ENSAIO SOBRE A REVOLUÇÃO BURGUESA À LUZ DO PENSAMENTO SOCIAL, ECONÔMICO E POLÍTICO BRASILEIRO
ESSAY ON THE BOURGEOIS REVOLUTION IN THE LIGHT OF BRAZILIAN SOCIAL, ECONOMIC AND POLITICAL THINKING
Leonardo Figueiredo de Souza **
Resumo
O objetivo deste artigo é analisar a revolução burguesa à luz do pensamento social, econômico e político brasileiro. Para tanto, fizemos um estudo bibliográfico destacando autores do pensamento sociológico clássico e do pensamento social, econômico e político brasileiro. O trabalho é dividido em duas partes; na primeira, discutimos a revolução burguesa na Europa à luz do pensamento sociológico clássico; em seguida, refletimos sobre a revolução burguesa no contexto brasileiro, a partir da discussão teórica das décadas de 1950/60, ressaltando autores do pensamento social, econômico e político brasileiro que se debruçaram sobre esse tema no cenário histórico brasileiro. Os autores divergem quanto à interpretação sociológica da revolução burguesa brasileira, lembrando-a como um fato histórico lento, datado com a abolição do trabalho escravo ou com a expansão da cafeicultura, destacando-a como uma contrarrevolução ou revolução que existiu ou não, mas convergem no sentido de que ela foi determinada por fatores sociais, econômicos e políticos, internos e externos ao Brasil.
Palavras-chave: revolução burguesa; pensamento social; sociologia; capitalismo.
Abstract
The general objective of this article is to analyze the bourgeois revolution in Brazilian social, economic and political thought. To this end, we conducted a bibliographical study highlighting authors of classical sociological thought and Brazilian social, economic and political thought. The work is divided into two parts; in the first we discuss the bourgeois revolution in Europe in the light of classical sociological thought; then, we reflect on the bourgeois revolution in the Brazilian context, from the theoretical discussion of the 1950/60, highlighting authors of Brazilian social, economic and political thought who problematized this theme in the Brazilian historical scenario. The authors differ regarding the sociological interpretation of the Brazilian bourgeois revolution, remembering it as a slow historical fact dated with the abolition of slave labor or with the expansion of coffee growing, highlighting it as a counter-revolution or revolution, which existed or not, but they converge in the sense that it was determined by social, economic, and political factors, internal and external to Brazil.
Keywords: bourgeois revolution; social thought; sociology; capitalism.
Introdução
O presente artigo possui como objetivo geral analisar a revolução burguesa a luz do pensamento social, econômico e político brasileiro. Para tanto, em termos metodológicos, fizemos um estudo bibliográfico da sociologia brasileira clássica e ressaltamos as principais contribuições dos autores para o assunto. Buscamos ressaltar a problemática, que ganha força a partir das décadas de 1950/60 na sociologia brasileira, sobre se houve ou não revolução burguesa no Brasil e de que forma essa mudança histórica ocorreu.
O trabalho é dividido em dois momentos. No primeiro, realizamos uma reflexão sobre a dupla revolução burguesa — francesa e industrial —, que alterou as estruturas sociais, econômicas e políticas. Ressaltamos a interpretação sociológica dada por Marx, Durkheim, Weber e Simmel ao acontecimento e seus desdobramentos. Aqui, a ideia é mostrar a transição histórica promovida pela dupla revolução, em seus aspectos sociológicos fundamentais.
Em um segundo momento, discutimos a revolução brasileira. Para tanto, ressaltamos o caráter da dependência da América Latina ante o capitalismo mundial, de um modo geral, além de fazermos uma breve reflexão histórica. Situamos a polêmica que gira em torno do tema, destacando os mais variados pontos de vistas dentro do pensamento social brasileiro. Alguns que conversam entre si e outros que divergem, causando, dessa forma, uma ambiguidade na intepretação histórica da revolução burguesa. Entretanto, embora dissonantes, todas as perspectivas teóricas entendem que existe uma burguesia e um capitalismo a ela obediente no Brasil — é um fato inconteste.
As revoluções burguesas e as suas interpretações sociológicas
Compreender a revolução burguesa e as suas mais variadas intepretações sociológicas, requer entendê-la como um processo complexo no tempo e no espaço. Analisar as mudanças históricas implica, com toda modéstia, em não aceitar nenhuma teoria geral da história (GERTH; MILLS, 1973, p. 47). Trata-se de aceitar as ambiguidades e o imenso universo de informações que os processos de mudanças históricos-estruturais colocam.
Nesse sentido, analisar as mudanças históricas exige que se determine o que muda, como muda, em que direção, a que velocidade e por quê. Nesse sentido, entendemos por mudança social: “[...] ao que quer que possa acontecer no curso do tempo aos papéis, às instituições, ou às ordens compreendidas em uma estrutura social: o seu aparecimento, expansão ou declínio” (GERTH; MILLS, 1973, p. 43). Não obstante, para os nossos fins, buscaremos entender a revolução burguesa como acontecimento histórico que viabilizou o surgimento/expansão do capitalismo e o declínio de outras formas de organização social, tomando o ponto de vista do Ocidente.
A transformação do mundo entre 1789 e 1848 foi uma modificação advinda da dupla revolução: a Revolução Francesa de 1789 e a Revolução Industrial (inglesa) contemporânea. Essas transformações modificaram e continuam produzindo mudanças no mundo até os dias de hoje. Juntas, essas transformações, representam o triunfo da indústria capitalista, da classe média ou da sociedade burguesa liberal; constituem o triunfo das economias e Estados em uma determinada região geográfica do mundo (parte da Europa e alguns trechos da América do Norte) (HOBSBAWM, 1994, p. 15-17).
A Revolução Industrial foi uma explosão, isto é, pela primeira vez na história da humanidade foram retirados os grilhões do poder produtivo das sociedades humanas, que daí tornaram-se capazes de multiplicar rapidamente os homens, mercadorias e serviços. A primeira indústria a se revolucionar foi a do algodão; até 1830, era a única indústria que predominava, a fábrica ou o engenho. Suas consequências sociais foram a transição para uma nova economia, combinada com miséria e revoluções em 1838 no continente europeu, além de amplos movimentos cartistas na Grã-Bretanha. (HOBSBAWM, 1994, p. 44-55).
A Revolução Francesa, por sua vez, foi a responsável pela transformação da sociedade no plano político e ideológico. Foi a França que fez suas revoluções, e com elas, suas ideias. Foi esse país o responsável por difundir no mundo o vocabulário da política liberal, radical-democrática e do nacionalismo. A Revolução Francesa forneceu a todas as sociedades os códigos legais, o modelo de organização técnica e científica e o sistema métrico de medidas. Em suma: “A ideologia do mundo moderno atingiu as antigas civilizações que tinham até então resistido às ideias europeias incialmente através da influência francesa. Essa foi a obra da ‘Revolução Francesa’” (HOBSBAWM, 1994, p. 72).
