UMA NARRATIVA SÓCIO-HISTÓRICA SOBRE A FLEXIBILIZAÇÃO DO TRABALHO NO BRASIL: trabalho em transformação

A SOCIO-HISTORICAL NARRATIVE ON THE FLEXIBILITY OF WORK IN BRAZIL: work in transformation

Larissa Fernandes Camargo *

Thais da Silva Ferreira **

Ivan Lucon Monteiro Jacob ***

 

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n32.68709.p182-209

 

 

 

Resumo

A flexibilização global, concomitante às transformações paradigmáticas no mercado de trabalho brasileiro, sob o influxo do avanço tecnológico e em sintonia com as premissas do neoliberalismo, potencializa a precarização e o fenômeno do subemprego. Neste cenário, emerge como objetivo deste estudo a análise dos impactos socioeconômicos e sociais decorrentes da precarização e informalização do trabalho contemporâneo, fundamentada por meio da análise através dos postulados do materialismo histórico. A presente investigação, caracterizada como uma revisão narrativa da literatura, de caráter qualitativo, possibilitou a abrangência de obras recuperadas por meio dos bancos de dados Google Acadêmico e Scielo com a utilização dos descritores alienação do trabalho, flexibilização e precarização do trabalho. Conclui-se, mediante a contextualização literária, que tais aspectos de mudança no contexto laboral exercem um impacto considerável na tessitura social, traduzindo-se em uma persistente alienação do trabalho e na instauração da denominada “uberização,” cujas consequências reverberam na precarização das condições laborais, impactando adversamente a saúde física, mental e a dignidade da classe trabalhadora.

Palavras-chave: trabalho; precarização; neoliberalismo; informalidade.

 

Abstract

Global flexibilization, concurrent with paradigmatic transformations in the Brazilian labor market, under the influence of technological advancement and in line with neoliberal premises, exacerbates precarization and the phenomenon of underemployment. In this scenario, the objective of this study is the analysis of the socio-economic and social impacts resulting from the precarization and informalization of contemporary work, grounded, by way of an analysis, through the postulates of historical materialism. The present investigation, characterized as a qualitative narrative literature review, enabled the coverage of works retrieved through the Google Scholar and Scielo databases using the descriptors alienation of labor, flexibilization, and precarization of work. It is concluded, through literary contextualization, that such changes in the labor context have a considerable impact on the social fabric, manifesting as persistent alienation of labor and the establishment of so-called "uberization," whose consequences reverberate in the precarization of working conditions, adversely affecting the physical, mental health, and dignity of the working class.

Keywords: work; precariousness; neoliberalism; informality.

 

 

Introdução

 

A precarização do trabalho, embora não seja um fenômeno recente, reverbera na contemporaneidade perante as reestruturações ocorridas sob os paradigmas da nova ordem social, ou seja, o avanço do neoliberalismo na política econômica. As flexibilizações dos processos de produção e distribuição de mercadorias com base na acumulação flexível implicam no desemprego estrutural, na precarização das condições laborativas e na aceleração da degradação do meio ambiente em âmbitos globais (Antunes, 2001).

A natureza ontológica do pensamento marxiano destaca a ideia do metabolismo social, tendo o ser humano como a única espécie inclinada ao trabalho. Por meio dos aspectos da atividade social, especialmente o trabalho, há a interação do ser com o meio natural. Conforme Marx (2004, p. 84) argumenta, “o animal é imediatamente um com sua atividade vital. Não se distingue dela. É ela. O homem faz da sua atividade vital mesma um objeto da sua vontade e da sua consciência”. Essa concepção ressalta a centralidade do trabalho na formação da identidade e da própria humanidade, sendo algo natural e favorável para a preservação e subsistência do ser social. Entretanto, sob o processo de produção capitalista, essa relação intrínseca entre o homem e o trabalho é subvertida. Na dinâmica do sistema capitalista, o trabalhador se depara com a alienação de sua própria produção. Nesse contexto, o trabalhador torna-se mais barato quanto mais bens produz, ou seja, há uma valorização das coisas produzidas proporcionalmente à desvalorização do produtor. Assim, ocorre não apenas a produção da mercadoria, mas também a produção de si mesmo como trabalhador, equiparado à produção dos bens (Marx, 2004).

Diante desse contexto, a alienação se manifesta quando o trabalhador, ao produzir, torna-se estranho ao produto de seu próprio esforço, uma vez que este se converte em propriedade do capitalista. O trabalhador é despojado do controle sobre o processo produtivo, transformando-se em mero instrumento de trabalho e sua força de trabalho em uma mercadoria a ser vendida no mercado. O capitalista, por sua vez, apropria-se do excedente gerado pelo trabalho, enquanto o trabalhador é relegado à condição de assalariado, alienado tanto do produto do seu trabalho quanto de sua própria essência como ser humano. Essa condição reflete a perda de controle do trabalhador sobre seu próprio trabalho, enquanto o produto de sua atividade é apropriado pelo capitalista, perpetuando assim a dominação do capital sobre o trabalho (Marx, 2004).

Tal aspecto de alienação é exacerbado no contexto contemporâneo, onde as constantes mutações lógicas e materiais incorporadas à atividade laborativa visam principalmente à manutenção da hegemonia financeira no capitalismo global (Mészáros, 2011), em detrimento da saúde e da qualidade de vida do trabalhador. Evidencia-se, portanto, o progressivo afastamento humano em relação ao sentido intrínseco da classificação trabalho.

No que diz respeito ao Brasil contemporâneo, há um contínuo movimento de transformação no valor do trabalho, devido às constantes mutações lógicas e materiais incorporadas à atividade laborativa como forma de manutenção da hegemonia financeira presente no capitalismo global (Mészarós, 2011). Ainda de acordo com Mészáros (2011), ocorre uma segunda ordem de mediações capitalistas, na qual os meios de produção alienados, que invertem a ordem de essencialidade do trabalho, geram como resultado a degradação do meio orgânico e, consequentemente, da vida humana.

A mundialização do trabalho interferiu fundamentalmente para que o processo de exploração máxima do valor de troca, que engloba a força produtiva do trabalhador, forjasse na contemporaneidade as condições para o acúmulo exacerbado, acelerado e desigual do capital por meio da financeirização das relações sociais, impondo a expansão dos meios de produção e da sociabilidade. O mercado mundial assume, portanto, a característica de meio para a obtenção de bens pelos quais passará o trabalho alienado, na tentativa de preservar o funcionamento do sistema do capital em meio às suas contradições (Batista, 2014).

