UM VERDADEIRO CENÁRIO ÉTNICO EM MACEIÓ: sociabilidade urbana e arranjos culturais no bairro da Levada na Primeira República
A TRUE ETHNIC SCENARIO IN MACEIÓ: urban sociability and cultural arrangements in the Levada neighborhood during the First Republic
Ulisses Rafael *
Resumo
Este artigo explora as formas de interação social em espaços públicos da cidade de Maceió, em Alagoas, especificamente no bairro periférico da Levada, cuja população se formou a partir da passagem do século XIX para o século XX, por ex-escravizados, remanescentes africanos, homens e mulheres livres e pobres. Diante das dinâmicas cotidianas relacionadas ao trabalho e ao entretenimento, podemos pensá-lo como um verdadeiro cenário étnico. Procuramos explorar as formas de sociabilidades verificadas nas áreas públicas do bairro, sobretudo as sociabilidades das celebrações religiosas, espaço privilegiado para observação dos costumes e normas de comportamento público. Destacamos duas situações celebrativas: a festa de São Benedito e as homenagens à Santa Bárbara. Essas festas, realizadas pelas casas religiosas de matrizes africanas, atraiam muitas pessoas, tanto do bairro como de outras localidades. Elas ganhavam maior visibilidade quando organizadas por Chico Foguinho, liderança religiosa do bairro. Nas notícias jornalísticas, as festas eram frequentemente relatadas como fatos trágicos, anedóticos ou como denúncias feitas por vizinhos insatisfeitos. A interpretação se deu sobre matérias de jornais da época, particularmente o Jornal de Alagoas, principal órgão oposicionista, além das crônicas locais daquele período. Este artigo deriva da pesquisa de doutorado, iniciado nos anos 2000, cujo objetivo foi investigar a perseguição contra as casas de culto religioso, conhecidas, à época, como xangôs. A conclusão, conforme já verificada na tese (Rafael, 2004), é que a presença da população negra de Maceió sempre foi obliterada, não apenas por parte da imprensa, mas, sobretudo nos trabalhos de cunho acadêmico de períodos mais recentes.
Palavras-chave: Primeira República; sociabilidades urbanas; cenário étnico; celebrações afro-religiosas em Maceió.
Abstract
This article explores forms of social interaction in public spaces in the city of Maceió, Alagoas, specifically in the peripheral neighborhood of Levada whose population was formed, during the transition from the 19th to the 20th century, by ex-slaves, African remnants, and free and poor men and women. Given the daily dynamics related to work and entertainment, we can think of it as a true ethnic scenario. We seek to explore the forms of sociability observed in the public areas of the neighborhood, especially the sociabilities of religious celebrations, a privileged space for observing customs and public behavior norms. We highlight two celebratory situations: the feast of São Benedito and the tributes to Santa Bárbara. These celebrations, held by religious houses of African matrices, attracted many people, both from the neighborhood and from other locations. They gained greater visibility when organized by Chico Foguinho, a religious leader in the neighborhood. In journalistic news, the celebrations were often reported as tragic facts, anecdotes, or as complaints made by dissatisfied neighbors. This interpretation is based on newspaper materials of the time, particularly the Jornal de Alagoas, the main opposition organ, in addition to the local chronicles of that period. This article derives from doctoral research, started in the 2000s, whose objective was to investigate the persecution of religious worship houses, known at the time as xangôs. The conclusion, as already verified in the thesis (Rafael, 2004), is that the presence of the black population in Maceió has always been erased, not only by the press, but especially in academic works of more recent periods.
Keywords: First Republic; urban sociabilities; ethnic scenario; Afro-religious celebrations in Maceió.
Introdução
Este artigo busca refletir sobre as práticas culturais verificadas na Levada, bairro periférico da cidade de Maceió, nas primeiras décadas do Século XX. O período selecionado coincide com o marco inicial da Primeira República (1889 a1930), cuja importância sociológica advém do fato de que, conforme atestam inúmeros especialistas no assunto, “nunca em nenhum período anterior, tantas pessoas foram envolvidas de modo tão completo e tão rápido num processo dramático de transformação de seus hábitos cotidianos, suas convicções, seus modos de percepção e até de seus reflexos instintivos (Sevcenko, 1998, p. 7-8).
Trata-se, especificamente, de acompanhar algumas das expressões culturais mais sensíveis produzidas no interior daquele enclave étnico, assim chamado por reunir parcela significativa da população pobre e preta da sociedade maceioense em área recôndita da cidade. Estimulados pelos estudos sobre pós-emancipação, esta investigação se debruça sobre supostos “cenários étnicos” (Soares; Gomes; Farias, 2005, p. 44) maceioenses, mais especificamente sobre esse lugar de exclusão (Caús, 2020, p. 92), onde se concentrou parte considerável dos remanescentes de escravos naquele período decisivo da vida social brasileira representado pelo advento da República.
Nas primeiras décadas do século XX, as referências ao bairro da Levada, na crônica jornalística, apontam-no com a localidade onde se encontravam as ruas mais esconsas da cidade. A distância em relação ao centro da capital hoje seria considerada insignificante, embora no passado, pela dificuldade de acesso, situava o lugar como recôndito e perigoso.
Durante nossas pesquisas, localizamos diversas notícias sobre a realização dos cultos religiosos de origem africana em Maceió. Boa parte desse material consiste em denúncias contra as celebrações que aconteciam no terreiro de Chico Foguinho, uma das casas de xangô mais antigas de Maceió.
Diante do exposto, algumas questões despontam: É possível falarmos de microcomunidades” negras em Maceió? Quem seriam os homens e as mulheres que as compunham? Como viviam os agentes negros que agora tomamos como sujeitos deste estudo? E quais elementos poderíamos acionar para atestar a autonomia de enclaves negros na cidade de Maceió?
