A ARTE DESAFIA O PRINCÍPIO DA RAZÃO? Reflexões sobre arte e política a partir do pensamento de Herbert Marcuse
DOES ART DEFY THE PRINCIPLE OF REASON? Reflections on art and politics from the perspective of Herbert Marcuse
DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n30.65860.p18-38
Resumo
Neste artigo, busca-se analisar e discutir paradigmas da arte política a partir de Herbert Marcuse, especialmente por meio dos conceitos de “alienação da arte” e “dessublimação repressiva”. Nesta análise, observa-se os sentidos dados à arte, sua dimensão revolucionária ou reificada tendo em vista o contexto recente de censura e perseguição às artes com a ascensão da extrema direita no Brasil. A aproximação com a teoria crítica se estabelece, inicialmente, considerando a crítica à noção de progresso e de razão instrumental feitas por Adorno e Horkheimer no livro Dialética do esclarecimento, de modo a identificar convergências acerca do fenômeno da fascistização do pensamento político e do potencial revolucionário da arte nos diferentes contextos históricos. Em diálogo com autores contemporâneos, como o crítico de arte Hal Foster, a escritora Walidah Imarisha, e a performance-instalação Vote nu de Natasha de Albuquerque, o artigo aponta caminhos para pensar as dimensões emancipatórias da arte na contemporaneidade.
Palavras-chave: arte; política; alienação da arte; dessublimação repressiva.
Abstract
This article seeks to analyze and discuss paradigms of political art from Herbert Marcuse, especially through the concepts of “alienation of art” and “repressive desublimation”. In this analysis, we observe the meanings given to art, its revolutionary or reified dimension in view of the recent context of censorship and persecution of the arts with the rise of the extreme right in Brazil. The approach to critical theory is initially established considering the criticism of the notion of progress and instrumental reason made by Adorno and Horkheimer in the book Dialectic of Enlightenment, in order to identify convergences about the phenomenon of fascistization of political thought and the revolutionary potential of art in different historical contexts. In dialogue with contemporary authors such as the art critic Hal Foster, the writer Walidah Imarisha, and the performance - installation Vote nu by Natacha Albuquerque, the article points out ways to think about the emancipatory dimensions of art in contemporary times.
Keywords: art; politics; alienation of art; repressive desublimation.
Aqui tudo parece que era ainda construção e já é ruína...
Caetano Veloso
No início do livro Dialética do esclarecimento, Adorno e Horkheimer questionam: — “Por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie”? (ADORNO; HORKHEIMER, 1985). A questão fundamental para os teóricos da primeira geração da teoria crítica, advindos da Escola de Frankfurt, como Adorno, Horkheimer, Benjamin e Marcuse era, em termos gerais, o fracasso do progresso. Eles indagavam sobre como, apesar dos avanços da técnica, da tecnologia, da promessa de progresso social por meio da racionalidade, a humanidade caminhava rumo ao fascismo. O contexto no qual essa pergunta foi elaborada, de desencanto com o mundo, foi marcado pelo trauma da Segunda Guerra Mundial.
A crítica ao projeto do esclarecimento, que surge desse contexto, é de que o que não se submete ao critério da calculabilidade e da utilidade torna-se suspeito para o esclarecimento. O desafio intelectual dessa geração, a partir de uma perspectiva da dialética negativa, era pensar a emancipação da vida frente ao desencanto, ou um projeto de liberdade que não estivesse, a priori, baseado na barbárie e na violência, “pois o esclarecimento é totalitário como qualquer outro sistema. Sua inverdade não está naquilo que seus inimigos românticos sempre lhe censuraram: o método analítico, o retorno aos elementos, a decomposição pela reflexão, mas sim no fato de que para ele o processo está decidido de antemão” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 37).
Se o pensamento está baseado na lógica de dominação universal da natureza, e esse movimento retorna para o sujeito também em forma de regressão e violência, algo precisava mudar na esfera do pensamento de modo a não se fixar nas representações, seria possível acrescentar ainda, nos ideais dessas representações. Nesse sentido, a própria noção de projeto precisaria ser reavaliada, em outras palavras, é preciso descolonizar o esclarecimento, e recriar com isso modos de estar no mundo sem a imposição de projetos alheios às particularidades de cada experiência em processo, seja em âmbito cultural ou subjetivo.
A razão como princípio normativo do progresso é fundamentalmente coercitiva e violenta, e o elemento da barbárie e da violência já estariam presentes no nosso projeto de liberdade. O esclarecimento moderno como mito emancipador se estabelece na forma de dominação não apenas no espaço social, mas no campo psíquico. Mas, então, como é possível criar formas de resistir a esse modelo de sociedade? Como sustentar a capacidade de pensar o mundo sem simplesmente aceitar a violência do mundo, o elemento de classe dessa violência, o desejo de controle sobre o outro?
Algumas das saídas dadas pelos autores a essa problemática era pela via intelectual, dialética e estética. Assim, teoria, arte e movimentos sociais ou estudantis da época eram configurações capazes de produzir um pensamento de ruptura revolucionário, com poder de “resgatar” a esperança e de esclarecer o esclarecimento, por assim dizer. De modo a expor a irracionalidade da razão instrumental que oprime, coloniza e determina modos de vida, que associados ao capitalismo, foram capazes de capturar e anestesiar desejos de negação à ordem estabelecida, como acontece com a arte em relação à indústria cultural, por exemplo.
Muito embora Adorno tenha sido crítico à emergência da indústria cultural, de modo a tensionar os valores da arte em relação ao capitalismo — o que tem gerado, ainda hoje, debates acerca de uma espécie de elitismo dessas análises, pelo fato de ele julgar determinadas produções estéticas como inferiores —, o elemento da estética ou a arte enquanto experiência emancipadora persiste na produção desses pensadores. Isso ocorre porque se entende que, na arte, imperam leis particulares, e ela estabelece um domínio próprio. Pois se a natureza não deve mais ser influenciada pela assimilação, mas deve ser dominada pelo trabalho:
A obra de arte ainda tem em comum com a magia o fato de estabelecer um domínio próprio, fechado em si mesmo e arrebatado ao contexto da vida profana. Neste domínio imperam leis particulares. [...] Enquanto expressão da totalidade, a arte reclama a dignidade do absoluto. Isso, às vezes, levou a filosofia a atribuir-lhe prioridade em face do conhecimento conceitual. Segundo Schelling, a arte entra em ação quando o saber desampara os homens. Para ele, a arte é “o modelo da ciência, e é aonde está a arte que a ciência deve ainda chegar (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 32).
