AS DIFERENÇAS SOCIO-IDENTITÁRIAS NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: o papel de práticas antidiscriminatórias
como estratégia interseccional de proteção dos direitos das comunidades LGBTQIA+ no Brasil

 

SOCIO-IDENTITY DIFFERENCES IN THE DEMOCRATIC RULE OF LAW: the role of anti-discrimination practices
as an intersectional strategy to protect the rights of LGBTQIA+ communities in Brazil

 

Antonella Bruna Machado Torres Galindo *

Fábio Alexandre Silva Bezerra **

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n31.67613.p145-159

 

 

Consciente de sua responsabilidade como docente em contexto de defesa da universidade pública, gratuita e de qualidade, Antonella Galindo, primeira professora trans da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), tem dedicado sua carreira a questões humanitárias, quer seja no ensino, na pesquisa ou na extensão, com ênfase particular na visibilização de temáticas e desafios para a construção de uma sociedade mais justa e equânime, onde a LGBTQIA+fobia[1]  não tenha espaço em face dos valores do atual Estado Democrático de Direito. A esses desafios se somam seu papel na gestão, outro exemplo de seu pioneirismo, no cargo de vice-diretora da Faculdade de Direito do Recife (FDR), desde abril de 2023, por meio do qual almeja estreitar o contato da UFPE, particularmente da FDR, com a sociedade, assim como também objetiva dar a devida atenção a pautas de grupos sociais minorizados. Antonella colaborou/colabora com diversos Programas de Pós-graduação lato e stricto sensu em Direito e ciências afins, tais como os da Universidade Federal da Paraíba, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, da Universidade Federal de Alagoas, da Universidade do Vale do Rio Sinos (UNISINOS) e da Universidade Autónoma de Lisboa (Portugal), bem como com grupos de pesquisa nacionais e internacionais, a exemplo do Oxford Transitional Justice Research e do Public International Law Group, ambos da Universidade de Oxford (Reino Unido). Tem experiência na área jurídica, com ênfase em Direito Constitucional, atuando principalmente nos seguintes temas: constituição, princípios constitucionais, direitos fundamentais, direito antidiscriminatório, justiça de transição, dentre outros. Em postura interdisciplinar, tem buscado estabelecer associações teóricas com a filosofia e a teoria geral do direito, além da ciência política e da teoria do Estado.  Por fim, vale ressaltar que Antonella Galindo também teve seu nome mencionado por boa parte da comunidade jurídica como uma das possíveis mulheres aptas a ocupar a vaga de Ministra do STF aberta com a aposentadoria da Ministra Rosa Weber. É com alegria e gratidão que inicio esta entrevista, que, assim espero, possa servir de inspiração para o público em geral, e principalmente para pessoas cujas subjetividades não normativas têm sido utilizadas para lhes negar acesso a espaços de atuação nos diversos âmbitos da sociedade contemporânea. Esta entrevista foi iniciada em 28 de junho e finalizada em 10 de agosto de 2023, por meio de conversas em aplicativo de comunicação instantânea e trocas de mensagens por e-mail, possibilitando, assim, tempo para reflexão e posterior escrita tanto das respostas como das perguntas.

 

Fábio — Cara Antonella, primeiramente, gostaria de agradecer o aceite de meu convite para conceder esta entrevista e estabelecer um diálogo sobre questões que nos interessam no campo das subjetividades e dos direitos fundamentais. Em uma visão panorâmica, como seu percurso nos âmbitos pessoal e profissional lhe (im)possibilitaram chegar às questões que lhe são mais caras no momento presente?

Antonella — Caríssimo, me sinto lisonjeada com a entrevista, não há o que agradecer. Creio que a motivação para estudar o que estudamos e pesquisar na área sempre vem de alguma inquietação pessoal que temos quanto ao fenômeno estudado. Ainda que não tenhamos uma relação pessoal direta com aquilo, temos no mínimo uma curiosidade aguçada e uma especial disposição para aprofundar a compreensão a respeito. Mas não resta dúvida de que se é algo que nos toca pessoalmente, essa motivação tende a ser maior, e ainda podemos ter o denominado lugar de fala, embora eu tenha algumas ressalvas quanto a uma utilização, que considero indevida, desse conceito, não poucas vezes.

