the present discussion, begins with a comparison between historical maps and a video game map, than point to the historical context of imperialism that came to be the videogame industry as a part of the Cultural one. Therefore, it takes form Benedict Anderson’s concept of “imagined communities” to identify in a particular game, social forms that correspond to the game industry in general and its relation with the empires war games.
Keywords: videogame; cultural industry; empire; imagined communities.
O artigo tem como principal objeto de análise imagens do jogo digital de 2018 Pillars of Eternity 2: Deadfire (doravante POED, da produtora Obsidian Entertainment), tomando-as como pontapé inicial para a discussão sobre alguns pontos de uma sociologia dos jogos digitais. Essa discussão surge de uma pesquisa mais ampla realizada no doutorado em sociologia sobre videogames e comunidades imaginadas enquanto “comunidades morais”, cujo recorte deu-se sobre quatro jogos digitais com seus sistemas específicos de narrativas, com escolhas do jogador e múltiplos finais decorridos dessas escolhas (portanto, que levantavam questões como a agência do jogador e a valorização das ações de acordo com a narrativa estabelecida do jogo). Aquela pesquisa teve por metodologia o reconhecimento desses sistemas a partir da perspectiva do jogador — jogando-se tais jogos; um levantamento sócio-histórico da produção dos videogames e uma análise de selecionados aspectos das narrativas, da jogabilidade e da estética visual dos jogos abordados (um dos quais foi POED).
Inicia-se, no texto que se segue, uma breve apresentação da imagem cartográfica desse jogo em que se observam similaridades com um mapa histórico de uma cidade. A ideia é mostrar aproximações entre o imagético com questões derivadas de processos históricos da própria reprodução industrial de mercadorias culturais que viriam a originar os próprios jogos digitais (OLIVEIRA, 2022). Tomando como base a referida imagem e a sua descrição, busca-se uma aproximação com o pensamento de Benedict Anderson (2008), mais especificamente, a relação entre objetos da cultura e seu conceito de “comunidades imaginadas”. Na continuidade, procura-se trabalhar a produção dos jogos eletrônicos, trazendo um pouco da história e de algumas características que marcam tal indústria mundial. Em um terceiro ponto, trabalha-se com as imagens enquanto representações sociais, tendo como base teórica principal B. Anderson (2008) e W. Benjamin (1994).
Lançado em 2018 pela desenvolvedora estadunidense Obsidian Entertainment, Pillars of Eternity II: Deadfire é um jogo de RPG para computador (CRPG), que envolve os jogadores na história de um ou múltiplos personagens, incluindo sua criação, escolhas e estilo de jogo. Não é necessário conhecimento prévio do Pillars of Eternity original para jogar ou ser imerso na narrativa de sua continuação. As mecânicas do jogo apontam o significado de termos estabelecidos no jogo anterior, e a narrativa foi escrita de maneira a reintroduzir elementos básicos da história.
Joga-se POED movendo, com cliques do mouse, seu personagem, grupo ou navio pelo mapa, que são sempre vistos de um ponto de vista acima deles, e optando por entrar em combate e resolvendo missões conseguidas através da interação com personagens não jogáveis. Seguindo o término do jogo antecessor, joga-se como um(a) “observante” de Caed Nua, alguém capaz de ver e interagir com almas no Além, bem como com almas de indivíduos vivos. O/a observante pode agir só ou em grupo, adquirir ou não personagens aliados, e deve navegar e explorar as ilhas do arquipélago Fogo-Morto (origem do subtítulo Deadfire do jogo). Há diversas maneiras de se construir e modificar tanto o observante como seus companheiros, que com o decorrer do jogo tornam-se mais aptos em combate, mais poderosos e mais hábeis, inclusive afetando simulações de interação entre personagens. Este acúmulo de poder permite interagir com inimigos mais poderosos e explorar mais do arquipélago, e se dá tanto pela mecânica quase onipresente em RPGs e CRPGs, a experiência, como também pelo acúmulo de riquezas na forma de ouro e itens mágicos.
Figura 1 — Mapa de Porto Maje em Pillars of Eternity II: Deadfire |
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Fonte: (PILLARS, 2018). |
Iniciando o jogo: vítima de uma abordagem de piratas em alto mar, seguida de uma tempestade, os tripulantes da embarcação desafiante naufragam em uma praia deserta, e são obrigados a buscar refúgio. É assim que quem joga POED ou apenas adentra a cidade de Porto Maje, localizada ao lado oposto da praia na mesma ilha em que naufragaram, depara-se com parte de um dos primeiros objetivos/missões ou quests do jogo. É lá que irão encontrar abrigo, na taverna do Olho do Kraken e entrar em serviço do governador da Companhia Valeriana de Comércio, Clário, e da líder dos islenhos e stormspeaker Ikawha. Mas para chegar de fato em Port Maje, há que se enfrentar missões de resgate dos seus tripulantes, buscar armar-se com os itens despejados na praia, dialogar com as almas que rondam a orla e, por fim, deparar-se com algo que é trivial no jogo, uma interação completamente banal e irrelevante para a narrativa: clicar no pequeno ícone que indica a presença de uma localização interativa, ver na janela que abre o mapa da localidade e escolher um dos setores jogáveis da cidade bordeados de branco (figura 1).
