JEAN DE LÉRY ÀS AVESSAS: antropofagia tupinambá e a produção
de conhecimento contra-colonial
JEAN DE LÉRY INSIDE OUT: Tupinambá anthropophagy
and the production of contra-colonial knowledge
Rubens Arley de Almeida Junior *
Luís Antônio Francisco de Souza **
Resumo
O seguinte artigo busca, a partir da obra Viagem à terra do Brasil de Jean de Léry, realizar uma leitura crítica do campo científico em vias de consolidação no século XVI, entendendo que sua pedra angular se localiza nas relações coloniais. Dessa forma, procurou-se analisar a obra de Léry em duas vias: a primeira, criticando a descrição objetificante enquanto produção de conhecimento colonial; e a segunda, realizando uma leitura a contrapelo, esquivando-se da representação moderna e colonial dos/as tupinambás e evidenciando-os como sujeitos/as de produção de conhecimento contra-colonial, tendo como cerne desse processo a antropofagia. Por fim, explorou-se a retomada dessa forma antropofágica de produção de conhecimento tendo como exemplo o trabalho feito por Glicéria Tupinambá. Como resultado, entende-se que o pensamento antropofágico pode carregar em si a capacidade de desestabilizar e subverter o próprio pensamento científico e seus inerentes fundamentos coloniais.
Palavras-chave: sociologia do conhecimento; antropofagia tupinambá; literatura de viagem; contra-colonialidade.
Abstract
This paper aims to analyze the text “History of a Voyage to the Land of Brazil” written by Jean de Léry then read critically the 16th century scientific shield as structured by the colonial relations and significations. Thus we tried to analyze the text in two different, but complementary ways: the first criticizing the objectifying description as a mechanism of colonial knowledge production and the second, realizing a reading against the grain, thereby avoiding the modern and colonial representation of the tupinambás, presenting them instead as subjects of contra-colonial knowledge production, by means of the anthropophagy process. Lastly we explored the resumption of this anthropophagic form of knowledge production, taking as an example the work of Glicéria Tupinambá. As a result, we understand that anthropophagic thought could contain within itself the capacity to disrupt scientific thought, and its inbuilt colonial principles.
Keywords: sociology of knowledge; tupinambá anthropophagy; travel literature; contra-coloniality.
Eu posso engolir você
Só pra cuspir depois
Minha fome é matéria que você não alcança
Maria Bethânia
Depois de séculos, apesar do vidro que lhes tira o oxigênio, o vermelho sangue do guará e o azul oceano da araruna segredam algo que excede o museu nacional de Copenhague. [...] Que tese posta à mesa explicaria os mortos, vivos enfim, em resposta ao rapto das almas? O manto quer voar para casa. A morte de seus filhos torna inútil sua permanência. É preciso que ele se perca para acusar os assassinos. [...] Entre aqueles que fiaram o manto, um canto se alonga alheio ao seu sequestro. [....] Haverá diante disso, ossos suficientes para serem atirados contra o vidro? O manto tupinambá é um ninho na escuridão do mundo – respira num oceano de espelhos a sua ira.
Edimilson de Almeida Pereira (2019)
Este ensaio tem início na proposta formulada pela disciplina de Sociologia do Conhecimento ministrada pelo autor. Em um primeiro momento, ao analisar a série documental Maracá (2020), produzida pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em 2020, no contexto da pandemia de covid-19 e na emergência de vacinação dos povos indígenas, observa-se a permanência da colonização, seja pelo apagamento epistêmico e cultural, seja pelo genocídio continuado que essas populações sofrem.
A partir de seus dois primeiros episódios, questionamos se é possível traçar um diálogo ético com os conhecimentos indígenas, sem perpetuar a lógica de predação e depredação colonial. Ao dialogar com Jota Mombaça, questionamos os limites da produção decolonial e contra-colonial dentro da academia:
“Meus ancestrais todos foram vendidos/Deve ser por isso que meu som vende.” [versos de Baco Exu do Blues]. Deve ser por isso que este texto vende. Ou que, do ponto de vista de certas instituições, explosão de arte e pensamento negros e anticoloniais, que parecem definir hoje os rumos dos sistemas de arte e produção de conhecimento em escala global, seja referida como uma moda, uma tendência de mercado. (MOMBAÇA, 2020, p. 6)
A isso, denominamos improvisadamente de mecanismo-Anchieta, baseando-nos na gramática do jesuíta. Ao produzir conhecimento sobre os nativos, ao procurar conhecer o Outro, entender como os povos indígenas no século XVI se comunicavam através do tronco tupi, Anchieta sistematizou o tupi dentro da gramática latina, dentro do conhecido, fundamentalmente para controlá-lo, catequizá-lo. Ao invés de se lançar em direção ao mundo do Outro, Anchieta se mantém distante, em uma observação participante colonial, que coloca o Outro dentro do Eu transparente, ou seja, aquele cuja entidade pressupõe “uma conexão imediata (transparência) entre fala e verdade” (SILVA, 2022, p. 108).
Questionamo-nos se não é isso que nós, acadêmicos/as ocidentais, e em especial, cientistas sociais, também fazemos. Assim, naquele momento, compreendemos que conhecer é dominar, ou melhor, é consolidar estados de dominação. É determinar um estado quase-fixo e estático do objeto, do real, por mais que se afirme em dialética conhecermos a lógica não-dominativa, a dos povos indígenas, por exemplo, precisamos dominá-la, determiná-la, estabelecer contornos a partir das lógicas estruturadas pela modernidade e pela colonialidade. Entendendo que é possível conhecer sem o viés da dominação, na medida em que isso já aconteceu historicamente, é realizado por outros povos e outras culturas, como subverter nossas ferramentas de pensamento e lançarmo-nos em direção ao Maracá, sem buscar tomá-lo para si?
Neste momento, procuramos, então, desenvolver um pouco essas ideias iniciais, analisando a obra Viagem à terra do Brasil de Jean Léry (1961). Propusemo-nos, então, a pensar rotas de fuga do mecanismo-Anchieta — embora tenhamos plena consciência da impossibilidade de o fazer em um mero exercício intelectual e pontual, tendo como cerne de análise, a retomada dos saberes ancestrais tupinambás e a antropofagia como produção de conhecimento.
Antropofagia, neste contexto, é subverter a modernidade a partir da própria modernidade. Embora concordemos com Audre Lorde (2019), de que as ferramentas do senhor jamais derrubarão a casa-grande, Denise da Silva (2019) entende que a modernidade fornece instrumentos e falhas para ser subvertida por si mesma, dando, assim, matéria-prima para a construção de novos instrumentos contra-coloniais.
Dessa forma, mesmo convivendo com a possibilidade intrínseca de cair nas armadilhas do colonial e do mecanismo-Anchieta, propusemo-nos a tentar pensar o conhecimento colonial e contra-colonial na perspectiva da sociologia do conhecimento. Ao entender que ela deve estar “interessada nas condições que ocasionam as crenças ou os estados do conhecimento” (BLOOR, 2009, p. 21), propomo-nos a pensar quais são os processos que atravessam e situam a criação, a manutenção e a destruição de conhecimento, de maneira a traçar uma hipótese a respeito da produção de conhecimento tupinambá.
