A QUEM PERTENCE O PARDO NO BRASIL?
TO WHOM DOES THE PARDO BELONG TO IN BRAZIL?
Rafael Cardiano **
DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n33.69872.p257-279
Resumo
A análise utilizada para a formatação desta pesquisa está invariavelmente ligada à composição reflexiva da autocrítica sociológica, que caminha permanentemente com a história e refaz seus objetos à medida que a realidade se transforma em concomitância entre esses processos. Portanto, ao questionar a categoria parda e a maneira pela qual ela está em disputa na política brasileira, a formulação de uma ideia de pardo-dilema confunde e impede a articulação de um movimento político negro brasileiro. O objetivo deste trabalho é analisar essas instâncias e questionar de que lado o pardo brasileiro está na luta política. Para tanto, foram utilizadas referências teóricas-metodológicas diversas, construindo-se num amplo diálogo que tomou a forma de um estudo teórico materialista, visando, primeiramente, a esclarecer a historicidade dos termos e, posteriormente, compreender como o caráter histórico da identidade está ligada à luta de classes brasileira.
Palavras-chave: pardo; raça; sociologia negra; decolonial e contracolonial.
Abstract
The analysis used for the formatting of this research is invariably linked to the reflective composition of sociological self-criticism, which permanently walks with history and remakes its objects as reality transforms in concomitance with these processes. Therefore, by questioning the pardo category and the way it is disputed in Brazilian politics, the formulation of a pardo-dilemma idea confuses and hinders the articulation of a Brazilian Black political movement. The objective of this work is to analyze these instances and question which side the Brazilian “pardo” stands on in the political struggle. For this purpose, various theoretical-methodological references were used, constructing a broad dialogue that took the form of a materialist theoretical study, aiming, firstly, to clarify the historicity of the terms and, subsequently, to understand how the historical character of identity is linked to the Brazilian class struggle.
Keywords: pardo; race; black sociology; decolonial and counter-colonial.
Introdução
A questão racial brasileira é amplamente discutida nos fóruns de ciências sociais em todo o país. Com a criação de um Ministério da Igualdade Racial em 2023; com a liderança de ministros negros significativos em dois ministérios: Anielle Franco e Sílvio Almeida, é impossível negar a representação expoente dessas figuras na ascensão da história brasileira. No entanto, como proposição analítica, o objetivo desta pesquisa é examinar o fator da percepção como forma de leitura social, aplicada no espectro brasileiro de cores e à especificidades orgânicas da formação racial e social brasileira, em comparação com outros países da América Latina e do Norte global, a fim de compreender a dinâmica da justaposição de interpretações com significados ideológicos sobre os indivíduos que são classificados como pardos.
Dito isso, o pensamento construído neste trabalho privilegia as teorias decoloniais e as bases do racismo estrutural brasileiro, ao mesmo tempo em que questiona os termos propostos inicialmente pela ancestralidade negra militante na formação histórica dos saberes políticos negros brasileiros, a fim de determinar uma constelação ideológica-política sobre o pardo brasileiro e de que forma essa disputa se apresenta como uma ferramenta ideológica da branquitude, herança de um passado escravagista e de atualizações sistemáticas e históricas que o termo raça propõe ao ser inventado e articulado como instrumento de desigualdade social e existencial.
Para tanto, baseamo-nos em pesquisas bibliográficas extensas, que cobrem a historicidade do pensamento negro brasileiro, com o objetivo de extrapolar as limitações da composição teórica, utilizando termos que se influenciam e se tornam novos, partindo da perspectiva de formulação de uma nova linguagem do oprimido, formalmente necessária para a prática da liberdade e da reformulação constante dos movimentos negros e latino-americanos. Assim, a formulação da pergunta mediadora, que se segue ao longo de todo o corpo do trabalho, centra-se na figura política do pardo, ainda pouco trabalhada por um dilema político de difícil definição na sociedade brasileira de classes. A escolha pela metodologia qualitativa primou-se enquanto possibilidade de um trabalho teórico orientado para a construção de uma classificação política, vide a pigmentocracia, para a compreensão da totalidade que envolve os processos de racialidade e de classe no Brasil contemporâneo.
Os pesquisadores no passado, traçados na seção seguinte deste trabalho, tiveram grande dificuldade em compreender a maneira pela qual o pardo brasileiro se delimita enquanto dilema teórico, muitas vezes sobrevoando a questão política, desconsiderando a possibilidade de sua interpretação ambígua como lócus do modo de interpretação na inserção social de seu status. Devido às considerações de apoio a esse problema acadêmico, e a realidade do aumento do número de autodeclarações de pessoas pardas, surge a questão: a quem pertence o pardo brasileiro?