Considera-se, a partir disso, que a arte, enquanto experiência, tem a capacidade de criar possibilidades de mundo que invertem ou colocam em suspensão lógicas de ação e regimes de conduta. Por isso, ela tensiona as forças políticas de conservação, de dominação. E, tendo em vista o contexto no qual essas reflexões foram produzidas, é possível fazer um descolamento para pensar os problemas que se colocam no atual contexto brasileiro, no que tange à ascensão da extrema direita na política e aos discursos de ódio contra artistas.
Da mesma maneira que a pergunta colocada no início da Dialética do esclarecimento aparece como um reflexo do desencanto em relação ao contexto da época, a motivação para escrita deste artigo se deu também por um abrupto sentimento de desesperança com relação aos rumos da democracia no país, tendo em vista a força de movimentos conservadores e reacionários que deram origem à perseguição contra partidos de esquerda, artistas e intelectuais no Brasil, principalmente entre os anos de 2015 a 2020.
A fascistização do pensamento político no Brasil, que produziu, entre outras coisas, o ataque sistemático ao setor da cultura, evidenciou-se em uma sequência de acontecimentos, como as manifestações nas ruas pedindo intervenção militar contra o comunismo, supostamente representado pelo governo do Partido dos Trabalhadores (PT); o impeachment da presidente Dilma Rousseff, que aconteceu em 2016[1]; o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ); a prisão do principal líder político da esquerda brasileira, Luís Inácio Lula da Silva (PT) em 2018, num julgamento em que se confirmou a parcialidade do juiz Sérgio Moro; a indústria de fake news nas eleições, e a eleição, também em 2018, de Jair Messias Bolsonaro, político da extrema direita que se elegeu por meio de discursos misóginos, racistas e antidemocráticos.[2]
O ano de 2017 foi marcado por uma série de ataques e tentativas de censura às artes.[3] Um dos casos mais emblemáticos foi direcionado à obra La Bête, do coreógrafo e escritor Wagner Schwartz. La Bête “é uma performance em que o artista se torna um Bicho de Lygia Clark e pode ser manipulado pelo público”.[4] Em referência às obras de Lygia, a obra La Bête só acontece com a participação do público. Nessa obra, o performer está nu e se coloca como um objeto que ganha movimento e outras formas a partir da manipulação do público sobre seu corpo.
Foi no contexto do 35.º Panorama de Arte Brasileira no Museu de Arte Moderna (MAM) em São Paulo, que alguém filmou um trecho da apresentação no momento em que uma pessoa do público, que por acaso também é artista e amiga de Wagner, Elisabete Finger, foi com sua filha, na época com 4 anos, interagir com a obra, ou seja, mover e criar formas com o corpo de Wagner. Nas imagens expostas na mídia, a criança toca o pé de Wagner, e a partir desse fragmento, grupos, como o Movimento Brasil Livre (MBL), sociedade civil, além de políticos e associações religiosas, acusaram o Museu e os artistas de terem promovido um ritual de pedofilia. Em oposição a essa acusação, artistas e curadores afirmavam que não havia nenhuma conotação sexual na obra.
Esse caso, que teve repercussão internacional, revela o modo como a arte foi capturada e criminalizada pelos movimentos de extrema direita no Brasil, tendo como base a manipulação de informações, discurso moral sobre questões de gênero, nudez na arte e infância. Wagner foi “morto a pauladas”[5] pela internet. Acusado de pedofilia, recebeu milhares de mensagens de ódio e ameaças de morte por meio das redes sociais. Já Elizabete foi atacada não como artista, mas como mãe e como mulher. Teve a guarda da sua filha ameaçada, sendo levada a depor numa CPI.[6]
Diante da sucessão de ataques às artes como parte do programa político de criminalização das esquerdas, cujo expoente foi o bolsonarismo[7], foi possível identificar de forma mais expressiva o preconceito como aspecto estruturante da subjetividade de milhares de brasileiros e a disposição desses aspectos em termos institucionais.[8] A criminalização da arte se dá, então, baseada no ódio às minorias, no recalque e no medo da força daquilo que lhes é estranho, que desestabiliza suas crenças e posses. A arte posta como ideologicamente perigosa reflete um jogo entre política e subjetividade, em que a relação entre a doxa e a arte é reforçada por sua oposição.
Os discursos de ódio e a censura produzidos por uma extrema direita contraditória[9] e bastante complexa não buscam valorizar os saberes populares de culturas sertanejas, periféricas ou originárias. Não é uma crítica baseada na elitização do discurso estético. Esses movimentos se baseiam na conjunção “cristianismo” — ligado a uma linha neopentecostal do sul dos Estados Unidos, os chamados evangélicos nacionalistas, que são em sua maioria supremacistas brancos — e o capitalismo. Por isso, a obsessão desses grupos por questões ligadas ao sexo e sexualidade e o uso político-mercadológico de convenções religiosas, ou pautas morais, faz com que a doxa constituída pela repressão de toda e qualquer manifestação que escape à utilidade e à funcionalidade se volte contra a arte. Isso ocorre porque a arte é potencialmente transgressora das forças subjetivas de conservação e alienação.[10]
A manipulação do corpo na obra La Bête, criada há mais de 15 anos, anunciava o terror da vulnerabilidade de um corpo à vontade do outro. Num curto texto, a crítica e teórica de dança, Helena Katz, diz: “La Bête nos faz ver que somos nós que ajudamos a barbárie avançar” (KATZ, 2015). Nesse sentido, cabe a nós, nessa disputa de narrativas enfrentar, o ódio instaurado enquanto política, de modo a considerar que, se eles temem os artistas, é porque há na arte uma capacidade de transgredir o sentido da violência numa direção ética emancipatória.
