POLÍTICAS PÚBLICAS CULTURAIS EM DEBATE: estudo sobre as audiências públicas da Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados

CULTURAL PUBLIC POLICIES IN DEBATE: a study of public hearings of the Brazilian Chamber of Deputies’ Culture Committee

Antonio Teixeira de Barros  *

Malena Rehbein Rodrigues Sathler **

 

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n32.69149.p146-181

 

 

Resumo

O texto analisa os debates sobre políticas públicas culturais no Brasil, originados das audiências públicas promovidas pela Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados. O objetivo é examinar as percepções do público sobre essas audiências, considerando: os debates em si; a atuação dos parlamentares e dos expositores dos convidados; e a atuação do Congresso Nacional e do Poder Executivo. Os dados resultam de questionário aplicado presencialmente com os participantes das audiências públicas durante o ano de 2019, totalizando 30% do público total de 670. As principais conclusões mostram o predomínio de percepções positivas sobre audiências, os debates e a participação dos expositores convidados, mas a atuação dos deputados é considerada regular. A avaliação sobre a atuação do Congresso Nacional e do Poder Executivo é vista de forma negativa. Os participantes destacam as omissões dos congressistas e a falta de prioridade do tema na agenda do Executivo, com severas críticas ao Governo em exercício durante a realização da pesquisa.

Palavras-chave: políticas públicas culturais brasileiras; poder legislativo; Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados; audiências públicas.

 

Abstract

The text analyzes the debates on Brazilian cultural public policies based upon the public hearings promoted by the Culture Committee of the Chamber of Deputies. The objective is to examine the public's perceptions of these audiences, considering: the debates themselves; the performance of parliamentarians and guest speakers; and the performance of the National Congress and the Executive Branch. The data result from a questionnaire applied in person with the participants of the public hearings during 2019, totaling 30% of the public of 670. The principal conclusions show the predominance of positive perceptions about audiences, debates and the participation of the invited exhibitors; but the performance of the deputies is considered ordinary. The performance of the National Congress and the Executive Branch is viewed in a negative way. The informants highlighted the omissions of the congressmen and the lack of priority on the topic on the Executive's agenda, with severe criticisms of the Government in office during the conduct of the survey.

Keywords: Brazilian cultural public policies; legislative power; Culture Committee of the Chamber of Deputies; public hearings.

 

Introdução

 

O desenvolvimento e execução de políticas culturais no Brasil é historicamente marcado por altos e baixos de investimento no setor, ao sabor da mudança de governos e sempre sem uma política de longo prazo para desenvolver um dos setores mais rentáveis do país, responsável por cerca de 4% do seu Produto Interno Bruto (PIB). Uma síntese da trajetória das políticas culturais brasileira é apresentada por Rubim (2007, p. 101) nos seguintes termos: “a história das políticas culturais do Estado nacional brasileiro pode ser condensada pelo acionamento de expressões como: ausência, autoritarismo e instabilidade”. 

A área de cultura foi sempre instável por andar a reboque de interesses de governos do momento, cuja existência seria fortalecida pelo controle do setor, seja para fortalecê-lo ou enfraquecê-lo. No caso de governos autoritários, foi sempre necessário controlar ao máximo a pluralidade das manifestações culturais brasileiras, com clara ausência de política de Estado para o setor como estratégico para o país. Boa parte dos contrapontos a esse tipo de (a)política cultural foi e é sempre feito pela Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, desde 2013 e que em vários momentos, como no governo Jair Bolsonaro (2018-2022), funcionou como verdadeiro ponto de resistência a políticas de caráter destrutivo ao setor. Um ponto importante de interface com a sociedade são as audiências públicas feitas pelo colegiado, com participação da sociedade civil. Nesse sentido, parece-nos importante saber como a sociedade vê esse espaço de interface e debate sobre políticas culturais.

Sendo assim, o objetivo deste artigo é analisar as percepções do público sobre essas audiências, considerando as seguintes questões: Como esse público avalia os debates promovidos por essas audiências públicas? Quais suas percepções? O que acham da experiência de assistir a uma audiência pública que põe em discussão temas culturais da agenda legislativa? O foco da análise são os seguintes aspectos: as percepções do público sobre a atuação dos parlamentares; dos representantes de órgãos governamentais; dos representantes da sociedade civil. Além disso, são avaliadas as percepções dos cidadãos sobre a atuação do Congresso Nacional e do Poder Executivo no âmbito das políticas públicas culturais. Com isso, espera-se conhecer melhor como os participantes se sentem e como enxergam este lócus de debate e o próprio tema em si.

Destaca-se ainda que o período escolhido, o ano de 2019, foi um dos anos mais atuantes da Comissão de Cultura na Câmara, tendo em vista que lá eram discutidas ações do governo, com o propósito de fazer oposição ao projeto governista. Em razão disso, o governo mobilizou seus apoiadores para estarem constantemente no colegiado, chegando a aventar a possibilidade de pedir a presidência da referida comissão. Tal interesse nunca foi uma marca de governos de direita, o que tornou a Comissão de Cultura um dos palcos políticos mais polêmicos e atuantes do ano em questão. Considerando ainda que todos os conselhos com participação social foram eliminados das esferas ligadas ao Poder Executivo no governo Bolsonaro, a CCULT, como é chamada dentro da Câmara dos Deputados, passou a ser o único lócus institucional com possibilidade de participação social institucionalizada, via audiências públicas, e/ou informal, pelo acesso direto aos parlamentares pela sociedade civil durante as reuniões.

Em cena estava a disputa pelos significados simbólicos dos valores a compor uma nova identidade nacional. Isso poderia ser visto, por exemplo, em temas simples como as moções de repúdio votadas no colegiado. O governo obstruía recorrentemente as votações de repúdio contra censura, contra o posicionamento brasileiro na Organização das Nações Unidas (ONU), referente aos indígenas, por exemplo. O argumento era de que repudiar tais coisas é que seria censurar. Ou seja, uma opinião contrária, pública, seria prática de censura ao governo, deixando clara uma disputa de verdades sobre a realidade atual.

A pesquisa teve como instrumento de coleta de dados um questionário com perguntas fechadas e abertas (apêndice A). O questionário foi aplicado presencialmente com os participantes das 32 audiências públicas realizadas pela Comissão durante todo o ano de 2019. Foram obtidas 201 respostas, totalizando 30% do público que acompanhou os debates no período estudado. Todos os participantes concordaram em responder às questões, sob a condição de que as respostas abertas não fossem identificadas. Por essa razão, os relatos são utilizados de forma anônima. O perfil dos informantes será mencionado no início da análise dos dados (tabela 1).

Antes, apresentamos uma breve contextualização da história de políticas para o setor cultural e, em seguida, uma revisão bibliográfica sobre conceitos de cultura, modelos culturais e políticas públicas para o setor. Há ainda um tópico sobre a Comissão da Cultura da Câmara, objeto de análise do artigo.

 

Um pouco da história das políticas de governos para a cultura

 

Do ponto de vista histórico, segundo Lia Calabre (2009), no Brasil republicano, as primeiras iniciativas em termos de políticas culturais ocorreram durante o Governo Vargas, na década de 1930, na gestão do ministro Gustavo Capanema (1934 – 1945). São legados dessa época a criação de instituições culturais como o Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Instituto Nacional de Cinema Educativo e o Instituto Nacional do Livro. Outro marco, embora controverso, ocorreu durante o regime militar (1964 – 1985), com a criação do Conselho Nacional de Cultura, da Política Nacional de Cultura, da Fundação Nacional de Artes (Funarte), do Conselho de Direito Autoral e da Fundação Pró-Memória. São iniciativas que, apesar da prevalência da censura durante o período me questão, reconhecidas como relevantes no contexto da institucionalização de políticas culturais, cujas contribuições se estendem até o final do regime militar (Calabre, 2009).

Durante a transição democrática, no governo Sarney, uma contribuição expressiva, na gestão de Celso Furtado no Ministério da Cultura, foi a implementação de incentivos fiscais para o setor cultural. A legislação da época “passou a conceder benefícios e concessões fiscais no imposto de renda para iniciativas operacionalizadas no setor cultural ou artístico”. Assim, “foi instaurado um mecanismo de financiamento das políticas públicas de cultura através de renúncia fiscal” (Silva, 2014, p. 202).

No final da década de 1980 e início da década de 1990, destacam-se as políticas negativas para o setor. Estas foram implementadas pelo governo Collor e resultaram na extinção de instituições e programas culturais, além de cortes orçamentários para o setor. Durante o governo Fernando Henrique, a ação do Estado mais expressiva foram os estímulos ao patrocínio privado para o setor, o que resultou em investimentos prioritários em áreas como música, audiovisual, patrimônio histórico, artes cênicas e produção editorial (Rubim, 2007; Silva, 2014).