De modo geral, interessa-nos, pois, pensar o impacto das transformações sociais ocorridas durante os primeiros anos da chamada Primeira República em contextos mais afastados do centro político nacional, como em Alagoas, onde notadamente ex-escravizados e seus descendentes também experimentaram alterações significativas em suas dimensões de comportamentos e formas de sociabilidade, categorias sobre as quais realizaremos uma curta digressão.
A partir do século XIX, na corrente da expansão capitalista e da industrialização crescente ocorrida, sobretudo, entre os anos 1820 e 1900, cria-se um novo tipo de agregação urbana, a que Charles Dickens, em Tempos difíceis, chamou de “carbonópolis”, arquétipo das cidades industriais do ocidente (Dickens apud Mumford, 2004, p. 484). Em meio a tantas transformações, desponta toda uma tradição de pensamento social, voltada para o desenvolvimento de perspectivas sociológicas preocupadas com a descrição e interpretação desse fenômeno urbano. Entre as categorias básicas que despontam no debate sociológico da época e que se espraiam até nossos tempos, destaca-se o conceito básico de sociabilidade urbana. Sua gênese é reconstituída com propriedade pelo antropólogo Heitor Fruguli Jr. (2007), e encontra em Georg Simmel sua primeira formulação. Para este autor, a ideia de sociabilidade remete aos processos de interação microssociológicos ou de associação básica, entendidos como um “tipo ideal arquetípico” de toda socialização humana (Frúgoli Jr., 2007, p. 9).
A contribuição de Simmel se expande através do uso feito pela Escola de Chicago, particularmente nas abordagens eminentemente empíricas de autores como Robert Park e Louis Wirth. Park explora a ideia de segregação espacial que resulta na categoria de “regiões morais”, talvez sua maior contribuição ao debate sociológico, que é de particular interesse aqui. A categoria se encontra fortemente associada à ideia de lugar estigmatizado, com fronteiras bem definidas e normalmente representado pelos moradores da cidade como uma área de perdição e vício. Segundo esse mesmo autor, as regiões morais representariam pequenos mundos distintos que, no espaço urbano, tal qual um mosaico, se tocariam, mas não se interpenetrariam (Park, 1987, p. 62). Quanto a Louis Wirth, continuador nos Estados Unidos da tradição germânica de estudos urbanos, sua definição sociológica de cidade preza por elementos relacionados aos seus modos de vida. Para ele, a urbanização diz respeito às alterações dos modos de vida “reconhecidas por aqueles que sucumbiram perante as influências da cidade, graças ao poder que as suas instituições e personalidades exercem através dos meios de comunicação e de transportes (Wirth, 1997, p. 48). Wirth também desenvolve importante estudo sobre guetos americanos, formado por imigrantes judeus oriundos do leste europeu no pós-guerra. Esses imigrantes constituíram, nos Estados Unidos, comunidades regulares baseadas em princípios e valores decorrentes de sua condição originária (Fruguli Jr., 2007, p. 31-32).
Para muitos autores, o termo gueto, cunhado por Wirth, talvez soe exagerado, sendo mais apropriado o conceito de enclave étnico, uma vez que os judeus não sofreram no país qualquer tipo de segregação. A ideia de enclave é de particular interesse para nós, tendo recebido no Brasil uma formulação mais sistemática, que advém da contribuição de Sandra Pesavento (1999). Ela denomina assim os espaços segregados, degradados e marginalizados que se situam lado a lado com os chamados espaços da “cidade da ordem” (Pesavento, 1999). Trata-se, na visão da autora, de lugares de exclusão, cuja característica populacional e habitacional é formada por segmentos predominantemente negros que residem nos cinturões de miséria encontrados nas bordas das cidades. Essa ideia de enclave se coaduna com a de “cenário étnico”, categoria desenvolvida por Flávio Gomes (2005) para se referir “aos arranjos sociais construídos no universo urbano da escravidão africana do Rio de Janeiro” e que inspiram o título deste artigo (Gomes, 2005, p. 27).
Por fim, para o tipo de reflexão microssociológica aqui adotado, que privilegia a descrição etnográfica das mediações simbólicas presentes nos processos de interações sociais e comportamentos corporais em lugares públicos, adotaremos também a categoria de “usos da rua” de Fraya Frehse (2009), cuja noção conota uma conjugação recorrente de comportamentos corporais e formas de sociabilidade que se verificam em lugares públicos (Frehse, 2009, p. 154).
Propomo-nos a reunir informações relacionadas à população negra estabelecida na Levada, bairro onde esteve concentrado um grande percentual de homens e mulheres remanescentes de africanos, cujas dinâmicas religiosas e de entretenimento permitem pensar no conjunto como um “dispositivo aglutinador” (Farias; Soares; Gomes, 2006, p. 97) da presença étnica, com traços identificáveis a partir da própria localidade onde são produzidos.
Embora o tema da negritude, durante muito tempo, tenha sido um assunto subestimado e até esquecido nos meios intelectuais alagoanos, como nos faz lembrar o historiador Dirceu Lindoso (1983), o fato é que, nos últimos anos, tem surgido um interesse renovado entre os pesquisadores locais pelo resgate da memória dessa presença africana no Estado, particularmente em Maceió, e por aspectos variados da cultura negra alagoana. Trata-se de estudos sobre uma suposta Maceió afro-alagoana (Bezerra, 2014; Cavalcanti; Barros, 2007), mas nos quais os marcadores étnicos dessa presença se encontrariam histórica e geograficamente dispersos em suas análises.
Segundo o Almanaque do Estado de Alagoas de 1891, a capital era formada basicamente por três bairros: o de Maceió, onde se localizava o epicentro político e administrativo da Capital, com a sede oficial do Governo, os principais prédios públicos, como a Câmara dos Deputados, além dos principais estabelecimentos comerciais. O bairro do Jaraguá, onde se concentravam os equipamentos necessários à realização do comércio de exportação e importação com seus trapiches, e o bairro da Levada ou Ponta Grossa, onde se situava o grosso da população formada por ex-escravizados, africanos livres e remanescentes pobres de africanos.