Conforme Marx (2004, p. 86) discorre, “o que é produto da relação do homem com o seu trabalho, produto de seu trabalho e consigo mesmo, vale como relação do homem com outro homem, como o trabalho e o objeto do trabalho de outro homem”, ou seja, a alienação do trabalho parte do estranhamento entre o trabalhador e o produto do seu trabalho. Corroborado pelos estudos de Antunes (2005), na ordem do capital, há a desfiguração do trabalho em prol da arrecadação capitalista. O processo laborativo se transfigura em um meio pelo qual as trocas se direcionarão, seja para a criação de novas mercadorias ou na exploração da força de trabalho. Nessa ótica, o trabalhador se rebaixa à condição de mercadoria, estranho ao trabalho, sujeitado à condição de miséria. Ainda, conforme corroborado por Mészáros (2011), a forma social assumida pelo modo de produção capitalista compreende um sistema de controle totalitário que exige de todas as coisas, incluindo seres humanos, que se adequem e demonstrem sua “viabilidade produtiva” ou serão excluídos do meio.

Atualmente, com o avanço tecnológico da era digital, a deterioração da condição de trabalho tem se ampliado em meio à lógica neoliberal, que altera o padrão de produção anteriormente estabelecido. Algumas empresas de plataformas online interagem como mero mediador entre oferta e demanda, sem subordinar o trabalhador ao vínculo empregatício. Tal lógica se pauta nos pilares do liberalismo, de promover aos agentes independentes um mecanismo eficiente, orgânico e autorregulatório na gestão do ponto de equilíbrio entre a oferta e a demanda por bens e serviços de uma economia (Abílio, 2019).

Embora as discussões sobre o sistema capitalista argumentem sobre a responsabilidade social para promover uma economia saudável, justa e sustentável a longo prazo, o atual cenário global denota uma tendência contrária, expressa pela concentração de poder na regulação dos preços e da oferta, criando uma força monopolizadora que prejudica a qualidade de vida, a empregabilidade e o bem-estar social. Por meio da literatura científica, evidencia-se que esta concentração de poder coage as esferas do ciclo social e não promove a liberdade, o pleno emprego e a justiça que o neoliberalismo propõe ao trabalhador, mas age como fator agravante da precarização do trabalho e interfere no acesso ao produto final da economia (Abílio; Machado, 2017).

Conforme exposto, retoma-se como objeto de análise a supracitada lógica voltada ao neoliberalismo, que expõe o trabalhador contemporâneo a situações de vulnerabilidade e insegurança por meio da flexibilização e informalização do trabalho. Denota-se também a fragilização do ser humano diante de sua condição em relação ao trabalho e às relações advindas dele. Portanto, parte-se da seguinte pergunta de pesquisa: quais são os impactos multidimensionais das transformações ocorridas no contexto laboral e como elas se manifestam ao longo da história? Diante disso, o presente estudo objetivou analisar os impactos socioeconômicos e sociais advindos da precarização e informalização do trabalho na contemporaneidade, com base nos pressupostos do materialismo histórico.

 

Método

 

O presente estudo adotou um delineamento de pesquisa qualitativa e descritiva. O caráter qualitativo visou propiciar a contextualização do objeto de pesquisa abordado, a fim de discutir e refletir em maior grau de coerência e abrangência os achados da literatura científica (Yin, 2016). Especificamente, quanto ao procedimento de pesquisa, foi conduzida uma revisão bibliográfica da literatura para compilar as contribuições teóricas existentes sobre a temática (Baumeister, 2013). Dentre as formas de revisão, adotou-se a revisão de literatura narrativa, que implicou a exploração não sistemática da literatura, estruturando um panorama abrangente sobre a questão em análise (Rother, 2007). Tal característica se denota como útil, à medida que visa aprimorar e atualizar o conhecimento e entendimento profissional, científico e social de maneira eficiente sobre a temática (Bae, 2014).

A pesquisa foi realizada entre os meses de julho e novembro de 2023. Para a coleta de dados, foram utilizados critérios que dispensaram data limite de publicação, dada a historiologia do fenômeno analisado, visto que este estudo se baseia em uma corrente epistemológica derivada do século XIX que reflete nos conceitos e temáticas ainda aventadas na análise contemporânea. Foram selecionadas obras referenciais, documentos secundários e artigos científicos disponibilizados por meio das bibliotecas virtuais do Google Acadêmico e Scielo. Os temas abordaram conceitos relativos à alienação do trabalho, flexibilização do trabalho e precarização do trabalho, de forma a contribuir com os estudos referentes ao comportamento desses fenômenos durante a história e à sua manutenção ainda na contemporaneidade.

 

As condições da classe trabalhadora

 

A análise das relações oriundas do contexto laboral reclama uma investigação de natureza material, que percorra os distintos estágios de evolução da produção capitalista ao longo de sua trajetória histórica, os quais se refletem na exploração da força de trabalho. Através desse exame, é possível adquirir uma compreensão mais abrangente dos fenômenos contemporâneos associados à era da modernidade, caracterizada como uma manifestação da flexibilização do trabalho que perpetuamente reconfigura as concepções inerentes ao seu valor.

A história da classe operária, nas palavras de Engels (2010), tem seu início com a invenção da máquina a vapor e o advento da Revolução Industrial, a qual, para ele, centraliza suas forças na Inglaterra como foco de estudo do proletariado. Antes da introdução das máquinas, a tecelagem e a fiação eram as principais atividades dos trabalhadores. Mulheres e crianças fiavam o fio para uso doméstico, enquanto os homens, quando o teciam, o faziam para a venda. O mercado interno, definido como praticamente o único mercado disponível, supria essa demanda, uma vez que não existia a influência de um mercado externo concorrente sobre os salários. Logo, os trabalhadores do campo levavam uma vida acima do operário inglês, com confortos e honra e, vivendo, portanto, de acordo com os padrões morais, uma vez que não tinham motivos para não o fazer. O autor argumenta ainda que sem a Revolução Industrial, esses trabalhadores jamais haveriam abandonado tais modos. Em suas palavras, não eram autênticos seres humanos; eram instrumentos de trabalho a serviço da minoria aristocrática que, até então, havia guiado os destinos históricos (Engels, 2010).

Friedrich Engels, em sua obra publicada em 1845, faz uma síntese de A essência do cristianismo, obra de Ludwig Feuerbach, e analisa a situação dos trabalhadores na Inglaterra do século XIX, especialmente na cidade de Manchester. Ele utiliza observações diretas, relações pessoais e documentos oficiais para destacar as condições objetivas que diferenciam os trabalhadores da burguesia industrial média. O autor ressalta ainda a importância do trabalho, porém enfatiza que os trabalhadores são frequentemente submetidos a condições brutais, sendo a competição entre eles uma das principais formas de exploração. A miséria vivenciada pela classe operária é tão intensa e evidente que se torna um ponto de partida para a luta e a conscientização social. Na medida em que a classe trabalhadora toma consciência de sua condição exploratória, a união em torno de objetivos comuns impulsiona a formação de sindicatos, greves e outras formas de resistência e protesto.