Em relação a mim, acredito que tenho desde sempre uma sensibilidade humana aguçada, coisas como a fome e a seca no sertão nordestino ou nas comunidades pobres daqui mesmo de Recife, por exemplo, eram algo que me provocava profunda consternação e tristeza ainda quando criança. Por que é assim? Por que tanto sofrimento em nossa volta, ainda que possamos estar pessoalmente bem naquele momento? Por que pessoas são discriminadas e até mortas por causa de sua cor da pele ou de sua religião ou de outro fator do tipo?

Isso me levou, mesmo eu sendo à época um homem branco, urbano, de classe média, visto como heterossexual e cisgênero pela sociedade, já ali, a sentir empatia e compaixão e a me indignar com qualquer situação de injustiça e opressão de vulneráveis. Mesmo à época não me apresentando socialmente como mulher, não aceitava a misoginia; mesmo não sendo negra, não aceitava que pessoas fossem discriminadas por sua raça, e assim por diante. E isso, de certa maneira, levou-me a um caminho de dedicação a estudar direitos humanos e fundamentais dentro do curso de Direito que escolhi, não obstante sempre ter sido muito entusiasta do rigor científico e metodológico, pois, igualmente, não me era atraente o discurso meramente panfletário sobre esses direitos e essas injustiças. Ao lado disso, percebi o quanto o sistema político democrático era o único em que, com todas as suas imperfeições, permitia que avanços humanitários tivessem lugar. Então, meus estudos e pesquisas sempre gravitaram em torno do binômio democracia-direitos humanos, não obstante eu ter muito cuidado com a técnica e o processo por meio do qual esses direitos e o regime democrático se concretizam.

Dois fatores de natureza pessoal me fizeram aproximar mais dos estudos e pesquisas do que hoje chamamos de direito antidiscriminatório, uma subdivisão dos estudos de direito constitucional dos direitos humanos: minha autodescoberta como mulher trans, após décadas de inquietação com o desconforto que eu sentia quanto à minha inadequação com o gênero que me foi atribuído ao nascer, e ter um filho, pessoa com deficiência, o que me trazia já de cara como missão de vida uma luta pessoal antilgbtfóbica, antimisógina e anticapacitista e uma empatia com a luta antirracista e contra outras formas de discriminação de pessoas vulneráveis.

Apesar disso, meus interesses científicos são amplos, e gosto de estudar a conformação jurídica das instituições políticas, as constituições e seus desdobramentos, além de muita coisa fora do direito, seja outros campos do saber científico, como a teoria política, a filosofia, a história, a psicologia e a sociologia, sejam arte e cultura em geral, cinema e literatura em particular. Enfim, o humano me interessa muito. E acho que, envolvida ou não pessoalmente com a temática, permanecerei interessada em tudo o que diga respeito ao ser humano e sua dignidade.

 

Fábio — Muito interessante conhecer esse seu percurso e como ele a conduziu a escolhas particulares. Você mencionou que sua autodescoberta como mulher trans e ter um filho, pessoa com deficiência, foram fatores pessoais que a aproximaram dos estudos sobre direito antidiscriminatório. Como essas experiências influenciaram sua perspectiva e seu compromisso na luta contra a discriminação e na promoção dos direitos humanos em nosso país?

Antonella — Influenciaram bastante. Acredito que o fato de termos algo que nos vincula diretamente a uma causa tende a nos aproximar mais de sua defesa, e penso que é nesse sentido que considero essas situações um estímulo para os estudos, as pesquisas e alguma dose de militância em prol disso.

Por outro lado, acredito que esses fatores pessoais isoladamente não garantem que as pessoas se engajem ou defendam essas pautas. Muitas vezes há, inclusive, discriminados que discriminam. Por exemplo, uma pessoa com deficiência pode olhar para outras pessoas com deficiência com solidariedade, mas ser racista. Um homem negro pode ser misógino. Uma mulher pode ser homofóbica. Um gay pode ser transfóbico. Uma pessoa trans pode ser capacitista e assim por diante. Certamente olham só para si, esquecendo que o preconceito e a discriminação é algo muito semelhante em todos esses casos, já que se trata de julgar essas pessoas não pelas suas atitudes, comportamentos e competências, mas pelo que elas são.

É preciso que, para além da proximidade com essas realidades e certo lugar de fala, também possamos ter a mente aberta para compreender as raízes dessas formas de discriminação e lutar para revertê-las, fazendo ou não parte desses segmentos vulneráveis da população.