O racismo como estrutura fundante
Com o intuito de discorrer sobre as bases necessárias para a articulação da classificação pardo na sociedade brasileira, é importante expor os diferentes pontos de vista na interpretação das ciências sociais sobre o pardo e de que forma elas devem ser analisadas como um proponente crítico de movimento político, afinal, não existe consciência negra sem política (Gordon, 2023).
Quando
refletimos sobre a constância do termo miscigenação no imaginário popular
brasileiro, muitos ainda confundem as classificações sociais que emergem quando
a autodeclaração se mostra presente, confundindo o preconceito de origem,
com os preconceitos de marca (Nogueira, 2007; Daflon, 2014). Este é um
argumento válido quando a ideologia racista instaura em seus ideólogos a
perpetuação de ideias eugenistas, higienistas e de superioridade racial, que
confundem o construtivismo social da raça e biologizam o processo de
heteroidentificação como carga genética requerida (Munanga, 2020).
Nesse caso, poderia ser utilizado o argumento que o negro não existe porque todos nós somos miscigenados, e isto é um fato usado de maneira tendenciosa, pois é verdade que todos somos miscigenados quando analisado de maneira genética (Gordon, 2023; Munanga, 2020), mas igualmente falso quando considerado de maneira social (Munanga, 2020).
Por fazer parte do senso comum, essa articulação nada mais é do que enviesada por condicionantes sociais manejáveis desde a estruturação da história colonial brasileira e da maneira com que se produzia e produz a criação do outro como parte de oposição-dominado no cenário da colônia exploratória brasileira (Gonzalez, 2020; Carneiro, 2005).
Os efeitos primordiais do pôr em xeque as autodeclarações de pessoas pardas se tornou base para a direita brasileira questionar a Lei de Cotas (Brasil, 2012), e se tornou um dos maiores centros oposicionistas e de confronto teórico-político na realidade brasileira após os anos 2000 (Jesus, 2021; Carneiro, 2011; Campos, 2013). Essa disputa, com certeza, não é por acaso. Sendo a formalidade desse questionamento político, vale ressaltar que todo o processo de recobrança da materialidade da identidade de um indivíduo está ligado aos objetivos concretos que o fazem se separar de outro tipo de classificação de Eu.
Enrique Dussel (1995) questiona essas ideias sinalizando uma maneira de classificação do que seria o Ser moderno, civilizado e, porventura, branco (Gordon, 2023). Para Dussel (1995), pela maneira pela qual houve a invenção das estruturas de opressão da América Latina como um todo, era necessário um tipo específico de generalização que impusesse o sentido de dominador-dominante, descrito por Hegel e salientado por Marx e Engels (2019). Nessa configuração, todo tipo de identidade latino-americana está ligada com a face de existência referenciada pelo Ser euro-moderno-colonial, ou seja, está ligado a um caráter de submissão frente às oportunidades ontológicas de construção de Ser que foram sistematicamente negadas e continuamente atualizadas nos mecanismos ideológicos dos eixos de poder.
Além disso, o sociólogo peruano Aníbal Quijano (2009), ao pensar sobre a colonialidade do poder e a sua influência para a invenção das Américas, teoriza sobre o papel central da formalização das Américas para a constituição de uma identidade euro-moderna-colonial. Ou seja, a partir da invasão de Cristóvão Colombo ao que hoje chamamos de América, a história toma o rumo de se estruturar partindo do ponto de vista do capital (Mészáros, 2007), além dos outros tipos de classificações principais que se intercalam numa teoria primordialmente interseccional que não perde de vista a necessidade de uma sociedade racista, patriarcal, branca, heterocêntrica e colonial (Quijano, 2009).
Tanto que ao discorrer sobre as correntes teóricas principais das ciências sociais ocidentais, Quijano expõe as generalizações exageradas que assimilam (no sentido pejorativo do termo) povos inteiros que constroem a sua história e que são negados, persistentemente, os mecanismos de orientação autônoma de seus saberes (Quijano, 2009).
Nesse sentido, há uma significação expoente no termo raça para todos os países que foram colonizados: estes fundam-se em sua estrutura como uma organização racista que precisa de um ideal específico para se reproduzir e se perpetuar, e, nestes casos, o que foi privilegiado pela sua expoente dominação narcísica foi o Branco. O Branco aqui é escrito em letra maiúscula porque ele não determina toda a pessoa branca vista como indivíduo.
