DA ESTRUTURA À (RE)PRODUÇÃO BUROCRÁTICA: a produção social da indiferença no processo de remoção dos moradores da comunidade Jardim Edith e Água Espraiada em São Paulo nos anos de 1990

FROM STRUCTURE TO BUREAUCRACTIC (RE)PRODUCTION: the social production of indifference in the process of removal of residents of the community Jardim Edith and Água Espraiada in São Paulo in the 1990s

 

Rodrigo Ferreira*

 

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n30.65843.p39-59

 

 

 

 

Resumo

Este artigo objetiva discutir elementos teóricos e hipotéticos até aqui refletidas em uma pesquisa em andamento (dissertação de mestrado), partindo de recursos da teoria crítica, sobre a produção social da indiferença, inserida nos discursos de projetos políticos de expansão ou manutenção do capital. Imbuídos de uma racionalidade, reproduzem e centralizam a preocupação com o crescimento econômico sob a tutela de um bem coletivo, mas face a interesses individuais. Para traçar o contexto e a operacionalização do processo de expulsão dos moradores das comunidades Jardim Edith e Água Espraiada no município de São Paulo, partiremos dos dados etnográficos e das entrevistas coletadas e apresentadas na obra Parceiros da exclusão, de Mariana Fix (2001). Visualizamos que a produção social da indiferença, promovida em três etapas, é alicerçada em um conflito de interesses e operada no discurso dos trabalhadores incumbidos, através de uma moral, a provocar a saída dos moradores das favelas para que a expansão do capital possa ocorrer.

Palavras-chave: indiferença estrutural; produção social da indiferença; gentrificação; teoria crítica.

 

Abstract

This article aims to discuss theoretical and hypothetical elements, until now reflected in ongoing research, on the social production of indifference inserted in the speeches of politi-cal projects of expansion or maintenance of capital. Within a  rationality, they reproduce and centralize the concern with economic growth under the protection of a collective wellness, but in the face of individual interests. In order to outline the context and operationalization of the process of expulsion of the residents of the Jardim Edith and Água Espraiada communities, we will start from the ethnographic data and interviews collected and presented in the work “Parceiros da Exclusão” by Mariana Fix. We can observe that the social production of indifference, promoted in three stages, is based on a conflict of interests and operated in the speech of the in-line workers, through a moral, to provoke the exit of the residents of the favelas for the expansion of the capital.

Keywords: structural indifference; social production of indifference; gentrification; critical theory.

 

Introdução

 

Este artigo analisa a produção social da indiferença a partir de narrativas, discursivas ou não, inseridas em projetos ou situações que se coadunam com uma lógica racional de progresso ou de desenvolvimento econômico. A análise proposta procura se esquivar de avaliações morais, no sentido de julgar o que é correto ou incorreto, focando-se nas estratégias que possuem um núcleo ontológico, um modus operandi próprio de uma racionalização[1] do sistema político, econômico e desenvolvimentista do capitalismo, para operacionalizar demandas individuais e lógicas de uma reprodução do capital,[2] sob o jugo de um discurso, uma prática ou bem coletivo. Para tanto, partimos de um caso situacional que nos auxilia a entender a condução discursiva e as ações empregadas para atingir o objetivo e interesse de um grupo detentor do capital econômico e a propagação de uma opinião pública.

Partiremos do trabalho de Mariana Fix (2001), Parceiros da exclusão, pois ele nos parece apresentar as bases narrativas, documentais e etnográficas para atingir nosso objetivo. Seu estudo adentra na comunidade Água Espraiada, hoje avenida Berrini, e a Faria Lima em São Paulo — o estudo agrupa informações e dados secundários e primários referentes aos anos de 1970 e 1990 — e acompanha o processo de planejamento para a requalificação do espaço, proposto por agentes do capital estrangeiro que, frente à ocupação e a lotação do então centro financeiro da cidade, a Avenida Paulista, estimulam e aceleram o Estado para o desenvolvimento de projetos de expansão em outras regiões da cidade.

Parte da questão motivadora proposta por Fix (2001) acompanha o processo de ocupação e os embates que surgiram como efeito das investidas do capital e do projeto Operações Urbanas Consorciadas (OUCs). A autorização proposta pelo OUCs legitimou a parceria público-privado, culminando em ações para remoção das ocupações, que envolveram violência simbólica e física, além das estratégias da mídia em não divulgar as demandas, necessidades e questões dos residentes da comunidade Água Espraiada. Os dados fornecidos por Fix (2001) nos auxiliaram a entender as estratégias promotoras do que conceituamos como produção social da indiferença. Eles referem-se à operacionalização da ação para a remoção, o que corrobora com algum tipo de política de exclusão.

O problema central que mobiliza a pesquisa é gestado a partir das críticas elaboradas por Simmel (2005), nos seus estudos sobre a modernidade e a produção da apatia, que a vida nas cidades grandes provoca no indivíduo. Também sobre a racionalidade,[3] inserida na indiferença provocada pelo excesso de estímulos e informações para operacionalização do capital, conforme as indagações trazidas por Lipovetsky (2022) e, por fim, a crítica de Cohn[4] (2006) e Bauman (1998) frente ao grande poderio de grupos sobre a vida e a mutabilidade do espaço.

A indiferença não aparece como uma questão inédita na sociologia nem apenas a partir de uma abordagem única. É tangenciada na crítica à modernidade feita por Marx (2011), quando elabora em O capital os elementos que constituem a sua noção de alienação e de sua funcionalidade estrutural para a reprodução do capitalismo. Em Adorno e Horkheimer (1985), ela se apresenta na crítica estabelecida por uma lógica de racionalização inserida nos processos de troca no mercado. Gramsci (2020) trata da indiferença pela origem das pessoas ou das críticas e repulsas ao se posicionar contrário àqueles que manifestam comportamentos apáticos diante de questões políticas ou problemas sociais.