Nesse sentido, metodologicamente, este ensaio busca se aproximar da própria antropofagia enquanto mecanismo de subversão da modernidade e da colonização epistêmica. Ao compreender a não-linearidade do tempo, e a sua dimensão de retorno, de espiral, buscamos costurar dois momentos históricos distintos: a produção científico-colonial de Jean de Léry e a retomada contra-colonial de Glicéria Tupinambá.
Aqui adotamos, então, essa noção de temporalidade em espiral, o que permitiu nos aproximarmos dos estudos negros e das teorias raciais críticas, na medida em que elas também contribuem para pensar uma produção de conhecimento contra-colonial e constituem um importante instrumental teórico dos autores do texto. Ao mobilizar as ferramentas construídas pelos estudos negros, é possível apontar para a violência colonial na fundação do campo científico, que afetou tanto as populações indígenas quanto as populações africanas, quase simultaneamente. A produção dos corpos racializados — indígenas ou negros —, ou a epidermização derivada do encontro colonial (FANON, 2020), constituiu-se por meio também dessa ciência em emergência. Assim, devido às semelhanças desse mecanismo, podemos mobilizar metodologicamente esse arsenal dos estudos negros, que também têm adotado uma perspectiva não-linear de tempo (MARTINS, 2021; SHARPE, 2023), para analisar a produção de conhecimento contra-colonial tupinambá, na medida em que, nas palavras de Glicéria Tupinambá,
[...] nós vamos estudar, vamos lá, seguir os passos, analisar e voltar para casa cheios de conhecimento, sabedoria ancestral, respostas que a gente busca além do tempo. Encontrar o nosso mundo do passado, do presente e construir algo futuro muito mais forte e poderoso. É isso que Tupinambá, que a gente pensa ao longo do tempo. O tempo dos encantados não é o nosso tempo! Os que nós vivemos hoje, os encantados já passaram, já viveram, já sabem. Eles veem apenas como memória, um sonho, um flash, um déjà vu, e a gente sente, mas já passou. (TUPINAMBÁ, 2021a, p. 14)
Ao se voltar para a sociedade tupinambá, percebe-se que ela era marcada por uma profunda relação entre a vingança de seus mortos, devorados por grupos inimigos, e a memória de seus próprios mortos. A vingança, então, como elemento fundamental da prática antropofágica, era uma mnemotécnica, mobilizada para a construção do futuro da sociedade. (CUNHA; CASTRO, 2018). Dessa forma, se vingar e devorar o outro era uma forma de construir um elo entre o passado e o futuro, uma espiral do tempo entre os “vivos pretéritos e os mortos futuros” (CUNHA; CASTRO, 2018, p. 70). O inimigo se tornava uma espécie de guardião da memória, uma vez que é a partir da vingança contra o rival que se fazia o movimento pretérito-futuro.
Entendendo que a obra de Léry é também uma espécie de guardião da memória colonial e elemento dos arquivos da colonização (HARTMAN, 2020), podemos enfrentá-lo como um inimigo histórico, símbolo e produtor de epistemicídio. A própria antropofagia permite esse enfrentamento, na medida em que vingar contra o documento colonial, ou seja, realizar essa leitura subversiva que elucide as agências contra-coloniais, é uma forma de constituir o elo entre passado e futuro tupinambá, entre os tupinambás representados pelo texto de Léry e os tupinambás em retomada no presente. Nesse sentido, talvez podemos afirmar que a antropofagia possa se configurar como uma metodologia subalterna e indisciplinada (MOMBAÇA, 2016), que fuja do cânone e dos métodos e das técnicas convencionais da academia.
Entre as armas e os saberes, a emergência do campo científico
Viagem à terra do Brasil foi publicada somente em 1577 por Jean Léry, quase uma década após seu retorno, em 1558, da viagem que fez ao Brasil, cuja duração foi de três anos. Inicialmente, a obra não haveria de ser publicada. Entretanto, o autor afirma que após a publicação de um livro de André Thévet, o qual supostamente mentia a respeito da vida no Brasil e dos propósitos da viagem de Léry, acabou sendo impulsionado a adentrar ao mundo científico, reivindicando seu local de agente dentro desse campo, como forma de disputar o campo religioso entre protestantismo e catolicismo.
Léry, então um estudante de teologia, acatou a oportunidade oferecida por Calvino de prestar um serviço ao protestantismo. À época, Villegagnon, fundador da França Antártica no Brasil, enviou uma carta a Calvino pedindo ajuda para construir essa colônia que fosse fundamentada na liberdade religiosa, servindo de asilo aos fugitivos das guerras religiosas que ocorriam naquele momento na Europa. Importante aspecto dessa história é que tanto Villegagnon quanto Thévet eram católicos, o que impulsionou a publicação de Léry, calvinista, a fim de desmentir o que acontecia nos trópicos.
Este ensaio procura entender a obra não somente enquanto enciclopédia, ou seja, em diálogo com uma multiplicidade de obras e conhecimentos de sua época, mas também enquanto máquina do tempo. Isso porque entendemos que o corpo indígena pode ser entendido como uma máquina temporal, tal qual o corpo negro para Jota Mombaça (2020). Assim, a máquina do tempo está em disputa de significações e, sobretudo, de sujeitos. O modo como lemos essa máquina pode reproduzir a colonização ou reavivar epistemologias outras, saberes outros. São essas duas leituras que pretendemos abordar.
Para isso, o primeiro passo é analisar a obra de Léry dentro do contexto de emergência do campo científico no século XVI, em plena Revolução Copernicana.
Apesar de compreendermos que os interesses internos ao campo são atravessados pelos interesses externos (BOURDIEU, 1983), o livro de Léry permite ser lido enquanto um momento de entrave entre o campo científico emergente e o campo religioso. O livro publicado em 1558 se encontra em meio ao contexto histórico da Revolução Copernicana, a qual, segundo Bourdieu, “implica a reivindicação expressa de autonomia por um campo científico ainda ‘imerso’ no campo religioso e no campo da filosofia e, por seu intermédio, no campo da política” (BOURDIEU, 1983, p. 142).
Nesse sentido, as disputas religiosas presentes na obra de Léry, como os ataques e tentativas de deslegitimação de seu adversário católico, Thévet, possuem fundamentalmente dois sentidos. O primeiro é a própria emergência do campo científico dentro das guerras entre católicos e protestantes. O segundo expressa como o campo já estava se estruturando enquanto disputa pela legitimidade e pela autoridade científicas, em suma, pelo capital científico que estava em vias de consolidação.
E se alguém alegar ter eu ao refutar aqui ao sr. Thévet cometido iguais erros e se me condenarem por usar da primeira pessoa ao descrever os costumes dos selvagens, responderei que se trata de coisas científicas, de experiências, de coisas que talvez ninguém tenha ainda tratado, não com referência não só à América em geral, mas ainda ao lugar em que residi durante quase um ano, sob o trópico de Capricórnio entre os selvagens Tupinambás. (LÉRY, 1961, p. 48)
Dessa forma, pode-se entender que Léry se coloca enquanto agente em luta dentro desse campo científico em emergência, disputando inclusive a própria metodologia, propondo algo que hoje poderia ser entendido enquanto um fazer próximo ao etnográfico. A busca por legitimar a metodologia empregada é uma disputa por autoridade científica, a qual, naquele período, acaba por se confundir com os interesses políticos e religiosos. Interessante que esse trecho também permite ser lido enquanto evocação da ciência como um certo efeito de verdade. Léry, assim, destoa da produção científica de sua época, de modo que reivindicou não o campo científico em si, mas a ciência enquanto ferramenta de disputa contra uma visão católica e ainda medieval de mundo, uma vez que a ciência seria esse mecanismo de equivalência de veracidade. Ou empregando Bourdieu (1983), Léry procura lançar mão de certas estratégias de subversão — que são palco de polêmicas até hoje —, desestabilizando uma ordem científica ainda iminente.