A figura 1 mostra o mapa da cidade de Porto Maje, que se torna visível ao jogador quando ele clica no ícone correspondente. Ficam visíveis, em realce branco, as áreas da cidade que se pode visitar: o porto (Port Maje Harbor), um agrupamento de casas da rua Gorecci (Gorecci Street), além da mais apartada, Sãtahuzi, uma vila ou aldeia que, embora não esteja imediatamente visível no mapa, é habitada pelos Huana, povo originário do arquipélago. Na parte superior esquerda da imagem está o brasão da filiação à facção Companhia Comercial Valiana, e à direita, há um quadro de informações[1] sobre a população, as deidades principais e sobre a produção econômica, dos quais se pode extrapolar. Já na parte inferior, estão ícones de interação, incluindo os que permitem o movimento no mapa ou para fora deste (by sea – por mar – e on foot – a pé), e o de suprimentos (supply). O mapa tem uma coloração que destaca as casas e seus telhados em vermelho, separadas por ruas em bege ou marrom claro, que relatam sua construção em barro, em contraste com dois prédios de maior porte e o píer. A aldeia no setor norte, fora da cidade em si, separada desta por uma área em verde, que indica existência de vegetação ou florestas, apresenta um estilo levemente distinto, com telhados acinzentados — o vermelho aparece apenas nas fachadas — indicando que a arquitetura não faz uso de telhas de barro, mas de palha seca.
POED, como outros títulos semelhantes de CRPGs, adota perspectivas visuais aéreas durante quase todo momento jogável, e para além dos mapas — que funcionam como menus de acesso a outras áreas — adota tanto uma perspectiva (uma câmera, por assim dizer) mais próxima do personagem jogável, que pode se alternar para uma visão bem mais ampla, quanto uma perspectiva de mapa regional, centrada no navio, que se pode utilizar para a locomoção entre diversas ilhas do jogo, atribuindo um ar de exploração e pirataria (incluindo a opção de se ouvir cantos de marinheiros durante a locomoção).
De toda forma, a imagem da figura 1 não se trata de uma representação espacial aérea fiel da planta da cidade, a qual quem joga terá acesso (existe apenas como completamente projetada pelos designers de jogo), mas sim de um retrato ou interpretação que permite realçar aquilo que se quer que a leitura do mapa no jogo transmita para quem joga. Ou seja, ainda que baseado no traçado da cidade, tal qual construída em 3D para os momentos mais interativos da jogabilidade, a que se terá acesso após interação com o mapa, ele é distorcido para ser mais simples do que se fosse sobreposto a essa planta, a qual não temos acesso imediatamente. É certo que o mapa é um elemento clássico da interação de vários gêneros de videogames, que permitem exploração de espaços virtuais, mas, neste caso, ele serve como chave para que o jogador reconheça de qual tipo de jogo se trata, ou seja, reconheça o gênero e o contexto cultural próprio como referência a RPGs de tabuleiro (e a uma famosa linhagem de literatura fantástica especialmente a anglo-saxã), que também tem um vínculo com a produção material do jogo, enquanto que é produzido usando do Infinity Engine — motor de jogos feito justamente para permitir a criação de CRPGs desse estilo. Mas, além de ser parte da experiência de jogo e ser um facilitador de interação entre quem joga e o software do jogo, o mapa é um importante meio de comunicação do imaginário, da construção do mundo fictício, que se tem acesso no ato de jogar (RÖHL; HERBRIK, 2008).
Há, contudo, mais em questão quando se considera que POED propõe um mundo fictício baseado nos séculos XVI e XVII no tocante aos temas das navegações e tecnologias renascentistas. Esse estilo de representação espacial da figura 1, que reproduz um olhar aéreo e levemente inclinado, priorizando o desenho de ruas ou áreas urbanas delimitadas, porém sem a exatidão de um mapa contemporâneo, é remanescente, em seu estilo e ornamentação, de mapas medievais e renascentistas de cidades e colônias, que tratam de abarcar o espaço urbano ou território vivido em ordem a apresentá-lo como um todo para olhares que os desconhecem. A figura 1 é uma imagem dentro de imagens, uma representação dentro de uma fabricação que é dependente da capacidade de quem joga de relacionar os elementos simulados e representados com elementos de fora do jogo, da realidade. Sem ter algum acesso inicial às referências, que coloquem em perspectiva essa imagem, não haveria sentido de se adaptar um mapa dessa forma que, além de tudo, contém referências históricas e arquitetônicas para a criação de uma atmosfera histórica que se perderia no jogo.
A figura 2 é um mapa de Olissippo (atual Lisboa), produzido no final do século XVI.[2] Escolhi esse mapa, especificamente, tanto pela similaridade da coloração e perspectiva visual e aparência como pela semelhança mais técnica na presença de legendas numeradas de localidades na cidade, representada no canto superior do mapa. O mapa em questão pode muito bem ser do mesmo estilo que o mapa da figura 1 buscou emular. A perspectiva é semelhante, colocada numa posição em que a cidade inteira se mostra visível, mas não perfeitamente vertical, para dar a impressão de que se trata de uma vista possível, uma que alguém poderia ter na experiência pessoal. Mesmo assim, as ruas e os monumentos ficam ambos destacados das demais construções retratadas, especialmente casas. Trata-se de um exercício que une paisagem e topografia — corografia (a reprodução de lugares através do que se pode ver e chama atenção aos olhos) e cartografia.