Herbert Marcuse, autor muito lido nos anos 1960, orientador de Angela Davis e engajado nos movimentos estudantis e antifascistas nos EUA durante seu exílio na Segunda Guerra Mundial, é pouco lembrado se comparado com seus contemporâneos da Escola de Frankfurt, como Adorno e Benjamin. Seu pensamento, no entanto, foi tão importante quanto o dos seus colegas e oferece conceitos fundamentais sobre a dimensão repressiva no processo civilizatório e o potencial revolucionário da arte.
Marcuse (2018), no livro Eros e civilização, diz que “a repressão é um fenômeno histórico” (MARCUSE, 2018, p. 13) e que “a consciência, a mais querida agência moral do indivíduo civilizado, surge-nos impregnada do instinto de morte” (MARCUSE, 2018, p. 40). O autor associa, nesse trabalho, marxismo e psicanálise para compreender os aspectos de violência constituintes da sociedade e a possibilidade de uma dimensão política libertária a fim de produzir um pensamento revolucionário, tendo em vista o fracasso da noção de progresso.
De um lado, a visão de Marx e Engels, que consiste na ideia de que as condições materiais formam a consciência e a história da humanidade, que evolui com as condições materiais de produção de riqueza, e que a realidade deve ser analisada como um todo, considerando as contradições e mutabilidade da matéria. De outro, a psicanálise freudiana, considerada por Marcuse como sendo uma psicologia social a partir da individual, que traz o entendimento de que os indivíduos são adversários por natureza da vida social, porque o caráter civilizatório se dá por renúncias instintuais, por um processo constante de repressão das características pulsionais e instintivas.
Para o autor, “[...] se Freud justifica a organização repressiva dos instintos pelo caráter irreconciliável do conflito entre princípio de prazer e o princípio de realidade, expressa também o fato histórico de que a civilização progrediu como dominação organizada” (MARCUSE, 2018, p. 27).
Desse modo, “[...] a pressão e a privação foram, pois, justificadas e afirmadas; converteram-se nas forças dominantes e agressivas que determinavam a existência humana. Com sua crescente utilização social, o progresso tornou-se, necessariamente, uma repressão progressiva” (MARCUSE, 2018, p. 90).
Em Freud, a civilização se constrói pelo controle, por meio da repressão da agressividade, dos impulsos e instintos do prazer que precisam ser contidos para que tenhamos condições de convivência, pelo benefício social e coletivo. Ocupamos essa tensão com o trabalho, que aparece suplantando o impulso de eros, para que dirigíssemos nossas energias pulsionais para produtividade material da sociedade. É a partir dessa relação entre “princípio de prazer” e “princípio de realidade” que Marcuse irá propor os conceitos de “mais-repressão” e “princípio de desempenho”: “a) mais-repressão: as restrições requeridas pela dominação social. Distingue-se da repressão (básica): as “modificações” dos instintos necessários à perpetuação da raça humana em civilização. b) princípio de desempenho: a forma histórica predominante do princípio de realidade” (MARCUSE, 2018, p. 27).
A repressão do princípio de prazer, condição civilizatória em Freud, apresenta-se na teoria de Marx pelo trabalho alienado que pode ser definido como a falta de identificação com o trabalho que tira do sujeito a possibilidade de prazer na relação com seu fazer. Assim, além da repressão que estabelecemos uns com os outros, nós criamos uma relação com o trabalho alienado que se constitui na forma de “mais repressão”, a dominação por meio do trabalho. Nesse sentido, a sociedade capitalista faz uma inversão. Com o capitalismo, renunciamos ao princípio da realidade pelo princípio da produtividade. Nossa consciência seria performada pela ideia de que somos produtivos — quantidade, velocidade, competitividade etc. —, constituindo assim o que Marcuse chamou de “princípio de desempenho” a serviço das classes dominantes.
Marcuse acreditava que seria possível fazer uma revolução através da tecnologia e da técnica, como parte do aparato emancipatório, potencializando a consciência de si para um maior desfrute da vida e de igualdade de direitos. No entanto, como as mentes já estariam amortizadas pela lógica do princípio do desempenho, essas técnicas estariam sendo usadas como instrumento de mortalidade da espécie humana, favorecendo as classes dominantes. Marcuse percebe essa contradição e sugere um outro caminho para pensar a emancipação,[11] os novos focos de resistência e revolução para a classe trabalhadora.
A partir dessas evidências, ele insiste no papel dos estudantes e dos artistas no processo revolucionário e, principalmente, do caráter revolucionário da arte. Ele sugere a necessidade de uma mobilização que precisava acontecer na esfera intelectual, a partir de uma ressignificação do próprio pensamento. Essa ressignificação do pensamento seria possível por meio da crítica constante às tentativas das teorias de estabelecer projetos de mundo baseados nas próprias estruturas do Estado ou do capital. Essa dimensão normativa era rechaçada a fim de dar lugar à possibilidade de surgimento de algo radicalmente outro, uma vez que todo projeto já estaria baseado em violência e na própria noção de razão como colonizadora.
Para Marcuse, esse processo de transformação das estruturas seria, ao mesmo tempo, pessoal e político porque, para ele, o pessoal é político. Compreende-se com isso que a arte opera constantemente nesse limiar entre o pessoal e o político quando evidencia as possibilidades de imaginação político-estética suprimidas pela moralidade civilizada. Mas, então, como a arte contemporânea brasileira vem tensionando aspectos normatizantes e repressores na sociedade? A performance-instalação: Vote nu: por uma política sem vestes, da artista brasileira Natasha de Albuquerque, relaciona arte e política de modo diferenciado ao associar liberdade, deboche e a lógica do escândalo e da superexposição num contexto de crise política.
Essa obra, que é também uma campanha política a favor da nudez, da liberdade e do desnudamento do cotidiano, é composta por colagem de lambes na rua, foto performance, performance, instalação e oficina de nudismo — convoca ao desnudamento do corpo e da política de modo a desafiar padrões normativos da sociedade, experimentando outras corporalidades possíveis com a nudez. Vote nu propõe que as pessoas tirem as roupas em espaços, como galerias, festas e encontros, faz uso de espaços não previstos ou utilizados para exposições como banheiros de galerias, onde quem adere à campanha também se despe, compartilhando o contexto com a nudez.