As condições enfrentadas pela classe trabalhadora urbana na Inglaterra industrial do século XIX, descritas por Engels (2010), revelam uma realidade extremamente árdua. As jornadas de trabalho eram exorbitantemente longas, abrangendo de quatorze a dezesseis horas diárias, sem considerar pausas adequadas para as refeições. A insegurança no emprego também era uma preocupação constante, uma vez que os trabalhadores viviam sob a ameaça de demissões arbitrárias, desprovidos de qualquer proteção social que pudesse garantir estabilidade. As habitações em que viviam eram deploráveis, com muitas pessoas amontoadas em espaços insalubres, mal arejados, úmidos, sujeitos a condições precárias e superlotação. A falta de acesso a serviços básicos de higiene, saúde e educação agravava ainda mais suas condições de vida, sendo que, muitas vezes, somente diante de ameaças epidêmicas, alguma atenção era dada a tais necessidades. O trabalho infantil era uma prática comum, e as crianças eram submetidas às mesmas dificuldades e sofrimentos que os adultos, estando sujeitas a um ambiente de trabalho insalubre e perigoso. As fábricas e ambientes de trabalho eram notoriamente poluídos e carentes de ventilação adequada, o que resultava em riscos significativos à saúde dos trabalhadores. Além disso, os salários eram extremamente baixos, não sendo suficientes para atender às necessidades básicas de subsistência dos trabalhadores e suas famílias.

Ao fazer tal análise, o autor defende que o cenário vivenciado na Inglaterra se repetiria em outros países, e suas palavras funcionam como um alerta para a Alemanha. Ele aponta a possibilidade de industrialização e exploração dos trabalhadores ocorrerem também em outras nações. Ao discutir a condição do proletariado como classe, sustenta que as condições de exploração e alienação observadas na Inglaterra se tornaram comuns em outros lugares à medida que o capitalismo se expandisse. Desse modo, Engels não somente expôs as condições precárias enfrentadas pelos trabalhadores em sua análise da Inglaterra, mas também previu que tais condições poderiam se espalhar para outras regiões à medida que o sistema capitalista se globalizasse. Porém tais movimentos trazem consigo a própria história da luta proletária: “a situação da classe operária é a base real e o ponto de partida de todos os movimentos sociais de nosso tempo porque ela é, simultaneamente, a expressão máxima e a mais visível manifestação de nossa miséria social" (Engels, 2010, p. 41).

No entanto, ao discutir o proletariado inglês durante o período industrial, o autor destaca as diversas condições em que se encontravam. Em um extremo, na melhor das hipóteses, o trabalhador desfrutava de uma habitação relativamente adequada, alimentação regular, um salário razoável e vivia de forma aceitável. No pior cenário, existia a extrema pobreza, chegando até mesmo à morte por inanição. No entanto, na média, é o pior cenário que predomina, ou seja, a maioria se encontrava em condições de extrema miséria.

Ao analisar as reflexões de Friedrich Engels, é possível citar dados atuais nos quais, segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU, 2021) em 2021, 1,3 bilhão de seres humanos viviam em situação de pobreza. Além disso, segundo os dados divulgados no relatório The State of Food Security and Nutrition in the World (Sofi), cerca de 828 milhões de pessoas foram afetadas pela fome em 2021.

Conclui-se que a lógica de superexploração e as desigualdades inerentes ao capitalismo, mencionadas por Engels (2010) na obra supracitada, permanecem presentes e persistem em meio às transmutações do capital, que se adequa aos diferentes contextos históricos na busca pelo lucro financeiro, e se agravam diante do progresso tecnológico. Neste contexto, aspectos da individualidade são constantemente reforçados, os trabalhadores são induzidos ao trabalho em condições precárias e, além disso, à fome.

 

O valor do trabalho

 

O trabalho exerce uma influência significativa nas sociedades, sendo considerado uma categoria universal. Isso leva diversos pensadores a abordar a temática em suas obras, qualificando-a de acordo com suas próprias convicções e percepções da realidade na qual estão inseridos. Max Weber, por exemplo, acreditava que o trabalho vai além de ser uma simples atividade necessária para a subsistência. De acordo com ele, a categoria desempenha um papel fundamental na atribuição de valor e significado a um indivíduo dentro da sociedade. Em sua obra, A ética protestante e o espírito do capitalismo, Weber (2004) delineou, a partir da análise da ética protestante, uma perspectiva singular acerca do trabalho, revelando como essa concepção se conecta intrinsecamente à lógica do capital em sua essência. Weber ressalta a importância da valorização do trabalho como profissão na formação da identidade e do esforço pela obtenção do lucro como inerentes ao espírito capitalista. Nesse sentido, o labor não apenas confere uma sensação de propósito e satisfação, mas também se torna um caminho moral para a obtenção de status diante de um ciclo social e um meio para uma redenção divina, enquanto a pobreza e a preguiça resultam em um afastamento da relação com o ideário protestante.

Dessa forma, a partir da conceitualização do pensador, pode-se compreender que a acumulação de riquezas por meio do trabalho confere dignidade à existência humana. Entretanto, inserido no contexto do sistema capitalista, paradoxalmente, o trabalho também se configura como um fator limitante dessa dignidade. Vale mencionar que a exclusão completa do acesso a esse meio (o trabalho) para alcançar a dignidade é outra face do mesmo problema. Além disso, a própria atividade capitalista e sua ânsia pelo lucro frequentemente se refletem na desconsideração dos direitos fundamentais dos trabalhadores, o que contribui para a degradação do acesso destes a ocupações que carreguem consigo um caráter dignificante. A convergência desses fatores, portanto, exerce influência significativa na constante degradação das condições laborais, seja por sua submissão a padrões indesejados, seja por sua completa inexistência.

Nota-se que a ideia de Weber reverbera no ideal contemporâneo em relação à acumulação de riquezas por meio do trabalho e a consideração de caráter moral por detrás disso. Complementarmente, de acordo com Barbosa (2010), chama-se a atenção para a lógica da meritocracia nos dias de hoje, que associa talento, habilidades e esforços individuais ao mérito atribuído à acumulação de riquezas, sem levar em consideração quesitos objetivos como a hereditariedade, posição social, econômica ou política do indivíduo. Atualmente, compreende-se a uberização como um processo que incorpora tal essência, resultante do aumento da exploração e sofrimento dos trabalhadores em prol de uma ideologia que se alastrou como uma viabilidade ao acesso à prosperidade.

David Ricardo (2018), por outro lado, possui uma percepção aguçada pela ótica da mercadoria, abordando o trabalho sob uma perspectiva em que os meios de produção e a força de trabalho são vistos como elementos essenciais na criação da riqueza dos países. Ele desenvolveu a teoria do valor-trabalho, sustentando que os preços das mercadorias refletem a quantidade de trabalho incorporada nelas. Em outras palavras, o valor de um produto é determinado pela quantidade de trabalho essencialmente humano incorporado nele durante o processo de produção e pelo tempo dispendido em sua confecção. Desta forma é composto o valor de troca das mercadorias, segundo os conceitos de Ricardo, expostos em seu livro Princípios de economia política e tributação, publicado primeiramente no ano de 1817.