Figura 2 — Exemplo de mapa sobre plano urbano. Vista aérea de Lisboa desde o rio Tejo, por George Hoefnagel, 1598 |
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Fonte: BRAUN, Georg, 1540 Or, et al. Civitates Orbis Terrarvm. [Coloniae Agrippinae: apud Petrum à Brachel, sumptibusauctorum, to 1618, 1612] Mapa retirado da Library of Congress : www.loc.gov/item/2008627031/ |
O olhar de quem joga Pillars 2 é um derivado ou imita aquele olhar do visitante ou colonizador — que, passando a vista, consegue capturar o espaço racionalmente e adotar o curso que deseja, bem como adaptar seus objetivos de acordo com a organização espacial imediatamente compreensível. Isso é interessante, na medida em que fez parte da expansão das lógicas de dominação particulares do capitalismo, ainda que o mapear não seja de modo algum limitado à experiência capitalista.
As condições sócio-históricas que permitiram a criação do mapa real são as da expansão do capitalismo em sua fase mercantilista e da expansão da imprensa, como uma proto-indústria (ANDERSON, 2008). O efeito de um mapa como o de Olissipo era a apresentação da cidade para os que não a conheciam. Sua escala, ângulo de visão, legendas e detalhes buscam a eliminação imediata da estranheza antes mesmo da experiência pessoal do espaço representado. Salta à mente, portanto, o que Benedict Anderson (2008) apresenta em Comunidades imaginadas sobre o papel do mapa na construção dos nacionalismos modernos como identidades típicas dos processos de colonização e imperialismo, em especial, aqueles que o autor trata no livro mencionado, ou seja, os que foram imputados às sociedades e civilizações do Índico e Pacífico Leste. Anderson (2008) também sublinha uma diferença essencial entre os mapas produzidos por outras sociedades em relação àquelas envolvidas no processo de colonização mundial empreitado pelas nações europeias: a ausência da reprodutibilidade massificada que a invenção da impressa permitiu uma homogeneidade da imaginação do espaço, em que locais mundanos e sagrados, como a Meca do islã, que era um ponto a mais numa imagem com outros tantos pontos, “como Paris, Moscou, Manila e Caracas; a relação entre esses pontos indiferentemente laicos e sagrados era determinada por nada mais que uma linha reta calculada matematicamente” (ANDERSON, 2008, p. 236).
Como mencionado na introdução, o paralelo que busco traçar desde um jogo digital como Pillars of Eternity 2: Deadfire até Benedict Anderson (2008) não é, então, limitado a semelhanças no aspecto estético do mapa, mas agrega a intersecção da representação desse jogo digital (um entre muitos outros do tipo) com o escopo histórico das comunidades investigadas em Comunidades imaginadas. POED constrói um universo fictício bastante inspirado nas sociedades do Sul Asiático e do Pacífico[3], e tem uma sobreposição com o foco do livro supramencionado de Benedict Anderson. Para além da inspiração estética e temática das sociedades do Pacífico SUl em Anderson (2008), Pillars of Eternity 2: Deadfire é um jogo que se enquadra numa tendência contemporânea de videogames, que busca uma perspectiva mais crítica em relação aos processos de colonialismo, dialogando diretamente, no nível de sua intenção expressa, com discursos do senso comum em que se debatem termos decoloniais (FELKZAK, 2020). Ele realiza um debate ilustrativo acerca de POED, trazendo e resumindo referências importantes do debate decolonial internacional. Sua perspectiva centraliza noções de dominação agonística e subjugação necropolítica de Achille Mbembe (2016) tanto acerca das representações da dominação na narrativa do jogo como nos elementos de jogabilidade.
Foi, portanto, a determinação inicial desse objeto de investigação — incialmente por se enquadrar como um CRPG relativamente recente — que o caminho para pensar o videogame buscou em Anderson (2008) um ponto de partida. Dessa maneira, então, pode-se incorporar a conexão histórica da reprodução de imagens no capitalismo com a reprodução do capitalismo em si.
Em Anderson (2008), o mapa ocupa, na expansão das sociedades mercantis e depois capitalistas, um lugar importante na solidificação da dominação dos impérios colonialistas europeus sobre territórios ocupados ao redor do mundo. O mapa, nesse contexto histórico e social, encarrega-se da missão do esclarecimento de subjugar o desconhecido a símbolos legíveis (ADORNO; HORKHEIMER, 1985) e a formas manuseáveis e manipuláveis:
Tal como os censos, os mapas de tipo europeu operavam com base em uma classificação totalizante, que levou os seus produtores e consumidores burocráticos a políticas de consequências revolucionárias. Desde a invenção do cronômetro em 1761, por John Harrison, que permitiu o cálculo exato das longitudes, a superfície curva de todo o planeta havia sido submetida a uma grade geométrica que enquadrava os mares vazios e as regiões inexploradas dentro de quadriculados medidos com precisão. A tarefa, por assim dizer, de “preencher” esses quadriculados ficava a cargo dos exploradores, topógrafos e soldados. No Sudeste asiático, a segunda metade do séc. XIX foi a idade de ouro dos topógrafos militares — coloniais e, pouco depois, tailandeses. Eles se mobilizaram para deixar o espaço sob a mesma vigilância que os recenseadores tentavam impor às pessoas. Triangulação por triangulação, guerra por guerra, tratado por tratado, assim avançava o alinhamento entre mapa e o poder. (ANDERSON, 2008, p. 239, grifo nosso).
O alinhamento entre o poder e a produção de símbolos faz parte desse conjunto de práticas políticas e manifestações culturais que começam, já no período estudado por Benedict Anderson (2008), a ter aspectos da reprodução em massa e que se tornaria uma realidade persistente da produção cultural em todo o mundo capitalista.