O pensamento sociológico europeu talvez seja um dos principais fios condutores de interpretação dessa dupla revolução burguesa. Lançando mão de distintos métodos e teorias, os pensadores sociais debatiam-se consigo mesmo e entre si para dar ao mundo uma interpretação científica da nascente sociedade moderna ocidental.
Todo modelo de estrutura social implica em um modelo de mudança histórico-social. A história configura-se nas mudanças que as estruturas sociais sofrem (GERTH; MILLS, 1973, p. 21). Por isso, Marx, Weber, Durkheim e Simmel, com suas especificidades, possuem intepretações da mudança social.
Weber (2004) estava preocupado com o ethos econômico, isto é, como o modo de agir, pensar e sentir do homem moderno que visava o lucro de forma racional e sistemática — o espírito do capitalismo. Weber (2004) está preocupado, em essência, com os fenômenos culturais que só a cultura ocidental trouxe. Sua tese central está em fazer a imputação causal de um único fato histórico que permita a explicação da influência de certas ideias religiosas na formação do espírito do capitalismo, isto é, de uma determinada atividade que busca o lucro de modo racional e sistemático. Vale destacar que Weber parte dos dados estatísticos ocupacionais, em empresas, que demostram que os cargos de maior qualificação e mais bem remunerados estão preenchidos por pessoas vinculadas ao protestantismo.
Aliado a isso, o autor busca nas correntes do protestantismo ascético, o luteranismo, o pietismo e metodismo, e as seitas anabatista, e, sobretudo, no calvinismo, as bases de uma ética protestante que ajudou a construir esse modo de vida, chamada por ele, com base em Benjamin Franklin, de “espírito do capitalismo”. Para a doutrina calvinista, da predestinação, os homens eleitos por Deus conseguem sua salvação a partir de uma disciplina, do trabalho, do cálculo e da busca pela riqueza. Por fim, convém mencionar os aspectos do “espírito do capitalismo” encontrados por Weber no excerto Retratos da cultura americana”, de Benjamin Franklin: 1) a noção de que “tempo é dinheiro”, uma alusão à noção de poupar e guardar dinheiro; 2) o suposto de que “crédito é dinheiro”, uma referência ao pagamento de uma dívida; 3) a noção viciosa de que “dinheiro gera mais dinheiro”, referência clara à busca pelo lucro; 4) “o bom pagador é o senhor da bolsa de outro homem”, isto é, quem paga em dia suas dívidas possui credibilidade e confiança no mercado. Em essência, todos esses aspectos da vida moderna elencados já se encontravam nas correntes do protestantismo ascético. Portanto, na visão weberiana, a ética protestante é a base do espírito do capitalismo, ou seja, de um modo de agir, pensar e sentir do homem moderno, seja ele capitalista ou proletariado. Tanto assim que, nas sociedades modernas, a busca pelo tempo perdido, pelo acesso ao crédito, por mais dinheiro e credibilidade está na agenda da maioria das pessoas.
Simmel (2005), na mesma linha, estava refletindo sobre a vida dos indivíduos nas grandes cidades com o “blasé”, em outras palavras, com um modo de vida baseado no “espírito contábil”, no cálculo que fixa as partes conforme o ideal da matemática, e, sobretudo, na indiferença do indivíduo para com a sociedade.
Marx e Engels (1998, 2005) estavam estudando a sociedade capitalista — nela, encontrava-se, em antagonismos, a burguesia, que detinha os meios de produção e a propriedade privada, e o proletariado, que possuía apenas sua força de trabalho e era explorado pela primeira.
Durkheim, “[...] o sociólogo da ordem e da integração, o metodólogo positivista da objetividade e da coisificação” (PIZZORRO, 2005, p. 103), também possui, como Marx e Weber, sua própria teoria da modernidade, e, por conseguinte, da revolução burguesa. Com o advento da divisão social do trabalho, as sociedades simples foram perdendo espaço para as sociedades complexas. Nas primeiras, os atores vinculavam-se pela “consciência comum”[1] produzindo a “solidariedade mecânica”, que é a argamassa da sociedade. Nesta, caso os sujeitos tentassem rebelar-se contra o imperativo coletivo, a sanção recairia sobre eles por meio da pena; por isso, aqui, o “direito penal” é a “moral”[2] vigente. Com o progresso do meio social, isto é, da sua “densidade dinâmica”[3] e de sua “densidade material”[4], sobrevém uma nova época em que o indivíduo se descola da sociedade, ganha autonomia e personalidade. Neste processo, constitui-se a divisão social do trabalho, produzindo a “solidariedade orgânica”. Neste cenário, o indivíduo ao atentar contra a norma vigente, sofrerá uma sanção não da sociedade como um todo, mas de alguma de suas partes restritivas; temos, enfim, o direito restitutivo. Com efeito, na teoria da modernidade durkheimiana possuímos, portanto, dois tipos de solidariedade positivas, que as seguintes características distinguem:
1° A primeira liga diretamente o indivíduo à sociedade, sem nenhum intermediário. Na segunda, ele depende da sociedade, porque depende das partes que a compõe.
2°A sociedade não é vista sob o mesmo aspecto nos dois casos. No primeiro, o que chamamos por esse nome é um conjunto mais ou menos organizado de crenças e de sentimentos comuns a todos os membros do grupo: é o tipo coletivo. Ao contrário, a sociedade de que somos solidários no segundo caso é um sistema de funções diferentes e especiais unidas por relações definidas. Aliás, essas duas sociedades são uma só coisa. São duas faces de uma única e mesma realidade, mas que, ainda assim, pedem para ser distinguidas.
3° Dessa segunda diferença decorre outra, que vai nos servir para caracterizar e denominar esses dois tipos de solidariedade" (DURKHEIM, 1999, p. 106).
Durkheim e os outros autores estavam, em maior e menor medida, preocupados em caracterizar o processo de mudança social engendrado pela dupla revolução burguesa. Weber, com a compreensão ethos econômico, Marx, por meio da explicação do modo de produção capitalista, e Durkheim, por meio do estudo das solidariedades mecânica e orgânica.
Os pensamentos desses autores, portanto, são sintomáticos da tentativa de explicação científica de uma nova forma de organização econômica e política. Conforme a bastante conhecida frase de Marx e Engels, tudo o que era sólido se desmanchou no ar, e em seu desenvolvimento, a burguesia revolucionou “incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais (MARX, ENGELS, 1998, p. 42-43). Ou seja, para Marx e Engels, a burguesia era a classe socialmente revolucionária, pois destruiu o feudalismo e criou novas forças produtivas. Max Weber também revela o caráter particular da sociedade criada pela burguesia. A peculiaridade da gênese do capitalismo moderno, para Weber, é gestada pelo aparecimento de um conjunto de elementos que tornam a contabilidade racional do capital como norma para todas as grandes empresas lucrativas que se ocupam da satisfação das necessidades cotidianas (WEBER, 1999, p. 249-250). Dessa forma, Weber destaca quatro fatores que favorecem o empreendimento capitalista: a apropriação de todos os bens materiais de produção, a liberdade mercantil, a técnica racional e a instituição do trabalho livre (WEBER, 1999, p. 249-251).