No entanto, conforme delineado por Marx (2008), na sociedade capitalista, onde os produtos assumem a forma de mercadoria, emerge uma divisão social do trabalho. Distintos trabalhos úteis são desempenhados separadamente, estabelecendo, assim, uma divisão social do trabalho que se configura como um pilar fundamental do modo de produção capitalista e que acarreta implicações significativas para a estrutura econômica e social. Nessas circunstâncias, alguns trabalhadores podem receber salários mais altos, enquanto outros podem enfrentar condições de trabalho precárias e salários baixos. Além disso, a especialização extrema e a fragmentação do trabalho podem resultar na alienação dos trabalhadores em relação ao produto final, à sua própria atividade laboral e à atividade de seu semelhante.

Portanto, como caracterizar o trabalho? Para Marx (2013, p. 98), “o trabalho é, assim, uma condição de existência do homem, independente de todas as formas sociais, eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre homem e natureza e, portanto, da vida humana”. Ou, como destaca Engels (2014), é uma característica essencialmente humana. Ambos associam o trabalho, essencialmente necessário, unicamente à espécie humana, embora dissociado quando submetido ao processo de produção capitalista.

Friedrich Engels (2014) oferece ainda uma análise robusta acerca do trabalho em sociedades primitivas, destacando que, ao considerar uma sociedade em seus estágios culturais pré-históricos, superado o estado da barbárie, o trabalho não se distinguia da esfera social, uma vez que as atividades produtivas eram realizadas de forma coletiva, sem uma divisão rígida do trabalho. Aí se dava o papel da constituição familiar, explorado pelo autor ao longo da obra. Para ele, a historicidade da vida humana se conecta com a produção. Nessa perspectiva, o trabalho era compreendido como uma atividade essencial para a sobrevivência e manutenção do grupo social como um todo, o que sugere uma integração entre a atividade laboral e as dinâmicas sociais, na qual a colaboração e a solidariedade eram fundamentais para a subsistência do grupo. Além disso, quanto menos desenvolvido for o trabalho e a produção de mercadorias, maior será a influência dos laços consanguíneos na sociedade. À medida que a produção de mercadorias se intensifica, ocorre uma transformação na ordem social, que passa a ser marcada pela luta de classes e pela exploração do trabalhador. Essa produção desenfreada de mercadorias estabelece uma nova dinâmica societal na qual a luta de classes se centraliza.

A análise feita por Engels alerta para a importância de se conhecer o trabalho em diferentes contextos históricos, suas características e valores, assimilando as variações e transformações ao longo do tempo. Ao explorar as características do trabalho em sociedades primitivas, ele oferece atributos valiosos para a compreensão da dinâmica de evolução das relações laborais e a influência da propriedade privada na divisão do trabalho e na exploração da classe trabalhadora, abordada anteriormente por Marx, em contextos sociais similares.

Em paralelo, hoje, acentua-se o contexto do avanço capitalista sobre as relações de trabalho, intensificando a competição entre os trabalhadores. Com efeito, o discurso da competência ganha destaque, colocando grande ênfase na responsabilidade individual do trabalhador em relação à sua empregabilidade (Bendassolli, 2001). Em um cenário de desemprego estrutural, tal fato se agrava. Freud (2019), no entanto, destaca a relevância das relações afetivas e do contato com o outro na formação e no desenvolvimento da identidade e do bem-estar psicológico do ser humano, o que se demonstra em um sentido contrário quando analisado o cenário da competição capitalista atual. Nesse contexto, há um movimento que pode levar à culpabilização do indivíduo, caso ele enfrente o desemprego ou situações precárias no mercado de trabalho. A situação descrita leva o trabalhador a lutar — lutar contra o avanço tecnológico, lutar contra outros trabalhadores e contra o seu próprio cotidiano — para assegurar sua posição de subsistência em meio às flexibilidades do capitalismo contemporâneo (Caniato; Rodrigues, 2012).

 

Reestruturação flexível como ciclo do capital: contexto histórico

 

A segunda ordem do capital excede a lógica exposta por Marx (2013), subvertendo a ordem de essencialidade do trabalho dentro do contexto de sociabilidade do sistema de produção capitalista. De acordo com Mészáros (2011, p.71), os meios alienados de produção (mediações de segunda ordem do capital), o dinheiro e o valor de troca das mercadorias, regidos pela formatação do Estado capitalista em contexto de um mercado mundial, sobrepujam a essencialidade advinda da mediação primária entre a atividade produtiva, ou seja, a natureza e o ser humano. Tais ações acarretam sérias consequências para a subsistência da humanidade como espécie, uma vez que, na presença de uma inversão na ordem de essencialidade, onde as personificações do capital prevalecem sobre as necessidades básicas para a sobrevivência, as condições fundamentais à manutenção da vida na Terra são negligenciadas em benefício da constância de uma riqueza concentrada.

Segundo Marx (2013), no modo de produção capitalista, o trabalho útil é subordinado ao trabalho abstrato, assim o valor de troca das mercadorias supera o seu valor de uso. Deste modo, o trabalho, antes essencial, torna-se uma atividade alienante, que impulsiona a degradação metabólica do meio natural no qual este exerce sua atividade. Nestas condições, diante da estruturação do Estado regido pelos interesses burgueses, a produção desenfreada de mercadorias e serviços sobrepõe a condição social do indivíduo, subjugando a sua qualificação como ser humano. Além disso, a alienação do trabalho e o caráter fetichista da mercadoria encobrem o processo de reificação da vida. Nesse processo, os indivíduos e a força da natureza que sustentam a existência humana são transformados em meros meios para a geração de mais-valia, que compõe o valor de troca das mercadorias.

O paradigma fordista-taylorista, com sua linha de montagem e produção em massa, representou um marco na organização capitalista do trabalho, promovendo uma divisão cada vez mais detalhada e hierarquizada das tarefas, a fim de aumentar a eficiência e a produtividade. No entanto, essa padronização e especialização do trabalho também levaram à alienação do trabalhador em relação ao produto de seu trabalho e à perda de controle e conhecimento sobre o processo produtivo (Ribeiro, 2015).