Em um videogame como POED, o mapa serve de ferramenta para criar e ambientar um universo de fantasia e cumprir a função de encantar quem o joga. Entretanto, ainda que seja mera casualidade que identifica o período histórico que inspira o videogame com aquele pesquisado por Benedict Anderson (2008), o que não é casual é, justamente, a sua função, que vai além de ser um referente culturalmente compreensível para o público-alvo do jogo. Na perspectiva apresentada até o momento, o mapa no jogo digital de fantasia, como POED, tem a mesma função de eliminação do estranho, mesmo que ainda em prol da ficção, da criação do universo fantástico que deve ser, ao mesmo tempo, legível e compreensível para o jogador. É essencial para a experiência de jogo que se demonstrem os elementos familiares e que situem a pessoa que joga num ambiente que ela possa aprender as regras desse jogo.
De toda as formas, a eliminação da estranheza e as conexões com as sociedades imperialistas, por exemplo, neste caso, só tem importância se vistas no contexto histórico de produção, não do mapa, mas do desenvolvimento dos videogames como tecnologia e na história da indústria que gera mercadorias da cultura.
A produção de jogos que são, até certo ponto, conscientes e críticos de processos históricos, como o imperialismo de potências europeias e mesmo dos Estados Unidos, vem como uma certa surpresa se se toma em consideração o processo de desenvolvimento dos jogos dentro de um outro processo imperialista mais recente.
A história dos videogames é parte da história do imperialismo. Em Games of Empire: global capitalism and video games, os autores Nick Dyer-Witheford e Greig de Peuter (2009) apontam para a história do desenvolvimento desses dispositivos culturais e tecnológicos como parte da história do desenvolvimento do imperialismo estadunidense no período pós Segunda Guerra Mundial. O texto desses autores é central nas discussões sobre videogames por apontar como essa tecnologia, e forma de entretenimento, surge num contexto social específico (o dos EUA, durante a Guerra Fria) e como estiveram sempre próximos das mudanças nas formas de exploração de trabalho e criatividade em nível global. Com base na teoria do império de Hardt e Negri (HARDT; NEGRI, 2001), os autores destacam a importância de compreender o surgimento dos jogos digitais no contexto do que chamam de capital intelectual e do maquinário de guerra norte-americano durante a Guerra Fria, e a capacidade do império estadunidense de impor suas formas culturais ao redor do globo.
Dyer-Witheford e Peuter (2009) argumentam que, historicamente, aquilo que hoje está presente como passatempo, do console ao celular inteligente, surgiu como fruto do que ocorreu no interior do Pentágono na década de 1970, especificamente como fruto da busca por passatempos dos intelectuais envolvidos no desenvolvimento de tecnologias de guerra.
A escalada da Guerra Fria e a necessidade de investir em tecnologias digitais criaram espaços (que vão desde oficinas no próprio Pentágono até o financiamento advindo dos fundos da máquina de guerra estadunidense para diversas universidades) em que a atividade intelectual, em especial a de engenharia computacional, pôde se desenvolver de maneiras mais abertas e fundadas. Nesses espaços, passatempos, como certos jogos digitais, começaram a surgir, embora não sejam necessariamente a origem primeira desses jogos, o que é difícil de se demarcar. Nas palavras dos autores:
Todos os candidatos ao título de “inventor(a) do vídeo game” — William Higginbothan, que fez o simples jogo de tênis num computador analógico em 1958, Steve Russel, que criou Spacewar em 1961 e Ralph Baer, que em 1966 concebeu o primeiro console de jogos conectado à televisão — foram empregados do complexo industrial-militar dos E.U. Esses trabalhadores estavam entre os primeiros convocados massivamente para o trabalho imaterial, aquele pessoal de elevada instrução tecno-científica para a guerra nuclear com a União Soviética. Seus lugares de emprego eram centros de pesquisa acadêmica na Universidade de Standford, no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (Massachusetts Institute of Technology, MIT) e outras universidades, as quais o Departamento de Defesa transmitiu fundos militares [...]. (DYER-WITHEFORD; PEUTER, 2009, p. 7).[4]
A ciência da computação — e a criação de jogos digitais — que nasceu dos esforços de espionagem, inteligência e tecnologia armamentista da Segunda Guerra, cresceu entre confins herméticos que pensavam o impensável conflito nuclear entre aquelas superpotências da Guerra Fria. A tecnologia para a guerra e a tecnologia do entretenimento da indústria cultural são as mesmas no que diz respeito ao surgimento dos videogames. Além do jogo aqui em foco, Games of Empire, outro exemplo é a criação do tão divulgado e jogado, Tetris, que até certo ponto se tornou um símbolo dos jogos digitais como um todo, em que o encaixe de blocos é criado justamente no interior do Kremlin. Um dos argumentos que guia a explicação de Dyer-Witheford e Peuter (2009) é que os videogames foram se popularizando pelas redes de informação no interior dos centros de pesquisa e investigação tecnológicas (protótipos da internet), em meios sociais e intelectuais, não só conectados diretamente com os aparatos de guerra, mas também nos meios dos movimentos libertários (e em geral contrários às guerras da Coréia e do Vietnã) de jovens entusiasmados pelas possibilidades do computador (DYER-WITHEFORD; PEUTER, 2009).