Em estudo recente, Herzfeld (2016) busca entender os elementos de uma normatividade imbricada na burocracia e como sua razão é promotora de processos de distinção. A pergunta-guia do autor o faz indagar como, a partir do contato entre pessoas que precisam acessar equipamentos de saúde — ou qualquer outro equipamento do Estado — sob necessidade urgente, encontram a negação ou a negligência daqueles que estão atuando sob a égide do respeito ao processo burocrático.

Bauman (1998) nos apresenta outra forma de operacionalização da indiferença, comparando-a com a análise proposta por Herzfeld (2016), em que a matriz da razão opera de maneira semelhante. Ao analisar os processos utilizados durante o Holocausto, o autor visualiza a atuação dos atores reproduzindo uma ação pautada na burocracia racional. A análise reflete sobre a concepção de normalidade nas pessoas, pois entende  que elas “passariam facilmente em qualquer peneira psiquiátrica conhecida, por mais densa e moralmente perturbadora. Isso também é teoricamente intrigante, em especial quando visto em conjunto com a ‘normalidade’ daquelas estruturas da organização que coordenaram as ações desses indivíduos normais no empreendimento ao genocídio” (BAUMAN, 1998, p. 39, grifo do autor). Bauman (1998) se refere aos acontecimentos e fatos desenrolados no Holocausto, mas que se reproduzem — não apenas em uma finalidade extremada — e estão presentes no cotidiano. Podemos ver a situação apresentada por Bauman também em Herzfeld (2016, p. 21), quando apresenta a “exclusão social, cultural e racial” como simbologias utilizadas na promoção de uma indiferença.

A escolha do objeto de análise deste artigo vai ao encontro de elementos racionais produtores e operadores de uma indiferença face à vida, presentes na condução de projetos políticos e empresariais. As ações da construção de duas grandes avenidas inserem uma lógica de modernização e de um bem coletivo, a partir de agentes produtores e detentores de grande capital financeiro, diretamente interessados em espaços para a construção de um novo centro econômico. Esse interesse encontra unicidade e fatores motivacionais na agenda do governo, que objetiva a expansão da cidade.  Esse cenário desperta situações de conflitos entre os dois lados interessados. De um lado, o Estado com o capital estrangeiro;  do outro, os moradores das favelas. O cenário de conflito nos permitirá analisar e entender como ocorreram os operadores de uma indiferença.

As perguntas-guia que orientam a pesquisa são as seguintes: (i) Como os operadores de uma racionalidade produtora de uma indiferença foram arquitetados no processo de exclusão dos moradores das favelas na Zona Sul do município de São Paulo durante as Operações Urbanas Consorciadas na década de 1990? (ii) Como os elementos de uma moral, presentes nos discursos dos profissionais atuantes para a remoção, ganham força e diferentes representações para os grupos atingidos direta e indiretamente?

Para responder às perguntas, partiremos dos recursos metodológicos da teoria crítica, procurando desvendar a racionalidade, a moral e aspectos de um comportamento normativo manifestado nas ações em que ocorre o fenômeno. Partimos da noção utilizada por Jaeggi (2019), ao pontuar que a teoria crítica é orientada pela noção da crise. Ele destaca que “essa compreensão adquire sua forma, assim como fizeram variantes prévias da crítica da ideologia, a partir de reflexões sobre a ontologia social de seu objeto, que é a própria estrutura das formas da vida” (JAEGGI, 2019, p. 79). Traçar a razão como problemática central aparece como uma tradição desde a primeira geração da Escola de Frankfurt, e é por intermédio dessa problemática que este texto se orienta.

Para visualizar essa racionalidade produtora de uma indiferença, desde suas formas de concepção às maneiras de operacionalização, o artigo está divido em dois tópicos: o primeiro se dedicará a descrever e analisar os processos políticos e articulações empresariais para o desenvolvimento do projeto de expansão da cidade e a construção de um outro centro financeiro; o segundo buscará mapear a operacionalização do processo a partir dos profissionais que atuaram para estabelecer as negociações de remoção da população residente das favelas.

 

Multifacetada face de uma indiferença

 

1 O preâmbulo estrutural

 

A construção de uma região comercial na capital paulista, nos anos de 1990, é relatada e captada por Fix (2001), que produziu Parceiros da exclusão no calor dos acontecimentos, registrando a expulsão dos moradores das comunidades Água Espraiada e Jardim Edith para dar lugar às construções do que é atualmente o principal centro econômico de São Paulo. A autora relata o interesse e a mobilização do empresariado estrangeiro em mover o centro comercial da Avenida Paulista para a Zona Sul como uma estratégia de distinção de classe.[5]

Durante o processo, a relação do Estado com o capital estrangeiro foi estabelecida a partir de acordos para a ocupação e produção de um espaço já ocupado. Algumas condicionantes, como a construção de estradas e espaços públicos, foram demandadas do poder público durante a elaboração dos contratos e concessões (NOBRE, E., 2009). A contrapartida do Estado levava a desocupar mais de 50 mil residentes da comunidade Água Espraiada e 12 mil do Jardim Edith (FIX, 2001; NOBRE, E., 2009; FRANCA, 2009).