Além dessa divisão oficial que separava as localidades em função das atividades produtivas e do padrão ocupacional, outro tipo de classificação que vamos encontrar dentro da geografia encantada na cidade de Maceió, diz respeito a uma clara divisão entre os espaços marinhos das praias e os espaços lacustres situados à beira do complexo lagunar Mundaú-Manguaba (Bezerra, 2014, p. 78-80).
Raquel Rocha (2018) explora mais a fundo as metáforas aquáticas contidas nas representações da paisagem natural maceioense e o reflexo dessas imagens sobre a cultura do isolamento, que ela identificou como importante matriz para compreender a identidade local. As considerações dessa antropóloga alagoana sobre a importância das lagoas na constituição da geografia humana maceioense nos ajudam a compreender um dos motivos, pelos quais, boa parte da população negra e pobre da capital se concentrou nessa região. As retóricas sobre o lugar variam desde a ênfase em aspectos relacionados ao lazer, narrativas mais comuns nos primeiros anos do século XX, até o “imaginário mórbido e adoecido” (Rocha, 2018, p. 127), que decorre das condições de insalubridade características da região de “pântanos, mangues, charcos, alagadiços, brejos e toda variação de terreno mole, enlameado, pouco sólido” com seus exércitos de mosquitos (Rocha, 2018, p. 127). Em meio a tais representações, a autora ainda recupera uma imagem construída acerca da Lagoa Mundaú, que ilustra bem sua utilidade para esta análise:
Essa sugestiva imagem da lama, associada à lagoa e por extensão também ao sururu, que é retirado do fundo da lagoa, é bastante corriqueira. Ela aparece num estudo sobre o folclore negro em Alagoas de Abelardo Duarte (1975), quando ele recolhe exemplos do adagiário afro-alagoano: “...um provérbio autenticamente alagoano, legitimamente nosso, na forma e na substância (...) de larguíssimo uso e de (...) fácil aplicação: negro e lama de sururu se parecem (Duarte apud Rocha, 2018, p. 139).
Chico Foguinho, um homem de seu tempo
Durante nossas pesquisas em Alagoas, localizamos diversas notícias sobre a realização dos cultos religiosos de origem africana em Maceió. Boa parte desse material consiste em denúncias contra as celebrações que aconteciam no terreiro de Chico Foguinho, situado na rua Dias Cabral. No passado, essa rua era conhecida como rua do Reguinho, uma referência, talvez, ao que restou do canal da Levada que atravessava o bairro, ligando a Lagoa Mundaú ao mar[1]. Trata-se de uma das casas de xangô mais antigas de Maceió.
Assim, se quisermos reconstituir as dinâmicas culturais no bairro da Levada, que aqui estamos considerando como verdadeiro cenário étnico (Gomes, 2005), temos que nos debruçar inevitavelmente sobre a figura de Francisco Foguinho, cuja atuação, naquele contexto, foi decisiva para a emergência e manutenção das práticas culturais do lugar; muito embora sua biografia tenha sido negligenciada, como a de tantos homens e mulheres pretos e pobres daquela região periférica de Maceió.
A começar com a própria alcunha pela qual o sacerdote da Casa de Santa Bárbara era conhecido localmente. Tudo nos faz acreditar que o apelido advém do fato de ele ser filho de Agostinho Fogueteiro, cujo nome aparece no Almanaque do Estado de Alagoas de 1894. Já no Almanak Laermert, de 1909, parece haver uma confusão entre duas pessoas com o mesmo nome e profissão: Agostinho da Silva Moraes, residente ou com o comércio situado à rua dos Fogueteiros, e Agostinho Costa, residente na Levada, mesmo bairro onde residia o suposto filho.
A possibilidade do vínculo familiar é reforçada pelo livro Festa dos martírios, de Virgílio Guedes, publicado a primeira vez em 1931. A obra reconstitui um dos principais acontecimentos religiosos de Maceió do começo de século:
Que doce simplicidade
Daquela gente de outrora e agora
Como nos apraz rever e recordar essas meigas velharias
[...]
O Antonio Assignalado...
O Prudêncio e o Sabino
O Saturnino...
O Antonio Cotó,
A velha Sinhá Rosa do Laurindo....
Iam abrindo,
a gengibirra que espocava
como as bombas dos foguetes
do seu Agostinho Fogueteiro,
o pai do Chico, tão pretinho,
que sabia ‘tentear’ o chapeuzinho’
para se tornar mais elegante...
E criticar
a todo mundo, a todo instante (Guedes, 1981, p. 11).
Aqui, desponta um marcador de diferença que se aplicaria, a princípio, a todos os implicados no parentesco linear, ainda mais se tratando de uma relação pai-filho. Aliás, segundo Antônio Sérgio Guimarães, “a classificação das pessoas por cor é orientada por um discurso sobre qualidades, atitudes e essências transmitidas por sangue” e, portanto, trata-se de uma categoria racial, “pois quando se classificam as pessoas como negros, mulatos ou pardos é a ideia de raça que orienta essa forma de classificação” (Guimarães, 2008, p. 76-77).
Na sequência, as expressões “tentear”, posta entre aspas, e chapeuzinho, no diminutivo, não deixam margem para dúvidas quanto a seu sentido jocoso. Pesquisa rápida e aleatória do termo na literatura de língua portuguesa demonstra sua associação a situações chistosas e a personagens anedóticos (Queiroz, [1900]; Barreto, 1997). O chapéu foi um símbolo de distinção na época dos coronéis, com seus ternos de linho e chapéus panamás. Era o primeiro aspecto da aparência a ser notado e revelava a posição social de quem o possuía ou portava (Leite, 1996). Para alguém de condição social mais baixa, filho de um fogueteiro, o uso do “chapeuzinho” produz efeito de chacota.