A significativa crise mundial do capital, que se manifestou de forma proeminente entre o final dos anos 1960 e o início dos anos 1970, é um fenômeno intrinsecamente ligado ao funcionamento do sistema de produção capitalista. Segundo os estudos de Antunes (2000), ela é uma consequência inevitável das contradições fundamentais embutidas no próprio mecanismo. Nesse período em evidência, tornou-se notória a visão de que o capitalismo não pode sustentar indefinidamente o seu crescimento econômico, devido às suas tendências inerentes à superprodução, exploração da força de trabalho e centralização de riqueza nas mãos de uma minoria. A substituição do até então modelo taylorista-fordista por novos paradigmas de acumulação flexibilizada, juntamente com a implementação do modelo japonês de gerenciamento do trabalho, conhecido como toyotismo, expôs um amplo processo de reestruturação do capital que estava ocorrendo em todo o mundo. Essas mudanças visavam atender às demandas capitalistas, que buscavam recuperar seu ciclo de produção hegemônico por meio do trabalho alienado. No entanto, de acordo com Batista (2014), a resposta que surgiu com a difusão do toyotismo procurou enfrentar apenas a superfície da crise, reestruturando-a sem transformar os pilares básicos do modo de produção capitalista.

Nesse contexto, a busca incessante pelo lucro máximo conduz à exploração intensificada da classe trabalhadora, gerando desigualdades socioeconômicas prejudiciais ao bem-estar coletivo. A acumulação de capital nas mãos de uma elite, que cresce cada vez mais rica, cria uma base instável para a reprodução contínua do sistema. A crise estrutural também está intrinsecamente ligada ao conflito de classes. No período em questão, as lutas sindicais e os movimentos trabalhistas ganharam força considerável, desafiando o poder do capital e demandando melhores condições de trabalho e justiça social. Isso abalou a estabilidade do sistema e forçou uma resposta do capital, levando à reestruturação da produção, à busca de novas formas de organização industrial, como o toyotismo, e à promoção do neoliberalismo como uma ideologia que enfatiza a individualidade e a liberdade, enquanto, na prática, busca amenizar a resistência da classe trabalhadora (Antunes, 2020).

A reestruturação do capitalismo, através da introdução de avanços tecnológicos e da busca por novas formas de eficiência (acumulação), representa uma tentativa de superar temporariamente as contradições inerentes. No entanto, essa reestruturação não altera a essência exploratória e desigual do próprio modo de funcionamento do sistema, e as crises continuam a ser uma característica recorrente. Essas mudanças tiveram um impacto profundo na natureza do trabalho em termos físicos e, além disso, buscavam maximizar a eficiência no processo produtivo através da exploração da força de trabalho e novas formas de acumulação flexível. No entanto, as transformações não se limitaram apenas ao aspecto material do trabalho, em conformidade com as análises de Antunes (2018); elas também desencadearam um significativo movimento de reestruturação dos significados do trabalho. Logo, entende-se que a crise estrutural do capital é uma manifestação inevitável das contradições inerentes ao sistema. Ela exige uma análise crítica das relações de classe, da exploração da força de trabalho e da centralização de riqueza. Sendo assim, enquanto o capitalismo persistir, crises cíclicas serão recorrentes, de acordo com as análises relativas a Marx (2013), destacando a necessidade de uma transformação fundamental em direção a um sistema econômico mais justo e equitativo.

Uma das características centrais do toyotismo, amplamente implementado a partir da década de 1960, é a implementação do sistema just-in-time, no qual as peças e materiais são fornecidos apenas quando necessário, evitando estoques excessivos e os custos associados a eles. Essa abordagem, que busca maximizar a eficiência e reduzir desperdícios, tem sido amplamente adotada no contexto atual de avanço tecnológico e da era digital, acarretando transformações significativas nas condições de trabalho. No cenário contemporâneo, observamos o surgimento de um novo fenômeno que ganha relevância: o advento das empresas de plataformas online. Algumas empresas atuam no mercado, posicionando-se como intermediárias entre oferta e demanda, estabelecendo uma relação peculiar com os trabalhadores, evitando a formalização de vínculos empregatícios tradicionais.

Nesse contexto, emerge o conceito do trabalhador just-in-time. Essa condição, fundamentada nos princípios do liberalismo econômico, influencia o trabalhador a se engajar em relações laborais desprovidas do vínculo empregatício, caracterizando-se pela flexibilidade extrema e pela ausência de garantias e proteções trabalhistas. Os trabalhadores são convocados de forma temporária e fragmentada, conforme as demandas do mercado, sem a estabilidade e os direitos usualmente associados ao emprego convencional. Essa nova modalidade de trabalhador revela a acentuação das tendências neoliberais na esfera do trabalho, em que a lógica da maximização dos lucros e da flexibilidade se sobrepõe à segurança e bem-estar dos trabalhadores. Tal lógica, embora convença do oferecimento de certa autonomia no gerenciamento do tempo e na escolha de tarefas, também implica precarização e falta de proteção social (Abílio, 2019).

 

Reestruturação flexível como ciclo do capital: análise contemporânea

 

No contexto da precarização do trabalho, Abílio (2020) auxilia no esclarecimento de que, com a implementação de políticas neoliberais, a identidade do trabalhador vem ganhando uma nova significação junto ao entendimento prático e teórico dos termos empreendedorismo, flexibilização do trabalho e uberização do trabalho. As empresas tentam transferir os riscos e consequências do ato produtivo ao trabalhador, classe que vive de renda, mas na ótica neoliberal corresponde à figura do patrão schumpeteriano, caracterizado por uma ousadia criativa e cheia de disposição para assumir riscos, além de capital para realizar ações que rompam com padrões da produção.

Partindo do discurso que constantemente ressignifica os valores do trabalho, exaltando a autogestão, autonomia e a promessa de prosperidade financeira, a uberização do trabalho consolida a formatação do emprego nos moldes da contemporaneidade. Empresas de plataforma digital, como o aplicativo Uber, pioneira dentro do contexto da flexibilização do trabalho na atualidade e que inspirou o termo referente a tal processo, expõem o trabalhador a situações de precariedade no que diz respeito às suas condições sociais e laborais. A classe trabalhadora, nestes termos, pode ser sub-remunerada, ter seus direitos trabalhistas violados e conviver em meio aos riscos que afligem sua integridade física (Queiroz, 2016).

Mediante este contexto, torna-se imprescindível analisar os acontecimentos dentro do recorte histórico do século XXI. Pode-se exemplificar com os dados levantados pela Clínica de Direito do Trabalho da Universidade Federal do Paraná (UFPR) em 2022, os quais constataram que ao longo de 2021, aproximadamente 1,5 milhão de indivíduos estavam inseridos no mercado de trabalho das plataformas digitais no Brasil, representando cerca de 1,6% da força de trabalho nacional (Machado; Zanoni, 2022). Esses números, acentuados pela pandemia da COVID-19, demonstram um cenário preocupante diante do histórico brasileiro de mercado de trabalho. Dentre estes, cerca de 250 mil pessoas trabalhavam com transporte de passageiros. No entanto, em meio aos números, há diversas formas de trabalho digital distribuídas entre também diversos perfis, com níveis de escolaridade, sexo e etnia variados (Araújo; Macedo, 2022). Observa-se que, diante de uma crise sanitária que fragiliza os vínculos econômicos, o indivíduo é colocado em uma situação de maior vulnerabilidade perante o mercado de trabalho e sua subsistência.