É como penso a respeito. Sou uma mulher trans branca que tem um filho com deficiência, então ser antilgbtfóbica, antimisógina e anticapacitista é quase uma obrigação. Mas também me considero antirracista, mesmo não sendo negra. Bem como também me identifico com qualquer luta antidiscriminatória no mundo, como as lutas contra o antissemitismo ou contra a intolerância religiosa.

 

Fábio — Precisamente nesse contexto das lutas antidiscriminatórias ao qual você se refere, como pesquisadora e defensora dos direitos humanos, você tem acompanhado os avanços legais no âmbito dos direitos concernentes às comunidades LGBTQIA+ no Brasil. Poderia destacar algumas das principais conquistas e marcos legais que ocorreram nos últimos anos em relação aos direitos e proteções para esses grupos minorizados e vulneráveis? E quais desafios ainda persistem no caminho para uma plena igualdade e inclusão?

Antonella — Os avanços e desafios jurídicos na proteção dos direitos da comunidade LGBTQIA+ se inserem em um contexto político mais amplo de afirmação ou de negação dessas pautas. Eu diria que avançamos muito nas últimas duas décadas, não obstante termos tido o governo anterior ao atual abertamente hostil e agressivo contra nós, e tentando obstacular nossas conquistas com uma pauta lgbtfóbica, e mesmo seguindo uma tendência do extremismo reacionário mundial nessa direção, especialmente contra as pessoas trans, acusando todo aquele ou aquela que discute essas questões com pesquisas científicas, reflexões e seriedade analítica como defensores de uma suposta ideologia de gênero. Ora, para mim, ideologia de gênero é precisamente algo que muitas dessas linhas ideológicas ligadas, sobretudo, a um fundamentalismo religioso fazem, querendo impor uma única visão sobre a questão e interditando o debate sobre as sexualidades e identidades não alinhadas com essa visão, mas que objetivamente existem, gostem ou não essas pessoas.

Mas para não fugir da questão, vamos lá aos avanços conquistados e desafios pendentes.

Os avanços no âmbito institucional vieram, sobretudo, do poder executivo (salvo no caso do governo Bolsonaro) e judiciário. Porém, nada disso aconteceria se não fosse a mobilização e organização dos grupos ativistas LGBTQIA+, que levaram adiante essa luta, provocando todos os poderes a ampararem esses direitos. Sem a luta política desses atores e da mobilização da comunidade como um todo, os poderes públicos pouco fazem, ainda que os governantes sejam sensíveis a essas causas. No caso do poder executivo nacional, especialmente sob os governos Lula e Dilma, tivemos iniciativas no âmbito do Plano Nacional de Direitos Humanos e de políticas públicas diversas para essa população, de combate à homotransfobia, de acesso à saúde no setor público, de promoção e financiamento de pesquisas científicas a respeito, dentre outras coisas. No âmbito do poder judiciário, é de se destacar a proatividade de muitos representantes da magistratura, em especial o tão atacado STF, na consagração de direitos importantes, como a união estável e o casamento homoafetivo, a mudança de prenome das pessoas trans sem a necessidade de cirurgias de transgenitalização e de decisão judicial, sendo hoje procedimento realizado diretamente em cartórios, e ainda, a interpretação dada ao termo racismo social que possibilitou a aplicação da Lei antirracismo aos crimes de homotransfobia. Não sem lembrar a atuação também relevantíssima de advogadas e advogados que encamparam juridicamente essas lutas, bem como representantes do Ministério Público e das Defensorias Públicas que fizeram o mesmo, provocando o judiciário a agir.

Por outro lado, há um enorme desafio no âmbito do poder legislativo. Temos poucas leis protetivas de nossa comunidade, nenhuma em âmbito nacional. O Congresso Nacional, mesmo tendo anteprojetos desse tipo, apresentados desde a década de 90 do século passado, jamais aprovou uma lei sequer que nos beneficie, o que fragiliza nossos direitos porque ficamos sempre na dependência dos governos de ocasião e das posições do poder judiciário, que, por sua vez, só age se for provocado a isso. E há uma resistência enorme das bancadas eleitas na onda extremista reacionária a qualquer avanço nesses direitos, o que torna o próprio governo reticente em ser mais proativo dada a permanente necessidade de negociação política de outras pautas igualmente relevantes para a sociedade como um todo.