Também é possível denotar, nesta primeira expressão do campo científico, a constituição de seu objeto de estudo: os nativos, a natureza da América — em suma, o Novo Mundo em si. A partir de Bourdieu, entende-se que esse processo é resultado do próprio campo, na medida em que ele designa os seus problemas e seus métodos.
Ou seja, não se pode compreender a emergência do campo científico ignorando as disputas internas e as condições externas, que se caracterizam pelas guerras religiosas e pela colonização. Assim, o campo científico produz seus objetos e seus métodos necessariamente a partir da colonização enquanto interesse político e científico, uma vez que os conflitos sociais e intelectuais não se distinguem radicalmente.
Dessa forma, Bourdieu permite compreender como o campo científico é constituído por relações de poder internas, mas também externas ao próprio campo, embora ainda exista uma certa autonomia relativa. Consequentemente, os conflitos epistemológicos intrínsecos ao campo científico são inseparáveis dos conflitos políticos, e, fundamentalmente, da própria colonização. Para compreender melhor essa relação entre campo científico e colonização, faz-se necessário evocar as contribuições de Michel Foucault (2013) que permitem problematizar as disputas da ciência enquanto formas de saber-poder, enquanto formas de produção de regime de verdade.
Nesse sentido, talvez seja possível apontar para o campo científico enquanto decorrência da forma de saber-poder do inquérito (FOUCAULT, 2013), na medida em que o inquérito se constituiu tanto como técnica de governo e de administração quanto forma de produção de conhecimento. A ciência emergente do século XVI se baseava em testemunhos dos viajantes para constituir esse suposto campo. No entanto, as próprias testemunhas se viam fazendo ciência, o que talvez podemos considerar como um certo testemunho inquisitivo, que procurava fazer inquéritos da vida nativa — uma densa descrição e análise — que serviam de testemunho para os inquéritos científicos europeus. Ou seja, o viajante está em um lugar duplo.
O inquérito, por ser um saber-poder, claramente está imerso em relações de força. Neste momento, fazemos um diálogo com Denise da Silva (2022) e suas evocações de Derrida. Denise da Silva, na busca por compreender como a ciência atuou perante a racialidade e a modernidade, procura analisar o poder/conhecimento. Entretanto, a autora critica um certo limite de Foucault, uma vez que o autor identifica que a modernidade é calcada na analítica da finitude, ou seja, no
[...] envelopamento das coisas do mundo pela temporalidade, que institui o homem como sujeito soberano e o objeto privilegiado de conhecimento [...] [e que] o pensamento (reflexão) retorna e reduz tudo aquilo que toca à temporalidade do sujeito do conhecimento (interior) autodeterminado. (SILVA, 2022, p. 103)
Mas Foucault não consegue superar essa perspectiva da interioridade da produção do conhecimento. Ou seja, não desloca essa produção para a exterioridade, entendendo que a ciência, na verdade, não é fruto de uma razão interior produtora de conhecimento, mas que ela aborda o humano e as configurações sociais como fenômenos como seres estendidos e empíricos, exteriores, espaciais. Dessa forma, Denise se desloca para Derrida a fim de colocar as relações de poder/conhecimento na exterioridade, uma vez que
Ao propor que a espacialidade (a escritura, a différance) é o local fundamental da significação e subjetificação, Derrida adiciona ao arsenal crítico uma ferramenta que rejeita este referente absoluto, isto é, o Eu transcendental, que precede e institui a significação. Deste modo, ele reescreve o Eu transparente (interior/temporal) como efeito da diferenciação ou relacionalidade, do regime simbólico no qual “ser e significado” surgem sempre-já na exterioridade e na violência, advindo do apagamento de outros seres e significados (im)possíveis que o traço tenta em vão significar. (SILVA, 2022, p. 108).
É nesse diálogo que propomos que o saber-poder do inquérito é, sobretudo, uma relação entre esses seres e significados. Logicamente, essa relação de força se caracteriza enquanto uma disputa de significações. Disputa que, na colônia, necessariamente significa epistemicídio e assassínio, na medida em que as outras formas de seres e significados devem ser exterminadas ou engolfadas pelo colonizador. O que não necessariamente acontece na Europa, mas é uma realidade incontornável no cenário colonial, uma vez que a colônia habita um perene estado de exceção, no qual o direito soberano de matar é totalmente ilimitado (MBEMBE, 2016). A colônia está sob o regime de morte tanto física quanto epistêmica. Por isso, ao pensarmos em uma leitura contra-colonial, urge “Recriar a partir da colonialidade e fugir do caminho que nos empurra para a morte” (MOMBAÇA; MATTIUZZI, 2019).
Nesse sentido, talvez seja possível distinguir como operavam as regras do campo científico na Europa e na colônia, onde não havia regras para a produção de conhecimento, onde o direito de matar em sua forma mais pura era também o direito de matar para conhecer. O conhecimento colonial-científico se constitui enquanto morte. A busca por legitimidade dentro do campo só acontecia na metrópole, como se vê nas disputas entre Léry e Thévet. Jamais se questionando como esse conhecimento era produzido perante o nativo, perante os tupinambás, mas questionando perante os pares europeus.
A forma científica europeia emerge de um processo interno de desenvolvimento da forma-inquérito desde o século XII até a eclosão do Renascimento. No entanto, somente se consolida enquanto tal a partir dessa relação colonizadora, de extração de conhecimento do corpo do/a indígena e negro/a. Essa lógica de mineração epistêmica se lança enquanto um pilar essencial da modernidade, ou seja, de reafirmação do campo científico sobre os outros seres e significados.
Entretanto, é necessário compreender esse processo não como fatalista, embora trágico, uma vez que é possível olhar para o drama histórico e lê-lo às avessas. Propomos essa possibilidade a partir do diálogo com Denise da Silva. Nenhuma relação de significado e significante é fixa, mesmo que hegemônica. A estabilidade dessa relação é proferida enquanto regime de verdade do Eu transparente, aquele cujo enunciado possui relação intrínseca à verdade (SILVA, 2022). Nesse sentido, é necessário criar uma ruptura com esse paradigma, evocando a instabilidade da significação, ou seja, o traço, como denomina Derrida (apud SILVA, 2022). O traço permite ler a ciência como uma disputa instável de significações, na qual emerge a periculosidade das outras significações, aquelas feitas pelos outros seres que foram apagados no processo. No entanto, questiona-se qual é a significação que permitiu a consolidação da ciência enquanto a disputa de saberes e poderes.
O estabelecimento da relação de significação deve ser compreendido em dois movimentos: uma disputa interna e outra externa. Na disputa interna, prevalecem as normas jurídicas europeias, as normas do jogo científico. Ou seja, dentro do campo, as regras que estão emergindo são válidas, legítimas e operam no sentido de ruptura-continuidade, como apontado por Bourdieu (1983).