No mais, a burguesia além de fazer a revolução, isto é, modificar totalmente as estruturas de apropriação — econômica, e as estruturas de dominação — política, criou uma sociedade a sua imagem e semelhança — o capitalismo —, conforme demostram Marx e Weber. A sociedade capitalista sobrevive apropriando-se de terra e força de trabalho. Entretanto, os processos pelos quais o capitalismo se consolidou no mundo são diversos e atravessados por ambiguidades; a América Latina e o Brasil são exemplos históricos disso como veremos adiante.
A revolução burguesa na América Latina (o caso brasileiro)
Historicamente, pode-se dizer que os países latino-americanos foram colônias por mais de trezentos anos, ficaram independentes no princípio do século XIX, enfrentaram a dominação inglesa no século XIX, e, mais tarde, no século XX, a norte-americana[5] (PRADO, 1994, p. 4). Isso nos leva a considerar que a América latina sempre esteve sob a dominação externa, ora colonial, ora neocolonial, ora imperialista, ora neoimperialista. Portanto é impossível refletir sobre a revolução burguesa no quadro histórico latino-americano sem levar em consideração essas formas de dominação combinadas como modelos específicos de estratificação social.
A dominação colonial teve, como as outras formas de exploração subsequentes, fundamentos políticos e legais particulares. Nessa fase, existia uma ordem social estratificada e combinada com estamentos de senhores de terras e castas de militares e líderes religiosos, na qual apenas os colonizadores eram capazes de participar das estruturas existentes de poder e transmitir posição social por meio da linhagem europeia. Isso ocorreu graças à transplantação dos padrões ibéricos de estrutura social, adaptados aos trabalhos forçados do nativo ou à escravidão. Sob tal condição societária, o tipo legal e político de dominação colonial possuía um caráter ilimitado de exploração (FERNANDES, 1973, p. 13).
Da crise do colonialismo[6] surge o neocolonianismo. Segunda forma de dominação, articulada pela Inglaterra, que foi mais um produto do acaso do que da imposição. Ela se deu porque os ingleses possuíam os recursos necessários para produzir os bens importantes, e seus setores sociais dominantes tinham grande interesse na continuidade da exportação. Seus efeitos históricos/estruturais foram agravados pelo fato de que os novos controles desempenharam uma função legitimada: “[...] a manutenção do status quo ante da economia, com o apoio e cumplicidade das ‘classes exportadoras’ (os produtores rurais) e os seus agentes ou os comerciantes urbanos” (FERNANDES, 1973, p. 15).
A terceira forma de dominação surge por intermédio da reorganização da economia mundial, provocada pela Revolução Industrial[7]. Foi por meio do imperialismo que o capitalismo dependente surgiu como uma realidade histórica na América Latina. Entretanto, o lado negativo desse tipo de dominação para os povos latinos pode ser expresso em dois níveis. Primeiro, no condicionamento e reforços externos das estruturas econômicas arcaicas, baseado na produção de matérias-primas e de bens primários. Segundo, no malogro do modelo de desenvolvimento absorvido pelas burguesias emergentes das nações europeias hegemônicas (FERNANDES, 1973, p. 16-17).
O quarto tipo de dominação, o imperialismo total, surgiu da conjunção com a expansão das grandes empresas corporativas na América Latina — várias nas esferas comerciais, de serviços e financeiros, mas a maioria nos campos da indústria leve e pesada. Essas empresas representam o capitalismo corporativo ou monopolista (FERNANDES, 1973, p. 18).
Coincide com essas formas de dominação a essência da formação histórica brasileira. Foi com o objetivo exterior, voltado para fora do país, sem atenção ou consideração que não estivesse vinculado ao comércio, é que se organizaram a sociedade e a economia brasileira: “[...] Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois, algodão, e em seguida café, para o comércio exterior” (PRADO JÚNIOR, 1994, p. 25-26).
Prado Júnior (2006, p. 23), mesmo acertando em sua leitura sobre a essência história da formação brasileira ao situá-la como fornecedora de açúcar, de tabaco, de outro e diamante, de algodão e café, para o comércio exterior — uma economia com objetivo exterior voltada para fora do país —, ainda assim reproduz o dualismo estrutural em sua leitura ao colocar, por exemplo, a Amazônia como espaço feudal.
Para Caio Prado Júnior a “colonização do vale amazônico” ocorreu incialmente no litoral por meio do açúcar, mas sem grandes progressos nessas atividades produtivas por conta das “condições naturais desfavoráveis”. Em sua intepretação, a principal atividade econômica na Amazônia foi a “colheita florestal” do cravo, da canela, da castanha, da salsaparrilha e do cacau, além de madeiras e produtos abundantes no universo animal, como peixes, caça, tartaruga. Para ele, a única mão de obra utilizada na Amazônia foi a dos indígenas que eram explorados pelos jesuítas e carmelitas e, mais tarde pelos colonos que vieram a substituir as comunidades religiosas sob incentivo de Marquês de Pombal, ministro de D. José, que aboliu as missões religiosas na Amazônia (PRADO JÚNIOR, 2006, p. 69-75).
Assim, para Caio Prado, as principais atividades econômicas da Amazônia eram os extrativismos das drogas do sertão, com relações de produção rurais e rudimentares, e com uma relação de produção envolvendo apenas portugueses e indígenas — relação de servidão, tipicamente feudal.
Determinado dualismo-estrutural também aparece no pensamento de Sodré (1976) sobre o Brasil. Para esse autor, a produção do açúcar nos séculos XVI e XVII, baseado no escravismo, precisou da pecuária — ou do pastoreiro — de traços feudais para se sustentar enquanto atividade produtiva voltada para a exportação. Novamente a dualidade entre costa e serra reaparece aqui como uma dualidade transplantada da Europa para o Brasil. A costa seria o lugar do escravismo, de uma economia colonial ou capitalista, e o sertão, o espaço do feudalismo onde predominava a relação do servo e do senhor.
Contudo esse dualismo estrutural é extremante problemático porque, ao se classificar e separar os espaços dessa forma, acaba por se criar mundos supostamente distintos dentro de uma única totalidade social. A Amazônia passa, com isso, a ser interpretada como o lugar do rural, do arcaico, do feudal, onde o capitalismo não existe, em contrapartida do urbano — como coloca Sodré:
Formas de servidão, ainda, as que utilizam o indígena, e se repetem em áreas dependentes de Portugal, no Brasil: a da economia coletora amazônica, por exemplo, em que as relações feudais apresentam outra de suas faces americanas, quando todo o sistema “produtor” de especiarias assenta na prestação de serviço pelo índio, que conhecia os rios, a floresta, as plantas úteis e que operava livremente a atividade de coleta, em benefício das ordens religiosas instaladas no vale imenso. A vastíssima área amazônica desconhece, desde o seu instante inicial, o escravismo: entra na história pela porta feudal, as relações ali introduzidas e estabelecidas, fundamentais para a produção que oferece, são feudais [...]. Tudo isso acontece no campo, entretanto. E as cidades? Claro que o Brasil não conheceu as atividades urbanas que permitiram aos burgos medievais a sua destacada função. Mas parece que a atividade artesanal, e mesmo os ofícios, tem sido pouca estudada, não que não tenha existido (SODRÉ, 1976, p. 32-34).