Porém, acredito muito no conhecimento que liberta, e quanto mais conseguirmos demonstrar que não somos aberrações, mas parte indissociável da diversidade humana, que não ameaçamos a família tradicional ou a religião (aliás, muitos LGBTs são pessoas extremamente religiosas e se entristecem com essa rejeição no âmbito de igrejas e cultos que gostariam de poder frequentar e participar), mais a aceitação tende a vir com a compreensão. Também no passado, acreditou-se na inferioridade de negros e indígenas, na pureza de raças, na superioridade masculina, no Sol girando em torno da Terra, e tantas outras coisas que hoje são consideradas obsoletas pela ciência e conhecimento avançado. Sou otimista com o futuro, embora seja um processo de idas e vindas, sendo sempre presente o perigo real de retrocesso, como ocorre hoje na Rússia, Hungria e outros países, pois não há um progresso inexorável evolutivo da humanidade. A involução também é humana, e é preciso cotidiana luta contra ela, como naquela frase comumente atribuída a Thomas Jefferson de que “o preço da liberdade é a eterna vigilância”.

 

Fábio — Tendo mencionado desafios que vão além das questões de gênero e de sexualidade, de que modo você acredita que a luta pelos direitos das comunidades LGBTQIA+ no Brasil estaria conectada, em uma perspectiva interseccional (AKOTIRENE, 2019; COLLINS; BILGE, 2016; CRENSHAW, 1991), a outras pautas sociais com base em marcadores sociais da diferença como raça, classe, deficiência e origem?

Antonella — Acredito que a interseccionalidade, pensada ali nos anos 80 do século XX, por gente como a ativista e pensadora norte-americana Kimberlé Crenshaw, é uma ferramenta fundamental para a compreensão dos preconceitos de segmentos vulnerabilizados da sociedade. O enfrentamento real das discriminações pejorativas contra esses setores pressupõe uma compreensão de que a maioria das pessoas é potencialmente vulnerabilizável e discriminável por algum fator relacionado à sua condição. Uma mulher racista e lgbtfóbica pode sofrer misoginia; um negro misógino e lgbtfóbico pode sofrer racismo; um gay racista e capacitista pode sofrer homofobia; uma pessoa com deficiência aporofóbica e transfóbica pode sofrer capacitismo; e por aí vai. Uma pessoa que tenha mais de um desses fatores de discriminação pode sofrer várias delas, pense, por exemplo, em uma mulher negra lésbica e pobre sofrendo misoginia, racismo, homofobia e aporofobia ao mesmo tempo.

Enquanto não compreendermos que a raiz de todo esse mal está em pensarmos como indivíduos, que a nossa condição pessoal nos dá algum tipo de superioridade social em relação a outros indivíduos, inevitavelmente fracassaremos como sociedade civil. Pensar uma sociedade com menos preconceito implica em refletir acerca disso de modo interseccional mesmo, pois, em algum desses pontos, a tendência é que quase todo mundo seja vulnerável e possa sofrer discriminação. Se esta é interseccional, o combate a ela também precisa ser.

Talvez pelo fato de ser professora, acredito muito na educação e no conhecimento como fatores de transformação social e de superação gradativa da lgbtfobia. A impressão que tenho é a de que a maioria das pessoas preconceituosas não o são de modo imutável e inquebrantável. Muitas têm certo medo do que não conhecem e preferem se arraigar aquilo que já conhecem. Mas se expostas ao debate honesto, informativo e democrático, sem serem hostilizadas (e aí o ativismo dos direitos LGBTQIA+ precisa ser estratégico nesse ponto — e em vários outros), muitas vezes mudam de ideia e passam a compreender melhor o que é essa diversidade tão estranha e a aceitá-la.

Claro que existe uma minoria raivosa que age com desonestidade intelectual e truculência, inclusive espalhando fake news, desinformação e criando pânico moral em pessoas de boa-fé, e a essa minoria é preciso responder com o enfrentamento político e jurídico necessário. Hoje a lgbtfobia é crime nos mesmos moldes do racismo, e os que praticam violência e discurso de ódio contra pessoas LGBTQIA+, que sejam punidos na forma da lei. A punição também pode ser pedagógica, mas quero crer que não seja necessária para a maioria. No caso desta, acredito que educação e informação correta podem ser suficientes.