As instruções para a Oficina de nudismo, proposta por Natasha de Albuquerque como parte do projeto Vote Nu, sugerem uma outra lógica de estar no mundo, possibilitando a imaginação política frente aos limites impostos pela realidade social civilizatória.
1 Faça o que quiser, até ficar nu. 2 Não é necessário respeitar a obra, mas respeite as mina. 3 O nu é totalidade do corpo, trate as pessoas como nus. 4 Votar é uma questão de posicionamento, não é necessário um posicionamento que já exista. 5 Um corpo sem órgãos é capaz de sentir o avesso, assim como você pode de fazer do outro corpo o seu órgão. 6 Um corpo aberto é vivido como mistura, assim respiramos o mesmo ar juntos e misturadinhos. 7 Esta sala é espaço vazio, é lugar a ser construído, mas fora dessa sala é lugar normativo a tomar cuidado: não é responsabilidade da proposta cuidar de nus fora desta sala. Busque testar limites dos espaços. 8 Qualquer banheiro é eternamente legalizado a se posicionar nu.[12]
O passo dado por Marcuse, ao considerar a importância da arte no processo revolucionário, revoluciona também a dimensão do pensamento científico e filosófico estabelecidos.
Historicamente, a natureza foi considerada como instância a ser dominada, sobretudo a natureza interna. Atingindo o patamar de progresso técnico-científico em que o mundo se encontra na segunda metade do século XX, Marcuse propõe a possibilidade de uma articulação não-hierarquizada entre natureza e razão. Por trás desse pensamento há a tese de que razão e natureza estão intrinsecamente ligadas: a natureza humana é vista como enteléquia cujo telos — efetivar sua racionalidade — ainda não foi alcançado, e não há garantias de que o será justamente em razão da permanência da cisão hierarquizada entre razão e natureza, considerada inimiga a ser subjugada. (KANGUSSU, 2008, p. 12)
Se pensarmos que as artes em geral tensionam os limites entre o inconsciente e a realidade, elas escapam ao controle da racionalidade instrumental, e no caso das artes do corpo, existe ainda o próprio corpo enquanto matéria político-estética, com suas ações, gestos, movimentos e a linguagem, produzindo sentidos e significâncias complexas no que tange às formas convencionais de comunicação.
A dança, enquanto manifestação popular, cria tensões sobre condições normativas da própria linguagem na cultura, situando-se nos limiares do erotismo, da sexualidade, da organicidade, das convenções, da técnica, da disciplina e dos devires que podem desestabilizar o sistema antropo-falo-ego-logocêntrico (ROLNIK, 2018). Essas tensões, se partirmos do pressuposto da repressão sobre o corpo, atravessam de forma ainda mais intensa as artes do corpo, como a performance e a dança.
As artes do corpo, entendidas como um espaço de abertura e tensionamento político às estruturas convencionais da linguagem e dos gestos, conversam com o que Marcuse propõe sobre a “alienação da arte” enquanto arte nos processos de emancipação do sujeito. Para ele, essa alienação produzida na arte é em si política.
Tendo em vista a inferiorização (âmbito teológico) ou hipersexualização (âmbito capitalista) sobre o corpo, a dança e a performance — as artes do corpo — parecem incidir exatamente nesse ponto entre natureza e razão. Ser o corpo o principal meio de expressão estética é, de partida, um corte na hierarquia entre razão e natureza. Uma vez que não há um objeto de distanciamento entre obra e artista nas artes do corpo, obra, sujeito e acontecimento, forma e força, subjetividade e fisicalidade se produzem no corpo e em tempo real.
Segundo Kangussu (2008), no texto Sobre o caráter afirmativo da cultura, “Marcuse revela as articulações da esfera política com a estética” (KANGUSSU, 2008, p. 22). A arte faz um desvio em relação ao “princípio de desempenho” quando impõe sua própria lógica de não funcionalidade. A arte não é útil enquanto manifestação humana, por assim dizer. Os mecanismos de apropriação dela pelo mundo capitalista se empenham em torná-la mais um artefato industrial, o que enfraquece o elemento revolucionário que ela possui a priori no sentido de deslocar o sujeito de sua realidade pautada no trabalho repetitivo e sem sentido.
É a partir dessa perspectiva que Marcuse vai defender a ideia de “alienação da arte”, não como algo que retira do sujeito sua consciência política, como no conceito de alienação presente em Marx, mas sim como elemento disruptivo e revolucionário, porque oferece ao sujeito outras dimensões do real. A fantasia, a imaginação, a ficção e o inconsciente como forças informes, capazes de produzir uma consciência emancipada sobre si em relação ao mundo, e esse movimento seria capaz de produzir um sentido de negação ao estabelecimento das coisas. Em outras palavras, o distanciamento da realidade por meio da arte seria inevitavelmente político.
No ensaio A dimensão estética, Marcuse propõe uma crítica à ortodoxia predominante na perspectiva estética marxista, que atribui à arte uma função política e ideológica que enfatizava o caráter de classe da arte. De outro modo, Marcuse vê o potencial político da arte na própria arte como qualidade da forma estética e sugere que “[...] em virtude da sua forma estética, a arte é absolutamente autônoma perante as relações sociais. A arte protesta contra essas relações na medida em que as transcende. Nesta transcendência, rompe com a consciência dominante, revoluciona a experiência” (MARCUSE, 2016, p. 9, grifo do autor).
E continua: “se tem algum sentido falar de arte revolucionária, então só se pode fazê-lo em referência à própria obra de arte, como forma que deveio conteúdo. O potencial político da arte baseia-se apenas na sua própria dimensão estética. A sua relação com a práxis é inexoravelmente indireta, mediatizada e frustrante. Quanto mais imediatamente política for a obra de arte, mais ela reduz o poder de afastamento e os objetivos radicais e transcendentes de mudança” (MARCUSE, 2016, p. 11).