Ainda no contexto da precarização, as plataformas digitais são meios para a compra e venda da força de trabalho online com o objetivo de conectar prestadores de serviços como transporte ou entrega aos contratantes. O trabalho na atualidade parte da perspectiva de um momento marcado pela reestruturação do modelo de produção capitalista e pela ampliação da subsunção real do trabalho intelectual, de onde as plataformas digitais emergem como mediadoras que coordenam o movimento entre oferta e demanda (Santos; Rosi, 2021). Associada ao processo de mundialização e financeirização do capital, conforme Martins e colaboradores (2023), a tecnologia digital incorporada ao trabalho representa uma tendência, embora seja um fenômeno em constante desenvolvimento. Atualmente, devido ao processo de reestruturação pelo qual o capital passou, as tecnologias da informação e comunicação, incluindo o aumento do acesso à internet e outras tecnologias avançadas, como os sistemas de aprendizado de máquina e ferramentas de coleta e tratamento de dados, tornaram-se viáveis.

A publicidade imbricada no recurso de captação da massa trabalhadora parte, como antes exposto por Abílio (2019), da ampliação das pautas neoliberais, que supervalorizam o trabalho autônomo, chamado de empreendimento. Cita-se como exemplo as propagandas de 2024 da Uber: “Dirija com a Uber – Faça seu horário” (Uber, 2024); do também aplicativo de viagens 99: “Ganhe dinheiro como motorista de aplicativo, corra com a 99” (Noventa e Nove, 2024); do aplicativo de serviços voltado para aulas: “Este trabalho completamente autônomo te permite de completar sua renda no fim do mês ou ainda de viver apenas desta atividade” (Superprof, 2024). São elementos como esses que podem também ser encontrados em outras propostas análogas expostos nos sites das plataformas, ornados por palavras no imperativo, de cunho apelativo: “faça”, “ganhe”, “melhore”, “facilite”, que, empregadas nas propagandas, sugerem uma vantagem em relação ao trabalho tradicional e/ou, por vezes, revelam-se uma última opção. No entanto, a relação presente nos dados sobre desemprego expõe o verdadeiro caráter do trabalho na sociedade atual.

No contexto global, segundo os dados publicados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2021) em maio de 2018, 2 bilhões de pessoas se encontravam em situação de informalidade no vínculo empregatício. Dessas, que representam mais de 61% da população empregada no mundo, a maioria está centralizada em países emergentes, como é o caso de algumas nações da América Latina e da África.

No Brasil, a implementação do neoliberalismo ocorreu de forma gradual, com a década de 1990 marcando um período de mudanças políticas significativas, impulsionadas pelo movimento de globalização. Nesse período, o neoliberalismo ganhou progressiva relevância e impacto no país, exercendo influência na configuração das políticas econômicas e nas reformas que estavam alinhadas com as premissas e diretrizes desse modelo político. Entre 2016 e 2018, a flexibilização das relações trabalhistas, implementada pelo então presidente da República, Michel Temer, juntamente com o fortalecimento do pensamento neoliberal que acompanhou a gestão do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro no período de 2019 a 2022, bem como o avanço da pandemia da Covid-19, declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2020, resultaram em mudanças significativas na estrutura do trabalho no país.

De acordo com os preceitos da metodologia utilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2022) na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), o desemprego compreende todo indivíduo maior de 14 anos que busca ou está disponível para o trabalho, excetuando-se estudantes e donas de casa, categorias consideradas ocupadas. O número de desempregados no quarto trimestre de 2022 era de 8,6 milhões e, no que diz respeito aos desalentados, isto é, aqueles que gostariam de trabalhar, porém não procuram emprego por não acreditar que encontrarão vagas, o número era de 4,0 milhões, quase a metade da quantidade total de desempregados no período.

É importante salientar como, em meio à era da digitalização do emprego, a pandemia acentuou a desigualdade gerada pela informalização do trabalho, devido à diminuição das vagas de emprego ofertadas durante o lockdown, às demissões em massa e às flexibilizações/reduções de carga horária. No contexto socioeconômico, o aumento excessivo dos preços dos alimentos, decorrente da má fase da economia externa, influenciou os rumos da relação de trabalho em sua situação de plena vulnerabilidade, como se encontra hoje (Silva; Silva, 2020).

Em território nacional brasileiro, conforme disposto na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e no Estatuto do Servidor Público, o setor informal engloba os trabalhadores que não possuem as condições laborais básicas e/ou proteção social. Essa condição abrange os terceirizados, autônomos, freelancers, os flexibilizados e os subcontratados. Tais trabalhadores, que são desprovidos de auxílios da seguridade social como férias, décimo terceiro e FGTS, no segundo trimestre de 2019, de acordo com a pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), através da PNAD contínua, compunham 40,1% dos ocupados, mantendo-se em 39,6% em 2022 (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTÁTISTICA, 2022).

Abílio (2019, p. 20-21) defende que um dos aspectos centrais da uberização é que “as empresas não podem demitir, pois não contratam”, ou seja, subordinam o trabalhador a engajar-se com a marca sem manter vínculos empregatícios. Tal tendência na forma de gestão, organização e controle do trabalho corrobora para que diversos trabalhadores se tornem o que a autora irá denominar “auto gerentes-subordinados”, sendo subutilizados como empregados just-in-time, ou seja, que trabalham por demanda, sem garantias e limitações na jornada de trabalho.

Um ponto fundamental desse movimento é a consolidação dos monopólios no setor de serviços. As empresas que adotam esse modelo de produção muitas vezes conquistam posições dominantes em seus mercados, criando uma concentração significativa de poder. Esses monopólios exercem um controle considerável sobre as condições de trabalho e, em última análise, sobre os salários. Como resultado, a força de trabalho é desvalorizada, levando a menores salários e maior desigualdade. Além disso, a contratação sob demanda e a falta de garantias de emprego contribuem para o desemprego estrutural, onde muitos trabalhadores lutam para encontrar empregos estáveis e mais bem remunerados. Esse cenário cria um mal-estar social, à medida que a instabilidade econômica e a insegurança financeira afetam as vidas das pessoas. Portanto, a uberização não apenas reconfigura a forma de trabalho, mas também desencadeia mudanças profundas na economia, contribuindo para a formação de monopólios que exercem influência sobre a força de trabalho e os padrões de remuneração, com implicações significativas para a sociedade em geral.

Retomando a lógica descrita por Engels (2010), sobre a condição da classe trabalhadora na Inglaterra durante o século XIX, é possível observar semelhanças na lógica atual do capital. Um exemplo notável é a persistência do trabalho precário infantil por meio das plataformas digitais, uma das características do período industrial, que continua presente na dinâmica do trabalho plataformizado (ONU, 2021). Engels descreveu, em suas análises, a exploração extrema sofrida pelas crianças nas fábricas, destacando as condições desumanas a que eram submetidas. De maneira análoga, o fenômeno da plataformização ou uberização do trabalho, caracterizado pela ascensão de plataformas digitais que conectam trabalhadores independentes a empregos flexibilizados, carece de proteções trabalhistas e pode contribuir para a exploração dos trabalhadores, incluindo crianças e adolescentes.