 

Fábio — Com base na perspectiva que você apresenta sobre a interseccionalidade e sua importância na compreensão dos preconceitos e das discriminações na sociedade, como você acredita que as instituições de ensino podem abordar de forma mais eficiente a questão da interseccionalidade e promover um ambiente educacional inclusivo para todes?

Antonella — Um passo importante que tem sido dado são as políticas de ação afirmativa, que, diga-se, não se resumem às cotas, embora elas sejam parte integrante delas. A presença de pessoas oriundas desses segmentos vulnerabilizados em espaços de poder e influência faz com que tenhamos potencialmente um olhar diferenciado para esses segmentos, visto que elas sofreram e sofrem na pele essas discriminações e os efeitos delas. Representatividade é um ponto importante e não pode ser negligenciado.

Na terceira semana de julho deste ano, por exemplo, fui uma das juristas que assinou um Manifesto por Mulheres no STF, fazendo um apelo ao Presidente Lula para que escolha uma mulher para a próxima vaga a ser aberta na Corte Suprema com a aposentadoria da ministra Rosa Weber. Só para dar uma ideia dessa importância, foi justamente na presidência dessa ministra que surgiu uma significativa conquista para as mulheres na forma do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, um documento relevante de orientação interpretativa para que juízas e juízes em todo o Brasil julguem levando em conta que devem combater estereótipos de gênero e misóginos.

Porém, por si só, isso não basta. É necessário que tenhamos estratégias organizadas de capacitação para as pessoas que lidam com essa diversidade nos ambientes públicos e privados, incluindo o mundo corporativo e empresarial — e acredito que a universidade pública pode ter um papel relevante nisso. São formas de levar esse conhecimento a segmentos mais amplos de pessoas, mostrando que a diversidade e a não discriminação são coisas boas para a sociedade como um todo. Há pesquisas no mundo empresarial que demonstram, inclusive, que um ambiente de maior diversidade é também de maior produtividade, pois fomenta perspectivas diferentes sobre a realidade e o potencial criativo desses olhares humanos diversos.

 

Fábio — Aprofundando outro aspecto essencial sobre a luta contra práticas discriminatórias, você mencionou que a maioria das pessoas preconceituosas pode mudar de ideia por meio de debates informados e honestos. Quais estratégias específicas você recomendaria para conduzir esses debates de maneira produtiva e respeitosa?

Antonella — Bom, eu não sei exatamente quais seriam as estratégias mais adequadas, mas o que deve nos nortear é a disposição a um diálogo respeitoso. Não se colocar em uma posição de superioridade, nem de inferioridade, por óbvio, escutar realmente o que a pessoa tem a dizer, quais as suas dúvidas e se fazer ouvir a partir de uma apropriação anterior de conhecimento que tenha o potencial de convencer esse tipo de pessoa que é lgbtfóbica por ignorância e medo do desconhecido e não por serem intrinsecamente preconceituosas.

Em relação a elas, precisamos passar longe de posturas de lacração[2] e argumentar com informação fidedigna, acolhendo as angústias que essas pessoas têm com o tema, tentando responder-lhes da melhor forma. Nunca as desmerecer, nem partir para hostilizações, só porque elas podem ter levantado um questionamento sincero ou exposto uma discordância com algum ponto que consideramos fundamental. Muitas vezes, elas não concordam com tudo o que os movimentos de defesa dos direitos LGBTQIA+ defendem, mas mostram concordâncias parciais e vão ficar refletindo a respeito do restante. E convenhamos que, mesmo dentro dos próprios movimentos, divergimos sobre muita coisa.

Claro que, aqui, não me refiro àquelas pessoas fanatizadas que veem isso sempre como uma conspiração contra a família cristã e as tradições, da qual faria parte até o recém-lançado filme da Barbie, e que só querem vencer o debate, lacrar, mitar,[3] ou seja lá o que for, lançando mão, com frequência, de desonestidade intelectual, distorções deliberadas, fake news e congêneres. Algumas dessas pessoas que se mostram belicosas e até violentas precisam ser combatidas, dentro da lei e com as ferramentas constitucionais do Estado democrático de direito, na luta política; enfim, infelizmente, em relação a quem quer nos destruir, faz-se necessária a devida reação.