Isso nos leva a considerar que a revolução burguesa no Brasil e na América Latina sempre esteve determinada pelas condições econômicas e políticas das burguesias dos países coloniais e imperialistas, mas com uma intepretação enviesada sobre feudalismo oriunda da Europa. Exemplo disso é o Peru de Mariátegui. Na economia colonial peruana, existia uma dualidade econômica: na serra, um regime econômico feudal onde eram presentes reminiscências da economia comunista indígena combinada com a servidão e a posse da terra; na costa, ainda sobre o solo feudal, crescia uma economia burguesa incipiente. Tanto na costa quanto na serra, entretanto, a classe latifundiária não conseguiu transformar-se em uma burguesia capitalista. A mineração, o comércio, os transportes, encontravam-se nas mãos do capital estrangeiro [8] (MARIÁTEGUI, 2010, p. 46-47).
No Peru, o capitalismo com seus valores morais, políticos e psicológicos não encontrou clima. O criollo¸ equivalente ao capitalista, possuía o conceito de renda ao em vez do de produção. O sentimento de aventura, o ímpeto de criação eram desconhecidos nessa sociedade. O capitalismo, na intepretação do autor, seria um fenômeno urbano: tem o espírito industrial, manufatureiro, mercantil; já na sociedade peruana, ao contrário “[...] se encarregou ao espírito do feudo — antítese e negação do espírito do burgo — a criação de uma economia capitalista” (MARIÁTEGUI, 2010, p. 50).
Visualizava-se melhor o aspecto de revolução burguesa no Peru quando era ressaltada sua relação com a terra. O problema agrário se apresentava como problema de liquidação do feudalismo no Peru. Essa revolução deveria ser feita pela burguesia peruana “[...] mas no país não existia [...] uma verdadeira classe capitalista. A antiga classe feudal — camuflada ou disfarçada de burguesia republicana — conservou suas posições” (MARIÁTEGUI, 2010, p. 68).
Nesse sentido, ao invés do capitalismo, sobreviviam reminiscências feudais [9] que inviabilizavam a expansão do capitalismo no país: “[...] Sobrevive no feudalismo [...], um capitalismo larvar e incipiente [...]. As raízes do feudalismo estão intactas. Sua subsistência é responsável [...] pelo atraso do nosso desenvolvimento capitalistas” (MARIÁTEGUI, 2010, p. 70). O feudalismo seria, portanto, o responsável pela não realização de uma revolução burguesa no país.
A revolução encontrou um Peru atrasado na formação de sua burguesia. A população camponesa — a indígena — não participou diretamente na revolução. O programa revolucionário não representava suas reivindicações enquanto classe trabalhadora: “Por isso, a política de desvinculação da propriedade agrária [...], não atacou o latifúndio. E [...] atacou ao contrário, e em nome dos postulados liberais, a ‘comunidade’” (MARIÁTEGUI, 2010, p. 83).
Portanto, para Mariátegui, a revolução burguesa no Peru não conseguiu abalar as estruturas do suposto feudalismo. Para ele, o processo de dominação colonial resignou as classes sociais dominantes peruanas ao ponto de deixá-las em uma posição confortável, com o domínio sobre a terra e a concentração de riquezas em relação à economia no mundo.
Não obstante, a interpretação de Sodré (1976), Mariátegui (2010) e Prado Júnior (2006), por carregarem consigo o vício não dialético do dualismo estrutural, enxergam a sociedade dividida entre rural e urbano, arcaico e moderno, feudal e capitalista. Trata-se de uma positivação da dialética que amarra a realidade em camisas de forças de conceitos pré-estabelecidos.
Nesse sentido, por causa do pensamento dual, perde-se a dimensão dialética entre a totalidade e as partes. Sobre o Brasil acaba recaindo o fardo de ser um continente dividido entre o rural, o arcaico, o feudal, ao passo que o capitalismo acaba sendo interpretado como um fenômeno apenas urbano. Esse pensamento “[...] envolve, em primeiro lugar, o clássico processo de positivação da dialética [...]. Ela privilegia a causação funcional e abandona totalmente o princípio da contradição” (IANNI, 1976, p. 54).
Com efeito, é necessário pensar para além da positivação dialética. Situar as mudanças sociais levando em consideração as contradições dos particulares processos históricos que as engendram. Isso não significa negar as contribuições dos cânones da sociologia e do próprio marxismo viciado pela passagem histórica europeia feudalismo/capitalismo. Pelo contrário, deve-se apropriar-se desses pressupostos para fazer a crítica à razão dualista com maior êxito, como sugere Oliveira (2003).
Contra esse dualismo estrutural, Oliveira (2003) buscou entender a expansão do capitalismo em sua dimensão dialética e histórica — e é ele um dos nossos pontos de partida para entender o processo de mudanças sociais no Brasil.
Para Oliveira (2003), o processo de urbanização, com seus vários níveis e formas, constitui a base de acumulação global do capitalismo no Brasil no pós-1930. Essa expansão, relativamente pobre, faz surgir, em certo sentido, setores atrasados e modernos da economia que sustentam o processo de industrialização brasileira. Contudo, o arcaico e o moderno não são excludentes ou partes apenas opostas. Pelo contrário, a originalidade do capitalismo brasileiro ocorre pela relação dialética: o arcaico produz o novo e o novo reproduz o arcaico para compatibilizar a acumulação capitalista:
[...] a expansão do capitalismo no Brasil se dá introduzindo relações novas no arcaico e reproduzindo relações arcaicas no novo, um modo de compatibilizar a acumulação global, em que a introdução das relações novas no arcaico libera força de trabalho que suporta a acumulação industrial-urbana e em que a reprodução de relações arcaicas no novo preserva o potencial de acumulação liberado exclusivamente para os fins de expansão do próprio novo [grifos nossos]. Essa forma parece absolutamente necessária ao sistema em sua expressão concreta no Brasil quando se opera uma transição tão radical de uma situação em que a realização da acumulação dependia quase integralmente do setor externo, para uma situação em que será a gravitação do setor interno o ponto crítico da realização, da permanência e da expansão dele mesmo. Nas condições concretas descritas, o sistema caminhou inexoravelmente para uma concentração da renda, da propriedade e do poder, em que as próprias medidas de intenção corretiva ou redistributivista [...] (OLIVEIRA, 2003, p. 60).
Essa particularidade do capitalismo brasileiro reflete-se na expansão do próprio espaço urbano produzido e sustentado pelo espaço rural. Nesse sentido, rural e urbano completam-se em uma relação dialética. Isso coloca um problema central para o entendimento da urbanização do rural pelo capitalismo: a relação dialética entre ambos.