Alguns processos de ocupação dos espaços partiram de uma agenda política, firmada em meados dos anos de 1980, que foi consolidada com a implementação das OUCs. Essas operações partiram do preâmbulo de que havia uma desregulamentação no uso e no controle do solo, além das associações, até então irregulares, entre o poder público e a iniciativa privada. Sobre as OUCs, Deák (2008 apud NOBRE, E., 2009, p. 204) diz que a sua criação representa “a entrada do neoliberalismo na política urbana nacional.” Essas intervenções estavam presentes no Plano Diretor (PD) que instituiu as parcerias público-privado (PPP) diante da escassez de recursos para acelerar a promoção da transformação urbanística.

As relações estabelecidas entre o Estado e a iniciativa privada pautavam-se em acordos, em que os fundos de investimentos garantiam a implementação de espaços públicos. Esses ganhos, vistos pelo Estado, encontraram em um processo de causalidade o fenômeno da gentrificação[6] e da segregação, que atinge grupos de moradores das favelas localizadas às margens do rio Pinheiros. Nos acordos, os fundos de investimento propuseram a doação de “uma área de 130 mil metros quadrados para a implementação de um parque dentro do próprio bairro, o Burle Marx, por meio de um instrumento denominado ‘Operação Interligada’” (FIX, 2001, p. 22). Esse parque estabelece um conjunto de fatores normativos para sua utilização, por exemplo, proibindo qualquer forma de manifestação ou ocupação das chamadas pessoas que agridam a moral e os costumes dos usuários do parque, além da proibição da presença de trabalhadores autônomos (camelôs). A finalidade do parque deveria ser a contemplação da natureza.

Para conseguir angariar a compra dos terrenos junto a grupos com interesses semelhantes, os empresários se organizaram para lotear e elaborar projetos de ocupação do espaço, o que culminou na construção de um novo centro econômico a partir da venda dos terrenos da prefeitura promovida pela Operação Integrada (NOBRE, E., 2009). Essa demanda também partia da iniciativa privada, respaldada pelo plano diretor da gestão de Jânio Quadros, em que solicitava “modificações nos índices urbanísticos e categorias no uso do terreno de sua propriedade, em troca do pagamento ou da construção de um certo número de habitações de interesse social” (NOBRE, E., 2009, p. 205).

Iniciada em 1994, a articulação do capital estrangeiro estabelece um sistema de cotas, no qual os investidores inserem um valor inicial para ter direito a um espaço já ocupado. As estruturas e formas de aplicação do investimento seguiram um processo burocrático que envolve aplicações tanto via bolsa de valores quanto negociações diretas. Para legitimar, controlar e estabelecer os meios de troca, o grupo Burge y Born estabeleceu alianças com o Bradesco e o Brascan para dar continuidade ao empreendimento (FIX, 2001).

A mobilização do grupo insere um conjunto de preocupações com os arredores do espaço. Toda formação, assim como as construções e aberturas de novas estradas, deveria respeitar e “adaptar-se às exigências do setor ‘terciário de alto padrão’, configurando ‘o novo centro’ de São Paulo” (NOBRE, E., 2009, p. 29).

As configurações da construção do novo centro econômico evidenciam alguns processos importantes: um conjunto de normas e regras inseridas na localidade e a indiferença face à vida daqueles que já ocupavam aquele espaço. O Estado aparece como elemento não apenas para legitimar, mas foi uma agente ativo para o êxito do projeto. Esse conjunto de normas, que operam nos comportamentos, pode ser visto como os aspectos de uma política neoliberal, atuante em todos os cenários e atividades no conjunto de comportamentos que tem como suporte a ideia de progresso, ou seja, algo que parte de um ambiente “inferior”, “atrasado” ou “primitivo” para algo tido como “evoluído” ou “desenvolvido” (ALLEN, 2018).  Dardot e Larval (2010) nos alertam sobre o crescimento do capitalismo e o papel do Estado como principal agente:

 

[...] o capitalismo cresce também de outra maneira, a qual, mesmo sendo quase sempre esquecida, não é menos poderosa: a da difusão social de um sistema de regras de ação. Este sistema de normas ultrapassa largamente aquele da empresa para abraçar, por meio de um processo de ligações cruzadas, múltiplas instituições e relações sociais. Longe de ser, como se acredita, um obstáculo à extensão da lógica do mercado, o Estado tornou-se um de seus principais agentes, se não o seu principal vetor (DARDOT; LARVAL, 2010, p. 2).[7]

 

A negação das diferenças e o espectro da noção de uma normalidade e unicidade discursiva foram observados por Fix (2001) na fala do presidente da associação dos moradores da Avenida Faria Lima, Luiz Antônio Erhardt: “para nós, que vivemos lá durante trinta anos, uma degradação total de vida pelo descaso dos poderes públicos, de repente a obra veio, como que num passe de mágica, restabelecer um padrão de cidadania que foi totalmente abandonado” (FIX, 2001, p. 33).

Os preceitos de distinção entre desenvolvimento econômico e técnico, para o presidente da associação, manifestam-se por meio de uma narrativa de limpeza ou eugenia daquilo que considera como algo fora do padrão de civilidade.[8] O discurso encontra elementos de uma crítica e exclusão social, que colocam o outro como alguém fora dos padrões desejados pelo presidente da associação. A razão empregada encontra denotação com a noção de modernização, tanto relacionada ao sujeito do discurso como utilizada pelo grupo detentor de capital, que tem o objetivo de instalar o novo centro.

Esses preceitos para a construção da nova cidade encontram, na relação entre interesse do setor privado e a agenda dos atores políticos na liderança da cidade de São Paulo, fatores decisórios para a aplicação do projeto: o Estado como instituição dotada de legitimidade para aplicar medidas coercitivas sobre a população das comunidades. Medidas de ação para remoção das famílias foram colocadas também em uma relação entre público-privado, destinando recursos para auxílio das famílias, sem conhecimento da cotidianidade dos moradores. Os setores da economia envolvidos, além dos moradores, entendem que a “retirada dos favelados representa um ganho imobiliário ‘fabuloso’ nas proximidades da intervenção, a valorização será superior a 100%” — afirma o consultor imobiliário Luís Pompéia, conforme descrito por Fix (2001, p. 33).