Essa será a tônica da crônica local que acompanhará as referências a Chico Foguinho na imprensa, cujo apelido, também no diminutivo, pode ser indicativo de conduta sexual imprópria para os padrões da época. Sob esse aspecto, convém lembrar as assertivas de Michel S. Kimmel (1998), na análise da emergência histórica do ideal hegemônico de masculinidade nos Estados Unidos, desde o século XVIII até os dias atuais, o qual demonstra o modo como versões de masculinidades subalternas foram desacreditadas ao longo do tempo, inclusive, a de homens negros. O autor afirma que a masculinidade é uma construção que introduz seus agentes em relações de poder. No caso americano, particularmente, “os escravos negros eram vistos como homens dependentes e indefesos, incapazes de defender as suas próprias mulheres e crianças, incapazes de sustentar uma família e completamente “escravos” de seus próprios desejos carnais e da violência bestial” (Kimmel, 1998, p. 114).
Não seria forçoso afirmar que, numa cultura patriarcal como a brasileira, classificações como essas estavam profundamente arraigadas na nossa sociedade, inclusive em período anterior à Proclamação da República. Daniel Vital dos Santos Silva, por exemplo, faz menção ao uso, nos jornais baianos da segunda metade do século XIX, de diminutivos para se referir pejorativamente a “homens que tinham afeto por outros homens” (Silva, 2015, p. 23).
Voltando à figura de Chico Foguinho, os dados biográficos que dispomos sobre essa liderança religiosa são muito escassos para sustentar qualquer argumento acerca de sua suposta homossexualidade. Inclusive, o assunto sempre pareceu estar envolvido em uma aura de proibição e negação na crônica maceioense da época, a ponto, por exemplo, de se admitir qualquer tipo de acusação mútua entre oponentes, até mesmo aquele esforço de diabolização que associava o nome do então governador Euclides Malta e seus correligionários, como o próprio Chico Foguinho, ao ídolo com chifres, mas nunca, qualquer tipo de suspeita sobre a suposta conduta sexual desviante dos contendores.
Nunca é demais lembrar o papel desempenhado pela antropóloga americana Ruth Landes. Em 1938, ela aportou na cidade de Salvador para realizar um trabalho pioneiro sobre a força do matriarcado e a presença dos homossexuais masculinos nos cultos afro-baianos. O resultado da investigação, intitulado Cidade das mulheres, seria publicado em inglês em 1947 e somente traduzido para o português em 1967. No entanto, antes disso, já havia atraído contra si a ira de Arthur Ramos e Melville Herskovitz por conta do fato de se tratar de uma mulher atuando num campo predominantemente masculino, pela ênfase emprestada ao tema das relações raciais, e também pela importância dada ao papel que mulheres desempenhavam nos terreiros de candomblé da Bahia (Corrêa, 2000). Segundo Mariza Corrêa, o principal motivo da hostilidade dos dois pesquisadores para com a pesquisadora americana consistiu, principalmente, na “constatação, feita por Landes, sobre a importância da presença de homossexuais no campo das religiões afro-brasileiras” (Corrêa, 2000, p. 242).
As festas religiosas da Levada
Se quisermos destacar a atuação de Chico Foguinho no contexto das celebrações religiosas maceioenses, precisamos nos debruçar sobre a festa de Santa Bárbara. Ela se situava na fronteira entre duas confissões, a católica e a de presença africana. A parte oficial acontecia nos primeiros dias do mês de dezembro, com a realização de missa pela manhã e, à noite, com “ladainha, leilão e fogos de artifício” (Festa, 1907). Embora as celebrações se concentrassem em torno da capela de São Benedito, um templo de menor expressão situado em área mais afastada do centro da cidade, as homenagens à santa mobilizavam parcela significativa da população da capital. A visibilidade e a centralidade dessa festa religiosa em Maceió foi objeto de análise feita pela professora Irinéia Santos. No artigo De quilombos e de xangôs (2016), a autora informa que foi por volta da passagem entre os séculos XIX e XX que a denominação “dança de Santa Bárbara” foi sendo substituída por “xangô”, para se referir aos cultos de matriz africana em Maceió (Santos, 2016, p. 103).[2]
As celebrações comumente denunciadas eram invariavelmente as que homenageavam Santa Bárbara, cujas comemorações apareceriam na imprensa maceioense em épocas distintas do ano, o que nos faz pensar que a denominação era uma forma generalizada para os cultos religiosos de matrizes africanas. Apesar do viés sensacionalista, uma dessas reportagens nos permite realizar uma incursão pelo interior do terreiro de Chico Foguinho, talvez um tipo de casa de zungu[3], embora o termo não tenha sido utilizado pelo jornalista alagoano:
Ante-hontem [04/02/1904], eram 10 horas do dia quando o bonde da companhia circular foi atingido, na praça Deodoro por um rojão que partia da entrada da rua Dias Cabral, antiga do Reguinho. O nosso repórter para alli se dirigiu imediatamente e teve que passar sob os arcos de flores e folhas até á casa onde entrou parte da multidão que se acotovelava, carregando uma charola com o vulto mignon de uma santa que, na algaravia africana dos influentes da tal festa, era a Santa Bárbara. Mas isto não é tudo, porque o nosso representante lutou com dificuldades para entrar no recinto, onde a santa ficou em exposição. Afinal conseguiu falar com Chico Foguinho, que se lhe apresentou descalço, em mangas de camisa, e disse que não era possível dar entrada, pois o santo estava lá dentro falando com o mestre Adolpho, pai da Bahia, e enquanto mestre Adolpho não falasse, ninguém poderia entrar. Fora, o povo se aglomerava, e em gritos, dava vivo a Santa Bárbara. Chico Foguinho trepou-se num banco e fez um discurso, com que a turba exaltou-se, havendo um momento de simpatia ao fanatismo. Depois, a reunião foi dispersando, e o nosso representante pôde entrar no recinto, sendo recebido com zumbaias