Já na disputa externa, ou seja, a ciência frente ao/à nativo/a, frente ao/à outro/a não-europeu/eia não segue as regras do jogo. Tudo é válido. O direito soberano de matar — e de conhecer — não possui limites na colônia. A ausência de regra e de relações éticas é a marca da colonização. A regra não vale aos colonizadores, apenas aos colonizados.
A partir dessas duas disputas, ao empregar o arcabouço teórico de Denise da Silva (2022), torna-se compreensível que a relação colonial da ciência, tanto a nível interno quanto externo, estabeleceu-se por meio de uma dinâmica de significação: o europeu como sujeito autodeterminado e o/a nativo/a como coisa afetável. Ou seja, o europeu é dado como Eu transparente, aquele cujo enunciado é equivalente à verdade. Enunciado proferido dentro do que Denise Silva (2022) chama de palco da interioridade, no qual a razão é “a força que guia a produção humana de conhecimento e cultura” (SILVA, 2022, p. 63). Isso se reforça pela passagem: “Além da invenção da escrita, os conhecimentos de ciência que aprendemos pelos livros e que eles [nativos] ignoram, devem ser tidos como dons singulares que Deus nos concedeu” (LÉRY, 1961, p. 186).
Enquanto o/a não-branco/a é dado/a como coisa afetável, o Outro está sujeito à determinação de forças exteriores. Assim, o/a indígena está no palco da exterioridade, no qual a razão atua como força reguladora. A razão, então, opera de dois modos distintos no campo científico e de maneira indissociável: produtora de conhecimento e reguladora de corpos. O sujeito colonizador se coloca no campo científico como produtor, como inquisidor daquele que deve ser regulado, inquirido. O campo científico, portanto, se revela novamente como saber-poder calcado nas relações coloniais.
Devorando Jean de Léry: um exercício de subversão do documento científico-colonial
Ler o documento às avessas exige encontrar, evidenciar os possíveis outros seres e significados que, mesmo coisificados e apagados, ainda ameaçam a própria significação científica. Ou seja, é necessário colocar sob um outro prisma, (re)pensando aqueles/as sujeitos/as que foram colocados/as como significantes científicos no processo de significação colonial. Aqueles/as sujeitos/as que na significação foram subalternizados enquanto significante e que foram apagados, minerados, extraídos, exterminados, devem ser, na nossa leitura, os sujeitos de enfoque, os/as sujeitos/as de produção de outras significações im/possíveis, o que implica também a produção de outros conhecimentos im/possíveis.
A partir deste momento, então, serão contrapostas duas leituras de A viagem à terra do Brasil: uma leitura crítica, localizada no evidenciar da produção colonial de conhecimento, e que por isso elucide os mecanismos de engolfamento dos/as tupinambás pela ciência europeia, ou uma análise do possível mecanismo-Anchieta. E uma leitura subversiva, ou seja, uma leitura que vá além da crítica ao colonial e mobilize a agência contra-colonial, de maneira que permita transfigurar e deslocar o coisificado em sujeito de produção de conhecimento, ou uma análise da antropofagia. Essas leituras serão contrapostas questionando-se: se o conhecimento é situado (MANNHEIM, 1972; BURKE, 2003), se a ciência é colonialmente situada enquanto forma de violência e engolfamento, é possível (re)situá-la em direção ao contra-colonial? Ainda haveria ciência neste deslocamento?
O retrato quase etnográfico de Léry nos informa um povo agressivo, vingativo, bárbaro, ausentes de Deus, conhecedores do diabo — “[...] os selvagens encontraram pelo menos a prova da existência do diabo nos seus tormentos ainda neste mundo.” (LÉRY, 1961, p. 188) —, mas passíveis de serem convertidos e humanizados. O olhar científico aferroa os/as nativos/as com o signo da ausência — “Não observam ordem de marcha, nem categoria” (LÉRY, 1961, p. 169). A incapacidade de encontrar a ordem, a organização pautada em outra lógica, é obliterada pelo colonizador através da marca da ausência.
Marca que serviu de fundamento de autorreflexão para os europeus. Léry ao olhar para os/as nativos/as, os enxerga como símbolo da saúde, da juventude, em detrimento às doenças e à debilidade europeia. Embora, em um primeiro momento, essa leitura pareça interessante e fugitiva à desumanização, é necessário entender a lógica que rege as comparações.
Ao analisar as guerras, Léry afirma que “Donde nos parece possível concluir que Maquiavel e seus discípulos, de que a França por infelicidade anda cheia nestes tempos, não passam de imitadores desses bárbaros cruéis” (LÉRY, 1961, p. 166). Problematizando a guerra não a partir de contradições internas à Europa, ou a uma noção hermética de humanidade, mas problematizando-a a partir de uma relação colonial; de uma comparação ao bárbaro, ao não humano. Consequentemente, a autoanálise exercitada pelo colonizador é alicerçada no jogo humano e não humano. Segundo Maldonado,
A referência aos indígenas como sujeitos sem religião os remove da categoria humana. A religião é universal entre os seres humanos. Entretanto, a alegada falta de religiosidade entre os nativos não é tomada inicialmente para indicar a própria falsidade da assertiva, mas, ao contrário, serve para afirmar a existência de sujeitos não completamente humanos no mundo (MALDONADO, 2008a, p. 217 apud GROSFOGUEL, 2016, p. 36).
Na trilha desse signo de desumanização, é perceptível a comparação a animais: “[...] esses diabólicos Uetacá, invencíveis nessa região, comedores de carne humana, como cães e lobos [...]” (LÉRY, 1961, p. 74); “[...] pois a formosura se mede entre eles pela chateza do nariz (assim ocorre também em França com os cachorrinhos)” (LÉRY, 1961, p. 103).
A representação colonial, então, é caracterizada pela animalização, pela desumanização, mas também pela estaticidade. Um exemplo claro disso se dá pela descrição de um tupinambá feita por Léry:
Se quiserdes agora figurar um índio, bastará imaginardes um homem nu, bem conformado e proporcionado de membro, inteiramente depilado, de cabelos tosquiados como já expliquei, com lábios e faces fendidos e enfeitados de ossos e pedras verdes, com orelhas perfuradas e igualmente adornadas, de corpo pintado, coxas e pernas riscadas de preto com suco de jenipapo, e com colares de fragmentos de conchas pendurados ao pescoço. Colocai-lhe na mão seu arco e flechas e o vereis retratado bem garboso ao vosso lado. Em verdade, para completar o quadro, devereis colocar junto a esses tupinambás uma de suas mulheres, com o filho preso a uma cinta de algodão e abraçando-lhe as ilhargas com as pernas. Ao lado deles ponde ainda um leito de algodão feito com rede de pescaria e suspensa no ar. E acrescentai o fruto chamado ananás [...].
Esse o aspecto comum dos selvagens. Para imaginá-lo sob outro aspecto, tirai-lhe todos esses adornos, untai-o com resina e cobri-lhe todo o corpo, braços e pernas, com pequenas plumas picadas, à maneira de uma crina pintada de vermelho, e verei como fica lindo assim, todo coberto de penugem.
Finalmente sob um novo aspecto ainda podemos dizer que, deixando-o seminu, calçado e vestido com as nossas frisas de cores, com uma das mangas verdes e outra amarela, apenas lhe falta o cetro de palhaço.
Acrescentai-lhe agora na mão o maracá, colocai-lhe na cintura o penacho de plumas denominado araroyé e ao redor das pernas os guizos feitos de frutos e o verei trajado para a cerimônia de dança, do salto, da bebida e da cabriola [...] (LÉRY, 1961, p. 108).