O desconhecimento, a falta de interesse e o desenvolvimento do projeto considerando apenas interesses políticos e de um capital econômico, costuram uma ação determinada, única e exclusivamente, para o êxito financeiro diante do campo em disputa. Essa costura pode ser vista sob a ótica da ação instrumental proposta por Habermas, que conforme Marcos Nobre (2003, p. 13), pode ser assim compreendida: “a ação instrumental é aquela orientada para o êxito, em que o agente calcula os melhores meios para atingir fins determinados previamente. [São] ações dirigidas à dominação da natureza e à organização da sociedade”.

Essa instrumentalização propõe um dos aspectos da indiferença necessária para o estágio do capitalismo, como algo inscrito nos comportamentos, nas ações, na moral, na norma do crescimento do sistema político-econômico. Cohn (2006) categoriza esse fenômeno como estrutural, uma  indiferença estrutural.

 

 Ao falar de indiferença toco no que parece uma marca fundamental no funcionamento do sistema político e econômico na fase atual do capitalismo. Não se trata de caracterizar uma atitude de determinados agentes, mas de algo inscrito no próprio modo de organização e de funcionamento das sociedades contemporâneas. Nesse sentido eu a denomino indiferença estrutural. Certamente não é um dado novo que determinados grupos sociais pouco se importem com o que ocorre no restante da sociedade de que fazem parte, ou que sociedades inteiras ignorem outras. Mas o que temos atualmente é sem precedentes não apenas em termos de escala, mas também pela natureza que esse processo assume. Basicamente ele consiste em que os grandes agentes, especialmente os econômicos, altamente concentrados e com um poder nunca antes visto na história, atuam de maneira literalmente monstruosa, vale dizer, sem consciência do alcance do seu poder nem do encadeamento dos seus efeitos. No caso dos mega-agentes econômicos que atuam em escala global isso é especialmente nítido. Organizados em termos de seus interesses pontuais variáveis, em nome da sua própria eficácia eles necessariamente concentram a atenção sobre uma gama limitada de efeitos de suas decisões, aqueles efeitos que imediatamente se traduzem em vantagens. Isso, de por si, não os diferenciaria de empresários convencionais, salvo pela escala imensamente maior do seu poder. Ocorre que, nessas condições, eles necessariamente deixam de concentrar-se sobre a sequência de efeitos que seus atos acarretam para além do seu êxito em obter resultados esperados. Dotados de força desmedida, não alcançam nem se preocupam em alcançar o controle pleno do seu poder, cegos aos desdobramentos mais remotos de suas ações. Esses desdobramentos afetam, claro, populações inteiras embora sejam rigorosamente irrelevantes para esses agentes. (COHN, 2006, p. 26-27, grifo do autor)

 

Todos os eventos descritos até agora culminam em ações que visam reestruturar o espaço urbano. Em primeiro lugar, há conflitos pela disputa do espaço em uma localidade que é considerada importante centro econômico-financeiro, a Avenida Paulista. Em seguida, surge o interesse do capital estrangeiro em construir em áreas distantes daquelas já ocupadas, e isso é legitimado por um plano diretor e por políticas de estruturação urbana. Depois, é anunciada a necessidade do Estado de promover a reestruturação urbana devido à falta de recursos disponíveis. Finalmente, há uma legitimação presente no plano diretor para estabelecer articulações entre o poder público e a rede privada.

De um modo geral, a racionalidade inserida nos processos de restruturação do espaço parte do pressuposto de que as etapas de um fator produtivo passam por um conjunto “incessante de transformação do espaço” (FURTADO, 2014, p. 347). A gentrificação é vista como uma forma de operacionalizar um objetivo que envolve a remoção da população das comunidades. Isso se alinha com a ideia de políticas de higienização, que favorecem a valorização do preço do metro quadrado dos terrenos, como podemos ver nos discursos sobre o assunto.

No próximo tópico, abordaremos as estratégias que o consórcio e o poder público usaram para remover as famílias que viviam nas comunidades, e como houve um tratamento diferenciado dado aos moradores da favela e aos moradores da Avenida Faria Lima. Os processos de violência na remoção de famílias, quando ocorre, utilizam um conjunto de estratégias perpassando a transformação do entorno e fatores de impedimento àqueles que lá vivem. Essa violência apoia-se na atuação de agentes políticos, sob a ação de uma moral que é institucionalizada pelo Estado e apoiada pela mídia tradicional.

A criação de barreiras econômicas, como preços altos que inviabilizam o acesso aos serviços, é um dos mecanismos utilizados na gentrificação. Além disso, o fechamento de lojas antigas e a abertura de novas, a mudança no itinerário dos ônibus para afastá-los da comunidade e a presença de uma nova clientela são outros instrumentos usados para remover os moradores, sem que haja uma forma explícita de coercitividade. De acordo Hawley e Ducan (1957 apud FURTADO, 2014), é importante notar que esses fatores são usados para a reestruturação do espaço e têm um impacto significativo no estrato social de baixa renda.

Na proposta estabelecida pelo consórcio ainda aparece um conjunto de regras para a ocupação das praças. As formas de controle colocam fatores para coibir pessoas de baixa renda ou de extratos sociais de grupos não privilegiados, pois as regras distanciam eventuais comerciantes ou outras formas de manifestação além do que chamaram de contemplação da natureza. Em outras palavras, os grupos detentores de capital estabelecem um conjunto de normatividade, legitimados pelo Estado, para a ocupação do espaço. Todos esses elementos culminam no êxodo das camadas populares para as periferias.