de adufos e danças macabras, nas quais uma crioula nova fez tais piruetas que abateu-se estafada no solo. Diversas africanas velhas, ornadas de rosários e colares de ouro, acudiram a limpar o rosto da pretinha com alvas toalhas rendadas. A cena terminou numa sala contígua, onde a obsedada ficou deitada n’um catre coberto de cocha encarnada. O nosso repórter teve que provar uma beberagem travosa, que lhe deu tia Maria, africana chefe [...] O nosso repórter estava assediado neste momento por uma turma de negros de carapuças vermelhas, dando assim um aspecto do negus manelik. Foi preciso pedir licença para sair entrançando-se na turbamulta dos assistentes; mas lhe estava destinado um martírio. Era a manifestação promovida por Chico Foguinho. Teve de assistir ao sacrifício do Deus que veio embrulhado e ficou em exposição para a noite. A pracinha e parte da rua iluminada à noite, houve danças a moda do rito e muita concorrência, atraída por fogos artificiais, balões, etc. (Bárbara, 1904, p. 2)
Curioso notar que um dos motivos mais costumeiros das queixas dos vizinhos contra as celebrações que aconteciam na casa de Chico Foguinho era o barulho provocado pelos instrumentos utilizados no culto e pelo entusiasmo com o qual os devotos ardorosos se atiravam nas comemorações, conforme denúncia publicada no jornal A Tribuna:
Caro amigo e Sr. Cel. José Gatto. – Os habitantes das ruas Barão de Maceió e Dias Cabral pedem-nos para que leve ao conhecimento de V. Sa. o desgosto que eles sentem, apesar de serem bons católicos, de não poderem comungar na mesma taça, com os ardorosos e muito entusiastas devotos de Santa Bárbara. Os reclamantes têm a alegar não concordarem com o rito dessa igreja, pois as festas que ela promove são abrilhantadas por uma orquestração de adufos, chocalhos e latas que ferem o tímpano da humanidade todo um dia e toda uma noite quase frequentemente.
Acontece que o santo entra quase sempre na cabeça dos crentes e os incréus, que são os reclamantes, têm de sofrer incômodos pela alta recreação dos devotos.
Sem outro assumpto, envio a V. Sa. com os meus respeitos, o agradecimento unânime de todos quantos fazem votos nas ruas Dias Cabral e Barão de Maceió, por sua felicidade pessoal (Maciel, 1903, p. 2).
Trata-se, portanto, de uma denúncia que mira uma celebração religiosa, a festa de Santa Bárbara, e oferece pistas valiosas sobre atividade concomitante realizada no interior do terreiro e de caráter mais profana, talvez um folguedo, o maracatu, sobre o qual Chico Foguinho também tinha responsabilidade. De todo modo, o fato é que os apelos ao comissário, em 1903, não devem ter surtido efeito, pois três anos depois, outra denúncia aparece noutro jornal maceioense, o Gutemberg reclamando as mesmas providências:
Prende-se o assunto desta carta que tenho a honra de vos dirigir e para o qual vos peço publicidade no vosso conceituado jornal a um fato muito deprimente para uma cidade que se diz civilizada[4]. Realiza-se três vezes na semana em uma casa sita à Praça Deodoro a dança africana conhecida por xangô que é, como se diz, um deus me acabe. Tem se desenrolado casos ali que nos envergonham, pois como sabeis, a Praça Deodoro é quase no seio da capital. Há poucos dias, ilustrados redatores, deu o santo na cabeça de um dançarino que foi uma coisa espalhafatosa. O santo tanto aperreou o rapaz que ele viu-se obrigado a galgar o telhado da referida casa com dois lampiões e, enquanto fazia suas manobras lá por cima, em baixo o pessoal cantava...
Quando o manobrista do telhado desceu foi furioso, resultando agarrar um cidadão que, ao longe, presenciava o caso, e decepar-lhe o nariz com um golpe de navalha. E em sangue terminou o xangô.
Enviando-vos a presente carta, peço providências as dignas autoridades da capital no sentido de proibirem esses escândalos que têm obrigado a diversos cavalheiros transferirem suas residências da Praça Deodoro (Cruzes, 1906, p. 2).
Por esse tipo de escândalo é que muitas das práticas realizadas no interior dessas casas de culto de origem africana eram consideradas bárbaras. O argumento em prol da civilização, talvez, também tenha sido um dos motivos pelos quais Chico Foguinho precisou sair das imediações do Teatro Deodoro, construção incluída no rol das reformas urbanas implementadas pelo governador Euclides Malta. O local escolhido para as novas instalações de sua casa foi a Rua Santa Cruz, antiga do Sopapo, umas das mais “esconsas do bairro da Levada” (Bruxaria, 1912, p. 1).
Por fim, o nome de Chico Foguinho também irá aparecer com mais frequência nos noticiários alagoanos em razão das relações com Euclides Malta, acusado de buscar proteção nos terreiros de Maceió para se manter à frente do executivo alagoano por mais tempo. O cronista Edu Blygher conta que o próprio Euclides Malta esteve presente na inauguração do novo terreiro. Na ocasião, ele teria recebido a comenda de papa do xangô alagoano. Essa comenda seria posteriormente utilizada por seus oponentes para execrá-lo na acirrada campanha eleitoral entre 1911 e 1912, que decidiria sua substituição no executivo. Blygher (1951) se apresenta como testemunha ocular da visita:
Muita gente desconhece a razão por que chamavam de Lebás, os partidários da política do Euclides [...] Chico Foguinho, o pioneiro dessa seita entre nós, nos primeiros passos para a sua constituição foi ao Palácio, acompanhado dos seus irmãos Japyassu, Cesário Thompsom, Chico de Teça e vários outros crentes, no número dos quais, mais tarde, se filiaram muitos doutores, comerciantes e senhoras de alto coturno social e convidaram o Governador, para honrar com a sua presença, a sessão inicial dos ofícios inaugurais do culto aludido. Euclides, dentro do seu velho princípio, em virtude do qual, melhor seria estar bem com todos, do que ter alguém ou alguma coisa que lhe pudesse fazer algum mal, aceitou o convite e lá se foi para a tal inauguração do Xangô do Foguinho [...].