Por isso, em um uma perspectiva de sociedade global, a distinção campo-cidade, dá-se entre estes dois termos uma relação de dominação-subordinação que os coloca em posições recíprocas diferentes, conforme a produção de riqueza esteja concentrada pelo campo ou pela cidade, como lembra Queiroz (1978).
Contudo, no capitalismo brasileiro, o processo de concentração de riquezas encontra-se no urbano, mesmo que este tenha sido produzido pelo rural. Isso não significa dizer que no rural existe o feudalismo e no urbano o capitalismo. Pelo contrário, nos dois espaços, o capitalismo é predominante, a diferença é que o rural, por meio do processo histórico, é dominado e subordinado ao urbano: [10]
[...] Mesmo considerando que as particularidades locais e regionais provenientes dos tempos em que a agricultura predominava não desapareceram, que as diferenças daí emanadas acentuam-se aqui e ali, não é menos certo que a produção agrícola se converte num setor da produção industrial, subordinada aos seus imperativos, submetida às suas exigências. Crescimento econômico, industrialização, tornados ao mesmo tempo causas e razões supremas, estendem suas consequências ao conjunto dos territórios, regiões, continentes. Resultado: o agrupamento tradicional próprio à vida camponesa, a saber, a aldeia, transforma-se; unidades mais vastas a absorvem ou o recobrem; ele se integra à indústria e ao consumo dos produtos dessa indústria. A concentração da população acompanha a dos meios de produção. O tecido urbano prolifera, estende-se, corrói os resíduos da vida agrária (LEFEBVRE, 1999. p. 17, grifo nosso).
Por conseguinte, entender o processo de mudanças sociais no Brasil é entender a passagem de um rural subordinando e dominando o urbano para um urbano subordinando e dominando o rural. Em outras palavras, o tecido urbano muda a vida agrária; a vida camponesa transforma-se em unidades vastas absorvidas pela indústria (LEFEBVRE, 1999).
Entender os processos históricos significa dar a eles sentidos próprios e os interpretar dialeticamente negando a divisão positivista. Implica, portanto, mergulhar na complexidade latino-americana como faz Wolf (2003), ao interpretar os processos históricos de mudanças no México.
Para Wolf (2003), no México, os grupos sociais organizaram-se e reorganizaram-se em conflito e em acomodação, ao longo do processo histórico, em torno de eixos econômicos e políticos. Em um primeiro momento histórico, após a conquista espanhola, o poder político, em nível nacional, concentrou-se nas mãos de funcionários reais, e a economia baseou-se na encomienda, na qual os colonizadores, que tinham espírito empresarial, lutaram contra as comunidades religiosas e militares pela supressão de mão de obra das comunidades indígenas. Nessa luta, as autoridades reais ajudaram os camponeses indígenas em comunidades corporadas que se revelaram resistentes a mudanças externas. No segundo período histórico, os colonos com espírito empresarial (proprietários de haciendas, grandes plantations) livraram-se da Coroa e estabeleceram enclaves locais com autonomia econômica e política, enfraquecendo, dessa forma, o poder nacional e colocando os camponeses indígenas como satélites do complexo empresarial das haciendas. Já no terceiro período de transformações sociais, os complexos empresariais situados entre nações e comunidades foram varridos pela revolução mexicana de 1910. Os meios políticos voltaram a ser nacionais e a forma de organização econômica passou a ser o ejido ao invés das haciendas.
A revolução burguesa no Brasil, como em grande parte da América Latina, é um acontecimento histórico marcado por ambiguidades, por interpretações divergentes e convergentes, tanto historicamente quanto teoricamente ou metodologicamente, mas que não fogem à ideia de que ela foi determinada, tanto internamente quanto externamente, por forças coloniais e imperialistas. Essas intepretações dissonantes, no aspecto interpretativo, podem ser visualizadas com melhor clareza ao se estudar o pensamento social, econômico e político brasileiro.
Para Sérgio Buarque de Holanda, a revolução burguesa no Brasil é um processo demorado, com o principal marco na abolição do trabalho escravo, mas que conserva, ainda nos dias de hoje, traços de uma sociedade personalista:
A grande revolução brasileira não é um fato que se registrasse em um instante preciso; é antes um processo demorado e que vem durando pelo menos há três quartos de séculos. Seus pontos culminantes associam-se como acidentes diversos de um mesmo sistema orográfico. Se em capítulo anterior se tentou fixar a data de 1888 como o momento talvez mais decisivo de todo o nosso desenvolvimento nacional, é que a partir dessa data tinham cessado de funcionar alguns dos freios tradicionais contra o advento de um novo estado de coisas, que só então se faz inevitável. Apenas nesse sentido é que a Abolição representa, em realidade, o marco mais visível entre duas épocas [...]. E efetivamente daí por diante estava melhor preparado o terreno para um novo sistema, com seu centro de gravidade não já nos domínios rurais, mas nos centros urbanos (HOLLANDA, 1995, p. 171-172).
Para Sérgio Buarque de Holanda, de forma gradual, a revolução burguesa mudou aspectos qualitativos da sociedade. Deslocou o centro do poder do meio rural para o urbano, substituiu o senhor do açúcar pelo moderno capitalista do café, democratizando, ainda que conservando o mando, a terra: “É interessante notar que o desaparecimento progressivo dessas formas tradicionais coincidiu, de modo geral, com a diminuição da importância da lavoura do açúcar [...], e sua substituição pela do café” (HOLLANDA, 1995, p. 173).
Por outro lado, para Nelson Werneck Sodré, a revolução burguesa no Brasil é entendida como processo histórico de transição inacabada — o famoso etapismo. É encarada como uma revolução difícil porque o imperialismo impunha dificuldades à união entre burguesia e proletariado-campesinato. Ao contrário da revolução francesa, que consumou sua roda histórica, “[...] Nossa revolução burguesa não tornou ainda redonda essa roda gigantesca. Estamos dentro dela, fazendo parte dela, somos testemunhas e protagonistas” (SODRÉ, 1997, p. 21).
A revolução burguesa no Brasil constituiria, nesse sentido, um processo de mudança econômica, social e política resultante do antagonismo de classes que, por meio do desenvolvimento das forças produtivas e das relações capitalistas, permitiu a classe dominante a introdução de relações superestruturais necessárias à manutenção e desenvolvimento de seus interesses (SODRÉ, 1997, p. 69). Historicamente, esse processo no Brasil desenrolou-se em etapas graduais e lentas:
[...] No Brasil, a autonomia, herdado escravismo e feudalismo, não tem traço algum de revolução burguesa. No fim do século XIX, a república assinala um avanço burguês na vertente mais conservadora. O movimento de 1930, condicionado pela crise de 1929, assinala, depois, a ação violenta para acelerar e aprofundar a revolução burguesa, mantendo o latifúndio e conciliando com o imperialismo. Entre 1930 e 1943, passando pelo Estado Novo e pela Segunda Guerra mundial, e compactuando com a “guerra fria” opera-se uma fase de acentuado reforço e de novo impulso acelerador do capitalismo e da burguesia para, depois de 1954, conciliar a alavanca do núcleo de capitalismo estatal com uma forma de capitalismo estatal monopolista, sob controle das forças conservadoras internas e das forças neocolonialistas externas. O “desenvolvimento”, então adotado como norma de ação, vai desembocar, finalmente, na ditadura esboçada com o golpe militar de 1964 e consolidada em 1968, propiciando o chamado “modelo brasileiro de desenvolvimento”, com a participação ativa e decisiva das multinacionais, modelo que, vinte anos depois, prova a sua inadequação ao desenvolvimento do país e cujos efeitos constituem fator de retardo desse desenvolvimento (SODRÉ, 1997, p. 88).