No capitalismo, cada mercadoria possui em si um valor de uso e um valor de troca. O valor de uso se baseia na realidade material de utilidade do produto e, portanto, diz respeito ao valor essencial que este possui. Logo, o valor de uso faz com que cada produto se diferencie entre si. O valor de troca — porque cada mercadoria possui seu valor de uso, ou seja, sua singularidade — faz com que a troca exista em função da utilidade (Libório; Castro; Sakotani, 2013). Neste contexto, o sexo passa a também configurar um bem mercantilizado para intercâmbio comercial.

Dentro do contexto da digitalização e do emprego (subemprego) online, o mercado sexual se posiciona como um somatório de mercadorias, exercendo tanto valor de uso quanto valor de troca. A plataforma OnlyFans é um exemplo prático e teórico de como as plataformas digitais podem contribuir para a precarização do trabalho e a exploração sexual, incluindo a exploração infantil, como demonstram as análises da sociabilidade ao longo da história (Safaee, 2021). Embora haja uma restrição de idade quanto ao uso do site, que proíbe menores de 18 anos, pesquisas indicam que crianças conseguem acessar a plataforma burlando o sistema, expondo-se, assim, a formas de violência.

O site OnlyFans é comercializado digitalmente como plataforma de mídia social com o intuito primário de conectar assinantes de conteúdos exclusivos aos produtores em diversas categorias, seja esportes, alimentação, educação física etc. Contudo, o senso comum, refletido no público médio, passou a considerar e utilizar a plataforma com o intuito voltado aos conteúdos adultos no início da pandemia da COVID-19, quando aconteceu um deslocamento dos trabalhadores do sexo de forma presencial para o mundo digital (Litam et al., 2022). Passando de 7,5 milhões de usuários, no início de 2020, para 130 milhões, em agosto de 2021, o site se consolidou como um mercado em expansão, afetando as fronteiras entre o trabalho e o sexo (Peres, 2022).

Vale ainda ressaltar a dinâmica complexa que envolve o trabalhador na plataforma OnlyFans, destacando a ilusão de controle percebida pelo indivíduo que vende seus serviços (força de trabalho) nesse contexto específico. Embora os trabalhadores possam se autointitular empreendedores devido ao suposto controle administrativo que possuem sobre suas atividades no site, é crucial questionar até que ponto essa percepção corresponde à realidade.

Estudos indicam que, sob a ótica do neoliberalismo, o trabalhador contemporâneo pode interpretar-se como um empreendedor, moldando sua identidade em consonância com as narrativas flexíveis do mercado. No entanto, essa autodeterminação aparente é confrontada pela perspectiva do consumidor (fã), que, por sua vez, visualiza o trabalhador como uma mercadoria, submetida a um acesso restrito e fetichizado (Peres, 2022). Essa dicotomia revela a natureza ambígua da relação, em que o controle ilusório do trabalhador se desvanece diante da visão mercadológica que o reduz a uma commodity.

A manifestação contemporânea do neoliberalismo nesse cenário moderniza a qualificação do indivíduo, que outrora poderia ser classificado como lumpemproletariado. No entanto, essa aparente atualização também se conecta a uma perspectiva romântica que, por trás das práticas insalubres e da exposição inerentes ao sistema capitalista, revela uma complexidade que desafia as narrativas simplistas sobre o controle e a autonomia do trabalhador na era digital.

De acordo com as observações de Abílio e Machado (2017), a uberização não surgiu com o advento da economia digital (gig economy), embora se materialize hoje nesse campo. Sua base vem sendo formada ao longo de décadas. Os serviços oferecidos pela Uber envolvem interesses mútuos ao atender questões centrais do desenvolvimento capitalista, como é o caso da mobilidade urbana. Entretanto, para além disso, a Uber representa uma tendência global de transformar ideologicamente o proletário em microempreendedor. As empresas de aplicativo funcionam como intermediadoras tecnológicas entre o trabalhador (microempreendedor) e o consumidor final. Deve-se compreender o termo flexibilização no contexto do trabalho contemporâneo como um movimento contínuo de afrouxamento das leis trabalhistas, com o intuito de eliminá-las. É um deslocamento tanto do capital quanto da força de trabalho em âmbitos globais, que envolve a transferência de riscos e custos ao próprio trabalhador, além de envolver a extensão da intensificação do trabalho ou do aumento da quantidade de horas despendidas no mesmo. Essas mudanças estão intrinsecamente ligadas às relações entre o Estado, o capital e o trabalho, bem como à interação entre inovações tecnológicas, políticas adotadas pelos Estados nacionais para promover fluxos financeiros e investimentos, o aumento do desemprego e o surgimento de novas formas de exploração que afetam a percepção do trabalhador sobre seu próprio papel social.

Fica também exposta a relação entre a precarização e o emprego nas plataformas quando analisados os dados obtidos por meio de uma entrevista realizada por Cezario e Araújo (2021) com os motoristas da Uber. Foram realizadas 14 entrevistas, sendo que em torno de 90% dos entrevistados eram motoristas do sexo masculino. Verificou-se que o salário variou de dois a três mil reais, numa época em que o salário-mínimo correspondia a R$1.049,00. 50% da amostra respondeu ter dívidas acima de três mil reais. Um dos entrevistados, listado como E14, que tinha 46 anos na data da pesquisa e trabalhava 12 horas por dia, alegava:

Como você ganha por produção de trabalho, tem que trabalhar muito e trabalhar todos os dias, principalmente porque a demanda do aplicativo é maior nos fins de semana. E aí você não tem descanso no sábado e domingo, como no setor privado. (Cezario; Araújo, 2021, p. 111)

 

Enumerada como E7, a única mulher da pesquisa, revelou ter passado por assaltos, assédios, entre outras dificuldades, das quais ela menciona: “Eu não tive nenhum tipo de auxílio. A Uber é um sistema muito unilateral, entendeu?”. Sobre os riscos, relataram outros participantes:

 

Você tem o desgaste do carro. A Uber tem a maior frota do mundo sem gastar um centavo com manutenção e combustível, fica tudo por conta do motorista (E14).

É tudo por nossa conta e risco. A gente é que paga o INSS e, para aposentar, é tudo por nossa conta (E14).

Ocorre a transferência do risco financeiro da empresa para o motorista (E13). (Cezario; Araújo, 2021, p. 116).