Outra fase que também é reconhecida como um marco histórico ocorreu durante o governo de Lula (2003 – 2008), especialmente durante a gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura. Segundo Silva (2014), essa terceira fase foi marcada por investimentos financeiros expressivos e pela articulação das políticas culturais com outros setores, como educação, ciência, tecnologia e meio ambiente. Além disso, foram impulsionados projetos para setores da cultura, favorecendo, inclusive, áreas pouco valorizadas pelo Estado, como circo, dança e manifestações populares. Foi uma fase em que a sociedade foi estimulada a participar dos debates internos no setor, por meio de conselhos, grupos e outras conformações. Outra característica desse momento foi o investimento em equipamentos culturais em áreas da periferia, uma tentativa de democratizar o acesso à cultura e valorizar as expressões oriundas das periferias, favelas e zonas urbanas marginalizadas. As políticas implementadas na gestão Lula “tiveram como diretrizes: a reinserção da cultura na pauta política da nação, a interiorização destas iniciativas e a pluralização identitária” (Silva, 2014, p. 199).

Durante o governo Dilma, uma das contribuições de destaque foi o Plano Nacional de Cultura (PNC), formulado com o objetivo de garantir maior estabilidade e continuidade às políticas públicas culturais brasileiras, por meio do Sistema Nacional de Cultura, um instrumento de gestão compartilhada das políticas culturais entre União, estados e municípios (Chedid; Capella, 2018). O PNC foi orientado por uma perspectiva de cidadania cultural, a fim de promover a inclusão cultural, o respeito às diversidades culturais em nível local e regional. 

Os eixos dos PNC foram orientados pelos programas Pontos de Cultura, Cultura Viva e Mais Cultura, todos voltados para o reconhecimento e o fortalecimento das expressões culturais periféricas e regionais, que viriam a ser completamente esvaziadas pelo governo Bolsonaro. Segundo as autoras, o Poder Legislativo exerceu um papel de protagonismo no debate e proposituras relativas ao PNC, com destaque para as formas de financiamento dos programas e projetos acima mencionados. Isso reforça a importância do financiamento das políticas públicas culturais (Santos; Paulo, 2014; Costa; Medeiros; Bucco, 2017; Ferron; Arruda, 2019).

O início do governo Bolsonaro foi marcado por guerras culturais e medidas de desmonte de instituições representativas para o setor. Desde o seu início, ele tem sucateado a área de cultura de forma progressiva e severa. Primeiro, ocorreu a extinção do Ministério da Cultura e de várias áreas importantes dele, transferindo-o para o Ministério da Cidadania e, depois, para o Ministério do Turismo, reduzindo a cultura ao que pode gerar em termos de exploração turística. Depois, houve cortes máximos de recursos, prática de censura explícita a eventos culturais e veículos institucionais, como a EBC (Empresa Brasil de Comunicação). Além disso,  foram nomeadas pessoas sem qualquer preparo ou, muitas vezes, em total discordância com as premissas de defesa da cultura no Brasil para órgãos, como o Instituto de Patrimônio Histórico Nacional (Iphan), Funarte e Ancine (esta última que está praticamente acéfala desde o final de 2019).

Em vez de promover políticas culturais, o governo Bolsonaro optou por incentivar guerras culturais, entendidas como “discursos que têm como pauta temas morais, tais como aborto, homossexualidade, legalização das drogas e maior rigidez do sistema penal, subordinando as questões de ordem econômica e sociais a uma perspectiva punitiva, e que ganham cena no debate público, seja dentro ou fora da imprensa” (Miguel, 2018, p. 210). Para Bolsonaro, cultura é “coisa de esquerda” e, para dizimar a esquerda — o inimigo escolhido na estratégia política de mobilização social —, tornou-se necessário destruir a cultura que, para ele, a reflete. Ele entendia a importância da cultura, tanto que tentou moldá-la na tentativa de homogeneizar uma sociedade em deferência ao autoritarismo e aos valores morais de cunho conservador e religioso. Dessa forma, não se trata de mero desprezo à cultura, mas de adequação ao projeto em voga, algo que jamais havia sido feito nesses moldes após a redemocratização.

 

Cultura: conceitos básicos, modelos e políticas públicas

 

Apesar da complexidade dos estudos sobre cultura, existem duas visões que funcionam como âncoras conceituais para as pesquisas nessa área: a noção antropológica de cultura e a visão sociológica. Ambas oferecem suportes relevantes inclusive para o estudo das políticas culturais. A dimensão antropológica, em resumo, compreende a cultura como “tudo quanto tem significado espiritual e, simultaneamente, adquire relevância coletiva” e também tudo que se relaciona aos processos de “criação ou de valoração humana, contrapostas às puras expressões da natureza” (Miranda, 2006, p. 2).

Na perspectiva antropológica, “a cultura se produz através da interação social dos indivíduos, que elaboram seus modos de pensar e sentir, constroem seus valores, manejam suas identidades e diferenças e estabelecem suas rotinas. Desta forma, cada indivíduo ergue à sua volta, e em função de determinações de tipo diverso, pequenos mundos de sentido que lhe permitem uma relativa estabilidade” (Botelho, 2001, p. 74).

A dimensão sociológica, por sua vez, trata a cultura como “produção elaborada com a intenção explícita de construir determinados sentidos e de alcançar algum tipo de público, através de meios específicos de expressão” (Botelho, 2001, p.74). A cultura é tratada, portanto, como um sistema simbólico que depende de instituições para fomentar a produção, de circuitos organizados que permitam a circulação desses bens e de públicos habilitados a compreender as produções que são oferecidas à sociedade.

Ambas as dimensões, contudo, conforme alerta a autora citada, podem ser levadas em conta quando se trata do estudo de políticas públicas culturais. No primeiro caso, observa-se que o foco está em níveis mais amplos da formação humana, a fim de que os indivíduos consigam entender a relevância da cultura para uma sociedade. Aqui, percebe-se que as políticas culturais operam em interface direta com as políticas educacionais e todas as demais políticas que são voltadas para o desenvolvimento humano, a promoção do bem-estar e da qualidade de vida em sentido integral. No segundo caso, as políticas públicas para o setor cultural apresentam como eixo o fortalecimento das instituições de produção simbólica, a valorização dos agentes produtores de cultura e a capacitação do público para o entendimento do valor das obras artísticas e dos demais bens simbólicos que lhes são oferecidos.

A literatura registra ainda outras três abordagens: a) a cultura como discurso simbólico (recurso retórico); b) a cultura como processo de criação simbólica; c) a cultura como consumo simbólico (Davel; Cora, 2016). Para os autores, “a autoridade pública em cultura tem de operar com um espaço, a sociedade, que é internamente subdividida em subespaços governados por lógicas diferentes – a cultura erudita, a indústria cultural e as culturas populares. Em cada um desses três espaços a autoridade pública deve manifestar ou uma linha clara de ação ou, ao menos, uma justificativa consistente sobre o que pode ser feito como financiamento direto, fomento indireto ou regulação” (Durand, 2001, p. 71).

No lastro desses estudos sobre as várias dimensões da noção de cultura, destaca-se a discussão sobre os direitos culturais. A perspectiva dominante é a de que, embora muito comentados e discutidos em vários âmbitos políticos e sociais, constituem a categoria mais negligenciada pelas políticas públicas no âmbito dos direitos humanos (Vásquez, 2011). Por essa razão, as políticas públicas são consideradas instrumentos fundamentais para suprir essa lacuna e promover a efetivação dos direitos culturais em diferentes escalas, do nacional ao local (Cunha Filho, 2017).

Em perspectiva similar, Pedro (2011, p. 43) considera os direitos culturais “o filho pródigo dos direitos humanos”. Isso porque, apesar de amplamente defendidos, esses direitos são definidos de forma pouco efetiva nos ordenamentos jurídicos e recebem pouca importância pelos planos e projetos governamentais. Tudo isso faz com que “os direitos culturais aparecem insatisfatoriamente desenvolvidos, o que os relega à condição de parentes pobres dos direitos humanos”(Pedro, 2011, p.43). 

Incluir os direitos culturais no rol dos direitos fundamentais implica, portanto, “situá-los na categoria mais alta de garantias da qual um direito subjetivo pode usufruir” (Pedro, 2011, p. 45). Isso implica uma visão integral e holística dos direitos culturais, o que compreende a totalidade dos direitos que têm a ver com os processos culturais, como “as liberdades de criação artística, científica e de comunicação cultural, os direitos autorais, o direito de acesso à cultura, o direito à identidade e à diferença cultural, o direito à conservação do patrimônio cultural” (Pedro, 2011, p. 45).