Esse “quanto mais imediatamente política” que Marcuse fala está relacionado à dimensão de aproximação ou reafirmação de uma realidade que pode surgir apenas enquanto denúncia na arte, mas não no sentido de avivar as potencialidades reprimidas dos homens e da natureza. Porque para ele, a função crítica da arte — a sua contribuição para a luta pela liberação — reside na forma estética. Contudo há aqui uma complexidade que merece ser discutida, uma vez que, pode-se dizer, existe uma corrente estabelecida sobre a arte política, como aquelas que expressam uma denúncia de maneira explícita. Mais recentemente ela tem sido principalmente uma arte que afirma os traços identitários como afirmação da existência política das minorias.
O crítico de arte Hal Foster (2014), em O retorno do real, faz um paralelo com o texto O autor como produtor de Walter Benjamin, para sugerir que o novo paradigma da arte política é “o artista como etnógrafo” (FOSTER, 2014, p. 158), e que haveria, portanto, um desvio sutil entre o sujeito definido em termos de classe econômica (burguesia — proletariado, nos termos de Benjamin) para o sujeito definido em termos de identidade cultural. “Apesar de sutil, esse desvio de um sujeito definido em termos de relação econômica para um sujeito definido em termos de identidade cultural é significativo” (FOSTER, 2014, p. 160). Segundo ele, nesse novo paradigma da arte — o outro cultural, pós-colonial, subalterno — “esse fora” seria o ponto a partir do qual a cultura dominante seria transformada, ou ao menos subvertida.
Mas, voltando ao Marcuse, o que ele propõe é que “a forma estética constitui a autonomia da arte relativamente ao dado”, e que, “no entanto, esta dissociação não produz uma ‘falsa consciência’ ou mera ilusão, mas antes uma contra consciência: a negação da atitude realístico-conformista” (MARCUSE, 2016, p. 19).
A tese básica de que a arte deve ser um fator de transformação do mundo pode facilmente tornar-se no contrário, se a tensão entre arte e práxis radical diminuir de modo que a arte perca a sua própria dimensão de transformação. Um texto de Brecht exprime muito claramente esta dialética. O próprio título revela o que acontece quando as forças antagônicas da arte e da práxis se harmonizam (o texto intitula-se: “A arte de representar o mundo de modo a dominá-lo”). Mas mostrar o mundo transformado como dominado significa obscurecer a diferença qualitativa entre o novo e o velho. O objetivo não é o mundo dominado, mas o mundo liberado. Como que reconhecendo este fato, o texto de Brecht começa: “as pessoas que querem mostrar o mundo como um possível objeto de dominação são aconselhadas à partida a não falar de arte, a não reconhecer as leis da arte, a não aspirar à arte.” Por que não? Será porque não diz respeito a arte retratar o mundo como objeto possível de dominação? A resposta de Brecht é: porque a arte é “um poder equipado com instituições e especialistas eruditos que só relutantemente aceitariam algumas das novas tendências. A arte não pode ir mais longe sem deixar de ser arte”. No entanto, diz Brecht, “os nossos filósofos não precisam renunciar por completo ao uso dos serviços da arte, porque será, sem dúvida, uma arte de representar o mundo na forma de dominá-lo”. A tensão essencial entre arte e a práxis é assim resolvida através do jogo magistral sobre o duplo significado da “arte”: como forma estética e como técnica. (MARCUSE, 2016, p. 38)
A necessidade da luta política foi, desde o princípio, um pressuposto de crítica da estética marxista levada a cabo por Marcuse. A estética marxista funda-se precisamente na concepção da arte como modo peculiar do reflexo da realidade objetiva. Para Marx, a arte também era determinada pelos meios de produção, então para pensar uma arte não burguesa que não contribuísse com os modos de alienação do capitalismo, ela precisaria estar engajada num plano ideológico de luta política em direção a uma revolução do proletariado. Para isso, Marx se afasta da concepção hegeliana do artista como gênio para pensá-lo nos termos do materialismo histórico e compreendê-lo como parte integrante da economia. Como consequência disso, Marx não só faz uma crítica da estética transformada em produto, como de alguma maneira estabelece para esta estética uma função ideológica antiburguesa.
Em contraste com o conceito marxista, que assinala a relação do homem consigo mesmo e com o seu trabalho, na sociedade capitalista, a alienação artística é a transcendência consciente da existência alienada — uma alienação de nível superior ou interposta. O conflito com o mundo do progresso, a negação da ordem dos negócios, os elementos antiburgueses na literatura e arte burguesas não decorrem da inferioridade estética dessa ordem nem da reação romântica — nostálgica consagração de uma fase da civilização que desaparece. “Romântico” é um termo de difamação condescendente facilmente aplicado a posições depreciativas de avant-garde, da mesma forma como o termo “decadente” com muito maior frequência denuncia os traços genuinamente progressistas de uma cultura que se extingue do que os fatores reais de decadência. As imagens tradicionais de alienação artística são de fato românticas tanto quanto estão em incompatibilidade estética com a sociedade que a suprime. A grande arte e literatura surrealistas das décadas de 1920 e 1930 ainda a recuperaram em sua função subversiva e libertadora (MARCUSE, 1973, p. 72).
Para Marcuse, a perspectiva marxista estabelece uma função para a arte, que, por sua implicação com a realidade, poderia reduzir as suas potencialidades não apenas de representar o mundo, mas de criar outros mundos. Para isso, ela precisa manter o seu sentido de libertação das lógicas que determinam e oprimem a vida social. Em outras palavras, o sentido revolucionário da arte contra as formas de dominação residiria na sua capacidade de transcender a realidade e o “princípio de desempenho”. Assim, “a verdade da arte reside no seu poder de cindir o monopólio da realidade estabelecida (i.e., dos que estabeleceram) para definir o que é real. Nesta ruptura, que é a formação estética, o mundo fictício da arte aparece como a verdadeira realidade. [...] o mundo da arte é o de outro Princípio de realidade, de alienação — e só como alienação é que a arte cumpre uma função cognitiva: comunica verdades não comunicáveis noutra linguagem; contradiz” (MARCUSE, 2016, p. 19, grifo do autor).