 

2 A produção, a indiferença e a burocracia: a ação do agente empregado

 

Os processos de remoção das famílias das favelas Jardim Edith e Água Espraiada passaram por várias etapas, que incluíram convencimento, cooptação de lideranças e medidas de pressão ativa, como a utilização de tratores, representantes do Estado e agentes da polícia militar para intimidar os moradores.

Imbuídas das ferramentas e alinhadas ao discurso dos contratantes, profissionais do serviço social estavam na linha de frente para estabelecer contato com as famílias. A tarefa deles foi realizar o cadastramento da população, instruir sobre os acontecimentos de remoção, ofertar o recurso e acompanhar o processo de mudança.

O discurso das assistentes sociais revela aspectos de um valor moral, imbuído de dois elementos: a determinação daquilo que seria interessante ou bom para as pessoas que residiam na favela e a construção de uma noção de herança a ser deixada para os filhos. Esse conjunto de medidas sugere que a remoção da favela, as ameaças simbólicas e coercitivas têm um caráter iminente de acontecer.

Esses fatores surgem com uma lógica de oportunidade, algo único e pontual que aparece como oferta. O papel atribuído às profissionais está baseado em uma lógica única e unidirecional, que desconsidera a realidade dos moradores e as relações de emprego na região e nos bairros próximos da favela. Esse papel é usado para convencer as pessoas a mudarem e conscientizá-las de que a construção das avenidas e a remoção das famílias são inevitáveis e lhes trarão benefícios, conforme trecho de depoimento de uma assistente social apresentado por Fix: “as pessoas, ao invés de se conscientizarem que vão ter uma moradia, que vão poder deixar para os seus filhos uma situação regular, que ninguém nunca vai bater na sua porta: ‘saí porque nós vamos passar uma avenida’, que é teu, uma coisa que você vai ter para o futuro, no lugar disso tudo, estão preferindo os mil e quinhentos reais” (FIX, 2001, p. 40).

Aspectos valorativos sobre um determinante daquilo que seria melhor para uma população começa a ser desenhado através do papel do funcionalismo e da transferência da mediação da ação (BAUMAN, 1998). Nesse caso, a mediação da ação insere indivíduos na realidade em que vão atuar frente aos interesses e necessidades de outros. O efeito da ação visto na atuação das profissionais aparece também como um produto dos procedimentos racionais e burocráticos do projeto.

A promessa e os cálculos do pagamento do valor de mil e quinhentos reais para a realização na mudança — condicionado a que os próprios moradores façam a retirada dos móveis e os aloquem nos caminhões de mudança (NOBRE, E., 2009) — não garantem uma qualidade de moradia, o que provocou um efeito de periferização da comunidade, cujos moradores foram enviados para localidades mais distantes dos locais de trabalho. Esse efeito também provocou preocupações nos empregadores, que corriam o risco de perder um contingente de mão de obra em consequência do processo de expulsão (FIX, 2001).

As estratégias utilizadas para a retirada das pessoas estavam sob o papel de atores burocráticos, que despertavam o sentimento de medo na comunidade, promovendo a demolição das barracas com o uso de tratores e avançando, através da conquista de novos terrenos, e ocupando com os materiais da obra o espaço antes ocupado pelas casas (FIX, 2001). Relatos sobre o preenchimento de papéis e falsas promessas são o conjunto de argumentos presentes em um discurso que não se aprofundou no interior das necessidades e interesses da comunidade. Estratégias de distinção também se fizeram presentes no processo: intercepção e cooptação das lideranças, que receberam ofertas superiores àquelas oferecidas aos demais moradores, o que serviu para desmobilizar a unidade de luta da população da favela.

O processo de invisibilização da favela se tornou evidente a partir da comparação com o processo de desocupação das moradias na avenida Faria Lima. O tratamento e a ação dados pelo Estado são distintos nos dois casos. Na Faria Lima, estabelecem-se negociações, nas quais os representantes do bairro são ouvidos.

Na avenida Faria Lima, bairro de classe média, o projeto de extensão e construção da nova cidade entrou no projeto e lei Operações Interligadas. Enquanto a mobilização e organização da comunidade, aliadas à presença da mídia e matérias em jornais, foram frequentes no cotidiano desse bairro, nas comunidades da Água Espraiada e Jardim Edith, a presença de jornalistas não teve o mesmo impacto para dar visibilidade às demandas dos moradores das favelas.

O processo de tornar invisível os acontecimentos na favela também vem acompanhado do discurso das assistentes sociais, que afirmam que há características comportamentais nessa população de não ter aceitado as propostas de mudanças para as alternativas habitacionais. Para uma das profissionais, citada por Fix, “[...] o fato de a maioria dos favelados não ter optado pela alternativa habitacional só pode ser explicado por se tratar de um ‘povo nômade’: é um tipo de população que não cria vínculos com o lugar, é uma população itinerante” (FIX, 2001, p. 41, grifo nosso).

A partir disso, verifica-se que inibições morais são suscitadas pelos discursos, que provocam conflito e choque no que podemos chamar de aspectos morais e normativos de uma população em situação de casa, conforme pode ser constatado na parte grifada da fala da assistente social. As vítimas, nesse caso, são submetidas a um processo de desumanização quando entram em foco e comparação com a visão normativa (BAUMAN, 1998).