Note-se que a revolução burguesa, segundo o autor, no curso do processo histórico é acelerada a partir de 1930, mas com antecedentes históricos que a prepararam.[11] No mais, a revolução burguesa brasileira, segundo esse pensamento de etapas, seguiu processo pelo qual surge a burguesia, e cresce, posteriormente surge a luta política pelo poder e, por fim, a revolução: “Essas etapas marcam as formas que, sucessivamente, a revolução burguesa assume aqui” (SODRÉ, 1997, p. 88).
Já Caio Prado Junior argumenta que a República burguesa (1889-1930) deu continuidade à expansão das forças produtivas e ao progresso material dos últimos decênios do Império. O problema da mão de obra foi resolvido: de um lado, pela abolição da escravidão que constituía um obstáculo ao trabalho livre; doutro, pela imigração subvencionada (PRADO JÚNIOR, 2006, p. 207). Ela trouxe o trabalho livre, a modernização das lavouras do café e açúcar, além do fomento ao investimento em atividades produtivas e infraestruturas por meio do capital estrangeiro.
Aliado a isso, a mudança de regime não passou de um golpe militar sem nenhuma participação popular: “[...] o caráter nitidamente militar do golpe republicano de 15 de novembro de 1889 introduziu na política do país um novo elemento que antes não figurava nela senão muito discretamente: a espada (PRADO JÚNIOR, 2006, p. 218).
A República, rompendo com os quadros conservadores, estimulou a atividade econômica: “[...] a ambição do lucro e do enriquecimento consagrar-se-á como um alto valor social” (PRADO JÚNIOR, 2006, p. 209).
Outro fator irá estimular as atividades econômicas da burguesia brasileira, como já mencionamos, será a finança internacional. Foi ela a responsável pelo fomento e construção de empresas de ferro, empresas de mineração, linhas de navegação etc. Também o café será afetado pelo capital estrangeiro. Boa parte dos fundos necessários ao custeio das plantações e da produção era proveniente dos bancos ingleses e franceses (PRADO JÚNIOR, 2006, p. 209-210).
As zonas açucareiras também sofreram modificações substantivas com a abolição do trabalho escravo: “[...] Em lugar do engenho aparecerá a grande usina, unidade tipicamente fabril e maquinofatureira” (PRADO JÚNIOR, 2006, p. 215).
Outra interpretação da revolução burguesa nos foi dada por Jacob Gorender. Esse autor argumenta que foi por meio da instituição de um Estado nacional unificado que, eliminando o pacto colonial, estabeleceram-se as repercussões positivas para o estabelecimento da burguesia mercantil, e, mais tarde, sobre os primeiros núcleos da burguesia brasileira (GORENDER, 1981, p. 70).
Contudo, o agente organizador do modo de produção capitalista foi, segundo o autor, as burguesias industriais. Essas burguesias formaram-se durante as décadas de 40 e 80 do século XIX, administrando e produzindo, em vários pontos do país, indústrias têxtis, domésticas, de vestiário, cerveja, chapéu, roupas etc. A força de trabalho, a princípio, era de operários livres ao lado de escravos; a força motriz passou da roda d’água para a máquina a vapor, uma “substituição local” (GORENDER, 1981, p. 11-12).
Não obstante, o principal obstáculo ao desenvolvimento do modo de produção capitalista, oriundo do escravismo colonial, era a própria instituição escravista. Segundo Jacob Gorender, o trabalho escravo era incompatível com o capitalismo (GORENDER, 1981, p. 19-20).
Por isso o autor considera o abolicionismo como uma “revolução brasileira” que permitiu a expansão do capitalismo por meio do trabalho livre; embora tenha criado outras formas de exploração:[12] “[...] considero a extinção das relações de produção escravistas, no Brasil, um evento revolucionário [...]. A abolição foi a única revolução social jamais ocorrida na História de nosso País” (GORENDER, 1981, p. 21).
Jacob Gorender evita falar em burguesia nacional, porque nacional, quando conjugada com o substantivo burguesia, torna-se sinônimo de revolucionário. Não obstante a isso, enquanto existir capitalismo — lembra o autor — existirá uma burguesia brasileira. Por esse motivo, ele prefere falar em “dominação burguesa” a “revolução burguesa”: “[...] Dadas as características de sua formação econômico-social, a revolução burguesa é uma categoria inaplicável à história do Brasil” (GORENDER, 1981, p. 112, grifo do autor).
Para Florestan Fernandes, falar de revolução burguesa no Brasil consiste em buscar explicações sobre os agentes humanos das grandes transformações histórico-estruturais que estão por trás da desagregação do regime escravocrata-senhorial e da formação de uma sociedade de classes no Brasil (FERNANDES, 1973, p. 20).
Para Florestan Fernandes, a revolução burguesa ocorreu historicamente a partir dos seguintes fatores: 1) o processo político de independência (mesmo com todas suas limitações estruturais); 2) por meio de dois grandes agentes: o fazendeiro de café e o imigrante com mentalidade capitalista; 3) por meio de um processo socioeconômico (a expansão do capitalismo competitivo). Nas palavras do autor: "Sem saber [...] o fazendeiro acabou compartilhando o destino burguês, que acalentava os modestos ambiciosos sonhos do imigrante” (FERNANDES, 1973, p. 104).
Outro aspecto importante sobre a revolução burguesa é, lembra Fernandes, seu caráter autocrático. A revolução combina dominação burguesa e capitalismo. De um lado, "[...] é uma forte dissociação pragmática entre desenvolvimento capitalista e democracia" e, de outro, "[...] uma forte associação racional entre desenvolvimento capitalista e autocracia" (FERNANDES, 1973, p. 292).
Nesse sentido, por meio de seu caráter autocrático, a burguesia dispõe de poder político, econômico e social, de base e alcance nacionais. Ela controla o Estado e seus aparelhos, e conta com o suporte do capital estrangeiro para socializar seus mecanismos de socialização e cooptação, de opressão ou repressão (FERNANDES, 1973, p. 296). Trata-se de uma forma de dominação que conserva sua posição de burguesia internamente no capitalismo dependente, mas sem nenhuma perspectiva de ruptura com a dominação externa.