Se em Marx a arte é reflexo de uma realidade objetiva, e tudo o que não for isso é arte burguesa ou alienante, em Marcuse, pelo contrário, a capacidade da arte em produzir um deslocamento dessa realidade dominadora é seu potencial revolucionário. A alienação em Marcuse surge como potência e não como enganação ou ausência de consciência, mas como imaginação e razão emancipadas do domínio da exploração, ou seja, a relação entre arte e política não necessita de uma representação direta da realidade para que haja identificação com o povo, é justamente no movimento de abstração que ela produz em si e para o outro que a arte manifesta sua força política.
O entendimento político da arte que Marcuse propõe conflita com perspectivas já bastante estabelecidas da relação entre arte e política, que entendem a arte como aquela que imprime a violência da realidade na experiência estética. De fato, em um país como o Brasil, essa dimensão é compreensível, uma vez que a violência política atravessa de tal maneira a experiência de vida que a produção estética se torna o espaço de oposição literal, de denúncia e “sublimação” dessas formas de violência. Mas ainda assim, há o sentido da contranarrativa às formas de repressão pela própria dimensão estética no seu caráter libertador. Em países onde a desigualdade social é gritante, a arte responde a um soterramento do “princípio de realidade”.
Soma-se a isso o caráter totalitário presente em algumas sociedades em que a capacidade de abstração é enfraquecida e manipulada por teorias conspiratórias e pelo pânico moral. O pensamento militar ou conservador, ao se limitar a uma lógica do tipo a + b, considera qualquer variável que não se coadune com sua lógica como incompreensível ou tola, portanto sem utilidade. Segundo Ailton Krenak (2020), “a vida não é útil”, então se a direção ética da arte for pela vida, ela potencialmente possui brechas para um outro sentido político de vida. Contudo não é possível abstrair a disposição social da arte enquanto campo em relação às instituições e a economia, como propõe Marcuse a partir de Brecht — do jogo magistral sobre o duplo significado da arte: como forma estética e como técnica. A não utilidade da arte, seu caráter emancipatório esbarra no princípio de realidade baseado na dominação e exploração da vida.
Para Marcuse (1970), a burguesia assentou seu projeto na razão e na liberdade, assim, a cultura afirmativa que pertence à era burguesa está amparada na cisão entre mundo anímico-espiritual, distinção entre cultura e civilização ou entre o belo e o ordinário.
“Civilización y cultura” no es simplemente una traducción de la antigua relación entre lo útil y lo gratuito, entre lo necesario y lo bello. Al internalizar lo gratuito y lo bello y al transformarlos, mediante la cualidad de la obligatoriedad general y de la belleza sublime, en valores culturales de la burguesía, se crea en el campo de la cultura un reino de unidad y de libertad aparentes en el que han de quedar dominadas y apaciguadas las relaciones antagónicas de la existencia. (MARCUSE, 1970, p. 50, grifo do autor)
As dimensões tanto da elitização da arte associada ao ideal burguês, da arte de entretenimento relativa à indústria cultural quanto a arte política como relativas à perspectiva estética marxista entram em contradição num contexto mais generalizado. Contudo deve-se considerar que elas ressurgem enquanto recalque no discurso de ataque. Falas como: “Isso não é arte!”, “Vai pra Cuba!”, “Isso é maluquice!” e “Ganham pra não fazer nada!”,[13] entre outras, sugerem uma noção da arte ligada ao entendimento conservador da arte, em que o belo e o sublime são os termos mais apropriados para definir a arte. Esse modo de compreender arte produz um desprezo pela arte moderna e a vê como degenerada, assim como a arte contemporânea e conceitual. As produções de arte contemporânea se tornam, então, destinadas a poucos especializados, e a arte engajada, entendida como protesto, por vezes bem assimilada pelo mercado de arte, mas num contexto de conflito de narrativas, é considerada por ativistas da extrema direita como parte de uma “ditadura cultural marxista”.
Segundo Marcuse, na sociedade unidimensional administrada pelo capitalismo, há uma falsa noção de liberdade, na qual os sujeitos tornam-se incapazes de reivindicar a sua subjetividade, sua interioridade. Nessa sociedade industrial desenvolvida com seu aparato técnico de produção e distribuição, “o aparato produtivo tende a tornar-se totalitário no quanto determina não apenas as oscilações, habilidade e atitudes socialmente necessárias, mas também as necessidades e aspirações individuais” (MARCUSE, 1973, p. 18).
No entendimento de Marcuse sobre as novas formas de controle, “uma falta de liberdade confortável, suave, razoável e democrática prevalece na civilização industrial desenvolvida, um testemunho de progresso técnico” (MARCUSE, 1973, p. 23). A reificação da arte aparece na obra de Marcuse por meio do conceito de dessublimação repressiva, que chama atenção para o modo como as noções emancipatórias produzidas na e pela arte são apropriadas pelo capitalismo. Em outras palavras, produz-se o risco de ser absorvido por aquilo que refuta.
O poder absorvente da sociedade esgota a dimensão artística pela assimilação de seu conteúdo antagônico. No domínio da cultura, o novo totalitarismo se manifesta precisamente num pluralismo harmonizador, no qual as obras e as verdades mais contraditórias coexistem pacificamente com indiferença. Antes do advento dessa reconciliação cultural, a literatura e a arte eram essencialmente alienação, conservando e protegendo a contradição — a consciência infeliz do mundo dividido, as possibilidades derrotadas, as esperanças não concretizadas e as promessas traídas. Eram uma força racional, cognitiva, revelando uma dimensão do homem e da natureza que era reprimida e repelida na realidade. (MARCUSE, 1973, p. 73)
E ainda:
A tensão entre real e o possível se transfigura num conflito insolúvel, no qual a reconciliação se dá por graça da obra como forma: beleza como a “promesse de bonheur”. Na forma da obra, as circunstâncias reais são postas em outra dimensão na qual a realidade em questão se manifesta como aquilo que ela é. Assim, ela diz a verdade sobre si mesma; sua linguagem deixa de ser a da decepção, ignorância e submissão. A ficção subverte a experiência cotidiana, mostrando que ela é mutilada e falsa. Mas a arte tem esse poder mágico somente como poder de negação. Só pode usar sua própria linguagem enquanto são vivas as imagens que rejeitam e refutam a ordem estabelecida. [...] A realidade tecnológica em desenvolvimento mina não apenas as formas tradicionais, mas as próprias bases da alienação artística — isto é, tende a invalidar não apenas certos “estilos”, mas também a própria essência da arte. (MARCUSE, 1973, p. 74, grifo do autor)
Essa discussão nos interessa no sentido de compreender os modos através dos quais o capitalismo se apropria do caráter de negação da arte, não apenas como produto a ser consumido, mas do seu sentido emancipatório. E, no caso dos ataques contra as artes, que testemunhamos com a ascensão da extrema direita no Brasil nos últimos anos, parece haver uma captura que se deu a partir da repressão. As obras de arte foram absorvidas pela disputa político-ideológica, e a censura parece produzir um tipo de economia.[14] No contexto atual, ela visibilizou políticos, artistas, empresários, produtores culturais e intelectuais numa rede que se desenhou entre a instauração do pânico moral (uso político), os atos de resistência (artistas, organizações etc.) e as novas mídias. “[...] e como a contradição é obra do Logos — confronto racional daquilo ‘que não é’ com aquilo ‘que é’ — ela deve ter um meio de comunicação. A luta por esse meio, ou antes a luta contra sua absorção pela unidimensionalidade predominante, manifesta-se nos esforços de avant-garde para criar um alheamento que tornaria a verdade artística novamente comunicável” (MARCUSE, 1973, p. 77, grifos do autor).