Os direitos culturais são aqueles relativos à identidade cultural, às liberdades culturais e ao acesso aos bens culturais (Miranda, 2006, p.2). São temas que se tornaram muito expressivos na agenda das questões sociais contemporâneas, abrangendo múltiplas dimensões da vida humana, como gênero, etnia, raça, classe social, práticas religiosas, identidades regionais, fatores geracionais, entre outros. O campo dos direitos culturais abrange ainda os estilos de vida, as relações de trabalho, as culturas alimentares, os hábitos relacionados a vestuário, habitação, locomoção, cuidados relativos ao corpo, saúde, os modos de diversão, lazer e entretenimento, entre outros aspectos da vida contemporânea (Gohn, 2005).

Boaventura Sousa Santos (1997) ressalta a dimensão multicultural de direitos humanos, considerando o contexto de crescente globalização de certas práticas culturais, especialmente aquelas diretamente relacionadas à emergência de dispositivos tecnológicos, numa relação dialética com as práticas culturais ancoradas em identidades locais e regionais. Essa dimensão multicultural, segundo o autor, nos coloca diante de algumas tensões muito relevantes para a compreensão dos direitos culturais na atualidade. Entre tais tensões, estão os projetos culturais a serviço de uma política progressista e emancipatória versus projetos culturais nacionalistas e xenófobos; a tensão entre Estado e sociedade civil na formulação e revisão de políticas públicas culturais; e as disputas entre os estados nacionais e as políticas de orientação global, confrontando a legislação nacional relacionada aos direitos humanos e aos direitos culturais com as diretrizes de órgãos e acordos internacionais.

Os direitos culturais são estudados em duas dimensões, sendo uma generalista e a outra específica (Cunha Filho, 2011, p. 117). A primeira entende os direitos culturais como fundamentais para a segurança social, à dignidade individual e grupal e ao livre desenvolvimento da personalidade humana. O segundo prevê que “toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do processo científico e de seus benefícios” (Cunha Filho, 2011, p. 177). 

Analisar políticas culturais exige uma breve abordagem sobre sua relação com os modelos culturais, que são mais abrangentes e servem de contexto para o debate relativo às políticas públicas. De forma resumida, os modelos culturais são entendidos como sistemas de representação de natureza simbólica compartilhados por indivíduos de uma cultura ou grupo social. Funcionam como guias mentais para a atribuição de sentidos a práticas, condutas e formas de pensar que orientam a vida coletiva, produzem senso de pertencimento e identidade cultural.

Tais modelos são formados por valores e crenças que carregam avaliações intersubjetivas que motivam tanto a ação individual quanto o comportamento coletivo. Os modelos culturais são construções sociais que são apreendidos individualmente por meio dos processos de socialização. Na vida prática, tornam-se redes de conteúdos mentais e ideológicos (ideias) que unem os membros de uma coletividade (Hunt, 1992; D’Andrade; Strauss, 1992; Feltes, 2018).

No âmbito desse tema, convém ressaltar ainda o debate relativo às diferenças entre democracia cultural e democratização da cultura e sua contribuição para refletir sobre as políticas públicas culturais na atualidade (Albuquerque Júnior, 2007; Botelho, 2007; Lopes, 2007; Lacerda, 2010; Souza, 2019). A noção de democratização da cultura é criticada pelos autores mencionados porque pressupõe políticas voltadas para “a superação dos desníveis culturais entre os segmentos sociais a partir de um movimento simplista e paternalista de democratização do acesso do grande público ao que é reconhecido e legitimado como ‘grande patrimônio’, quase sempre atrelado à ‘cultura erudita’” (Souza, 2019, p. 184).

O que é posto em questão aqui é a suposta existência de um legado cultural hegemônico, considerado um valor universal. Essa vertente leva a políticas públicas culturais “de cariz conservador, elitista e paternalista de democratização” das expressões culturais de forma seletiva, priorizando aspectos e formas da cultura dominante em detrimento das culturas subalternas (Botelho, 2007, p. 172). Tal abordagem pressupõe a “verticalização e centralização das decisões políticas e, consequentemente, uma concepção restrita de cultura, públicos e capital cultural” (Lacerda, 2010, p. 29). As políticas culturais, orientadas por essa perspectiva, são “essencialmente elitistas, balizadas em uma ordem hegemônica que, ao passar pela dimensão cultural, sedimenta um conjunto de práticas como se fossem autofundamentadas no tecido social, e estabelecem, assim, fundamentos mais ou menos instáveis com sentidos de verdades fundantes” (Souza, 2019, p. 186).

A noção de democracia cultural, por sua vez, compreende uma perspectiva política relacional, que se propõe a repensar a ação política no campo cultural, de modo a evitar o dirigismo do Estado e projetos políticos assentados em visões assistencialistas que promovem seletivamente certas expressões culturais. Daí a grande discussão, por exemplo, sobre o fortalecimento do Fundo Nacional de Cultura (FNC), de forma a estimular a produção cultural marginalizada no cenário nacional, por meio dos Pontos de Cultura. A democracia cultural pressupõe uma visão mais ampla, que entende a cultura como direito do cidadão, o que implica em “uma perspectiva pluralista e não hierarquizante [que busca] garantir ao cidadão o direito à cultura” (Souza, 2019, p. 191). Para o autor, essa abordagem requer a compreensão de que os espaços públicos devem ser “caracterizados pela pluralidade e interação cultural e [devem] buscar sempre o seu alargamento”. Essa visão “tem como pressuposto uma perspectiva pluralista de cultura e de públicos”, de modo a “fomentar e reconhecer as diferentes manifestações artístico-culturais sem hierarquizá-las” (Souza, 2019, p. 191).

O Estado, em sua atuação no campo das políticas culturais, exerce um papel como agente mediador e regulador dessas políticas, mas com o propósito de investir em projetos plurais, evitando a hierarquização e a marginalização das expressões culturais, dos gostos e dos públicos (Lopes, 2007). Assim, as políticas públicas para o setor cultural são orientadas para “ampliar os espaços de participação já existentes e buscar por novas experiências democráticas no sentido de contribuir para a efetiva participação política de diferentes linguagens artístico-culturais presentes no espaço social” (Souza, 2019, p. 193). Esse princípio “evidencia a necessidade de aprofundamento das experiências participativas em que diferentes grupos sociais e indivíduos possam participar das discussões e tomadas de decisão” (Souza, 2019, p. 193). Com esse propósito, na última década, foram criadas várias instâncias participativas ligadas ao antigo Ministério da Cultura, por meio, principalmente, de conselhos, a maioria extinta pelo Decreto 9759/2019 (Brasil, 2019)[1], que extinguia todos os colegiados ligados à administração pública federal, como conselhos e comitês em que houvesse participação da sociedade civil.

Marques (2015) aponta como um dos principais desafios para as políticas culturais na atualidade o enfrentamento dos modelos hierarquizados de cultura, que supervalorizam determinadas expressões artísticas e culturais de elite, enquanto subestimam ou depreciam as manifestações populares e as expressões periféricas. Em sua visão, um projeto de democracia cultural, no âmbito de políticas culturais públicas, “deve considerar o contexto de interação cultural, os diferentes públicos envolvidos, as relações de poder que se fazem presentes na própria ideia de políticas culturais públicas e buscar a maximização da participação pública nos espaços de decisão política” (Marques, 2015, p. 43).

As políticas culturais, quando classificadas segundo seus objetivos, apresentam a seguinte divisão, conforme Costa (1997): (a) políticas culturais carismáticas — apoio aos criadores reconhecidos; (b) políticas de democratização da cultura — ampliação do acesso às obras aos grandes públicos; (c) políticas de democracia cultural — alargamento das práticas culturais e da criatividade e expressões culturais dos vários grupos sociais, incluindo as minorias.

A partir dessa classificação, Tavares (2011) apresenta três modelos de incentivo e fomento à cultura: o liberal,  o social-democrático e o neocensitário. O primeiro trata a cultura como inerente a um mercado em que os indivíduos escolhem livremente os produtos culturais, conforme seus interesses. O segundo pressupõe a atuação do Estado para assegurar o direito de acesso à cultura aos indivíduos. O terceiro constitui um modelo híbrido, que defende princípios liberais, mas reivindica a ação do Estado para que a cultura seja tratada como um bem público.