Para todas as outras, o diálogo como base. Penso que, se eu puder de algum modo influenciar os movimentos sociais de defesa de nossos direitos, minha sugestão seria essa.

 

Fábio — O ativismo dos direitos LGBTQIA+ é um componente importante no combate à LGBTfobia. Como você vê o papel das mídias sociais nesse ativismo e quais são os principais desafios enfrentados por ativistas online?

Antonella — Hoje em dia, tudo passa pelas mídias sociais. A afirmação dos direitos da comunidade LGBTQIA+ também. Impossível qualquer progresso se não passa por ganhar espaço relevante no ambiente midiático digital.

Entretanto, por mais que se esforcem, os ativistas digitais enfrentam uma barreira considerável na questão da chamada inteligência artificial (IA) e dos famosos algoritmos. Em breve, sairá um texto meu sobre constitucionalismo digital, no qual debato como esses novos mecanismos de IA e de tecnologia da informação têm alterado o panorama da democracia liberal, até há pouco hegemônica, além de também apontar o quanto é desafiador esse cenário para quem está no ativismo online LGBTQIA+, bem como de outros segmentos vulnerabilizados da sociedade.

Como disse Miguel Nicolelis, a verdade é que a IA nem é inteligência, muito menos artificial. Ele destaca, por exemplo, que o ChatGPT é um grande plagiador, que não cria efetivamente coisas novas, mas sim variações de coisas do passado. Quem alimenta essas IAs são, na verdade, inteligências naturais — e eis aí o problema. A questão dos algoritmos está no centro do debate, pois é ela que tem impedido que o efetivo contraditório se estabeleça com a exposição de todas e todos nós a ideias diferentes das nossas. Isso propicia as famosas bolhas de informação e os vieses de confirmação, pois tendemos a ver apenas aquilo que confirma nossas ideias preconcebidas.

Ocorre que o conhecimento e o desenvolvimento de sistemas políticos melhores só ocorrem com a exposição ao contraste de ideias e de teses, o que tem sido difícil atualmente. Mais difícil ainda por causa do fenômeno das fake news, que criam realidades paralelas e possibilitam que pessoas preconceituosas vejam nelas motivações para continuarem a discriminar. São notícias falsas como a do famoso kit gay, da distribuição de mamadeiras eróticas nas escolas, da educação sexual para ensinar crianças a serem gays ou trans, de que estariam fazendo cirurgias de transgenitalização em crianças, enfim, coisas que geram um pânico moral e fazem com que pessoas que poderiam simpatizar com os direitos LGBTQIA+ se fechem ao diálogo e combatam esses moinhos de vento quixotescos, em vez de conversarem com tranquilidade, com as concordâncias e discordâncias naturais de um debate bem informado, e com os fatos devidamente estabelecidos.

Um dos passos fundamentais para superar isso, a meu ver, é a presença da diversidade nos espaços de poder, e isso inclui esse poder gigantesco das empresas de tecnologia. A IA é alimentada por pessoas e estas são, na maioria das vezes, homens brancos cisgênero e heterossexuais que trazem em si todos os marcadores de preconceitos associados com a educação que tiveram e com a potencial invisibilização da diferença em relação a esse padrão. De algum modo, precisamos pensar em estratégias para que LGBTs estejam mais presentes nesses espaços digitais, assim como mulheres, negros, pessoas com deficiência e outros setores vulnerabilizados da sociedade. A programação desses algoritmos, por exemplo, precisa ser feita por essa diversidade de pessoas.

Claro que o que já está sendo feito em termos de produção de conteúdo nas redes e de buscar ocupar os espaços tradicionais de poder também precisa ser feito. Nós, LGBTs, precisamos estar nos legislativos nacional, estaduais e municipais, em governos, no poder judiciário, nas demais carreiras jurídicas, na academia, na ciência, nas artes, enfim, em todos os espaços socialmente relevantes. Precisamos pensar coletivamente como isso pode ser feito, mas penso que é por aí.

 

Fábio — Você mencionou a importância da representatividade e das políticas de ação afirmativa como um passo importante para lidar com a interseccionalidade nas instituições. No entanto, sabemos que ainda há resistências e críticas a essas políticas. Como você responderia aos argumentos daqueles que acreditam que a promoção da diversidade por meio de ações afirmativas pode levar à diminuição do mérito individual ou à discriminação reversa?