Essa descrição é o delineamento de um quadro estático-colonial, é a manipulação do nativo como objeto. Léry descreve-o como um fenômeno quase natural, manipulando as variáveis e verificando como o nativo age, como se vestiria. Léry coloca as lentes científicas sobre um espécime de tupinambá, caracterizando-o de maneira generalizante, indutiva, despojando-o de subjetividade, de contradições, de singularidades. Em outros momentos, compara os hábitos de outros povos descritos pela literatura de informação quinhentista, como se compara espécimes em um laboratório.
Além disso, Léry coloca a nativa como um acessório, um adereço que pode ser colocado ou removido, como as vestes. Desse modo, confirma-se a análise de Denise da Silva (2019), de que a colonização é essencialmente atravessada pelo econômico e pelo sexual, e que o corpo da nativa e da negra ocupa um local central nesse processo.
Esse quadro também pode ser entendido como uma espécie de imagem de controle, tal qual pensado por Patricia Hill Collins
As part of a generalized ideology of domination, stereotypical images of Black womanhood take on special meaning. Because the authority to define societal values is a major instrument of power, elite groups, in exercising power, manipulate ideas about Black womanhood. [...] Objectification is central to this process of oppositional difference. In binary thinking, one element is objectified as the Other, and is viewed as an object to be manipulated and controlled. (COLLINS, 2000, p. 69-70)
O poder não se exerce sem a produção de verdade. A ciência não se exerce sem violência. As imagens de controle são produzidas e mobilizadas por essa ciência emergente, fazendo parte do corpus científico. Essas imagens de controle, obviamente, são direcionadas principalmente às mulheres, cujo corpo é alvo de sugestões sexualizantes. O corpo feminino nativo é traçado como intrinsecamente sexual: “[...] embora as cobríssemos à força, despiam-se às escondidas ao cair da noite e passeavam nuas pela ilha, por mero prazer. E se não fossem obrigadas a chicote, preferiam sofrer o calor do sol [...] a suportar sobre a pele o mais simples objeto” (LÉRY, 1961, p. 110). Apesar dessa construção da imagem de controle, é possível fazer uma leitura contra-colonial, compreendendo como as mulheres tupinambás estavam resistindo e subvertendo as imposições europeias de comportamento.
Assim, quanto mais detalhada a imagem de controle, maior é o efeito de verdade decorrente desse testemunho. Talvez, corroborando inclusive para a disputa pelo capital científico, pela autoridade científica emergente, como sugerido pelo trecho abaixo:
Limitar-me-ei a refutar o erro daqueles que, como se pode ver de seus mapas universais [referindo-se à cosmografia de Thévet], não somente nos representaram os selvagens do Brasil assando carne humana em espetos como fazemos com a de carneiro e outras, mas ainda no-los pintaram a cortá-la sobre bancas, com grandes cutelos, como entre nós os carniceiros fazem com a carne de vaca (LÉRY, 1961, p. 179).
Esse trecho pode demonstrar que os interesses internos e externos se atravessam no campo, como afirma Bourdieu (1983). O interesse é de produzir imagens de controle, enquanto mecanismos de engolfamento[1], enquanto forma de instituir relação colonial-científica de significação do outro, em suma, como forma de governo. Ao lado do interesse interno de disputa por esse mecanismo de engolfamento, dá-se a disputa pela imagem de controle entre os agentes dentro do campo científico.
Portanto, a categoria de não-humanidade é central na representação moderna e, consequentemente, central na significação científica, uma vez que o próprio campo científico emerge do estabelecimento de uma significação colonial que apaga e combate significações outras. O campo científico emerge fundamentado na relação entre o Eu transparente e a coisa afetável, disputando por meio de diversos mecanismos, como as imagens de controle ou o que procuramos denominar de mecanismo-Anchieta, que engloba o outro, compreendendo-o dentro das estruturas já conhecidas, sem adotar uma noção de perspectivismo.
Entretanto, como falado, apesar do engolfamento, apesar do epistemicídio, do genocídio, os outros seres e significados subalternizados por essa significação dominante ainda ameaçam essa relação colonial. Em certos momentos, a obra de Léry traz o embate entre o pensamento mitopoético e o pensamento científico-moderno.
Por que vindes vós outros, maírs e perôs (franceses e portugueses) buscar lenha de tão longe para vos aquecer? Não tendes madeira em vossa terra? [...] e porventura precisais de muito? – Sim, respondi-lhe, pois no nosso país existem negociantes que possuem mais panos, facas, tesouras, espelhos e outras mercadorias do que podeis imaginar e um só deles compra todo pau-brasil [...]. Mas esse homem tão rico de que me fala não morre? – Sim, disse eu, morre como os outros.
Mas os selvagens são grandes discursadores e costumam ir em qualquer assunto até o fim, por isso perguntou-me de novo: e quando morrem para quem fica o que deixam? – Para seus filhos [...]. Na verdade, continuou o velho, que, como vereis, não era nenhum tolo, agora vejo que vós outros maírs sois grandes loucos, pois atravessais o mar e sofreis grandes incômodos, como dizes quando aqui chegais, e trabalhais tanto para amontoar riquezas para vossos filhos ou para aqueles que vos sobrevivem! Não será a terra que vos nutriu suficiente para alimentá-los também? Temos pais, mães e filhos a quem amamos; mas estamos certos de que depois da nossa morte a terra que nos nutriu também os nutrirá, por isso descansamos sem maiores cuidados. (LÉRY, 1961, p. 153-4, grifo nosso)
Esse trecho, quase um exercício maiêutico de Sócrates, representa um desses embates, no qual o nativo ao olhar para a lógica do capital, a considera uma razão irracional, talvez adiantando em séculos uma certa crítica marxista ao capital. O estranhamento perante a lógica do capital, desnuda-a evidenciando que a acumulação do capital é ensimesmada, não serve para atender às necessidades da população, mas tão somente intensificar o acúmulo. O pensamento mitopoético, evocando a centralidade da terra, coloca em xeque o pensamento capitalista.
Ailton Krenak (2020) aponta que a organicidade dos povos originários incomoda o capital. A geo-ontologia, evocada pelo velho tupinambá, mostra uma forma outra de ser, estar e habitar o mundo. Talvez essa geo-ontologia possa se expressar também no escasso registro de Léry das práticas mítico-religiosas dos tupinambás: “Afirmam eles que o nosso corpo é feito do limo e do pó da terra, que constitui a carne da serpente” (LÉRY, 1961, p. 224).
Lévi-Strauss (2005) afirma que existem duas formas de pensamento científico: uma que é próxima à imaginação, à natureza, e outra que é distanciada, operando no nível dos conceitos. Ora, talvez a elaboração desses conceitos distantes da intuição, da fabulação sejam necessariamente distantes da terra, e desses seres e significados outros. Por isso, há a necessidade de repensar o estatuto das próprias categorias utilizadas pelas ciências sociais. Talvez seja necessário que a antropofagia devore nossos conceitos e categorias.
O manto retorna: Glicéria Tupinambá e a antropofagia como conhecimento contra-colonial
A ciência moderna, como vimos, constitui-se a partir da colonização, como nível de disputa exterior. No entanto, podemos atribuir essa disputa também como uma forma de distanciamento da própria terra, um desligamento da comunhão dos povos com a terra, passando a ser mediados e atravessados pelo capital. Talvez as categorias científicas se localizem nesse movimento de afastamento, conforme indica Ailton Krenak: “Quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista” (KRENAK, 2020, p. 49).