 

A Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados

 

Até o início do ano de 2013, os temas culturais eram discutidos pela então Comissão de Educação e Cultura. No final de fevereiro de 2013, a referida comissão foi desmembrada, resultando na criação da Comissão de Cultura, que conta com 20 membros titulares e igual número de suplentes. As atribuições da nova comissão foram definidas por meio da Resolução nº 21/2013, com o propósito de promover:

 

a)  o desenvolvimento cultural, inclusive patrimônio histórico, geográfico, arqueológico, cultural, artístico e científico, acordos culturais com outros países;

b) o direito de imprensa, informação e manifestação do pensamento e expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação;

c) a produção intelectual e sua proteção, direitos autorais e conexos;

d) a gestão da documentação governamental e patrimônio arquivístico nacional;

e) a área de diversões e espetáculos públicos;

f) as datas comemorativas de relevância nacional;

g) as homenagens cívicas. (Brasil, 2013)

 

Durante o ano de 2019, período em que a pesquisa foi realizada, a comissão foi presidida pela deputada Benedita da Silva (PT-RJ). As deputadas Maria do Rosário (PT-RS) e Áurea Carolina (PSOL-MG) foram a primeira e a segunda vice-presidentes, respectivamente. A representação partidária dos demais titulares é bem diversificada, conforme exposto no quadro 1. Predominam parlamentares do espectro de esquerda: PT, PDT, PSB e PSOL.

Interessante ressaltar que a Comissão de Cultura é uma das mais fáceis para negociar troca de vagas entre membros na época em que os colegiados estão sendo formados, com base na proporcionalidade partidária. Tradicionalmente, sempre houve mais interesse de partidos de esquerda e centro-esquerda pela Comissão. Entretanto, em 2019, com as diversas medidas do governo na área, acabou se tornando um dos principais centros de debate na Câmara, com amplo interesse de partidos mais ligados à ala centro-direita e à direita.

 

Quadro 1 – Composição partidária da Comissão de Cultura em 2019

Partido

Titulares

PT

7

PDT

2

PSB

2

PSL

2

PSOL

2

DEM

1

PRB

1

PCdoB

1

PODE

1

Cidadania

1

PL

1

PSDB

1

Total

22

Fonte: elaboração própria com base no Relatório Anual da Comissão da Cultura da Câmara dos Deputados, 2019.

 

 

Durante o ano de 2019, a comissão realizou 32 audiências públicas, com a participação de 183 convidados, conforme exposto no quadro 2. A maioria dos temas estava ligada ao desmonte da área promovido pelo governo, como forma de reação e tentativa de conter avanços nesse sentido: censura na EBC, patrocínio e fomento cultural, racismo, preconceito, censura, estruturas de políticas de cultura com cobranças constantes de autoridades nomeadas.

 

 

Quadro 2 – Audiências públicas realizadas

 

Tema

Data

Deputado requerente

Convidados

1

A Tradição Alimenta Não Violenta

28/03/19

Erika Kokay

6

2

Discussão sobre a nova política de patrocínio da CEF, BB, BNDES, Petrobrás e Correios na área de Cultura

11/04/19

Chico D´Angelo

7

3

A EBC e a garantia da comunicação pública

23/04/19

Chico D´Angelo

6

4

Discussão sobre o PL 7619/2017 proposto pela CPI da Lei Rouanet

24/04/19

Benedita da Silva

3

5

A criminalização do Funk

25/04/19

Áurea Carolina

6

6

Ações para a defesa e fortalecimento do FAC e da LOC do Distrito Federal

02/05/19

Erika Kokay

7

7

Discutir o PL 8889/2017 que dispõe sobre a provisão de conteúdo audiovisual sob demanda (CAVd)

08/05/19

Paulo Teixeira

6

8

Os impactos da extinção do Ministério da Cultura

22/05/19

Áurea Carolina

5

9

A disseminação de fake news e a interferência na democracia brasileira

23/05/19

Maria do Rosário

6

10

O papel e a reativação do Conselho Nacional de Política Cultural - CNPC

30/05/19

Jandira Feghali

4

11

Liberdade de imprensa e comunicação: a cultura de violência contra jornalistas e comunicadores como ameaça aos direitos humanos e à democracia

04/06/19

Túlio Gadelha

4

12

Os impactos das políticas afirmativas no Brasil, com base no livro “Reafirmando Direitos: trajetória de estudantes cotistas negros (as) no ensino superior brasileiro”

06/06/19

Áurea Carolina

5

13

Mecanismos de fomento à cultura e a Política Nacional das Artes

12/06/19

Marcelo Calero

4

14

Memória Verdade e Justiça – 50 anos de luta LGBTQI+

25/06/19

David Miranda

6

15

Sistema Nacional de Cultura e Plano Nacional de Cultura

03/07/19

Benedita da Silva

8

16

“Cultura Viva”, uma política de Estado

04/07/19

Áurea Carolina

5

17

ANATEL proíbe Fox do Brasil de oferecer sua programação pela internet

11/07/19

Marcelo Calero

12

18

Racismo estrutural

14/08/19

Benedita da Silva

6

19

Situação dos museus e do patrimônio cultural brasileiro

15/08/19

Marcelo Calero

4

20

Iniciativas do governo federal e a produção do audiovisual no Brasil

04/09/19

Lídice da Mata

7

21

Artistas de rua: condições de atuação e legislação

05/09/19

Alexandre Padilha

3

22

Observatórios de cultura

11/09/19

Benedita da Silva

5

23

Atentados e crimes contra as comunidades religiosas de matriz africana

09/10/19

David Miranda

5

24

A criminalização da apologia à ditadura

16/10/19

Túlio Gadelha

6

25

Fortalecimento dos sistemas de bibliotecas públicas

17/10/19

Marcelo Calero

3

26

Em defesa do patrimônio cultural brasileiro

23/10/19

Áurea Carolina

5

27

A charge como expressão cultural e política do Brasil

06/11/19

Benedita da Silva

4

28

30 anos da política de redução e danos

07/11/19

Áurea Carolina

6

29

Tráfico e comércio ilícito de bens culturais

31/10/19

Marcelo Calero

8

30

“Art. 5º: Censura nunca mais”

18/11/19

Áurea Carolina

8

31

Consciência negra

20/11/19

Benedita da Silva Alexandre Padilha e Áurea Carolina

4

32

Consolidação das leis sobre direitos autorais

10/12/19

Marcelo Calero

3

Total

177

Fonte: elaboração própria, com base no Relatório Anual da Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, 2019.

 

 

Análise dos dados

 

A tabela 1 mostra que homens, com idades entre 31 e 50 anos, têm uma participação 14,4% maior. A maioria deles possui pós-graduação (46%), configurando assim um público qualificado. A renda variava para cada uma das seguintes faixas salariais em torno de 30%: 6 a 10 salários-mínimos; 11 a 15 salários-mínimos; mais de 15 salários-mínimos. No geral, os participantes  ganhavam entre R$ 6,27 mil e mais de R$ 15 mil. Só cerca de 15% ganhavam menos do que isso.

Esses dados revelam que a participação política nas audiências públicas da Comissão de Cultura ainda se restringe a classes com mais recursos financeiros. Isso também pode ser explicado pelo fato de que, em 2019, houve um corte severo nos gastos com passagens em comissões, resultando em uma média de oito passagens aérea por mês, o que equivale a cerca de duas para cada audiência. Desta forma, muitos convidados tiveram que comparecer com recursos próprios ou com o financiamento de  entidades e instituições do setor cultural. Essa situação também se aplica aos interessados em assistir aos debates. Isso explica o predomínio da população local do Distrito Federal (88, 56%).

 

Tabela 1 – Perfil dos participantes

SEXO

N

%

Masculino

115

57,21

Feminino

86

42,79

Subtotal

201

100

FAIXA ETÁRIA

N

%

Até 20 anos

2

1

21 a 30 anos

30

14,9

31 a 40 anos

63

31,3

41 a 50 anos

64

31,9

51 a 60 anos

36

17,9

Acima de 60 anos

6

3

Subtotal

201

100

ESCOLARIDADE COMPLETA

N

%

Ensino Fundamental

2

1

Ensino Médio

19

9,5

Curso Superior

88

43,5

Pós-Graduação

92

46

Subtotal

201

100

RENDA FAMILIAR MENSAL

N

%

Até 2 salários-mínimos

9

4,6

De 3 a 5 salários-mínimos

20

10,1

De 6 a 10 salários-mínimos

58

28,2

De 11 a 15 salários-mínimos

61

30,5

Mais de 15 salários-mínimos

53

26,6

Subtotal

201

100

Faz parte de alguma entidade cultural?