Em lá chegando, Japyassu, como que introdutor diplomático e palavra passada com a irmandade, aclamou o seu chefão Euclides, como representante máximo de Deus Leba, ou seja, o Papa do Xangô alagoano. Euclides meio embaraçado com a surpresa, recebeu, todavia, aquela honraria, como uma simples palhaçada e com sua proverbial bondade e indiferença a uns tantos preconceitos sociais, dentro sempre do seu inseparável princípio já anunciado [...] submeteu-se ao ‘Beija mão dos fiéis’, coroou os santos, desde o maior ao menor e ao terminar toda essa cerimônia ritual, ao retirar-se, chamou Chico Foguinho e toda a corja macumbeira e disse-lhes: Bem, está tudo certo e faço votos pela felicidade de todos vocês, mas eu os advirto de que, acima desse tal de papado está o meu poder secular. Em caso, pois de conflito entre os dois, podem ficar certos, o papa de vocês desaparece, para ficar o governador zelando pelo bem estar do povo que governa. E, outrossim, declaro, ainda que para evitar massadas e nova visita ao templo xangoriano, como papa não devo andar muito a mostra, de modo que, sem arredar o pé do vaticano farei de lá, tudo que julgar necessário aos interesses de vocês. E retirou-se com grande séquito de papalinos. Pouco tempo depois, a imprensa meteu o pau na macumba de Foguinho, denunciando à polícia, fatos graves cometidos pela sua gente, que estava a extorquir dinheiro do povo, para descasar e arranjar noivo, etc., com chá de pedaço de frauda de camisa ou de ceroula. Tudo numa exploração terrível e abuso de ignorância da nossa população. O pânico estabeleceu-se, desde logo, por toda a cidade e o papa teve que intervir, baixando uma bula e caso não fosse obedecida, como na bula se ordenava, a polícia fechá-lo-ia (Blygher, 1951, p. 12-14).
Talvez, por conta dessa proximidade e da proteção que desfrutava junto às principais autoridades da capital, entre elas o Governador Euclides Malta, Chico Foguinho sempre escapou dos constrangimentos causados pela polícia. Durante o período em que a família Malta esteve à frente do executivo, pode-se afirmar que, de um modo geral, os terreiros maceioenses foram beneficiados pela atitude mais liberal da família do governador, fato constatável pela diminuição de ações repressivas contra a religião de origem africana durante a era dos Maltas.
O ataque sofrido pelos pais e filhos de santo no episódio que ficou conhecido como “Operação Xangô” em 1912, curiosamente não contou com a participação dos órgãos oficiais de controle e repressão do Estado. Foi uma iniciativa da própria população revoltada contra os desmandos do governador, cuja permanência prolongada no poder era atribuída à intervenção mágica dos pais de santo que trabalhavam noite e dia para livrá-lo dos inimigos.
A sublevação foi capitaneada pela Liga dos Republicanos Combatentes, misto de associação civil e milícia paramilitar criada para servir de braço armado da campanha de Clodoaldo da Fonseca, candidato oposicionista do Partido Republicano Alagoano. Os objetos que sobreviveram à invasão das antigas casas de culto foram conduzidos e exibidos na antiga rua do Sopapo, onde se situava a sede da Liga e a residência do seu presidente, Manoel Luiz da Paz, conhecido pelo modo truculento como tratava seus desafetos, inclusive durante a campanha de Canudos, conflito onde perderia uma perna.
Contudo, além da divergência partidária que colocou antigos companheiros em lados opostos da disputa eleitoral, e dos conflitos de credo, os moradores daquele complexo conjunto de relações étnico-raciais também se enfrentavam noutras arenas políticas não menos relevantes, envolvendo os espaços de produção cultural, assunto do próximo tópico.
Além do aspecto sagrado, a Levada também era conhecido pela presença de uma grande variedade de expressões culturais populares, frequentemente noticiada pelos jornais locais nas primeiras décadas do século XX, principalmente no carnaval, quando o bairro despejava nas ruas centrais da cidade todo um “exército de bobagens” (Máscaras, 1901, p. 2).
A Levada era o epicentro da alegria e mote privilegiado das colunas carnavalescas dos jornais, que descreviam jocosamente o estoque cultural do bairro. Os termos pejorativos utilizados na imprensa para se referir aos moradores do local e às suas agremiações são reveladores da existência de um código de classificação racial que estabelecia posições e lugares na sociedade, tarefa assumida, prioritariamente, pelos jornalistas maceioenses. Algumas menções abusam de expressões depreciativas. O marcador de diferença, pautado na cor, também está presente nas denominações dos clubes carnavalescos, as quais parecem incorporar a tendência mais comumente encontrada nos jornais. Exemplo disso é a nota do jornal A Tribuna:
Da Levada, me consta que vem um bando de clubes: Clube Pretinho, Clube Cor de Canela, Clube Roxinho, Clube Caboclo e muitas outras novidades atraentes, como têm saído daquelas bandas em outras épocas. Aquilo é que é gente: ao meio dia ganha a rua e não há sol, nem poeira, nem suor, que a empate. À noite recolhe-se à casa dizendo: – Diverti uma porção (Máscaras, 1901, p. 2).
Entre as atrações, mesmo quando o marcador das diferenças não faz referência direta à raça, a própria origem africana do folguedo é indicadora da condição dos seus integrantes, como no caso dos indefectíveis maracatus, dos cordões de quilombola, dos blocos Cabinda de Ouro e das baianas com seus ritmos africanos tirados dos atabaques, adufos, chocalhos e latas, incomodando tanto o sossego dos vizinhos, como vimos acima.