Os jogos digitais tornam-se definitivamente mercadoria, ao menos no sentido de que são produzidos em massa, quando a empresa Atari efetiva o desenvolvimento de um console específico: um computador voltado exclusivamente para os jogos eletrônicos. A Atari é formada diretamente em conexão com laboratórios financiados pelo exército estadunidense. Ela é uma das empresas que se utiliza de novas formas de trabalho, extraindo a criatividade e o tempo de lazer de seus funcionários, como expressam os autores: “Atari paradoxically made this ‘refusal of work’ its key to commercial success. With a ‘work smart, not hard’ philosophy […]” (DYER-WITHEFORD; PEUTER, 2009, p. 11). A forma de trabalho adotada pela Atari entra em conflito com lógicas de custo-benefício e baixo risco quando é vendida à gigante da comunicação Warner. Desse grande negócio, surgem várias companhias que moldam a forma de produção de videogames até hoje, como a Actvision. As lições aprendidas por essa nova forma de trabalho e por esse conflito de regimes laborais são universalizadas nos meios das indústrias criativas, como na Eletronic Arts, nas empresas do vale do silício etc.
Além dos novos arranjos e relações de trabalho, é importante lembrar que o maquinário da guerra global, centrado no Pentágono, nunca deixou de investir pesadamente na produção e no desenvolvimento dos videogames. Os autores acima citados afirmam que tal investimento dá-se, tanto na produção de jogos virtuais que simulem, prevejam e treinem soldados, como na propaganda ininterrupta através do financiamento e encomenda de videogames, especialmente após o início da Guerra no Iraque.
De modo não coincidente, a conexão entre jogos digitais e forças militares também marcou o processo inicial da história dos jogos eletrônicos no Brasil desde a década de 1980. No contexto das leis de reserva de mercado para equipamentos tecnológicos, durante a ditadura militar, a inserção dos jogos eletrônicos deu-se de forma relativamente mais gradual no país (SOUZA, 2015), uma vez que não era possível a importação “livre” deste tipo de mercadoria, nem a produção dos consoles e nem dos próprios jogos. Uma ligeira mudança ocorre quando a empresa Tec Toy, conseguiu permissão para realizar uma parceria com outra empresa de capital nacional já presente no polo industrial de Manaus.[5] Assim, começa o processo de traduzir ou dublar e trazer para o país títulos como Phantasy Star (PHANTASY, 1987; PHANTASY, 1991), jogo que mescla elementos clássicos da fantasia (as missões em grupos de personagens, a progressão por ganho de experiência) com elementos estéticos de ficção científica.
Simultaneamente, em meio a mudanças radicais dos setores industriais e das lutas trabalhistas, o videogame enquanto mercadoria e entretenimento ganha significativamente características esteticamente mais afáveis nas mãos de empresas japonesas. Estas adotam estéticas do estilo de quadrinhos “mangá, que fabricam personagens instantaneamente marcáveis desde o Pac-man do jogo Pac-man” (PAC-MAN, 1980) até o personagem ainda atual, Mário, da Nintendo. Para os autores de Games of Empire, a integração de sucesso das indústrias japonesas ao mercado dos jogos eletrônicos trouxe a capacidade de produzir narrativas gráficas, que faltavam aos jogos estadunidenses, e que permitem, entre outras coisas, a identificação imediata do jogo pela reprodução de um de seus personagens icônicos. Significativamente, também informam detalhes sobre o meio social que os produziu:
Parte do charme dos jogos de Mario é o caprichoso contraste entre a materialidade pesada, a materialidade industrial do ofício do nosso herói, a encanação (sublinhada pela proeminência de canos como modo de transporte [no jogo]), e a leveza, os saltos, corridas, pulos, acrobacias, e a exuberância explorativa com que ele [Mario] pode, com habilidade suficiente de quem joga, ser feito mostrar enquanto se arremessa de plataforma para plataforma. Mario era originalmente “Homem Pulo”. O contraste, sugerimos, cristaliza o momento da transmissão cultural entre duas épocas. Uma é a era do trabalho industrial em massa, conhecida geralmente como fordismo, quando ser uma pessoa comum era encarar a vida comprometida de uma forma ou outra com o mundo da produção manufatureira, fábricas, maquinário pesado e linhas de montagem. A outra é a vida pós-industrial, pós-fordista dos trabalhos mediados por computadores, redes, e pela virtualidade. (DYER-WITHEFORD; PEUTER, 2009, p. 3).[6]
Dessa forma, na argumentação apresentada pelos autores, jogos digitais não podem evitar de expressar seu próprio tempo naquilo que transmitem e comunicam, nem tampouco na interação mecânica-digital com quem opera os jogos; e não evitam essa expressão por forças mais amplas que as demandas mercadológicas que impulsionam sua produção — é algo que surge, por vezes, apesar do esforço de criação imaginativa do jogo. A indústria dos videogames solidifica-se quase que imediatamente como uma indústria globalizada, embora o consumo e o acesso aos jogos sejam extremamente desiguais, dependentes da possibilidade de acesso às tecnologias digitais. Em especial, quando se fala do consumo de consoles de videogames, que se promovem como grandes bens desejáveis de tecnologia de ponta, pode-se perceber, de forma mais nitidamente, a desigualdade de acesso tecnológico e digital no mundo.
A produção dos consoles é marcadamente monopolística, com basicamente três empresas hoje, sendo elas a Sony com o Playstation, a japonesa Nintendo com os consoles de mesmo nome, além dos portáteis game boys, e a relativamente mais recente nesse ramo, Windows com o XBOX. Todas elas centradas no Japão ou nos EUA, excluindo com relativa facilidade competidoras de outros países. Essa situação só começa a mudar com a popularização dos smartphones e redes de internet móveis, quando a China toma a frente no desenvolvimento de softwares de videogames e no consumo dos chamados mobile games.