Antonella — Bom, penso que responderia que esses argumentos, ao menos até o momento, não são sustentados por dados empíricos. Ocasionalmente, essa diminuição pode ocorrer, mas as diversas pesquisas e levantamentos feitos sobre a aplicabilidade das políticas de ação afirmativa nas universidades e em outros segmentos públicos têm demonstrado que não há diferenças qualitativas significativas entre o alunado cotista e o não cotista, por exemplo. Para além da demonstração, via levantamentos de dados, enxergo isso empiricamente também em minha experiência como docente em uma universidade federal, acompanhando passo a passo a implementação dessas políticas, desde o seu início.

Se olharmos, por exemplo, o rendimento do alunado nas provas e trabalhos, ele é muito similar, como eu disse. Não dá para distinguir, nessas avaliações, quem seria cotista ou não pelas notas, havendo discentes que tiram notas boas e ruins em ambos os segmentos. A grande diferença é quando olho as pessoas na sala de aula. Quando assumi como professora efetiva na UFPE em 2006, via em sala de aula, basicamente, jovens brancas e brancos da classe média ou alta da região, cisgênero e a maioria se portando como heteroafetivos. Hoje, percebo visualmente uma multiplicidade de cores, com um aumento considerável de jovens negras e negros das áreas periféricas, indígenas, homoafetivos e até pessoas trans, não obstante o fato de que a classe média e alta branca e heteroafetiva continue lá e seja muito bem-vinda também.

Penso que as políticas de inclusão via ações afirmativas são, no geral, um sucesso, embora elas mereçam sempre rediscussões e aprimoramentos para não perderem de vista seus objetivos e não perpetrarem injustiças, além de termos sempre em vista o seu horizonte temporário, no sentido de que sejam desnecessárias a longo prazo, uma vez alcançados seus objetivos fundamentais de igualdade de acesso de todas essas pessoas à educação e às oportunidades de estudo e trabalho em geral.

 

Fábio — Nesse contexto de lutas por equidade nos diversos setores da vida em sociedade, tem se evidenciado, cada vez mais, que, além da importância do universo digital, as mídias televisiva e impressa desempenham um papel significativo na formação de opiniões e na construção da visão de mundo da sociedade. Como você enxerga a responsabilidade desses meios de comunicação na promoção de uma cultura mais inclusiva e na desconstrução de estereótipos e preconceitos relacionados às comunidades LGBTQIA+? Quais medidas você acredita que podem ser adotadas pelos veículos de mídia para garantir a representatividade e a abordagem responsável das questões relacionadas à diversidade de gênero e de orientação sexual?

Antonella — Penso que esse debate é mais amplo no que diz respeito à própria ideia de que essas mídias são concessões públicas e precisam corresponder a isso. Na verdade, considerando uma espécie de interseccionalidade midiática, urge um debate sobre como as mídias em geral podem servir ao debate público genuinamente democrático e com respeito aos direitos humanos básicos.

No momento, isso está adstrito às iniciativas específicas da posição editorial de cada um desses órgãos de imprensa. E, quase sempre, é bem difícil incluir as pautas de defesa dos direitos da comunidade LGBTQIA+, a não ser quando essas pautas, de algum modo, geram lucro para essas empresas de mídia.

Há o problema também do avanço de religiões fundamentalistas na propriedade desses meios de comunicação, o que é um complicador significativo, pois, não raro, tais meios servem a pautas de ódio à comunidade LGBTQIA+ fundamentadas em interpretações literalistas ou mesmo distorcidas dos livros considerados sagrados pelo cristianismo. Para além de nossa comunidade, o próprio Estado laico é ameaçado quando religiões politicamente organizadas, para conquista do poder estatal, alcançam-no e procuram condicioná-lo a pautas de sua própria vertente religiosa em detrimento do bem comum.

De algum modo, precisamos buscar formas de responsabilização desses meios de modo preventivo e repressivo para que, independentemente da ideologia ou fé religiosa de seus proprietários, possam trabalhar efetivamente pelo bem comum e não apenas para gerar lucro ou propaganda ideológica/religiosa. Mas é um debate complexo, e é necessário termos cuidado para não engendrar qualquer tipo de censura, vedada pela Constituição.