As alternativas postas para a mudança da população das favelas não apresentaram projetos e planejamentos habitacionais. A remoção das famílias e as ações coercitivas para a mudança estabeleceram alojamentos em estruturas de madeira até a construção das unidades habitacionais (FIX, 2001). Essa problemática não é só vista na década de 1990, quando Fix fez sua pesquisa, mas também continua como questões no ano de 2011. Os projetos e planejamentos urbanos não refletem ou pensam nas questões de moradia no escopo dos projetos. Okczyk coloca que esses fatores são alvos de críticas pelos especialistas de planejamento urbano: “Podemos observar que até 2011 a oferta de moradia para as famílias reassentadas da região do córrego Água Espraiada era muito restrita e raramente consistia em projetos realizados no local da remoção” (OKCZYK, 2015, p. 62).

Com a ausência de diálogos, a inexistência de projetos habitacionais e a pressão para remoção da população, surgem as lutas e conflitos, despertados pela atuação dos agentes do Estado e dos representantes do capital exterior, a qual se opõe a ação dos moradores. Esse embate é marcado por questões morais, inserindo uma indiferença reproduzida através de atores atuantes na linha de frente. Por outro lado, a ação dos moradores entra em conflito com as formas de vida estabelecidas no cotidiano e nos arredores do trabalho. As assistentes sociais “nem sequer pergunta para nós o que nós queremos. Elas pegam esse papel e jogam de lá.” Relatou um morador (FIX, 2001, p. 40).

Essa atuação do sistema de burocracias, além de se inserir por meio de uma mediação da ação de outrem, parte de uma estrutura verticalizada (de cima para baixo), em que alguns burocratas, sentados em suas escrivaninhas, podem destruir todo um povo (BAUMAN, 1998, p. 44). Esse fato pode ser visto como um esvaziamento da civilização e o despertar da barbárie?

 Os atores envolvidos no processo de remoção encontraram uma unidade que se coaduna com os interesses dos empresários, o que foi importante para a continuidade do projeto. Enquanto o grupo de moradores e representantes das associações dos bairros dos arredores da comunidade viam a situação como um cenário positivo, como um “retorno da cidadania”, os corretores a viam como medidas importantes para a valorização do bairro; por fim, as assistentes sociais colocam todos os acontecimentos como algo inevitável. Essa linha analítica racional, encontra um fator dominante: a aceitação, produção e reprodução da lógica produtiva do capital.

Os temas fundantes envolvidos na situação “[...] têm como característica serem profundamente arraigados e formarem como que o éter no interior no qual se dá toda a percepção e ação política dos homens [...]” (COHN, 2006, p. 23). Eles encontram sua aceitação em uma ideia de que o desenvolvimento regional e crescimento econômico são questões motivadoras o suficiente para se sobrepor à vida do outro.

Nesse ponto, a noção de civilização entra em choque com a realidade, pois encontra seus limites baseados na distinção de classe e exclusão social, temáticas centrais promotoras das indiferenças apontadas por Herzfeld (2016), é na negação da civilidade que se encontram os elementos de sua operacionalização. Para  Cohn (2006), este é o fator constituinte da barbárie: a negação do outro, de sua civilidade.

No campo de disputa pelo território e permanência no espaço, os aspectos de poder são estabelecidos entre moradores e o funcionalismo burocrático, cujos interesses são conflitantes. Enquanto a atuação dos profissionais é influenciada por uma série de fatores relacionados aos detentores de poder, a ação dos investidores se baseia na negação de interesses individuais ou coletivos da comunidade. O primeiro pode ser entendido como uma produção social da indiferença — um processo que surge a partir da rejeição da humanidade e da negação da individualidade (HERZFELD, 2016). Já o segundo pode ser compreendido como uma indiferença estrutural — não se trata de uma atitude de agentes específicos, mas sim de algo intrínseco ao funcionamento das sociedades contemporâneas (COHN, 2006, p.26).

A forma de atuação desse funcionalismo encontra na honra o compromisso e a entrega ao trabalho, como um cenário pautado na norma. Bauman pontua essa honra como “a capacidade de executar de forma conscienciosa a ordem das autoridades superiores, exatamente como se a ordem expressasse sua própria convicção” (BAUMAN, 1998, p. 41).

O elemento “convicção” e a “capacidade de executar de forma conscienciosa” remetem também à nomenclatura proposta por Nicos Poulantzas e ao papel da “aristocracia proletária”, como processos de internalização das normas e regras de condutas. Esses elementos também se relacionam às ideias do processo de burocratização, que são externalizados pelo sujeito, seja ele proletário ou gestor dos proletários. Em outras palavras, eles assumem os interesses e ações dos seus empregadores, manifestando e ocupando um espaço de poder ao qual foram remetidos. A forma operativa para a remoção das pessoas, embora pudesse encontrar nas assistentes sociais, ideias e entendimentos da exclusão, desigualdade e vulnerabilidade nos moradores, atuaram sob os efeitos e contratos estabelecidos em uma relação de trabalho, conforme os interesses do grande capital.

 

Vias de um fechamento

 

       Até que ponto as causas geradoras de conflitos entre os interesses do Estado, do capital exterior e moradores das favelas podem ser vistas como uma construção civilizatória e um desenvolvimento progressivo da sociedade?

       O período apresentado no texto, o qual coincidiu com uma das etapas da Operação Interligadas, corresponde a um projeto que possui diversos níveis e passou por diversas adequações (NOBRE, E., 2009; OLCZYK, 2015), parte delas sendo resultante dos conflitos e resistência dos moradores das comunidades afetadas nas obras. Diante das propostas de construção de centros habitacionais em bairros distantes, os moradores cobravam a oferta de moradias e habitação que os mantivessem na localidade em que residiam.