Além de ser afamado pai de santo, com inserção nos mais altos circuitos da política maceioense, Chico Foguinho também era reconhecido na imprensa local como importante mestre de maracatu, conforme atesta a seguinte nota do jornal oposicionista Gutemberg:
Que linda novidade! A rua do Reguinho vai se enfestonar nos três dias gordos. Haverá para dar passagem aos aguerridos festejadores do incomparável deus Momo. Haverá maracatu constando também que uma banda de música contratada tocará durante os dias sem par no Carnaval! Para isto está a testa deste festival em projeto o Máximo Chico Foguinho, que sobre ser pai de santo, tornou-se agora pai do Carnaval! Para frente! Maracatu êh! Eh, Eh! Maracatu, ah! Ah! Ah!... (Carnaval, 1911, p. 1).
A nota do jornal ainda fala de outras modalidades que se apresentaram no carnaval daquele ano de 1911, como as Lindas Baianas e as Africanas, também da rua do Reguinho; as Caboclinhas, os “Morcegos adoráveis e os Republicanos! Haja festa e bizarria!” (Carnaval, 1911, p. 11).
Dada a importância adquirida por Chico Foguinho naquele espaço de produção cultural, não seria difícil imaginar a antipatia, e até a hostilidade que atraiu contra si, ainda mais tendo se aliado ao Leba das Alagoas, que era como o governador Euclides Malta costumava ser chamado pelos seus detratores. Contudo, não se tem notícias de enfrentamentos envolvendo seu grupo com os de outras localidades.
Cenários silenciados
Durante o período em que foi governador do Estado, Euclides Malta, que já era acusado pelos seus oponentes de manter estreitas relações com as casas de culto afro na capital, transformou a Praça dos Martírios em referência territorial decisiva para manifestações culturais locais. Dentre os vários blocos e grupos carnavalescos que se apresentavam ali, destaca-se a presença das africanas, baianas, dos caboclinhos e das cambindas — outro nome pelo qual os maracatus de Alagoas eram mais conhecidos (Brandão, 1982). No período carnavalesco, a Praça dos Martírios “era convertida em palco armado, onde dançava a tia Marcelina, sob o comando do Chico Foguinho e João Catharina para deliciar suas vistas pespicuas e seu coração de pai alegre! E essas danças eram novas pedras do edifício da sua grandeza, por muita propensão que ele sempre teve para os negros” (Prato, 1912, p. 1).
Contudo, no carnaval de 1912, quando os terreiros de xangô já tinham sido defenestrados do cenário da cidade, uma nova configuração também irá se abater sobre as expressões culturais de matrizes africanas associadas àquelas casas de culto religioso. Durante a realização dos festejos carnavalescos, que aconteceria algumas semanas depois do fatídico 02 de fevereiro de 1912, data em que aconteceu a chamada Operação Xangô, também conhecida como Quebra dos xangôs, já se fez sentir a ausência dos cordões, blocos e clubes de negros que, naquele ano, desapareceram da programação oficial. Aliás, a realização da festa, naquele ano de 1912, fora transferida para a Praça Deodoro, outro espaço bastante representativo dos novos tempos políticos em Alagoas e no Brasil.
A centralidade adquirida pelo lugar remontava às reformas implementadas pelo próprio Euclides Malta (1906-1909). A presença ali da estátua equestre do Marechal das Alagoas reforçava o aspecto simbólico e ideológico da mudança. Não é por acaso, talvez, que Chico Foguinho precisou se retirar da rua do Reguinho, onde se situava seu terreiro, área que depois das reformas urbanas estava “quase no seio da capital”, (Cruzes, 1906, p. 105). Assim sendo, o carnaval de 1912 em Alagoas e a mudança do local de apresentação dos grupos carnavalescos irão representar o fim de uma época indesejável, marcada pela presença longeva das oligarquias, mas que leva de roldão um conjunto de ricas manifestações populares de origem africana.
Considerações finais
O bairro da Levada como demonstrado, tornou-se, nas primeiras décadas do século XX, objeto de inúmeras apreciações na crônica alagoana, na maior parte das vezes, para se referir a episódios que, de acordo com a forma de tratamento, comprometiam a idoneidade de seus moradores. Trata-se, antes de tudo, de notícias acerca das condições de insalubridade do lugar, aspecto que, segundo a crônica local, concorria para tornar a região “o paraíso da sujeira” (Pedrosa, 1998, p. 122). Em seguida, a má fama do bairro decorria também das ocorrências policiais que, quando verificadas na Levada, ganhavam tons no noticiário local que faziam da violência ali ocorrida um acontecimento supostamente mais trágico. Por fim, destaca-se a ênfase sobre as celebrações e folguedos, os quais, segundo A Tribuna, tornavam o bairro “incontestavelmente, o mais fértil nas bobagens e futilidade com que o carnaval nos delicia” (Boi, 1904, p. 2). Sob esse aspecto, os jornais destacam a grande profusão de clubes recreativos e blocos carnavalescos, denominados pela crônica local como “mascarados”, como o Clube dos Morcegos, presença cativa nos carnavais de Maceió nas primeiras décadas do século XX e que era patrocinado pela Liga dos Republicanos Combatentes, órgão responsável pela devassa contra os terreiros de Maceió. E não era só isso, o bairro abrigava naus catarinetas para apresentação dos fandangos, além dos “indefectíveis e detestáveis maracatus” (Gutemberg, 1973, p. 163).
Nesse universo festivo, destaca-se a figura de Chico Foguinho, misto de mediador cultural e liderança religiosa do terreiro de Santa Bárbara, situado na antiga rua do Reguinho, cujas festas estrondosas já tinham sido objeto de inúmeras denúncias nos jornais de Maceió. Aliás, segundo Duarte (1974), a Levada era um dos lugares preferidos para o funcionamento dos terreiros pelo fato de se encontrar em região mais afastada da cidade.