N

%

Não

105

52,24

Sim

96

47,76

Subtotal

201

100,00

É filiado a partido político?

N

%

Não

148

73,63

Sim

53

26,37

Subtotal

201

100,00

ESTADO ONDE RESIDE

N

%

DF

178

88,56

Outros

23

11,44

Subtotal

201

100

Fonte: elaboração própria, 2020.

 

 

Interessante notar que a maioria do público (73,6%) não apresenta vínculo com nenhum partido político. Dos que citaram ser afiliados a partidos (26,4%), a maioria (54,72%), como mostra a tabela 2, estava vinculada ao PT. Convém ressaltar que o PT foi, historicamente, um dos partidos que mais participou ativamente da comissão, desde quando ela funcionava junto com a Comissão de Educação, uma das mais cobiçadas pelo partido. Em seguida, 13,2% são ligados ao PSOL. Os que se disseram ligados a partidos de centro-direita e direita (PPS e PROS) somaram juntos somente 5,66%. O restante se distribuiu entre os demais partidos de esquerda, configurando este como o espectro político mais presente na comissão.

 

 

Tabela 2 – Partidos mencionados pelos informantes filiados

Partidos 

N

%

PT

29

54,72

PSOL

7

13,21

PCdoB

4

7,55

PSB

4

7,55

PV

3

5,66

PCO

2

3,77

PPS

2

3,77

PROS

1

1,89

Rede

1

1,89

Total

53

100

Fonte: Elaboração própria, 2020.

 

Aqueles que assistiam às audiências apresentaram uma característica interessante, conforme mostrado na tabela 3: demonstram um certo grau de continuidade no acompanhamento dos debates, com cerca de 30% deles frequentando as audiências pelo menos uma vez por mês. Isso denota um interesse permanente e continuado na discussão e defesa do setor em seus vários aspectos.  Os que frequentavam até uma vez a cada 15 dias somam 19%; e os que frequentavam uma vez a cada dois meses representam 15%. Apenas 5% frequentavam semestralmente e 8% eventualmente. Trata-se de um setor em que atrai as pessoas das mais diversas áreas culturais, todas demonstrando interesse na agenda de debates da Comissão.

 

 

Tabela 3 – Frequência da participação nas audiências públicas

FREQUÊNCIA

N

%

Semanalmente

18

9

Quinzenalmente

38

18,9

Mensalmente

60

29,9

Bimensalmente

30

14,8

Trimestralmente

21

10,4

Semestralmente

10

5

Eventualmente

16

8

É a primeira vez que participo

8

4

Total

201

100

Fonte: Elaboração própria, 2020.

 

 

Tabela 4 – Motivações para a participação nas audiências públicas

O QUE MOTIVA VOCÊ A PARTICIPAR DAS AUDIÊNCIAS PÚBLICAS?

N

%

Atividades profissionais

118

36,20

Militância e atuação em entidades culturais

78

23,93

Vínculo partidário

74

22,70

Estudos

32

9,82

Busca de informação e interesse pessoal

18

5,52

Outros

6

1,84

Total

326

100

Fonte: elaboração própria, 2020.

 

 

Este cenário pode ser mais bem definido quando se observa a tabela 4. A maioria dos participantes (36,2%) vai aos debates em razão do exercício de atividades profissionais. Provavelmente, são profissionais que atuam em defesa do setor, que em 2019 de fato se mobilizou bastante em defesa da não redução de instâncias, cargos, atividades culturais e recursos orçamentários. No entanto, uma porcentagem não muito menor (24%) compareceu por militância no setor cultural (23,93%) ou por vínculo partidário (22,70%). É oportuno mencionar que a vinculação a partidos pode ser compreendida também como uma militância no setor, posto que partidos costumam ter membros especializados em cada área das comissões.

 

Como o público avalia as audiências públicas da Comissão de Cultura

 

Mas o que esses participantes pensam sobre  as audiências públicas? Quais são suas percepções? O que avaliam a experiência de assistir a uma audiência pública que discute temas culturais da agenda legislativa? Na tabela 5, pode-se ver que a maior parte deles (40,3%) atribuiu  nota 4 (numa escala de zero a 5) às audiências, o que mostra que gostam da experiência e consideram o debate ali de qualidade (43,8%). A avaliação do público sobre os temas registra 43,8% de nota 4 e 32,8% de nota 5 (numa escala de 0 a 5), o que chama atenção pela valorização do fórum de discussões representado pela Comissão de Cultura.

Selecionamos um panorama das percepções positivas dos informantes sobre as audiências públicas e os debates retiradas dos questionários:

 

– Os temas são pertinentes, atuais e convergem para as demandas atuais da sociedade.

– Os deputados de esquerda, especialmente as mulheres, apresentam uma atuação muito boa.

– Atualidade dos temas.

– Espaço aberto para diferentes visões.

– Oportunidade para me atualizar e aprofundar conhecimentos

 

Apesar disso, há muitas críticas registradas pelos participantes da pesquisa:

 

– O tempo para debate é muito curto, simplificando a discussão.

– Falta espaço para a exposição do contraditório, para a apresentação de ideias divergentes.

– Tanto os expositores quanto os deputados, às vezes, fogem do tema e falam de outros assuntos.

– A participação da sociedade civil é muito limitada, devido ao horário e à falta de divulgação.

– O debate é pouco efetivo, pois tende a se tornar mero palanque para críticas generalizadas.

– Há um monopólio da visão de esquerda nas audiências.

 

 

Enquanto os elogios são mais genéricos e abrangentes, as críticas são mais diretas e específicas. Destacam-se as percepções de que o debate é simplificado e mais voltado para o viés de esquerda. Há críticas ao modo como os parlamentares utilizam a Comissão de Cultura como um espaço para expressar suas posições político-ideológicas. O espaço destinado às expressões da sociedade civil também é considerado insuficiente e limitado. Além disso, alguns participantes criticam a baixa divulgação das atividades da Comissão, incluindo as audiências públicas.

 

Tabela 5 – Avaliação dos participantes das audiências públicas

Avaliação

Audiências

Debates

Deputados

Representantes Governamentais

Setor Cultural

Congresso Nacional

Poder Executivo

Zero

0

0

1

0

0

4,4

5,5

Um

0,5

1

9,5

1

0,5

36,3

36

Dois

8

4

26,8

5,5

5,5

41,3

36,5

Três

27,4

18,4

36,3

18,4

17,9

10

12

Quatro

40,3

43,8

16,4

38,8

41,3

7,5

8

Cinco

23,8

32,8

10

36,3

34,8

0,5

2

Total

100

100

100

100

100

100

100

Fonte: elaboração própria, 2020.

 

 

No ano de 2019, somente duas (6,3%) das 32 audiências públicas tiveram o objetivo de discutir projetos em tramitação na Comissão. Uma para discutir o projeto advindo da CPMI da Lei Rouanet e outra para discutir a regulamentação de conteúdo sob demanda. De fato, as duas propostas mais polêmicas e de peso da Comissão no ano. O restante (93,7%) foi sobre problemas políticos na área de cultura, o que direcionava as discussões para a tomada de posições políticas.

Importante destacar que a fiscalização e o debate público fazem parte do papel do Poder Legislativo, para além da produção de leis. As comissões fazem parte disso, inclusive de forma regimentalmente prevista. O art. 255 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados prevê a possibilidade de a audiência pública tratar de assuntos de interesse público relevante, atinentes à sua área de atuação.

No caso específico da Comissão de Cultura, é oportuno retomar as discussões teóricas citadas na primeira parte do texto. Dentre tais visões, ressaltamos as abordagens que destacam a dimensão retórica da cultura, entendida como um discurso simbólico (Davel; Cora, 2016), expresso no caso em estudo, pelos debates promovidos pela Comissão, na forma de audiências públicas. É cabível retomar ainda os estudos anteriormente citados que destacam a centralidade das discussões relativas aos direitos culturais e a relevância das instâncias de formulação de políticas públicas voltadas para a promoção de tais direitos (Vásquez, 2011; Cunha Filho, 2017; Pedro, 2011). Essa retomada é importante porque a Comissão de Cultura da Câmara constitui uma dessas instâncias.

 

Atuação dos parlamentares

 

Os dados mostram que 36,3% dos participantes avaliam com nota 3 a atuação dos deputados, o que se justifica pelo fato de não entenderem por que poucos deputados comparecem e permanecem nas audiências. Isso porque os parlamentares participam de diferentes comissões que funcionam no mesmo horário e precisam se dividir entre elas. Mas há outros aspectos criticados, como veremos a seguir.