Marcuse se refere, em muitos momentos dos seus trabalhos, à estética surrealista. É interessante porque é no surrealismo que se deu de maneira mais explícita a relação entre arte e inconsciente, arte e psicanálise. Os surrealistas encontraram maneiras de negar as formas de opressão da realidade moderna, evocando imagens de sonhos, da fantasia, da reação automática, sem se preocupar com a lógica. Havia o pressuposto da liberdade e uma predisposição em lidar com elementos escatológicos, com a organicidade do humano e de transfigurações de objetos que são deslocados do seu uso comum.
Mas qual o caminho para essa libertação da não funcionalidade da arte num mundo reificado? Marcuse diz ainda que há uma diminuição da energia erótica em direção à satisfação sexual, e que, nesse sentido, a realidade tecnológica limita o alcance da sublimação. Nas palavras do próprio autor, é a “dessublimação — substituindo satisfação mediada por satisfação imediata” (MARCUSE, 1973, p. 82). “Esta sociedade transforma tudo o que toca em fonte potencial de progresso e de exploração, de servidão e satisfação, de liberdade e de opressão. A sexualidade não constitui exceção” (MARCUSE, 1973, p. 87). “[...] se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por meio da censura, da exclusão, do impedimento, do recalcamento, à maneira de um grande superego, se apenas se exercesse de um modo negativo, ele seria frágil. Se ele é forte, é porque produz efeitos positivos no nível do desejo — como se começa a conhecer — e também no nível do saber. O poder longe de impedir o saber, o produz” (FOUCAULT, 2020, p. 238).
Assim, o mundo reificado amplia a liberdade enquanto intensifica a dominação. Essa é a hipótese que também é muito discutida por Foucault e que dá origem ao conceito de biopoder.[15] Marcuse (1973) sugere ainda que a dessublimação institucionalizada parece ser um fator vital na formação da personalidade autoritária de nossa época, e que o funcionalismo, ao tornar-se artístico, promove essa tendência dos best-sellers da opressão.
A utopia do controle foi a ideia-mestra da Modernidade: a construção de uma sociedade baseada na ordem e na Razão como forma de controlar os impulsos naturais e anti-sistêmicos, garantindo a expansão da lógica capitalista. É necessário ao pensamento crítico apontar como, para essa tendência moderna geral ou impulso de ordem, a dimensão estética sempre esteve presente como uma região a controlar. [...] estética como a esfera responsável pelos sentidos (tanto os sentidos do corpo, a percepção, quanto o sentido presente na moral) sofreu uma modificação no sentido de sua ordenação e delimitação. A utopia do controle baseia-se num impulso de ordenar/domar a esfera dos sentidos, liberando apenas sentidos “úteis” ao funcionamento da sociedade. (BRITO, 2016, p. 40, grifo da autora)
Simone Brito aborda o romantismo como utopia estética presente na origem da modernidade e a modernidade como a utopia do controle. O controle da sensibilidade, com a aceleração e reificação, estabelece os limites de uma utopia estética como fonte de liberdade. Assim, “no pensamento utópico contemporâneo a estética perdeu seu lugar fundamental [...], a teoria crítica abandonou a centralidade da utopia estética e seguiu o caminho de elaboração de um discurso emancipatório com base na experiência moral”, trata-se, então, do “desencantamento da arte numa época tão drasticamente estética” (BRITO, 2016, p. 146).
Para Brito (2016), “o paradigma estético encontra severas limitações na fundamentação de uma reflexão sobre a utopia na sociedade contemporânea” (BRITO, 2016, p. 55). Essa afirmação nos faz questionar: — A arte tem encontrado meios de resistir num sentido emancipatório? Como tem se dado a produção estética no sentido da resistência aos ataques não apenas no âmbito das organizações da classe[16], mas também no âmbito estético? A resistência da arte, que nesse contexto é capturada, institucionalizada, reificada, acontece à margem?