       A situação promotora de uma crise, aqui evidenciada, opera sobre dois fatores. O primeiro se refere aos elementos motivacionais para a produção do espaço[9] — o novo centro econômico e financeiro da cidade — e a expansão do capital. Já o segundo fator está relacionado a aspectos de uma moral promotora de diferenciações entre os moradores das favelas e aqueles que residem nos arredores.

O conflito estabelecido entre os grupos — empresários, poder público, moradores das ruas e bairros adjacentes, profissionais corretores de imóveis, aqueles que estavam na linha de frente e moradores das comunidades —, cujas demandas e interesses são distintos, revela o arcabouço singular no processo de operacionalizar a indiferença para cada um daqueles que ocupam uma posição social ou um local nesse campo em disputa: a racionalidade presente na reprodução do capital.

       Os elementos de diferenciação entre os grupos, como proposto por Herzfeld (2016), parecem-nos centralizadores e lugar comum, como aqueles produtores de uma indiferença: a exclusão social, cultural e racial. São fatores que encontram formas de legitimação — nas leis ou nos discursos — dos atos que a promovem e são gerenciadores dos conflitos. A indiferença é a causa primária e opera a partir dos interesses de um pequeno grupo, a gentrificação é um de seus efeitos. Isso reforça que parte dos projetos de desenvolvimento não inclui ou reflete sobre populações pobres ou em situação de vulnerabilidade durante a sua elaboração.

       Cohn (2006) vincula o paradigma da paz ao processo de diálogo e deliberação, como elementos emancipadores dos conflitos e da indiferença estrutural. Entretanto o autor mesmo postula uma pauta utópica: “Isso reforça essa concepção muito ampliada da política pela qual se define como construção conjunta e conflitiva do espaço público — uma tarefa interminável, sem solução definitiva, um horizonte” (COHN, 2006, p. 21).

       Para ele, a indiferença e a barbárie são sinônimas e antagônicas à questão da responsabilidade: “[...] os agentes mais poderosos são estruturalmente indiferentes aos efeitos mais remotos das suas decisões” (COHN, 2006, p. 27); ou seja, inseridos em uma lógica reprodutora de uma individualidade, a responsabilidade frente aos efeitos de uma escolha não é pautada ou, se quer, aparece como proposta para ser desenvolvida.

O desenvolvimento central do nosso argumento sobre estarem os elementos da indiferença presentes no fio condutor da estrutura das relações, leva-nos a postular que isso não é algo novo na história contemporânea, ou seja, esses elementos não estão presentes apenas em projetos políticos do campo do neoliberalismo ou no período de abertura do capital no Brasil. Pelo contrário, eles se inscrevem, tal como apontei na introdução, na ontologia das relações sociais e de suas distinções culturais, raciais ou sociais. Em outras palavras, a hipótese, que se configura com base no interesse central visualizado nos projetos analisados, é que a reprodução do capital aparece como fator centralizador e produtor da indiferença. Ou seja, a racionalidade e desinteresse face à vida do outro estão inscritos na própria história da acumulação do capital.[10] Isto, portanto, não se configura como uma conclusão, muito menos como uma novidade. Apenas reforça as questões-guia deste artigo, que procuram saber como ocorrem as operações da indiferença e, diante disso, quais são os caminhos para a emancipação.

       No caso apresentado, observamos os operadores da indiferença sob diferentes fluxos, com base no lugar do estrato social que o agente ocupa. A figura 1 nos auxilia a entender os operadores:

 

Figura 1 – Operadores da Indiferença Estrutural

Fonte: elaboração do autor

 

O empresariado e o poder público aparecem como fatores primários e promotores de uma indiferença manifestada a partir de formas de ação e no gerenciamento das decisões sobre o espaço e as vidas residentes. Suas motivações corroboram diretamente com a manutenção e expansão de seu capital, reproduzindo-o ao ocupar espaços que antes não lhes pertenciam. Para esse grupo, os efeitos não aparecem como uma questão, o que acaba gerando sucessões de conflitos ou acordos. O segundo ponto aparece como adjacente à promoção de alguma ação ou projeto, e culmina na aceitação, pois se entende que não se trata de alguém diretamente atingido pela proposta. Isso é legitimado pelo julgamento de um suposto desenvolvimento econômico e melhoria nos aspectos de civilidade. Tem como marca o cidadão que não opera os determinantes da economia, mas apenas responde e replica as regras estabelecidas. Sua base de legitimação opera diante das distinções de exclusão social, racial ou cultural. Em terceiro lugar, e paralelo à reprodução, aparece o profissional que está diretamente ligado ou não aos efeitos econômicos provocados pelos ideais promovidos pela proposta. Por último, tem-se aquele que opera sob o jugo  de um contrato de trabalho, o qual o orienta sobre os efeitos da perda do contrato.

A proposta apresentada de uma operacionalização da indiferença estrutural agencia e coloca os efeitos produtores sobre a noção de uma conflação descendente,[11] ou seja, estimula que a racionalização parta de um corpus reificado além do indivíduo, dotado de regras, formas e normas reproduzidas nos indivíduos. Esse raciocínio argumentativo consistiria em um erro. Nota-se que a descrição pontuada parte de um caso sistemático e histórico a partir de um projeto de desenvolvimento econômico, e seu elemento de crise e centralizador do fato é o conflito a partir da indiferença.