Nas questões abertas fica mais fácil entender alguns pontos da avaliação do público. No que diz respeito às audiências, há uma clara insatisfação com o uso dos debates para os palanques individuais que fogem ao tema das audiências. Isso porque, de fato, as audiências públicas, muitas vezes, são convocadas para manifestações políticas dos parlamentares que propuseram a realização dos eventos e não para coleta de informações para projetos. Eis alguns exemplos de percepções que expressam essa insatisfação:

 

– Alguns deputados ficam brigando entre si, devido às divergências ideológicas, o que prejudica o debate.

– Há pouca profundidade nas intervenções dos deputados, mais preocupados com as disputas políticas.

– Poucos deputados participam efetivamente do debate, ficam só no nível da polarização política.

 

                                                                                                                                          

Há também a percepção do público de que a atuação dos deputados resulta em intervenções superficiais, sem conhecimento sobre os temas em debate, além das saídas constantes. Eis alguns exemplos das manifestações dos respondentes do questionário sobre esses aspectos:

 

– Poucos deputados se empenham efetivamente no debate sobre as políticas culturais.

– A maioria dos parlamentares não tem o menor interesse no tema.

– Falta conhecimento técnico dos deputados sobre os temas discutidos.

– Muitos deputados se ausentam durante as discussões ou ficam o tempo todo usando o celular.

 

Realmente, os deputados que requerem as audiências são geralmente os que dominam melhor o tema — e, muitas vezes, são preparados por assessores para a audiência. O demais debatem mais politicamente, em apoio ou contraditando o que foi colocado. Há uma visão de que o deputado deve conhecer o tema tecnicamente, quando isso na verdade geralmente é feito pela assessoria/consultoria, obviamente com a participação do parlamentar, que dá justamente a direção política que quer.

Os pontos positivos destacados passam pela atuação das mulheres na Comissão (a presidente e as vices são mulheres; duas delas negras) e pelo clima amistoso que propiciariam. Os respondentes destacam ainda a atualidade dos temas, o que converge para a agenda política do momento:

 

– A atuação dos deputados é positiva porque existe uma escuta atenta e cuidadosa sobre as demandas culturais da sociedade.

– A presença maior de mulheres favorece um clima mais amistoso nos debates.

– Alguns mostram que realmente acreditam na necessidade de defender e lutar pelas políticas culturais.

 

Nas respostas abertas, observamos que há, ao mesmo tempo, críticas e apoio a uma hegemonia de deputados da esquerda na comissão, refletindo a polarização política vigente:

 

– Os deputados de esquerda valorizam mais o setor cultural.

–  Falta mais engajamento dos deputados de esquerda.

– A diversidade partidária é muito reduzida, com predomínio gritante da esquerda.

– A cultura não pode ser dominada pela esquerda.

 

 

As divergências nas percepções do público, entretanto, são típicas de avaliações políticas em contextos democráticos. Isso ocorre porque, entre os cidadãos que participaram dos debates e acompanhavam as audiências públicas da Comissão, há uma variedade de espectros políticos, o que é positivo. Assim como o parlamento é plural, a sociedade também o é, com reflexos de tal pluralidade na agenda da Comissão e nas percepções dos indivíduos que participaram da pesquisa. As divergências de percepções dos cidadãos refletem o que as abordagens teóricas mencionadas na primeira parte do texto expressam sobre os processos simbólicos e cognitivos envolvidos nas atividades culturais e nas formas de valoração típicas de tais expressões pelos indivíduos e as representações por eles construídas (Botelho, 2001; Miranda, 2006).

 

Atuação dos representantes governamentais

 

Cerca de 40% dos participantes avaliam com nota 4 tanto os representantes governamentais quanto os que representam o setor cultural. Isso se explica pelo perfil dos convidados, que, em ambos os casos, são técnicos de competência reconhecida, além da experiência profissional na área cultural. As percepções do público revelam isso:

 

– São profissionais competentes, especializados nos temas debatidos.

– A maioria cumpre bem o seu papel nos debates.

– São profissionais de carreira com vasta experiência, o que contribui para uma boa atuação nos debates.

 

As percepções favoráveis à atuação dos expositores que representam os órgãos governamentais ressaltam a relevância do conhecimento técnico e o capital dos saberes desenvolvidos no âmbito burocrático. Tais percepções reforçam os estudos que apontam a importância das variadas formas de conhecimento que são acionadas pelos debates promovidos no âmbito das audiências públicas (Barros, 2020, p. 364). As audiências públicas no Poder Legislativo, “constituem um importante instrumento de trocas argumentativas e fontes de informação para subsidiar as decisões dos parlamentares” (Barros, 2020, p. 364).

Nesse sentido, os debates são entendidos como uma forma de serviço público prestado pelos convidados tanto ao parlamento quanto à sociedade, “a partir do compartilhamento de conhecimentos especializados no âmbito da agenda legislativa” (Barros, 2020, p. 364). Assim, ao atuarem nesses fóruns de discussão pública, os convidados vinculados aos diversos campos do setor público contribuem para o aprofundamento das discussões relativas aos temas da agenda legislativa. A formação especializada permite a contribuição com informações e conhecimentos de várias áreas de conhecimento. Além disso, há que se destacar o capital de experiência em diversas áreas do setor cultural. Tudo isso associa a burocracia a comportamentos regulados por normas e procedimentos que “conseguem fazer de suas opções políticas decisões de natureza técnica” (Klüger, 2015, p. 91).

As percepções positivas dos informantes sobre a atuação dos quadros burocráticos revela ainda a relevância da dimensão pública da cultura. Essa dimensão é ressaltada não só na forma de financiamento das políticas públicas culturais, mas também na constituição de quadros funcionais com formação técnica para garantir estabilidade a tais políticas (Rubim, 2007; Santos; Paulo, 2014; Costa; Medeiros; Bucco, 2017; Ferron; Arruda, 2019).

Mas também há críticas aos convidados do setor governamental:

 

– Apresentam uma visão muito chapa branca.

– Atuam como se fossem advogados do governo.

– Desconversam e fogem das questões polêmicas.

– Passam uma falsa ideia de que há muitos avanços no setor cultural.

– Alguns usam uma linguagem muito técnica, o que dificulta a compreensão dos temas discutidos.

 

As percepções críticas, por sua vez, mostram que não há unanimidade em relação à valorização dos conhecimentos técnicos do corpo burocrático que atua nas audiências públicas da Comissão de Cultura. Um dado contextual a ser considerado aqui diz respeito ao perfil do governo na época da realização da pesquisa. Os convidados de instituições públicas e órgãos governamentais, de forma direta ou direta, eram associados por uma parcela do público à postura do governo em exercício, cuja atuação na área cultural foi deficitária, recebendo críticas de vários segmentos da sociedade e do próprio parlamento.

Diante de tal cenário, tanto o conhecimento técnico especializado quanto o capital de experiência podem ser instrumentalizados para a defesa de posições ideológicas, mediante a necessidade de justificações públicas de decisões e medidas governamentais (Klüger, 2015). Essa posição revela ainda a permanente tensão da burocracia entre conhecimento técnico e a tomada de posições políticas em prol de determinadas políticas públicas que podem contrariar interesses sociais, como no caso das políticas (anti)culturais do governo Bolsonaro e sua lógica de “guerras culturais” (Miguel, 2018).

Essa tensão se manifesta em disputas de narrativas ou na tentativa de legitimação de certas posições políticas que podem contrariar a própria lógica da racionalidade burocrática (Klüger, 2015; Barros, Monteiro, Nóbrega Netto, 2019). Nesse sentido, convém retomar a ideia de que a autoridade pública deve garantir os meios necessários para o fomento das políticas culturais (Durand, 2001, p. 71). Nessa perspectiva, os quadros burocráticos adquirem relevância porque, de forma direta ou indireta, podem ser percebidos como integrantes do conceito de autoridade pública.

 

Atuação dos representantes do setor cultural

 

Os representantes de entidades culturais também recebem boas avaliações pelo conhecimento que possuem sobre os temas discutidos:

 

– São abertos ao diálogo e ao contraditório.

– Conhecem bem as demandas e necessidades do setor.

– Dominam bem os temas da agenda da comissão.

– São muito qualificados.

– Sabem do que falam, pois conhecem bem os temas.

 

De forma similar ao item anterior, aqui os participantes também valorizam o capital de conhecimento técnico dos representantes do setor cultural. Da mesma forma que os técnicos que atuam no serviço público, pode-se afirmar que os profissionais das variadas áreas culturais também prestam um serviço público ao parlamento e à sociedade quando participam dos debates promovidos pelas audiências públicas da Comissão de Cultura.