Talvez a principal expressão do pensamento mitopoético tupinambá venha a se expressar na obra de Léry na antropofagia. Agnolin (2002), a partir da análise de Florestan Fernandes e dos próprios textos de Thévet e Léry, posiciona a antropofagia como apropriação da morte como condição de humanidade. Em suma, alimentar-se do outro não é meramente apropriar-se das habilidades do outro, mas sobretudo afirmar-se culturalmente enquanto humano. Dessa maneira, “a alteridade não se come ‘crua’” (AGNOLIN, 2002, p. 151). A relação com o outro somente se dá a partir de rituais, pela mediação mítica[2]. Se estendermos a concepção de antropofagia para o cozimento, consideramos a preparação dessa troca cultural que não pode se dar crua. Os tupinambás se alimentaram dos franceses.
[...] existem nesse país certas plantas cujas folhas da largura de quase dois dedos, côncavas como a palha do milho grosso, a que chamamos em França trigo mourisco e com as quais os velhos também costumam envolvê-los em lenços ou pedaços de pano que lhes dão os europeus. (LÉRY, 1961, p. 102)
Depois da chegada dos cristãos a esse país, principiaram os selvagens a cortar e retalhar o corpo dos prisioneiros, animais e outras presas com facas e ferramentas dadas pelos estrangeiros, o que faziam antes com pedras aguçadas como me foi dito por um ancião. (LÉRY, 1961, p. 179)
Os tupinambás se apropriaram, em certo momento, de elementos da cultura europeia, sem cair necessariamente no mecanismo colonial, sem apagar sua cultura. Eles se alimentaram ritualisticamente desses elementos, e os incorporaram às suas práticas, sem por isso colonizá-las. Por meio dessa antropofagia, enquanto alteridade cozida, os tupinambás desestabilizaram a significação colonial, disputando-a com uma forma outra de alteridade que permite se apropriar — sem predar e depredar — elementos de outra cultura, ressignificando-os. Dessa forma,
[...] alimentar-se dessa alteridade não significava a sua destruição literal, mas representava significativamente a sua transformação: quem comia adquiria a substância da alteridade que, por outro lado, ia configurar-se, por sua vez, como o túmulo (cultural) que lhe teria permitido subtrair-se a uma desonrosa morte na natureza. (AGNOLIN, 2002, p. 154)
Nesse sentido, pode-se compreender que o ritual se constitui como uma forma de se apropriar e transformar d/o mundo. O ritual pode ser visto como uma prática social de produção de conhecimento, regido pela lógica mitopoética. Ou seja, a antropofagia não era uma forma de se alimentar, era um processo ritualístico permeado por significações e pela produção de conhecimento:
Mas não comem a carne, como poderíamos pensar, por simples gulodice, pois embora confessem ser a carne humana saborosíssima, seu principal intuito é causar temor aos vivos. Move-os a vingança [...]. Para isso, satisfazer o seu sentimento de ódio, devoram tudo do prisioneiro, desde os dedos dos pés até o nariz e a cabeça, com exceção porém dos miolos, em que não tocam. (LÉRY, 1961, p. 180)
Aos olhos da significação científica, o ato de comer seria apenas o de satisfazer a fome, as necessidades fisiológicas. A antropofagia, entretanto, revela-nos que o ato de comer jamais é apenas a satisfação fisiológica, mas sobretudo a satisfação da fome de sentido, de significado.
Logo, o ritual pode ser entendido como uma prática de classificação, de organização do caos do mundo, a partir de uma lógica epistêmica próxima da imaginação e da percepção. Consequentemente, o pensamento selvagem, ou mitopoético, opera de maneira que o signo possa ser ampliado — em vez de restringido como na ciência —, desestabilizando-o, retirando seu status de conceito. A mitopoética nativa questiona o signo científico como transparente, evoca a instabilidade do traço como arma de disputa da significação.
Uma vez compreendida a antropofagia como alteridade cozida, enquanto produção de conhecimento, passo para análise da vingança dentro da antropofagia e o que ela pode revelar e desestabilizar.
As interpretações recorrentes a esse tema, tendo enfoque ao próprio Florestan Fernandes (1970), é de que a vingança operaria como forma de dar continuidade à própria sociedade tupinambá, na medida em que, ao comer seus inimigos, a guerra continuaria e a existência dos tupinambás se justificaria. Entretanto, Manuela da Cunha e Viveiros de Castro (2018) dão outra interpretação mais interessante para nosso caso, compreendendo que a vingança produz a sociedade e não que a sociedade tupinambá encontrou a vingança como forma de se manter coesa:
[...] não se trata para os Tupinambás de negar ou transcender a morte para recolocar uma continuidade vivos-mortos que garantisse a permanência da sociedade: a vingança não é uma re-ligação dos vivos com seus mortos ou uma recuperação de substância. Não se trata de haver vingança porque as pessoas morrem e precisam ser resgatadas do fluxo destruidor do tempo; trata-se de morrer para haver vingança, e assim haver futuro. Forma de pôr a morte a serviço da vida, não combate contra a morte. A vingança é uma mnemotécnica, mas é mobilizada para a produção de um futuro. A vingança é a herança deixada pelos antepassados e, por isso, abandonar a vingança é romper com o passado; mas é, também e sobretudo, não ter mais futuro [...] (CUNHA; CASTRO, 2018, p. 70).
Nesse sentido, a vingança opera como um elo entre o passado e o futuro, é a interseção, a confluência e a mistura entre tempo e memória. A antropofagia é alimentar-se de seus antepassados — na medida em que eles foram engolidos pela etnia rival — para dar continuidade à própria vida em direção ao futuro. É lançar-se ao passado para produzir o futuro. O futuro é ancestral, como disse Ailton Krenak (2020) . A antropofagia como forma de produção de conhecimento é, portanto, uma produção-máquina-do-tempo, capaz de movimentar-se para o futuro a partir do pretérito.
Essa lógica antropofágica é análoga à proposta de Denise da Silva (2019) ao pensar a Poética Negra Feminista como guia da descolonização, do des-fazer e do des-pensar o Mundo. Denise reivindica a imagem de Benjamin: a imagem é a constelação daquilo que foi e daquilo que é; é a dialética em suspensão, uma dialética não temporal, mas figural. Imagear a história é contemplar o que aconteceu, o que acontece e o que está por acontecer. Espiral-Exu. Somente assim seria possível emancipar-se do pensamento ordenado, do pensamento colonial calcado no Eu transparente.
Talvez assim, seja possível compreender e expandir o signo da antropofagia como um projeto de des-fazer e de des-pensar o mundo colonial a partir do imagear e do devorar da história. Por isso, a necessidade de revisitar o documento colonial, como a obra de Léry, para contemplar a agência contra-colonial dos tupinambás “vivos pretéritos” (CUNHA; CASTRO, 2018, p. 70) do século XVI, conectando-os com a contemporaneidade. Esse entendimento da antropofagia diverge do entendimento modernista, na medida em que não busca criar um mito de origem para a sociedade e para a cultura brasileira, criando um amálgama da identidade nacional (PERA, 2022).