De modo similar ao caráter autocrático burguês, para Octavio Ianni, o que se desenrola ao longo da história brasileira é uma contrarrevolução burguesa permanente contra os povos. Em um primeiro momento, entre a Monarquia e a República, com o poder do bloco agrário. E, em um segundo momento, a partir de 1930 com Vargas e, posteriormente, com os militares em 1964, por meio do poder do bloco industrial-agrário:
No princípio, sob o Estado monárquico (1822-89), no qual o poder moderador do rei tem uma conotação arbitrária, predominam os interesses do bloco agrário vinculado principalmente à cana de açúcar e ao café. Em seguida, sob o Estado oligárquico (1889-1930), no qual a política dos governadores tem um papel saliente, reforçando o autoritarismo, predominam os interesses do bloco agrário apoiado principalmente na cafeicultura. Depois, sob o Estado populista (1930-64), que passa por um período de “formação” (1930-37) e pela ditadura do Estado Novo (1937-45), predominam os interesses do bloco industrial-agrário, vinculado principalmente ao café e à indústria de bens de consumo duráveis. A partir de 1964, sob o Estado militar, apoiado em um poderoso bloco industrial, ou melhor, financeira e monopolista estrangeira. Em todas essas épocas, os imperialismos inglês, alemão, norte-americano e outros estão presentes e são decisivos (IANNI, 1984, p. 21).
Não obstante, no desenrolar histórico, essa contrarrevolução burguesa permanente e seus respectivos blocos históricos de poder, por intermédio da violência, repeliram os movimentos populares da cidade e no campo; a burguesia jamais tolerou ou preservou conquistas democráticas. Sob governos eleitos ou golpistas, civis, militares ou mesclado de militares e paisanos, sempre predominou na história do país o caráter autoritário do poder burguês: “[...] a verdade é que o autoritarismo predomina ao longo da história do Brasil [...]. E subsiste a impressão de território ocupado; de povo conquistado. Subsiste a impressão de que os governantes são conquistadores” (IANNI, 1984, p. 21).
Para José de Souza Martins, a história da sociedade brasileira tem sido uma “história inacabada”; uma espera pelos progressos e pelas revoluções que nunca se consumaram (MARTINS, 1990, p. 11). O principal obstáculo para isso é a terra; ao redor do problema político da terra encontra-se a dificuldade para que o país se modernize e democratize:
A propriedade da terra é o centro histórico de um sistema político persistente. Associado ao capital moderno, deu a esse sistema político uma força renovada, que bloqueia tanto a constituição da verdadeira sociedade civil quanto da cidadania de seus membros. A sociedade civil não é senão esboço num sistema político em que, de muitos modos, a sociedade está dominada pelo Estado [...]. E Estado baseado em relações políticas extremamente atrasadas, como as do clientelismo e da dominação tradicional de base patrimonial, do oligarquismo (MARTINS, 1990, p. 13).
Esse problema, de uma história ainda por fazer, debate-se sobre a burguesia brasileira. Na sociedade brasileira, a modernidade se deu nos marcos da tradição: “O novo surge sempre como um desdobramento do velho” (MARTINS, 1990, p. 30). Por esse motivo, a história da burguesia brasileira é uma história de transações com o Estado, de troca de favores. Ela não possui apatia política; não possui responsabilidade política como classe dominante: “Ela atua por delegação, por interpostos pessoais, através dos mecanismos do clientelismo político (MARTINS, 1990, p. 31).
Em suma, existem várias formas de se interpretar a revolução burguesa no Brasil. Para Sérgio Buarque de Holanda, o que existe é uma ruptura, a partir de 1888, com o mundo rural das oligarquias. Para Nelson Weneck Sodré, a revolução burguesa é um processo histórico inacabado que está se consumando em etapas. Em Caio Prado Junior, a revolução burguesa trouxe para o país o incentivo às atividades produtivas e infra estruturais por meio do capital estrangeiro, do trabalho livre e da grande lavoura do café. Para Jacob Gorender, a única revolução que existiu o Brasil foi a abolição do trabalho escravo, mas ela não foi burguesa — essa categoria seria inaplicável ao país. Em Florestan Fernandes, a revolução burguesa brasileira aconteceu graças ao grande plantador de café e ao imigrante, além de possuir um caráter autocrático que, de forma autoritária, conserva sua posição de classe, internamente, e de classe exportadora e compradora, externamente. Para Octavio Ianni, o que existe é uma contrarrevolução burguesa permanente que reprime as massas populares e que não tolera a democracia — uma forma de exercício autoritário do poder político. Já Para José de Sousa Martins, existe um caráter lento na história da sociedade brasileira que não permite à burguesia uma autonomia política.
A discussão dos autores aqui apresentados alude à polêmica sociológica a partir dos anos 1950/60 sobre se houve ou não a revolução burguesa no Brasil, e de que forma ela ocorreu. No mais, a revolução burguesa no Brasil ainda é uma questão aberta quanto a sua interpretação sociológica. Entretanto ela existiu. Não repetindo os passos da Revolução Francesa ou Industrial — em etapas, mas a partir dos quadros históricos concretos que se apresentaram. A revolução burguesa no Brasil e na América Latina, ao contrário da sua versão europeia, não foi determinada apenas internamente, mas também externamente: primeiro por uma dominação colonial e neocolonial, depois pelo imperialismo e pelo capitalismo monopolista. Em suma, a evolução burguesa à brasileira foi, desde seu início, dependente.
Considerações finais
A revolução burguesa trouxe, na Europa, mudanças sociais, econômicas e políticas importantes. Essas mudanças foram interpretadas pelos cânones da sociologia como passagens de tipos de organização social para outras formas de relações sociais. Durkheim ressaltou a passagem da solidariedade mecânica para a solidariedade orgânica. Marx, a luz do materialismo histórico, identificou a substituição do modo de produção feudal pelo modo de produção capitalista. Weber ressaltou que o capitalismo criou um homem metódico e racional, sintetizado no espírito do capitalismo. Simmel, por sua vez, lembrou como as grandes cidades burguesas tornaram o homem um ser calculista que age a partir da matematização de suas possíveis perdas e ganhos.
Contudo, apesar de seus valores heurísticos, essas interpretações não podem ser transplantadas para a realidade brasileira, haja vista que o Brasil, assim como parte da América Latina, passou por sucessivos processos de dominação externa que condicionaram e acomodaram as burguesias nacionais a serem meros proletariados externos fornecedores de produtos não manufaturados para as metrópoles europeias. Como lembra Darcy Ribeiro: “Tais bases se definiram com claridade com a implantação dos primeiros engenhos açucareiros que, vinculando os antigos núcleos extrativistas ao mercado mundial, viabilizavam sua existência na condição socioeconômica de um ‘proletariado externo’” (RIBEIRO, 2015, p. 57).