Além disso, eles apresentam um lugar de fala que é reconhecido e respeitado pelos cidadãos consultados durante a pesquisa. Essa constatação se revela tanto na boa avaliação sobre a atuação desse segmento (ver a tabela 5) quanto nas afirmações extraídas das respostas abertas transcritas acima. A valorização e o reconhecimento do lugar de fala desse segmento são expressos pelos participantes da pesquisa da seguinte forma:

 

– São combativos durante os debates.

– Conseguem debater em pé de igualdade com os representantes do governo e com os parlamentares.

– Além de conhecimento técnico, são militantes da causa cultural.

– São respeitados no meio pela boa militância que fazem em prol da cultura.

 

Além do conhecimento técnico, os informantes valorizam o capital[2] militante dos representantes do setor cultural que participam das audiências públicas. Esse dado é relevante porque se trata de uma conjuntura em que o governo e seus aliados no parlamento tentavam desqualificar essa militância, como parte da estratégia de guerras culturais, anteriormente citada.

O capital militante resulta de trajetórias de militância em movimentos sociais específicos, como no caso daqueles que defendem os direitos culturais. Trata-se de um tipo de capital  que é construído ao longo de uma trajetória de engajamento e ativismo.  Seu alcance está condicionado à abrangência geográfica do movimento, à inserção em múltiplas redes sociais e às conexões com movimentos similares (Palumbo, 2018, p. 89).

As críticas do público consultado aos expositores que representam entidades do setor cultural se devem justamente ao fato de que muitas vezes são atropelados pela excessiva politização do debate. O que, a essa altura, eleva a tensão entre o debate político e técnico durante as discussões:

 

– Acabam sendo tolhidos ou podados pela avalanche de questões meramente ideológicas.

– Ausência dos produtores culturais nas discussões.

– Algumas áreas são muito valorizadas e outras são totalmente ignoradas.

 

Há também críticas a uma baixa representação regional, o que pode ter sido favorecido pela escassez de recursos para a emissão de passagens áreas aos convidados para as audiências públicas da Comissão:

 

– Falta mais diversidade regional, pois os convidados são quase todos do Sudeste.

– Algumas regiões do Brasil são favorecidas, exatamente as mais ricas.

– Não há muita preocupação com a diversidade de manifestações culturais, especialmente das regiões mais carentes de incentivos públicos.

 

Além de trazer à tona a questão das desigualdades no âmbito cultural, as manifestações acima mencionadas, fazem-nos retomar as críticas de Rubim (2007) sobre a trajetória das políticas culturais brasileiras. Para o autor, uma das marcas dessa trajetória é a ausência de certas expressões e manifestações culturais na agenda oficial. Essa ausência, que também é observada pelos sujeitos da pesquisa, compromete a pluralidade e a integralidade dos direitos culturais (Santos, 1997; Pedro, 2011; Miranda, 2006; Gohn, 2005).

 

Atuação do Congresso Nacional e do Poder Executivo

 

Os participantes revelam clara noção do desmonte que está ocorrendo na área e avaliam que o Congresso Nacional é conivente. Por isso avaliam a instituição com nota 1 (36, 5%) e 2 (41,3%). Aqui, convém citar alguns trechos das respostas às questões abertas:

 

– O Congresso tem sido conivente com o desmonte do setor cultural.

– A tramitação dos projetos para o setor cultural é muito lenta, mostrando desinteresse político.

– O Congresso tem sido muito omisso no caso das políticas culturais.

– Os projetos relativos às políticas culturais não são priorizados na pauta de votações.

 

É oportuno destacar algumas marcas das respostas sobre a atuação do Congresso Nacional, expressas em termos como “omissão”, “conivência” e “falta de prioridade” para a agenda cultural. Tais visões remetem aos estudos que mostram o quanto a atuação e a agenda do Congresso são dominadas pelos interesses do Poder Executivo e pelas chamadas hard politics, ou seja, aquelas que fazem parte do elenco de prioridades e recebem maior atenção e mais recursos, como economia, saúde, previdência, trabalho e emprego (Miguel; Feitosa, 2009). Convém salientar mais um dado contextual: no ano de 2019, período de aplicação do questionário, a agenda da Câmara foi tomada pela primeira prioridade do governo Bolsonaro, a Reforma da Previdência, além de outros temas de natureza econômica, todos enquadrados na categoria de hard politics. A cultura, que se situa no âmbito da chamada soft politics, ficou totalmente relegada a segundo plano, inclusive na agenda do Congresso Nacional.

Em relação à atuação do Poder Executivo, predominam as avaliações que correspondem à nota 1 (36%) e 2 (36,5%). Ambas somadas atingem 72,5%. De fato, o posicionamento reflete um lugar de marginalização da cultura no âmbito do Estado brasileiro, cuja tônica tem sido a ausência e omissão no plano cultural (Rubim, 2007). Algumas das respostas abertas revelam a opinião dos participantes sobre esse tópico:

 

– O Governo atual desvalorizou todo o sistema de cultura ao extinguir o Ministério da Cultura.

– Vivemos um momento de retrocesso na visão do que é cultura e educação.

– Está havendo uma redução sistemática e intencional dos investimentos públicos em cultura.

– Está em curso um desmonte generalizado da cultura, da educação, da ciência e das artes.

– O atual cenário político brasileiro é de censura e de retrocesso nas políticas culturais.

 

É interessante observar que os participantes vão além do diagnóstico das ausências e omissões. Eles apontam a “desvalorização” da cultura, os “retrocessos” das políticas culturais e os “desmontes” das instituições do setor.  Isso reflete o desprezo do governo Bolsonaro pela cultura, considerada “coisa de esquerda” (Miguel, 2018).

Nessa perspectiva, o Estado, representado pelo referido governo, passa a atuar no âmbito cultural como um agente regulador para impedir a diversidade e promover maior hierarquização da cultura, impondo modelos culturais conservadores e exclusivamente alinhados a seu projeto político-ideológico. Dessa forma, torna-se também um agente de marginalização das expressões culturais, cujos valores não lhe agradam, promovendo mais exclusões e desigualdades culturais (Lopes, 2007; Marques, 2015).

 

Considerações finais

 

Este artigo pretendeu compreender a percepção de 30% do público presente nas audiências públicas da Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados em 2019. A análise levou em conta a importância daquele ano para a Comissão, que, em geral, não figura entre as mais disputadas na Câmara dos Deputados, seja em termos de disputa pela composição do colegiado, seja em relação à visibilidade na mídia.

Em 2019, excepcionalmente, o espaço da comissão foi amplamente disputado e divulgado na mídia (ainda que na maioria das vezes sem discussões profundas). Isso se deu em decorrência das ações de desmonte do setor por parte do governo Bolsonaro, com a extinção do Ministério da Cultura, aplicação de censura a temas identitários, principalmente ligados a minorias, nomeação de pessoas sem conhecimento do setor, entre outras questões. Tudo isso configurou uma clara disputa do que a perspectiva sociológica denomina como produção elaborada com intenção explícita de construção de sentido (Miranda, 2006).

A desconstrução do setor, em 2019, não carrega em seu bojo o extermínio da cultura, mas do sistema de cultura vigente. E isso foi determinante do funcionamento do colegiado, com apenas duas audiências públicas sobre projetos, sendo todo o resto dominado por disputas políticas. Essas questões foram percebidas pelo público participantes da pesquisa, que tendeu a participar de forma perene (com cerca de 30% indo pelo menos uma vez por mês; e 20%, uma vez a cada 15 dias). Esses dados mostram um interesse em acompanhar o cenário cultural em questão e a agenda de debates da Comissão de Cultura. Isso se confirma inclusive pelo tipo de público, formado por 60% de pessoas que compareceram aos debates motivadas por suas atividades profissionais ou pela militância no setor cultural.

Esse perfil dos participantes revela que a maioria acompanha os trabalhos da Comissão de Cultura com o intuito de influenciar a disputa pelo novo sistema de cultura — por meio dos parlamentares que atuam diretamente nas políticas discutidas pelo colegiado ou pelos representantes da sociedade civil com acesso a eles. Usando o enquadramento de Boaventura Souza Santos (1997), temos uma disputa entre o sistema progressista e emancipatório e o sistema nacionalista e autoritário de cultura. Convém ressaltar, mais uma vez, que se trata de um público bastante qualificado, com 46% de pós-graduados, com renda mensal entre 6 e 30 salários-mínimos.