A antropofagia, como apontamos, foge do projeto de Nação, na medida em que este produz sujeitos modernos supostamente autodeterminados, transparentes, na esteira das políticas coloniais do pós-iluminismo (SILVA, 2022). O modernismo instrumentaliza uma representação das etnias indígenas e negras para a elaboração de uma “fantasia nativista” (PERA, 2022, p. 481) que ruma a uma ode à harmonia racial. A antropofagia que apontamos é uma contra-violência, é a inauguração de mundos outros que rompam com o colonial, é uma forma de vingança ancestral.
A vingança, portanto, era o nexo da sociedade tupinambá, que não conseguia vislumbrar seu futuro diante da colonização. As imposições e coerções epistemológicas dos europeus já deixavam claro o futuro tupinambá, e eles/as tinham clareza do que estava acontecendo: a ruína de seu mundo. Os franceses passaram a comprar os/as prisioneiros/as dos tupinambás para escravizá-los/as, o que impedia a concretização da vingança e logo rompia o continuum de existência onto-epistemológica tupinambá: “Não sei o que vai acontecer no futuro, depois que pai Colá [possível referência a Villegagnon] chegou aqui já não comemos nem a metade de nossos prisioneiros” (LÉRY, 1961, p. 173). Crônica de uma morte anunciada.
Dessa forma, compreendemos que talvez a antropofagia possa ser expressa em dois sentidos mútuos, não-excludentes, complementares: 1) enquanto alteridade cozida, ou seja, apropriar-se e transformar-se a partir do outro, desestabilizando uma certa relação de significação estabelecida; 2) enquanto continuum passado-presente-futuro através da vingança. Podemos, talvez, delinear a antropofagia então como sistema mitopoético-concreto que evoca outros seres e significados para a produção de conhecimento, utilizando de mecanismos da alteridade ritualizada/cozida e da vingança também como uma forma de epistemologia, de critério justificativo para a própria produção e significação do mundo.
Embora historicamente localizada, essa forma mitopoética antropofágica começa a se reavivar nos últimos anos. Tomamos como exemplo disso os esforços de Glicéria Tupinambá, que a partir de esforços coletivos da aldeia Serra do Padeiro, em Olivença, na Bahia, procurou resgatar a técnica, a forma de produção do manto ou assojaba tupinambá, utilizado nas cerimônias de antropofagia. Manto este adormecido no imaginário dos/as próprios/as tupinambás — que por sua vez, foram considerados extintos nos séculos XVIII e XIX, tendo sua existência somente reconhecida em 2001 pela FUNAI —, mas que acorda no ano 2000 na Mostra do Redescobrimento, quando o manto tupinambá roubado e aprisionado[3] desde o século XVII no Nationalmuseet de Copenhagen, Dinamarca, vem para o Brasil pela primeira vez.
Então começa um duplo movimento: a luta pela retomada do manto tupinambá em Copenhagen, atrelado à luta pela demarcação do território tupinambá e a retomada das técnicas de produção do próprio manto. Glicéria embarca nessa jornada de retomada, dialogando com parentes mais velhos da aldeia, dialogando com a universidade e, sobretudo, com os encantados, com seus ancestrais. Ressalta-se o importante papel da universidade em ajudar nessa retomada, apresentando fotografias, desenhos históricos, demonstrando que há a possibilidade de a ciência dialogar com esses saberes ancestrais de forma ética. Questão que levantamos no início do texto. A universidade, neste diálogo, procurou apoiar o movimento contrário à predação e depredação da emergência científica do século XVI. E nesse movimento, foi engolida, transformada, na retomada da antropofagia como produção de conhecimento.
A história da retomada, então, começa no ano 2000, quando Dona Nivalda, ou Amotara, da aldeia Serra do Padeiro, vê o manto em São Paulo na Mostra do Redescobrimento. Ao voltar para a aldeia e contar a existência do manto, a comunidade se mobiliza pelo seu retorno, envolvendo inclusive outras comunidades tupinambás, contando com a ajuda do cacique Babau. É feito um abaixo-assinado pelo retorno do manto. Em 2006, a reivindicação começa a adquirir um aspecto para além do objeto físico enclausurado na Europa, mas também o resgate do conhecimento ancestral. Glicéria conta que,
Eu tinha esse sentimento e decidi fazer um presente para os Encantados, meu primeiro desejo foi de um presente para Ele, o Encantado Tupinambá. Pensei em fazer um novo manto. Mas não tinha informações, não tinha nada. [...] conseguimos que ele ficasse pronto para apresentar ao Encantado [...] Fiz, então, esse pedido para Tupinambá: que conseguíssemos recuperar nossa cultura, nossos fazeres, recuperar nossos trajes e tudo. E ele respondeu: “Tudo tem seu tempo”. [...] E os Encantados me deixaram com o compromisso de realizar mais três mantos. (TUPINAMBÁ, 2021b, p. 31)
Mas foi somente em 2018 que a artista conseguiu avançar na confecção dos três mantos pedidos pelos Encantados. Ao visitar o Museu do Quai Branly, em Paris, Glicéria tem contato pela primeira vez com um manto ancestral.
Poder ter acesso ao manto foi fundamental para que ele pudesse começar a falar comigo. O manto conseguiu se abrir para mim e eu consegui fazer minhas observações e ter algumas percepções para que pudesse confeccionar outro manto. Foi importante trazer vida para o manto e mostrar que não era aquela coisa obsoleta, guardada em um canto, só para ser observado e ir se deteriorando com o tempo. Os mantos têm uma vida e um propósito dentro do seu povo. Este é o retorno do manto. (TUPINAMBÁ, 2020)
No processo de falar com o manto, construiu o que denominou de cosmotécnica, afirmando que é guiada pelo próprio manto através dos sonhos. É o manto que fornece os rastros e as trilhas a serem seguidas para ser construído. É a retomada ancestral da produção de conhecimento mitopoético que abre a mata e mostra a direção para o passado-futuro. Glicéria, em um depoimento sobre a exposição Kwã yepi turusú assojaba tupinambá/Essa é a grande volta do manto tupinambá, afirma ser apenas as mãos desse processo de (re)possibilidade de o manto voltar a existir, pois
O manto é ele que me guia, eu não domino a vontade do manto, ele me conduz através de sonhos. [...] O manto voltou com mais força, com vontade de existir, de passar a existir. Aí eu fui, cataloguei junto às mulheres da comunidade que tinha o ponto do manto, e aí a gente conseguiu através dos sonhos também, os pássaros se comunicaram comigo, deixaram as penas pra gente, os meninos conseguiam. A abelha que os mais velhos passaram a explicar como era o processo de captura, da retirada, da coleta do mel. Então a utilização da cera pra poder utilizar o cordão. Então houve uma troca de saberes. (FUNARTE, 2021, min. 7)
Portanto, sendo as mãos desse processo guiado pelo manto e pelos encantados, Glicéria retomou técnicas de costura com linha de tucum, técnicas de entrelaçamento das penas das aves na malha do manto por meio de cera de abelha jataí. Assim, a retomada dessa antropofagia, enquanto alteridade cozida, enquanto vingança histórica tupinambá — ou seja um continuum pretérito-futuro — se dá a partir dessa ação coletiva de resgate do manto. Após mais de duas décadas de luta, em 2023, uma ação institucional de parceria entre o Museu Nacional e o Nationalmuseet faz com que o manto enclausurado em Copenhagen possa voltar para o Brasil, também como forma de recuperar o acervo do Museu Nacional, vítima do incêndio em 2018. Desse modo, o resgate do manto se dá em duas vias: 1) a devolução de uma peça histórica e ancestral; 2) a recuperação dos saberes e das técnicas em torno da produção do manto tupinambá.