Não obstante, o que aqui apresentamos não foi senão uma reflexão sociológica sobre um dos principais episódios da história da sociedade brasileira: a revolução burguesa. Com ela, desintegra-se uma sociedade estratificada em estamentos e castas e passa a existir uma sociedade estratificada em classes sociais com base na propriedade privada.
Entretanto, o Brasil, como outros países latino-americanos, por possuir um passado colonial, ainda conserva reminiscências do passado em seu modo de produção capitalista. O latifúndio, o mandonismo, o patrimonialismo, o feudalismo, o trabalho não livre, o clientelismo são palavras que expressam muito bem o passado no presente.
Portanto, é imprescindível que, ao se falar em revolução burguesa, fale-se, igualmente, em dominação externa. É a partir da dominação externa, de forças coloniais, e, mais tarde, capitalistas, afinada com os interesses da burguesia brasileira, que o Brasil passa de um regime de economia colonial para um regime de economia capitalista. O que o pensamento social, econômico e político faz não é senão traduzir, cada qual ao seu modo, esse conturbado processo de transição histórica.
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Recebido em: 29/05/2023.
Aceito em: 13/09/2023.
* Graduado em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Pará (UEPA), Brasil. E-mail: marlonka.mk@gmail.com.
** Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará (UFPA), Brasil. E-mail: leof.amazonia@gmail.com.
*** Graduada em Geografia pela Universidade do Estado do Pará (UEPA), Brasil. E-mail: Fernandalemos920@gmail.com.
[1] A definição de consciência comum é dada por Durkheim da seguinte forma: “O conjunto das crenças de uma mesma sociedade forma um sistema determinado que tem vida própria; podemos chamá-lo de consciência coletiva ou comum [...], ela é, por definição, difusa em toda a extensão da sociedade [...], ela é independente das condições particulares em que os indivíduos se encontram: eles passam, ela permanece” (DURKHEIM, 1999, p. 50).
[2] Para Durkheim, a moral apresenta um caráter religioso, por isso, sugere ele, “comparemo-la à noção do sagrado [...]. O ser sagrado é [...] o ser proibido que não ousamos violar; é também o ser bom, amado, procurado” (DURKHEIM, 2009, p. 51).
[3] Por densidade dinâmica, entende-se “o número das unidades sociais ou, como dissemos também, o volume da sociedade e o grau de concentração da massa” (DURKHEIM, 2004, p. 123).
[4] Por densidade material, entende-se “não só o número dos habitantes por unidade de superfície, mas também o desenvolvimento das vias de comunicação e de transmissão” (DURKHEIM, 2004, p. 124).
[5] Contudo, uma observação deve ser feita. Apenas alguns países na América Latina presenciaram todas as formas de dominação, como Argentina, Uruguai, Brasil, México, Chile etc.; outros países, como Haiti, Bolívia, Honduras, Nicarágua, Guatemala, El Salvador, República Dominicana, Paraguai, Peru etc. experimentaram apenas as formas coloniais e neocoloniais, tornando-se economias de enclave e versões modernizadas do sistema colonial e neocolonial transitório do século XIX (FERNANDES, 1973, p. 19).
[6] Os fatores que contribuíram para a dissolução do padrão colonial de dominação foram, dentre outros, os seguintes: 1) a incapacidade da estrutura espanhola e portuguesa de financiar as atividades mercantis, relacionadas às atividades mercantis, a descobertas, com a exploração e o crescimento das colônias; 2) a disputa pelo controle do mercado na virada do século XVIII para o século XIX, impulsionado pelos países capitalistas europeus; 3) a resistência de setores heterogêneos à exploração colonial ilimitada (FERNANDES, 1973, p. 14).
[7] Vale ressaltar que o neocolonialismo também teve uma função importante na dinamização da revolução da indústria. Ele foi, por muito tempo, fonte de acumulação de capital nos países latino-americanos (FERNANDES, 1975, p. 16).
[8] Nesse sentido, segundo Mariátegui, a estrutura econômica peruana seria totalmente colonial: “[...] A economia do Peru é uma economia colonial. Seu movimento e seu desenvolvimento estão subordinados aos interesses e às necessidades dos mercados de Londres e Nova York. Esses mercados veem no Peru um depósito de matérias-primas e um mercado para suas manufaturas. A agricultura peruana consegue, por isso, créditos e transportes apenas para os produtos que possam proporcionar uma vantagem nos grandes mercados. A banca estrangeira se interessa um dia pela borracha, outro dia pelo algodão, outro dia pelo açúcar. O dia em que Londres pode receber um produto por melhor preço, e em suficiente quantidade da Índia ou do Egito, abandona instantaneamente à sua própria sorte seus provedores no Peru” (MARIÁTEGUI, 2010, p. 109).
[9] Tanto sobreviviam aspectos do feudalismo, que Mariátegui várias vezes retoma o assunto: “As expressões do feudalismo sobreviventes são duas: latifúndio e servidão” (MARIÁTEGUI, 2010, p. 68)
[10] Sobre o processo dialético de passagem do rural ao urbano, podemos destacar uma série de questões que o viabilizaram no Brasil: aberturas de estradas, incentivos fiscais, industrialização financiada pelo capital nacional e estrangeiro etc. Para se ter uma ideia desse processo dialético que desafia a sociologia rural, Garcia (2003) nos proporciona dados quantitativos interessantes para pensarmos a urbanização do campo: em 1950, 64% da população brasileira vivia no meio rural, enquanto que, em 1980, só 32% permaneciam residindo no campo; além disso, estatisticamente em 1940, 70% da população brasileira residia no campo, ao passo que em 1980, 70% dos contingentes situavam-se no polo urbano (em 2000, apenas 22% residiam no espaço rural).
[11] O autor ainda assinala que o surgimento da mineração, posteriormente do café, e finamente da indústria permitiram a acumulação de capitais necessários ao germe do capitalismo e seu desenvolvimento. Aliado a isso, as primeiras reformas do século XIX, como a do regime do trabalho e do regime político, também foram acontecimentos importantes para o avanço da burguesia brasileira. Entretanto, é com Vargas que o capitalismo e, por conseguinte, a revolução burguesa, ganha corpo: “[...] o movimento de 1930, com a derrocada política das velhas oligarquias, que traduziam a dominação feudal e semifeudal, e a guerra mundial de 1939-1945. O Estado Novo, a rigor, foi um episódio da revolução burguesa no Brasil, na seqüência [grafia no original] do movimento de 1930 e das reformas que uma nova ordem política burguesa impunha” (SODRÉ, 1997, p. 20).
[12] Nas palavras do autor: “[...] O principal, o fundamental era a própria instituição escravista [...]. O modo de produção capitalista é absolutamente incompatível com o trabalho escravo. Seu desenvolvimento depende da formação de um mercado de mão-de-obra despossuída, abundante e juridicamente livre para ser assalariada, sob contratos de trabalho rescindíveis quando convier ao empregador” (GORENDER, 1981, p. 19-20, grifo do autor). Essa é uma discussão polêmica, visto que hoje se discute como se tornou a escravidão funcional ao próprio sistema capitalista brasileiro.
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