O conflito aparece como uma marca da construção do espaço público. Entretanto o fato que o coloca como marca de uma civilidade é aquele que dispensa os símbolos de diferenciação social (COHN, 2006). Se indiferença e barbárie aparecem como sinônimas, colocando os interesses individuais como centrais no desenvolvimento de projetos e políticas, estes devem ser ressignificados em busca de diálogos para a projeção de elaboração com os atores envolvidos. Esses fatores promovem a integração que, à luz da teoria crítica, atuam diante do conflito estabelecido pela crise. Colocar o diálogo e a responsabilidade como elementos centrais para a emancipação, seria considerar a existência de um consenso entre partes opostas, movidas por noções distintas de civilidade. Pois a estrutura econômica (e moral-econômica) aparece como elemento primário na atuação do empresariado. A moral, por sua vez, enquanto ação, é reproduzida na operação de remoção, tal como foi apresentado no discurso de uma profissional da assistência social

A proposição apresentada ainda não responde à problemática central da indiferença, que persiste devido à lógica de uma reprodução do modelo econômico.

A indiferença, imbricada na estrutura, traduzida nas formas de ação, crenças e valores, tal como pontuada por Cohn (2006), está presente também no processo civilizatório. O autor pontua que ainda é muito difícil pensar em um modelo de emancipação da indiferença estrutural. Paulo Neto (2012; 2013), ao tratar da barbárie, postula que o socialismo é a resposta para esse enfrentamento. Mas essa construção ainda não ocorreu (COHN, 2006), e as crises provocados por políticas da indiferença — pautadas em formas conservadoras, atentando contra a vida, sobre uma moral religiosa, racista ou social — são questões que devem ser tratadas teoricamente.

 

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Recebido em: 15/02/2023.

Aceito em: 16/04/2023.

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n30.65843.p39-59

 

 

 



* Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), Brasil. E-mail: rod.ferreira31@gmail.com.

[1] Racionalização aqui é empregada como uma institucionalização de uma determinada forma de ação social: “[...] como um processo social que atravessa as diversas esferas da ação, constituindo diferentes ordens de vida, como a economia, a política, o Direito, a arte, o amor, a ciência, a religião etc.” (SELL, 2013, p.10).

[2] Essas questões fazem parte de uma pesquisa em andamento, desenvolvida como dissertação de mestrado.

[3] Empregamos o conceito de racionalidade como recurso metodológico para visualizar as formas operativas de uma ação social, no caso da indiferença. Entretanto não buscamos sua base fundacionalista; partimos do encontro de sua produção, presença estrutural e racionalização.

[4] Referimo-nos ao trabalho Civilização, cidadania e civismo: a teoria política frente aos novos desafios, em que Cohn apresenta a preocupação frente ao acúmulo de capital financeiro e o poderio frente aos riscos que populações desfavorecidas podem sofrer.

[5] Bourdieu (2011), em A distinção, aprofunda e constrói, a partir de pesquisas quantitativas, a noção de classe e suas distinções, como um conjunto de elementos e hábitos cotidianos que se manifestam a partir do comportamento ou habitus. A distinção aparece como um conjunto de marcadores não apenas no corpo, nas práticas, mas também no espaço, no campo.

[6] Empregamos a palavra gentrificação no sentido de restruturação do espaço a partir de uma intervenção urbana, cuja finalidade é a apropriação por um grupo economicamente privilegiado de uma determinada região. Os processos de ocupação do espaço, tal como será argumentado ao longo do artigo, podem ocorrer de maneira coercitiva, através do papel do Estado. Furtado (2014) diz que a gentrificação é o processo “que é parte da organização do espaço urbano, de acordo com as necessidades do modo de produção dominante na economia e que está em sintonia com os propósitos da estrutura dominante da sociedade (FURTADO, 2014, p. 342)”. Essas transformações do espaço promovem ambientes e áreas de investimentos, tal como pontuado por Rangel (2015) ao apresentar a noção utilizada por Zukin e Bidou-Zachariasen: “O termo gentrificação [...] designa intervenções urbanas como empreendimentos que elegem certos espaços da cidade considerados centralidades e o transformam em áreas de investimentos públicos e privados, cujas mudanças no significado de uma localidade histórica faz do patrimônio um segmento do mercado. Os processos de gentrificação culminam na valorização imobiliária, implicando na instalação de comércios com mercadorias acessíveis às classes sociais mais altas e na impossibilidade de permanência de moradores com menores recursos financeiros” (RANGEL, 2015, p.42).

[7] Tradução livre do texto: [...] le capitalisme croît également par une autre voie, qui, pour être le plus souvent inaperçue, n’en est pas moins puissante: celle de la diffusion sociale d’un système de normes d’action. Ce système de normes déborde largement le seul cadre de l’entreprise pour gagner, par un processus de réticulation, de multiples institutions et relations sociales. Loin d’être l’obstacle que l’on croit à cette extension de la logique du marché, l’État en est vite devenu l’un des principaux agents, sinon le vecteur essentie.

[8] Partimos da noção de civilidade apresentada por Alyson Freire e Simone Brito, que está em consonância com as formações sociais e com a ideia daquilo que é desejado ou considerado ideal pela sociedade humana (THOMAS, 2018, p. xv apud FREIRE; BRITO, 2021,  p. 96).

[9] Partimos da noção da produção do espaço utilizados por Corrêa (1989, 2011). Para ele, essa produção surge como resultado da ação de agentes com interesses e ações racionais.

[10] Compreendemos a importância de questionar a manifestação, operacionalização e produção social da indiferença em outros sistemas, mas isso foge aos propósitos deste artigo.

[11] Partimos da noção de conflação, utilizada por Margareth Archer para estabelecer uma crítica aos teóricos estruturalistas e individualistas, que buscam explicar a formação dos fatos por meio da estrutura (conflação descendente) ou a partir dos agentes (conflação ascendente). Cf.: Vandenberghe (2010, capítulo 6).

 

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Desenho de um círculo

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