 

Com efeito, observa-se claramente o processo de uberização, focado na aceleração da degradação do ser humano. Assim como menciona Alves (2011), a precarização do trabalho sob os auspícios do capital implica não apenas na degradação do trabalho, mas também na do ser que trabalha, levando-o à desconstrução de si mesmo, como resultado da desassociação estabelecida pelo novo metabolismo social do trabalho. De acordo com Abílio e Machado (2017), na década de 1980, os motoboys eram contratados diretamente pelas empresas, sendo que as motos frequentemente pertenciam à empresa e não aos próprios trabalhadores. A partir dos anos 1990, começaram a surgir no mercado empresas especializadas em serviços de entrega terceirizados.

Segundo os dados levantados pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e pela Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), no ano de 2023, no Brasil, estimou-se que existiam 1,66 milhão de pessoas trabalhando como entregadores ou motoristas de aplicativo (Callil; Picanço, 2023). O estudo analisou as informações fornecidas pelas empresas iFood, Uber, 99 e Zé Delivery, além de ter entrevistado mais de 3 mil trabalhadores dessas categorias. Sobre o perfil dos motoristas, constatou-se que a idade média é de 39 anos, 60% têm ensino médio completo e 62% são pardos ou pretos, 35% são brancos, 3% amarelos e 1% indígenas, sendo que destes 95% são homens; sobre os entregadores, 97% são compostos por homens, a idade média é 33 anos, 59% têm ensino médio completo e 68% são pardos ou pretos, 29% são brancos, 2% são amarelos e 1% indígena (Callil; Picanço, 2023).

Nesse contexto de flexibilização do trabalho e sua digitalização, evidencia-se o processo de uberização como um fenômeno marcante, com acentuada aceleração na degradação do ser humano, conforme abordado por Alves (2011). O advento das plataformas digitais e a terceirização dos serviços de entrega têm causado profundas transformações no mercado de trabalho, com impactos significativos para os indivíduos envolvidos. Aponta-se para a expansão considerável desse modelo de trabalho precário e sua crescente importância na economia do país. As características demográficas dos trabalhadores também merecem destaque (Callil; Picanço, 2023).

A predominância masculina, especialmente entre os entregadores, levanta questões sobre os embates de gênero específicos nessa ocupação. Além disso, a maioria dos trabalhadores possui ensino médio completo, sugerindo que a falta de oportunidades em um mercado de trabalho competitivo os leva a aderir a essas atividades precárias. A predominância de pessoas pardas e pretas entre os trabalhadores, bem como a idade média mais elevada, ressalta desigualdades raciais persistentes e a existência de trajetórias profissionais anteriores. Em suma, a flexibilização do trabalho e sua digitalização no setor de entregas de aplicativos têm implicações complexas e plurilaterais na sociedade brasileira. Esse fenômeno não apenas está reconfigurando o mercado de trabalho, mas também está agravando desigualdades de gênero e raça, além de afetar a qualidade de vida e a dignidade dos trabalhadores envolvidos.

 

Considerações finais

 

O presente estudo fundamentou-se na análise dos impactos socioeconômicos e sociais decorrentes dos processos de precarização e informalização do trabalho no contexto brasileiro, tendo como base os pressupostos do materialismo histórico. Esse enfoque analítico considera o contexto em que muitas pessoas se encontram em situações de informalidade no mercado de trabalho. Observou-se que essa parcela significativa da população empregada tem enfrentado diversas transformações nas relações laborais, influenciadas pelos avanços tecnológicos e pela disseminação da ideologia neoliberal em contextos globais.

Ao observar as precárias condições enfrentadas pela classe trabalhadora na Inglaterra do século XIX, notaram-se surpreendentes paralelos com a atual precarização do trabalho. A história, como Marx alerta, tende a se repetir, e as explorações e desigualdades emergentes na era da uberização ecoam os desafios enfrentados por trabalhadores na Revolução Industrial. A compreensão da história, desta forma, oferece uma lente crítica para analisar não apenas as semelhanças, mas também as evoluções e nuances que caracterizam a situação contemporânea, lançando luz sobre os fatores que contribuíram para a exploração e alienação dos trabalhadores. Isso destaca a necessidade urgente de se questionar as estruturas sociais que perpetuam injustiças ao longo do tempo.

A pesquisa possibilitou a averiguação das contradições e das precárias condições que marcam o mundo do trabalho contemporâneo. Nessas reflexões, percebeu-se as interseções entre a esfera do trabalho e o cenário macroestrutural do capitalismo global, assegurado pelo avanço científico e tecnológico na produção. Esses avanços revelam as tensões e os embates inerentes a uma ordem social que ainda prioriza a maximização dos lucros em detrimento dos direitos e das condições dignas de trabalho, continuando uma histórica tendência. Apesar dos progressos, que poderiam sugerir uma melhoria nas condições laborais dada a redução da necessidade do trabalho humano braçal, a lógica neoliberal desencadeou graves problemas na esfera laboral por meio do trabalho precário, fetichizado em sintonia com as demandas do novo padrão tecnológico de serviços.

À luz dos estudos de Marx e Engels, a presente pesquisa possibilitou ainda a reflexão acerca da necessidade de reverter as tendências da flexibilização desenfreada, repensando o trabalho como fonte essencial de solidariedade e desenvolvimento humano. Ao almejar uma realidade laboral mais justa e digna, é fundamental a articulação de forças sociais, sindicais e políticas em prol de um mundo do trabalho que não se renda às vicissitudes do capitalismo desenfreado, mas que se erga como um espaço de afirmação e realização da plena dignidade humana. Estimula-se que pesquisas futuras incorporem a perspectiva dos trabalhadores que estão em contato direto com o objeto de estudo, levando em consideração as limitações desta presente pesquisa.

Em síntese, destaca-se que a compreensão das flexibilizações do trabalho transcende uma análise exclusivamente econômica, sendo essencial abordá-la em sua complexidade sociológica e histórica. Frente aos desafios impostos por esse contexto, torna-se crucial estabelecer um espaço de conscientização e debate abrangente, fundamentado na busca por alternativas que reafirmem os valores do trabalho com dignidade e justiça social. Nesse sentido, torna-se imperativo promover um debate crítico sobre as políticas neoliberais, as quais intensificam as disparidades e desigualdades, reafirmando o compromisso com a construção de uma sociedade equitativa e solidária, cujo foco esteja centrado no bem-estar coletivo.

 

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Recebido em: 26/11/2023.

Aceito em: 18/04/2024.

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n32.68709.p182-209

 

 



* Bacharela em ciências econômicas, Universidade Cruzeiro do Sul, Brasil. E-mail: larissafcamargo6@gmail.com.

** Bacharela em psicologia pela Universidade São Judas Tadeu, Brasil. E-mail: thais.sil.fe@hotmail.com.

*** Mestre em economia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Brasil. Docente do curso de graduação em Ciências Econômicas da Universidade Cruzeiro do Sul, Brasil. E-mail: ivan.jacob@cruzeirodosul.edu.br.

 

 

 

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Desenho de um círculo

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