Os autores de Games of Empire lembram também como cinema e videogame se entrelaçam quando se observa a questão das formações jurídicas e econômicas sobre a propriedade intelectual, citando como exemplo a gigante Eletronic Arts (EA). Eles demonstram a restruturação da cadeia produtiva de grandes empresas de videogame em dois setores, sendo eles os de produção dos consoles ou máquinas e o de desenvolvimento e licenciamento de jogos para os respectivos suportes computacionais, principalmente desde a década de 1990. A EA foca na aquisição de desenvolvedoras e no desenvolvimento de jogos digitais, assimilando a importância de personagens reconhecíveis e icônicos para a venda de jogos digitais. A empresa passa a adquirir os direitos exclusivos ou a propriedade intelectual de títulos famosos de televisão e cinema, para o ganho dela e dos estúdios cinematográficos. Complementam Dyer-Witheford e Peuter (2009):
Através de arranjos de licença, personagens, enredos e conceitos de jogabilidade de outros média foram integrados nos [vídeo]games. Enquanto a EA [Eletronic Arts] não estava sozinha nisso, foi tanto pioneira como praticante especialista da abordagem baseada em “licenciamentos” para o desenvolvimento de jogos. Tomando apenas dois exemplos recentes, a EA adquiriu os direitos de produzir jogos do blockbuster “O Poderoso Chefão” e de livros como “O Senhor dos Anéis”, todos os quais venderam milhões de cópias. Por certo, sugeriu-se que as vendas de tais jogos superam as receitas de suas bilheterias. […] (DYER-WITHEFORD; PEUTER, 2009, p. 45).[7]
Um outro elemento a ser destacado é a estética visual, que é um dos componentes centrais dos videogames. Como os autores acima mostram diversas vezes, o contexto histórico e social de produção influi diretamente no percurso dessa tecnologia como uma tecnologia dependente da visão e da prevalência das imagens. As conexões entre jogo e cinema são apenas um dos aspectos da profunda interrelação entre tudo que é digital e as produções não só de entretenimento, mas de arte também, o que requer um outro debate.
Dada a história dos videogames como resumida por Dyer-Witheford e Peuter (2009), se os videogames produzem imagens das quais dependem, não o fazem isentos de um papel que é muitas vezes diretamente político e ligado aos interesses dos poderes imperialistas. Lembro aqui novamente de Benedict Anderson (2008), que busca mostrar as formas históricas de formação dos nacionalismos como forma social moderna, que tanto estratificam socialmente as sociedades colonizadas e colonizadoras quanto unem e solidificam laços sociais de grupos dispersos geograficamente. O autor refere-se especialmente aos casos da Holanda, França e Inglaterra e no pacífico leste — Indonésia, Sri Lanka, Índia, Filipinas, mas inclui casos das colônias nas Américas. Ele cita o caso dos burocratas e funcionários estatais que, ao viajarem pela extensão dos impérios, reconhecem-se e se identificam nos usos da simbologia nacional. Em contraponto, há grupos locais que disputam pela independência dos territórios ocupados e que agora são reconhecíveis nesse mesmo tipo de reprodução simbólica (ANDERSON, 2008).
Em Comunidades imaginadas, fica claro que um dos eixos centrais do colonialismo e imperialismo, dos séculos XVI ao XIX, era o que Anderson (2008) chama de capitalismo tipográfico, representado pelos avanços técnicos direcionados da criação de mapas, censos e museus, cujos efeitos produzem tipos específicos de imagens e símbolos, que são serializados, uniformizados, e são identificadores de identidades “distintas”:
[...] mutualmente interligados, censo, mapa e museu iluminam o estilo de pensamento do Estado colonial tardio em relação aos seus domínios. A “urdidura” desse pensamento era uma grade classificatória totalizante que podia ser aplicada com uma flexibilidade ilimitada a qualquer coisa sob o controle real ou apenas visual do Estado: povos, regiões, religiões, línguas, objetos produzidos, monumentos, e assim por diante. O efeito dessa grade era sempre poder dizer que tal coisa era isso e não aquilo, que fazia parte disso e não daquilo. Essa coisa qualquer era delimitada, determinada e, portanto, em princípio enumerável [...] A “trama” era o que podemos chamar de serialização: o pressuposto de que o mundo era feito de seriais reprodutíveis. (ANDERSON, 2009, p. 253, grifo nosso).
A produção contínua de imagens que solidificavam a integração social nas sociedades coloniais se replicava na cultura, nos romances e nos jornais, a exemplo de um crime escandaloso na metrópole que ocupará parte da mesma página em que se noticia uma vitória das forças armadas em um novo território etc. Essas imagens também ajudavam a constituir formas sociais, cada vez mais indistintas, da própria sociedade de produzir imagens e representações visuais de si mesma e de seus sujeitos.
A imprensa é uma tecnologia que detém a atenção de Anderson (2008), sem a qual a reprodução fácil de mapas e de tantas outras imagens não seria possível. O autor aponta como a imprensa é, num certo sentido, uma das primeiras indústrias modernas, e o livro, juntamente com o jornal, as primeiras mercadorias no sentido do materialismo histórico. Destaca como figuram mudanças de comportamento na individualidade solitária da leitura, no consumo maciço e diário do jornal — “a forma extrema do livro” (ANDERSON, 2008, p. 67) uma vez que é produzido e distribuído através dos domínios imperialistas, e era integral na manutenção da identidade nacional dos impérios.