 

Fábio — Diante do cenário atual de avanços e desafios na luta pelos direitos LGBTQIA+ e pela promoção da equidade, quais são suas principais expectativas e esperanças para o futuro? Como você, Antonella, enxerga a possibilidade de uma sociedade mais inclusiva e respeitosa em relação à diversidade de gênero e de orientação sexual nos próximos anos?

Antonella — Eu tento me distanciar de extremos quanto a prognósticos. Nem ser uma otimista ingênua, daquela que foge de ver as coisas como são, com uma boa dose de autoengano, nem ser uma pessimista amarga, do tipo que acha que não conquistamos coisa alguma, que é tudo uma perda de tempo, que nada vai realmente mudar em termos significativos.

Costumo dizer, como fazia Ariano Suassuna, que sou uma realista esperançosa. Não ignoro que tivemos muitos retrocessos recentemente e que as ameaças contra nossos direitos permanecem. Nesse sentido, a luta precisa continuar em todos as frentes, digamos assim. O assédio e a violência psicológica ou física contra nós permanecem, inclusive nos poderes públicos, e só a devida e firme reação contra isso é a resposta possível. Por outro lado, há o que já disse no que é concernente ao processo de comunicação e educacional: informar corretamente e educar, ainda é, para mim, a chave para avanços.

Minha esperança é que consigamos suplantar gradativamente tudo isso, assim como conseguimos muitas conquistas significativas nas últimas décadas. Uma sociedade mais inclusiva depende diretamente disso.

 

Fábio — Como nos ensinou Paulo Freire (1992, p. 110), nosso ilustríssimo pernambucano, patrono da educação brasileira: “É preciso ter esperança, mas ter esperança do verbo esperançar”. Assim como você, precisamente por acreditar na potência da vida, da democracia e das diferenças, também penso que devemos seguir esperançando novos e melhores tempos. Muito obrigado por esta entrevista e pela rica troca que ela nos proporcionou, Antonella. Sigamos firmes na luta!

Antonella — Paulo Freire que, por sinal, foi também aluno da Faculdade de Direito do Recife. É por aí, esperançar sempre, mesmo quando enfrentamos retrocessos. Não lutar contra as injustiças causadas pela lgbtfobia não é uma opção para nós.

Também sou muito grata pela oportunidade desta ótima conversa, Fábio. Sigamos!

 

Referências

 

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro: Pólen, 2019.

COLLINS, Patricia H.; BILGE, Sirma. Intersectionality. Cambridge, Malden: Polity Press, 2016.

CRENSHAW, Kimberlé. Mapping the margins: intersectionality, identity politics, and violence against women of color. Stanford Law Review, Stanford, v. 43, n. 6, p. 1241-1299, 1991.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1992.

 

Recebido em: 11/08/23.

Aceito em: 28/10/23.

 

 

 



* Doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Brasil. Professora Associada da Faculdade de Direito do Recife e Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito, ambos na UFPE. E-mail: antonella.galindo@ufpe.br.

** Doutor em Língua Inglesa e Linguística Aplicada pela Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. PhD em Linguística pela University of Sydney. Professor Associado do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas e do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal da Paraíba, Brasil. E-mail: fabes10@yahoo.com.br.

[1] Pode-se definir a LGBTQIA+fobia como o medo, a aversão, o ódio, a rejeição, o preconceito e a discriminação direcionados a lésbicas, gays, bissexuais, pessoas trans e travestis, queer, intersexo, assexuais e demais (+) identidades de gênero e/ou orientações sexuais.

[2] Segundo o Dicionário Online de Português, lacração é a "ação de se sair bem, ser bem-sucedido, de ter sucesso: sua apresentação de dança foi pura lacração!". Disponível em: https://www.dicio.com.br/lacracao. Acesso em: 30 out. 2023. Aqui, contudo, o termo está sendo utilizado para se referir mais especificamente a críticas irônicas e não genuínas a discursos com os quais não estão de acordo.

[3] Segundo o Dicionário Online de Português, mitar é "fazer sucesso; obter grande êxito ao ponto de virar lenda, mito, especialmente num contexto on-line, em redes sociais: mitou nos comentários; aquele jogador simplesmente mitou!". Disponível em: https://www.dicio.com.br/mitar. Acesso em: 30 out. 2023.

 

 

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Desenho de um círculo

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