Esse segundo processo culminou na exposição Kwã yepi turusú assojaba tupinambá/ Essa é a grande volta do manto tupinambá, ocorrida em Brasília, no ano de 2021, também como forma de protesto contra o PL 490, do Marco Temporal.[4] Assim, a exposição é
uma afirmação, através do manto, da memória coletiva tupinambá e de sua constante reinvenção. Nas palavras de Glicéria, se bem a malha abre caminhos no plano material, ela abre também no plano espiritual, conduzindo, ainda, à retomada de um idioma originário na figura do Nheengatu. A exposição evoca, portanto, a concepção de um tempo circular, comum a vários povos originários do nosso continente: aqui, o futuro não está diante de um passado já desaparecido, mas o passo e o ancestral configuram um lugar com o qual nos conectamos para construir o porvir. (TUGNY et al, 2021, p. 10)
É necessário ressaltar que essa memória coletiva tupinambá é, sobretudo, feminina. A catalogação dos pontos possíveis de se utilizar no manto, os diálogos com a mãe, a recusa das mulheres tupinambás do século XVI em utilizarem as roupas europeias. Práticas femininas de contra-colonização que conectam as/os vivas/os pretéritas/os e as/os mortas/os futuras/os. O manto resgatado é sobretudo feminino. Glicéria diz que
O cacique [Babau] irá usar o manto. Mas o Manto deixa claro, quando fala comigo, que ele foi feito por mãos de mulheres. São mulheres que detêm o saber de tecer o manto. Também traz consigo o nome das mulheres que usavam o manto, que eram as Majés. Então é um enriquecimento, o processo de revitalização do manto, para uma comunidade, muito importante e significativo (TUPINAMBÁ, 2021c, p. 332-333).
Tem o manto que veste o Cacique Babau e tem o outro manto que eu [Glicéria Tupinambá] trabalho na representação da Majé, dessa mulher que é benzedeira, parteira, transmite os saberes das crianças, das mais jovens, da menina que vai virar moça [...] e que vai transmitir todo esse saber. [...] Aí, então, nesse trabalho que eu faço, eu tento resgatar essa mulher que muito mal foi registrada na história, muitas vezes silenciada, apagada (SELVAGEM, 2023, min. 14).
Assim, a prática antropofágica retomada no século XXI também é uma prática feminina da antropofagia enquanto produção de conhecimento. As mulheres possuíam e possuem um papel central na confecção do manto, na socialização e na manutenção desse conhecimento.
Nesse sentido, talvez a retomada dos saberes tupinambás seja um exemplo concreto da atual disputa pela significação colonial, estabelecida no século XVI. A antropofagia, como nexo mitopoético, serve para desestabilizar a relação entre o Eu transparente e a coisa afetável, ecoando forças ancestrais em direção ao porvir, provocando-nos a refletir sobre os impactos disso na nossa concepção de ciência, que ainda muitas vezes reproduz e se preocupa em construir um conhecimento que seja uma crença verdadeira justificada (BLOOR, 2009; SOBER, 2002).
Considerações finais
Ao compreender a antropofagia como uma forma de produção de conhecimento contra-colonial, marcada por uma temporalidade não-linear, que mobiliza a vingança como maneira de permanecer vivo no continuum pretérito-futuro, é possível delinear que buscar, no arquivo colonial, rastros da subversão é uma maneira de se vingar do colonial. Conectar as agências dos/as vivos/as pretéritos/as com os/as mortos/as futuros/as é desestabilizar a significação colonial da transparência, é contestar o local de afetabilidade e de inferioridade em que os/as sujeitos/as indígenas foram colocados.
Assim, é possível traçar a antropofagia como uma espécie de metodologia subalterna e indisciplinada, que se constitui através de uma alteridade cozida, ou seja, através de um devorar o outro de maneira ritualizada e mitopoética, do devorar do passado — colonial ou não — para se lançar em direção ao futuro. O corpo indígena é uma máquina do tempo que, por isso, permite o resgate do conhecimento, do território, da ancestralidade.
Nesse sentido, o resgate do manto permite, então, a leitura subversiva e contra-colonial do documento de Léry, na medida em que procura e registra a agência das mulheres tupinambás no século XVI. O que, para os europeus, era a construção de uma imagem de controle que naturalizava os aspectos sexuais do corpo da mulher indígena, a antropofagia, enquanto retomada de conhecimento ancestral, enquanto vingança contra-colonial no continuum pretérito-futuro, revela que essas mulheres não apenas se rebelavam contra a imposição das vestimentas europeias, mas também produziam o elemento central sem o qual a antropofagia não acontecia: o manto. As mulheres estavam no cerne da produção mitopoética de conhecimento tupinambá. Hoje, as mulheres, em especial Glicéria Tupinambá, também habitam o cerne do resgate desses outros seres e significados, que, por mais que tenham sido apagados historicamente, voltam para desestabilizar e assombrar a colonização.
Dessa maneira, talvez, a antropofagia aqui apresentada possa ser uma forma de subverter o pensamento científico, desestabilizando a transparência da hegemonia do ser e do significado coloniais. A antropofagia nos convida a rever e a repensar ou des-pensar e des-fazer, enquanto projeto de descolonização, as categorias, os conceitos e as metodologias científicas. É necessário interrogar “as premissas do ofício — sem garantia de que o ofício sobreviverá ao exercício”, como propõe Barbara Christian (apud SILVA, 2019, p. 98). Por fim, nos questionamos, se a sociologia — ou as próprias ciências sociais — sobreviveria sem o mecanismo-Anchieta, sem a significação colonial.
A sociologia sobreviveria ao lançar-se em direção à antropofagia?
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Recebido em: 20/07/2023.
Aceito em: 22/11/2023.
* Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp-FFC/Marília), Brasil. E-mail: arley.almeida@unesp.br.
** Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), Brasil. Professor da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp-FFC/Marília), Brasil. E-mail: luis.af.souza@unesp.br.
[1] Aqui dialogamos com Denise da Silva (2022), entendendo que engolfamento é “‘negação parcial’, o ato violento produtivo de nomear, a apropriação simbólica que os produz, inaugurando uma relação exatamente porque, no regime de representação a interioridade governa, a significação científica institui sujeitos insuprassumíveis e irredutíveis” (SILVA, 2022, p. 113).
[2] Infelizmente, a obra não chega a aprofundar-se nos mitos e nas práticas religiosas dos tupinambás. As poucas descrições procuram encaixá-las na cosmovisão cristã, dualizando Deus e Diabo, o que dificultou a análise.
[3] Este é apenas um dos onze mantos tupinambás espalhados por toda Europa, que chegaram entre meados do século XVI e o final do século XVII. Ressalta-se que inclusive indivíduos/as tupinambás foram sequestrados e levados para a Europa, especificamente para a França, como forma de exotismo e de demonstração de poder do rei.
[4] O Marco Temporal é uma tese jurídica que surgiu em 2009 a partir do entendimento de que os povos indígenas somente possuem o direito de ocupar as terras já ocupadas em 1988, momento em que a Constituição foi promulgada. Mais informações disponíveis em: https://abrir.link/abSSW.
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