A produção de imagens em série, ou a serialização como característica da socialização (dominação colonial e das revoltas anticoloniais) remete não só à questão da “obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” de Walter Benjamin (1994), como também no seu escrito O narrador, em que se pode ver como o autor lê a prevalência do jornal sobre as formas narrativas anteriores. Para Benjamin (1994, p. 203), a imprensa, central para a consolidação da burguesia, traz consigo duas formas relativamente novas (ou renovadas) de transmissão e criação de imagens: a novela e a notícia, sendo esta última a razão de ser dos jornais, e que introduz uma experiência distinta daquela que a precede (a narrativa). Isso ocorre porque a informação impõe a claridade da verificação rápida, imediata — porém não necessariamente verdadeira —, que precisa ser compreensível para seus leitores de forma imediata, já processada.
Além disso, a própria centralidade social da imagem conecta os dois autores aqui tomados como referências centrais: Anderson (2008) e Benjamin (1994). Como mencionado anteriormente, Benedict Anderson demonstra como as mudanças tecnológicas na esfera da cultura contribuíram com a consolidação do nacionalismo enquanto modelo identitário nos últimos séculos, e o tema da centralidade da imagem nessas sociedades perpassa sua obra, sendo central em seus últimos capítulos. Particularmente, é a imagem da sociedade — a representação imagética que as sociedades fazem de si e de outras — que não é apenas sintoma, mas contribuidora de processos de sociogênese (ELIAS, 1993) de novas figurações sociais, novos grupos, especialmente o dos agentes de inteligência e burocracia dos impérios e colônias com que trabalhou. Associa-se a isto, então, a análise de Walter Benjamin (1994) sobre a reprodução social de imagens da própria sociedade moderna e a centralidade da imagem para o sujeito sob o capitalismo. O próprio Anderson (2008) parece seguir Benjamin (1994) quando remarca como exemplo a reação de Hegel sobre o jornal implicar numa mudança de comportamento — a leitura matinal e individual — como uma oração, uma relação religiosa, porém, destituída do sagrado (ANDERSON, 2008; BENJAMIN, 1994).
Em Benjamin (1994), as mudanças históricas materiais — que não são separadas, mas as mesmas que as transformações culturais — desde o século XVIII, desdobram-se em torno desse processo de fim da narrativa e centralidade da notícia, do romance e de outras formas de descrever, reproduzir, desenhar ou fotografar imagens (como informações, emoções e expressões autocontidas em mônadas ou fragmentos). Jaeho Kang (2009) resume bem essa ideia:
Um dos aspectos distintivos da crítica da cultura de Benjamin deriva do fato de ser uma crítica que corresponde às transformações das condições de percepção acarretadas pelo desenvolvimento dos meios de comunicação. [...] Ele localiza a questão da imagem (dasBild) no centro da problemática moderna ao refletir sobre a crise da “comunicabilidade da experiência” (dieMitteilbarkeitderErfahrung). [...], Benjamin está mais interessado pela forma como o desenvolvimento da tecnologia de comunicação influenciou a habilidade de as pessoas comunicarem suas experiências. Enfatiza também os traços sociais da emergência da comunicação mediada (KANG, 2009, p. 215).
Kang (2009) expressa também que duas formações ou constelações conceituais de Benjamin (1994) para sua crítica da cultura, giram em torno da dinâmica entre imagem dialética e fantasmagoria — que é a própria imagem da sociedade ou representação imagética dela. Portanto ele entende que a análise de Benjamin sobre a cultura moderna repousa em parte nesses termos de imagem, fantasmagoria, progresso técnico e tecnologia. Assim, voltamos não só ao elo entre mapa e representação social e cultura, mas aos próprios jogos digitais. Mais que isso, os mesmos processos materiais que são o signo da experiência social capitalista moderna para Benjamin (1994) são os que decorrem na invenção dos jogos digitais tal como são, e se conectam com as formas de sociabilidade que permitem a apreciação dessas mercadorias-fantasmagorias.
Conclusão
Estou atentos ao fato de que há grande distância temporal entre o problema que Benjamin (1994) aborda, e mais ainda àquele que Benedict Anderson (2008) dedica atenção e o surgimento dos videogames. Contudo entendo que as ideias e as reflexões de ambos os autores me possibilitam realizar uma leitura do fenômeno dos jogos digitais, não apenas como imagens da sociedade, mas como vínculos morais entre sociedade e indivíduos, como comunidades imaginadas com um papel de articular certos tipos de valores e de moralidade adequados à nossa vida social hoje.
O percurso deste artigo buscou oferecer modos de pensar o caso dos videogames — apenas como uma dessas formas digitais da vida social. Pensar sua existência como produções de imagem puramente visual é apenas um breve ponto de partida para continuar o debate sobre como abordá-lo em seus aspectos internos. Enquanto media, videogames vão bem além do visual, na medida em que demandam interação, demandam sinais ou inputs de quem os joga, e demandam respostas aos próprios estímulos (sonoros, tácteis, visuais) das máquinas que geram os jogos. Tal característica pode e deve ser analisada e pensada em estudos mais aprofundados sobre como os jogos integram culturas de forma mundializada e quase ubíqua, tendo em vista que cada vez mais tecnologias mais acessíveis se tornam capazes de reproduzi-los, como os celulares inteligentes atuais.