Além da ligação com as religiões afro-alagoanas, Chico Foguinho também expandiu sua influência para o catolicismo popular. Ele era o responsável pela organização de uma das principais festas ocorridas na região, a Festa de São Benedito. Essa festa atraía uma grande gama de devotos.
Por conta, talvez, de toda essa visibilidade, Chico Foguinho se tornou um dos principais alvos dos desafetos políticos de Euclides Malta. Ele foi governador de Alagoas por quase 12 anos, ao final dos quais sofreu sua pior derrocada política, quando foi obrigado a fugir pelos fundos do Palácio dos Martírios, sede oficial do Executivo, para buscar abrigo no Recife e de lá partir de navio para o Rio de Janeiro. Durante o período em que esteve afastado, seus correligionários sofreram toda sorte de violência, principalmente os integrantes das religiões de matrizes africanas cujas casas foram invadidas e destruídas.
Além das agressões físicas, Chico Foguinho, que se dizia próximo do Governador destituído, foi alvo de verdadeira campanha difamatória. Isso incluiu acusações sobre seu comportamento sexual, embora os termos, como era comum na época, apenas insinuassem uma conduta supostamente transgressora.
No rastro dessa perseguição, os cultos de matrizes africanas quase desapareceram. Passaram a funcionar de forma discreta para escaparem da sanha dos inimigos políticos, que continuavam varejando terreiros por muitos anos depois do Quebra de 1912. O conjunto de práticas culturais associadas àquele universo religioso também ficou comprometido, como é atestado pela crônica dos jornais da época, que falam do arrefecimento dos festejos carnavalescos na capital nos anos imediatamente posteriores à devassa.
Com o fim da oligarquia maltina e a invasão aos terreiros de xangô de Maceió, os tambores são silenciados, os sacerdotes dispersados e os maracatus desaparecem em terras alagoanas. Mas apenas temporariamente, pois, apesar da hegemonia do discurso de denegação contra pessoas negras, são os homens e mulheres pobres e da periferia que sobrevivem a esse passado de Alagoas. Aqueles e aquelas que foram vítimas da violência racial e de gênero mantêm-se vivos na memória, principalmente dos seus descendentes e continuadores. Não são os nomes dos agressores, cujas histórias os especialistas buscam em vão recuperar através de vestígios quase imperceptíveis nos documentos disponíveis. A memória que hoje se cultiva de Chico Foguinho revela que, não obstante os discursos estigmatizantes dos veículos oficiais de informação de sua época, o seu protagonismo sobrepõe-se ao esquecimento. A longevidade da sua memória se apresenta como um tipo de “astúcia sutil”, expressão cunhada por Certeau (1994) para se referir, justamente, à visibilidade que integrantes das camadas pobres da população despontam em meio a regimes disciplinadores.
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Recebido em: 07/02/2023.
Aceito em: 10/05/2024.
* Doutorado em sociologia e antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. Professor titular do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Sergipe, Brasil. E-mail: ulisses38@academico.ufs.br.
[1] Paulo Victor de Oliveira, na sua dissertação intitulada A perseverança e o silêncio: ensaio sobre a disjunção nas narrativas sobre religiões afro-brasileiras em Maceió, faz referência à região, que à época de que estamos tratando, era conhecida como rua do Reguinho. Trata-se de toda a região que se estendia desde a atual Praça Deodoro, antigo Largo do Cotinguiba e depois Praça das Princesas, último nome antes da Proclamação da República, até o extremo sudoeste da capital: “No início do século XIX, falava-se em Rua do Cotinguiba e Lagoa do Reguinho. O Canal da Ponta Grossa, vindo da Lagoa Mundaú, chegava até aquela área, enquanto o canal do Reguinho seguia até o Riacho Maceió, que deságua no mar” (Oliveira, 2019, p. 18).
[2] A frequência com que o termo xangô aparece para se referir aos próprios cultos afro-alagoanos, ao menos até a década de 1940, talvez explique a razão pela qual, muito recentemente, concebia-se apenas o caráter masculino desse orixá, em detrimento de sua consagrada associação mais comum e antiga com Santa Bárbara, sobretudo em áreas menos urbanas do Estado. Segundo Théo Brandão, no seu já clássico Folguedos natalinos, “a beijação existia no maracatu de Viçosa e consistia no ato de beijarem os integrantes do folguedo a boneca ou calunga, denominada Santa Bárbara, nome que esconde o orixá dos raios – Xangô que deu o seu nome próprio no Nordeste ao culto religioso negro” (Brandão, 1982, p. 150).
[3] Termo encontrado nos arquivos policiais para se referir ao “tipo de moradia, para onde convergiam homens e mulheres negros. E igualmente constituía um espaço de invenção de práticas culturais prontamente reprimidas se praticadas à luz da lua. Um esconderijo, um reduto bem protegidos na imensidão de corredores e becos dos labirintos urbanos” (Farias; Soares; Gomes, 2006, p. 84).
[4] O jornal Gutemberg, identificado como “Órgão da Associação Tipográfica Alagoana de Socorros Mútuos”, foi fundado em 1881 e era editado semanalmente. Até o ano de 1899 a redação estava sob responsabilidade do Bel. Eusebio de Andrade, um dos braços direitos de Euclides Malta em 1912 e dos dois únicos alagoanos que acompanhou o governante destituído ao Rio de Janeiro, em sua fuga do Estado. Até o surgimento do A Tribuna, que se tornou órgão oficial do governo Euclides Malta, era a Typografia Gutemberg que cumpria essa função. Quando fechou sua gráfica em 1911 ainda trazia na logomarca a inscrição: “Jornal de maior circulação no Estado” (Lima, 2015, p. 15).
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