No texto Reescrevendo o futuro: usando ficção científica para rever a justiça de Walidah Imarisha (IMARISHA, 2016), a autora defende que toda articulação política é ficção científica e que a luta por justiça social não pode estar submetida à condição do que é, mas sim do que pode vir a ser. Para tanto, ela diz:
É precisamente por isso que precisamos da ficção científica: ela nos permite imaginar possibilidades fora do que existe hoje. O único modo de desafiar o direito divino dos reis é se tornando capaz de imaginar um mundo no qual reis já́ não nos comandem — ou sequer existam. A ficção visionária oferece aos movimentos por justiça social um processo por meio do qual explorar a criação de novos mundos (embora não seja em si uma solução — e é aí que entra o trabalho prolongado de organização comunitária). Eu propus o termo “ficção visionária” (visionary fiction) para abranger os modos de criação entre gêneros literários fantásticos que nos ajudam a elaborar esses novos mundos. Esse termo nos lembra de sermos completamente “irrealistas” em nossas organizações, porque é somente por meio da imaginação acerca do assim chamado impossível que podemos começar a concretamente construí-lo. Quando liberamos nossas imaginações, questionamos tudo. Reconhecemos que nada disto é fixo, que é tudo poeira estelar, e que nós temos a força para moldar as coisas conforme as fizermos. Para parafrasear Arundhati Roy: outros mundos não apenas são possíveis, mas estão vindo — e já podemos ouvi-los respirar. É por isso que a descolonização da imaginação é o mais perigoso e subversivo de todos os processos de descolonização. (IMARISHA, 2016, p. 7)
Nesse sentido, parece importante compreender os aspectos repressores que constituem a formação da civilização moderna ocidental capitalista como conjunturas que produzem subjetividades sujeitadas, mas que é possível criar brechas e fissuras nesses sistemas. A arte, se é temida e atacada por forças autoritárias de dominação, é porque ainda possui em si um sentido emancipatório, capaz de possibilitar o exercício ético de uma vida não sujeitada, de criar aberturas a outras formas de vida, mesmo que, e sobretudo, em constante movimento de crítica, de agenciamentos e reformulação das condições que constituem os acordos sociais.
Referências
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Recebido em: 16/02/2023.
Aceito em: 15/04/2023.
DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n30.65860.p18-38
* Mestra em Dança pela Universidade Federal da Bahia, Brasil. E-mail: isauratupi88@yahoo.com.
[1] Em 2016, a votação do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, acusada de realizar “pedaladas fiscais”, revelou-se um palco de discursos conservadores, em nome de Deus e da família, incluindo apologia à tortura, como quando o então deputado Jair Messias Bolsonaro dedica seu voto a favor do impeachment ao coronel Brilhante Ustra, o qual é acusado de ter torturado diversas pessoas na Ditadura Militar brasileira, incluindo a própria Dilma Rousseff, que, na época, era militante do grupo Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares).
[2] Algumas das frases ditas pelo ex-presidente Jair Bolsonaro podem ser vistas no site: https://www.cartacapital.com.br/politica/bolsonaro-em-25-frases-polemicas/. Acesso em: 26 fev. 2023.
[3] Este artigo é parte da pesquisa de doutorado da autora sobre censuras e ataques aos artistas do corpo no Brasil. Para acessar entrevistas com artistas vítimas de ataques e censuras, além de análises de outros casos, ver Tupiniquim (2020a e 2020b).
[4] Sinopse do trabalho La Bête. Cf.: https://mam.org.br/exposicao/35-panorama/. Acesso em: 19 nov. 2022.
[5] Cf.: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/02/12/opinion/1518444964_080093.html. Acesso em: 19 nov. 2022.
[6] Essa CPI de maus tratos contra crianças e adolescentes foi presidida pelo então senador Magno Malta em setembro de 2017. Durante a audiência, a artista e mãe, Elisabete Finger, usou seu direito de permanecer calada enquanto Malta discursava sobre o estatuto da criança e do adolescente. Meses depois, membros da CPI entraram com pedido de ação coercitiva contra o artista Wagner Schwartz e o curador do evento no MAM, cujo mérito foi negado pelo STF.
[7] O bolsonarismo pode ser caracterizado como um movimento de extrema direita ligado a Jair Messias Bolsonaro, político brasileiro que se tornou presidente da república em 2018. Segundo Armando Boito Jr. (2020), o bolsonarismo pode ser entendido como um movimento neofascista no Brasil, posto que se apresenta como um movimento político reacionário das camadas intermediárias da sociedade capitalista e como um tipo específico de ditadura burguesa. Para o autor, o processo de deterioração da democracia burguesa e das instituições do Estado produz alterações no regime político sendo possível “observar ameaças e atentados às liberdades políticas – censura, atentados ao direito de reunião, prisões arbitrárias etc.” (BOITOJR., 2020, p.112), aspectos que identificamos nos anos de governo de Jair Bolsonaro.
[8] A judicialização, como parte do aparelho de Estado, utilizado na guerra de narrativas pela extrema direita contra artistas, foi recorrente, além do desmonte sistemático das políticas culturais e instâncias estatais ligadas à cultura.
[9] Isabela Kalil, antropóloga brasileira, membro do Observatório da extrema direita (plataforma de pesquisa dedicada a monitorar e analisar ideias, movimentos, partidos e lideranças de extrema direita), diz que essa a nova extrema direita não se restringe a uma classe social, e não pode ser facilmente definida. Cf.: https://www.oedbrasil.com.br/
[10] O termo alienação é empregado aqui a partir da perspectiva marxista, tendo em vista a perda de reconhecimento de si com relação ao trabalho como estrutura de dominação.
[11] Na obra de Marcuse, pode-se perceber uma crescente ênfase no caráter produtivo da sensibilidade nas determinações do real, o espaço da razão é circunscrito por leis simbólicas em cuja elaboração a sensibilidade desempenha um papel ativo (KANGUSSU, 2008, p. 13).
[12] Texto retirado do portfólio da artista compartilhado com a autora.
[13] Frases ditas em manifestações da extrema direita no Brasil no espaço público ou nas redes sociais (internet).
[14] É sabido, por exemplo, que diversas obras censuradas na ditadura militar no Brasil, eram ainda mais vendidas, como foi o caso do álbum Índia, de Gal Costa, entre outros, no entanto, o contexto atual oferece outras nuances.
[15] O conceito de biopoder em Foucault aparece no primeiro volume da História da sexualidade, e se caracteriza como fundamental ao nascimento do capitalismo, através dos mecanismos de controle dos corpos, com o poder de deixar viver ou morrer.
[16] Me refiro aqui a movimentos e organizações autônomas que surgiram entre produtores culturais, artistas, jornalistas, pesquisadores e pessoas do direito (advogados), dedicadas a mapear casos de censura, criar mobilizações e principalmente oferecer apoio jurídico aos artistas em casos de processos, algo bastante recorrente no atual contexto de censura. Alguns deles são: Mobile, 324 artes, Artigo5, Nonada Jornalismo, Observatório de censura à arte, Observatório da cultura, entre outros.
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