A compreensão de videogames e outras formas culturais não se pode dar apenas olhando-se para o objeto isolado, e os estudos que buscam compreender, por exemplo, o comportamento e potencialidade dos jogadores são centrais para qualquer interesse acadêmico e científico do lugar em que o videogame ocupa na sociedade. A observação do objeto cultural levanta o problema da mediação, tanto do objeto cultural como dos níveis de análise: “em outras palavras, como passamos de um nível da vida social a outro, do psicológico ao social e, na verdade, do social ao econômico?” (JAMESON, 1985, p. 5). Nosso problema é o mesmo descrito por Jameson com essa pergunta, a ser respondida com a própria observação sobre a sociedade como sociedade da luta de classes, do capitalismo tardio, desejos, pessoas, lugares, atividades (JAMESON, 1985, p. 305).
Referências
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DYER-WITHEFORD, Nick; PEUTER, Greg de. Games of empire: global capitalism and video games. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2009.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. vol . 1.
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MBEMBE, Achille. Necropolítica. Art & Ensaios, Rio de Janeiro, n. 32, p. 123-151, 2016. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993/7169. Acesso em: 7 maio 2023.
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SOUZA, Ricardo Vinicius Ferraz de. Tradução e videogames: uma perspectiva histórico-descritiva da localização de games no Brasil. Dissertação. 2015. (Mestrado em Tradução) — Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.
Recebido em: 15/02/2023.
Aceito em: 21/04/2023.
DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n30.65842.p103-122
* Doutor em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Brasil. E-mail: gabriel-m8@hotmail.com.
[1] Contém as seguintes informações: tipo de localidade (cidade portuária colonial); população (3.200 habitantes); religiões — referente aos deuses da mitologia do jogo mais influentes no local: Ondra, Woedica, Eothas; importações (trigo, sedas etc.). Rolando a coluna para baixo, outras informações surgem: governo (donataria ducal); governador (Clário, que é um personagem interagível no jogo); raças: Amaua, povo oceânico e outros. O povo oceânico se refere a humanos que, no jogo, são originários de certas populações marítimas e têm a pele negra ou escura em geral).
[2] Foi produzido sob encomenda para o livro Civitates Orbis Terrarvm de Georg Braun, e desenhado, em parte, pelo pintor George Hoefnagel, num volume que reúne dezenas de outros mapas de cidades europeias e de outros continentes, numa empreitada especificamente pensada por seu valor mercantil, além do científico. Lucia Nuti (1994) nota como Braun, o principal autor e idealizador do livro, buscou preencher uma demanda por mapas acessíveis e informativos, e que justificou para seus editores que buscava consertar o maior empecilho na venda de mapas: o tamanho, que foi resolvido com a redução dos mapas para caberem num volume de livro e a representação, que pode ser abstrata demais, se apenas científica, e pouco informativa, se corográfica. Almejando um público leitor que ia do viajante ao mercador, do militar ao catedrático, Braun buscou tornar claro que seu trabalho era baseado sempre em observação direta, e não em representações abstratas ou relatos escritos. Para isso, seus pintores foram realmente a cada cidade retratada, tratava-se, portanto, de representações que dessem o entendimento total da cidade para quem vê, de detalhes arquitetônicos a rotas de locomoção (NUTI, 1994).
[3] Cf.: https://www.pcgamer.com/pillars-of-eternity-2-narrative-designer-talks-worldbuilding-and-how-to-make-the-text-easier-to-digest/. Acesso em: 15 jan. 2020.
[4] Trecho traduzido livremente: All contenders for the title “inventor of the video game”— William Higginbotham, who made a simple tennis game on an analog computer in 1958, Steve Russell, who created Spacewar in 1961, and Ralph Baer, who in 1966 devised the first TV-connected game console — were employees of the U.S. military-industrial complex. These workers were among the first mass draft of immaterial labor, the highly educated techno-scientific personnel recruited to prepare, directly or indirectly, for nuclear war with the Soviet Union. Their workplaces were academic research centers at Stanford University, the Massachusetts Institute of Technology (MIT), and other universities, to which the Department of Defense streamed military […].
[5] Tal planta industrial funcionava como montadora da Mitsubishi e Akai. Cf.: https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=10721&anchor=4062635&origem=busca&originURL=&pd=e97a555b757d8dee4ad43f148fd4887a. Acesso em: 20 ago. 2020.
[6] Trecho traduzido livremente: Part of the charm of Mario games is the whimsical contrast between the weighty, industrial materiality of our hero’s ostensible trade, plumbing (underlined by the prominence of pipes as a mode of transportation), and the weightless, leaping, running, bouncing, acrobatic, explorative exuberance he can, with sufficient player skill, be made to display as he hurtles from platform to platform. Mario was originally “Jumpman.” The contrast, we suggest, crystallizes a moment of cultural transition between two epochs. One is the era of mass industrial work, often known as Fordism, when to be an everyman was to face a life committed in one way or another to a world of manufacturing production, factories, heavy machineries, and assembly lines. The other is the postindustrial, post-Fordist life of jobs mediated by computers, networks, and virtuality.
[7] Trecho traduzido livremente: Through licensing arrangements, characters, story lines, and play concepts from other media are integrated into games. While EA is hardly alone in this, it is both a renowned pioneer and expert practitioner of a license-based approach to game development. To take just a couple of recent examples, EA purchased the rights to make games from blockbuster films like The Godfather and books like The Lord of the Rings, all of which have sold in the millions. Indeed, it has been suggested that as game sales continue to surpass box-office receipts […].
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