As disputas políticas foram tão acirradas no âmbito da Comissão de Cultura em 2019 que influenciaram a percepção sobre a qualidade dos debates. Paralelamente, os deputados receberam avaliação regular, pois o público considerou que usavam as audiências mais para palanque político, com falas superficiais (em contraste com os técnicos) e sem interesse efetivo nas audiências, já que a frequência era baixa e os que compareciam também saiam de forma recorrente dos eventos em curso. Avalia-se aí que o público espera dos parlamentares uma atuação mais técnica e menos política. Ao que parece, os cidadãos consultados tendem a equiparar a atuação de técnicos e de parlamentares, sem levar em conta que as comissões também funcionam como espaços para a tomada de posições político-ideológicas pelos deputados. 

De qualquer forma, há que se destacar a importância da existência das audiências públicas em 2019, principalmente pelo local ter assumido um ponto de resistência para garantir a sobrevivência mesmo do setor. Várias audiências visavam somente trazer à tona o desmonte do setor cultural como um todo, na tentativa de constranger o avanço desse processo. Como foi o caso de audiências para defesa do patrimônio cultural, museus, diversidade religiosa, cultura LGBTQIA+, racismo estrutural, censura, apologia à ditadura e consciência negra. Todos esses temas foram atacados por políticas ou ausência total de parte do governo Bolsonaro. Ainda assim, houve audiências sobre projetos e políticas importantes que conseguiram ser discutidos naquele momento, como tráfico de bens culturais, criminalização da cultura do funk, situação dos artistas de rua, regulação de conteúdo audiovisual por demanda (CAvD) — que, após muita discussão, foi aprovado pela CCULT, e ainda no início de 2024, encontra-se em regime de urgência para votação em plenário. Além disso, houve discussões sobre Sistema Nacional de Cultura (SNC) e Plano Nacional de Cultura, que inexistiram na gestão do momento. Também se discutiu sobre os direitos autorais, um tema que perpassa vários governos e permanece sem solução. Ele quase foi a voto como parte do projeto sobre fake News, que não chegou a ser aprovado pelo Congresso.

O público participante da pesquisa demonstrou ter completa noção do desmonte que estava em curso do setor cultural, acreditando que o Congresso Nacional estava sendo conivente, avaliando-o com nota 1 (36%) e 2 (41%). Isso mostra que o público que se dispôs a acompanhar as audiências públicas da referida comissão estava majoritariamente tentando apoiar a defesa do setor cultural. De fato, a cultura não é tradicionalmente um tema prioritário do Congresso e nem do Estado, posto que ambos se dedicam mais aos temas das chamadas hard politics, como economia, previdência social, saúde e outras prioridades do Poder Executivo (Miguel; Feitosa, 2009).

Internamente, 2019 foi um dos anos de maior atividade para a Comissão de Cultura, com todas as reações parlamentares e sociais adquirindo repercussão no seu âmbito. A polêmica tomou tal proporção que houve uma sequência de secretários de Cultura, sem que ninguém permanecesse no cargo por muito tempo. Houve uma mobilização triangulada envolvendo a Comissão de Cultura, o público e a imprensa. A disputa tornou-se tão intensa e importante que defensores do governo chegaram a manifestar vontade de assumir a presidência do colegiado. Infelizmente, a pandemia de Covid-19 inviabilizou a instalação da comissão e a observação dos resultados da disputa de 2019. Considerando que a maioria dos conselhos de participação da cultura foi extinta, a avaliação da percepção do público, que acompanhou as audiências públicas promovidas pela Comissão de Cultura, torna-se ainda mais relevante.

Destacam-se ainda as percepções sobre a inoperância do Poder Executivo no sentido de propor políticas públicas culturais de forma democrática. Ao contrário disso, os participantes apontam “desvalorização” da cultura, “retrocessos” nos programas culturais e “desmontes” das instituições do setor.  Tais visões decorrem do empenho do governo Bolsonaro em descontinuar ações culturais consideradas esquerdistas, além de promover as chamadas “guerras culturais” (Miguel, 2018). Tal postura acentua as exclusões e desigualdades culturais (Lopes, 2007; Marques, 2015). Faltou, portanto, um projeto público de promoção da cultura, visto que a postura do governo de Jair Bolsonaro fugiu a qualquer modelo de classificação de políticas públicas culturais (Costa, 1997; Tavares, 2011; Lacerda, 2010; Sousa, 2019).

 

Referências

 

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APÊNDICE A – QUESTIONÁRIO UTILIZADO NA PESQUISA

 

1) Você participa das audiências públicas sobre cultura com que frequência?

(     ) Semanalmente; (     ) Quinzenalmente(     ) Mensalmente; (     ) Bimensalmente(     ) Trimestralmente; (     ) Semestralmente (     ) Eventualmente; (     ) É a primeira vez que participo

 

2)   O que motiva a participar das audiências?__________________________________________________________________________

 

3) De zero a 5, em termos gerais, como você avalia as audiências sobre cultura realizadas pela Câmara dos Deputados? (     ) Zero (    )  1  (     ) 2    (    ) 3  (    ) 4   (    )  5 Por quê? _____________________________________________________________________________________

 

4) De zero a 5, como você avalia a atuação dos deputados nas audiências sobre cultura realizadas pela Câmara dos Deputados? (     ) Zero (    )  1  (     ) 2    (    ) 3  (    ) 4   (    )  5 Por quê? _____________________________________________________________________________________

 

5) De zero a 5, como você avalia a atuação dos palestrantes nas audiências públicas sobre cultura realizadas pela Câmara dos Deputados? (     ) Zero (    )  1  (     ) 2    (    ) 3  (    ) 4   (    )  5 Por quê?_________________________________________________________________________________

 

6) De zero a 5, como você avalia a atuação dos representantes das entidades do setor cultural nas audiências públicas? (     ) Zero (    )  1  (     ) 2    (    ) 3  (    ) 4   (    )  5Por quê? _____________________________________________________________________________________

 

7)     De zero a 5, como você avalia o nível de esclarecimento dos debates sobre cultura: (     ) Zero (    )  1  (     ) 2    (    ) 3  (    ) 4   (    )  5

Por quê? _____________________________________________________________________________________

 

8)     De zero a 5, como você avalia a atuação do Congresso Nacional quanto às políticas culturais?

(     ) Zero (    )  1  (     ) 2    (    ) 3      (    ) 4   (    )  5 Por quê? _____________________________________________________________________________________

 

9) De zero a 5, como você avalia a atuação do Poder Executivo quanto às políticas culturais:

(     ) Zero (    )  1  (     ) 2    (    ) 3      (    ) 4   (    )  5 Por quê?___________________________________

 

DADOS DO RESPONDENTE: 

Idade: (     ) Até 20 anos; (     ) 21 a 30 anos;(     ) 31  40 anos; (     ) 41 a 50 anos(     ) 51 a 60 anos; (     ) Acima de 60 anos

Escolaridade completa: (     ) Ensino Fundamental; (     ) Ensino Médio(     ) Curso Superior ; (     ) Pós-Graduação

Renda Familiar: (     ) Até 2 salários-mínimos; (     ) De 3 a 5 salários-mínimos(     ) De 6 a 10 salários-mínimos; (     ) De 11 a 15 salários-mínimos  (     ) Mais de 15 salários-mínimos

Faz parte de alguma entidade cultural?

(    ) Sim            (   ) Não

Se respondeu SIM, favor informar qual: ____________________________________________________

 É filiado a partido político?

(    ) Sim            (   ) Não

Se respondeu SIM, favor informar a sigla do partido: ____________________________________

Estado onde reside – Sigla: __________

Espaço para comentários, críticas e sugestões: _______________________________________________

 

 

Recebido em: 19/01/2024.

Aceito em: 04/05/2024.

 

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n32.69149.p146-181

 

 

 



* Doutor em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), Brasil. Docente e pesquisador do Programa de Mestrado em Ciência Política do Centro de Formação da Câmara dos Deputados (CEFOR), Brasil. E-mail: antonibarros@gmail.com.

** Doutora em ciência política pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil. Docente e pesquisadora do Programa de Mestrado em Ciência Política do Centro de Formação da Câmara dos Deputados (CEFOR), Brasil. E-mail: malena.rodrigues@camara.leg.br.

[1] Esse Decreto foi revogado em 2023, no Governo do presidente Lula, por meio do Decreto 11.371 de 1º de janeiro de 2023.

[2] Aqui, entendemos capital no sentido de acúmulo de poder de um determinado setor ou área, conforme o conceito de Bourdieau (1986), aplicado às áreas econômica, social e cultural.

 

 

 

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Desenho de um círculo

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