Além disso, o branco nada mais é do que uma generalização fundada por ele mesmo. O que difere o branco do negro são as condições objetivas de recobrança da autonomia da história da branquitude em torno do genocídio e etnocídio negro e indígena, acometidos ao longo de mais de 500 anos desde a instauração do racismo como forma de organização capitalista e branca (Gonzalez, 2020; Nascimento, 2021; Nascimento; 1978; Carneiro, 2011; Munanga, 2020; Schwarcz, 2012; Moura, 2019). Essa branquitude construiu as estruturas de dominação que estão vigentes até hoje, e instauraram uma instituição poderosa que toma as rédeas da história como se fossem exclusivamente sua, e a utilizam como referência para a formação da identidade de outras pessoas brancas para a perpetuação das características narcísicas que fortificam a lógica binária entre brancos e negros (Bento, 2022; Gonzalez, 2020; Gordon, 2023).
A branquitude está presente como centro exponencial de poder na estruturação das Américas, justamente por terem feitos os empreendimentos materiais que formaram o sentido da colonialidade e edificaram as estruturas de dominação existentes em solo brasileiro. O caráter de colônia de exploração na história de formação do Brasil perdurou por uma desigualdade econômica estratificada para todo o grupo racializado neste país (Fernandes, 2021; Furtado, 2007; Ribeiro, 2017; Gonzalez, 2020; Oliveira, 2013; Prado Jr, 2011). O Brasil foi o país que mais transportou africanos escravizados durante os séculos (Munanga, 2020; Schwarcz, 2012; Fernandes, 2020; Oliveira, 2013; Moura, 2019).
A manutenção nos moldes da sociedade neoliberal não param de precarizar os negros nos mecanismos de trabalho, a própria branquitude é o sinal disso (Bento, 2022). Ademais, a branquitude não é um proponente social exclusivo do Brasil. Nos Estados Unidos, pensadores negros já demonstravam o caráter ativo da supremacia branca e as imposições que estes impunham aos negros de lá (Al-shabazz, 2020; Davis, 2016; Gordon, 2023; hooks, 2017; West, 2021). E as análises feitas na América Latina reproduzem esse sentido econômico lado a lado da caracterização racial e dos mecanismos de racialidade das pessoas negras e pobres (Daflon, 2014; Telles; Silva, 2021; Gonzalez, 2020).
Agora, para além do sentido econômico, vale salientar o caráter construtivista da miscigenação e seus respectivos tratamentos dentro do espectro do estruturalismo do racismo à brasileira. A miscigenação foi entendida por Munanga (2020) como um processo social-ideológico que construía figuras intermediárias em meio ao espectro de cores brasileiras, principalmente pelo projeto político-social racista que se configurava na lógica do branqueamento. O branqueamento nada mais é do que a busca por embranquecer de toda forma possível como mecanismo de defesa autosabotadora que busca um ideal de Eu impossível de ser concretizado devido às condições sociais objetivas da realidade social que privilegiam o branco como existente e o restante como nada (Souza, 2021).
O branqueamento teve sentidos diversos e ele está invariavelmente ligado à construção social e de significação da miscigenação: é a partir do Estado brasileiro que seu entendimento como mecanismo de classe dominante se torna claro (Schwarcz, 2012; Munanga, 2020; Moura, 2019). O Estado se dividiu em várias frentes enquanto sua formação, que foi calcada no estupro de mulheres negras, seguindo o modelo da Casa-Grande (Schwarcz, 2012; Munanga, 2020; Moura, 2019; Gonzalez, 2020; Nascimento, 1978).
Esse
processo sucedeu a prática do cunhadismo contra os povos originários, que se
tornaram os primeiros expoentes miscigenados das terras brasileiras (Ribeiro, 2017).
Além disso, o pensamento social pré-institucional se configura em uma variedade
de ideias racistas ou mitologizantes, que revelam o caráter de percepção da
branquitude dominante frente à diversidade existente no Brasil (Munanga,
2020). Muitos, influenciados pela educação estrangeira que recebiam dos centros
racialistas do capitalismo central, consideravam a mistura de raças como uma
decadência moral, que, invariavelmente, geraria indivíduos limitados e
incapazes de realizar trabalho especializado (Munanga, 2020).
Vale ressaltar que as condições de criação dessa significação estão pautadas na necessidade de status de escravizados para a população negra e indígena, que precisam ser subjugadas a fim de serem utilizadas como mão de obra superexplorada, essencial para a condição econômica da acumulação primitiva no Brasil (Furtado, 2007; Gonzalez, 2020; Fernandes, 2021). Nota-se a capacidade articulatória das ideologias nacionalistas, que, nessa época, eram retratadas por uma simbolização do “caráter nacional” (Chauí, 2000), visando uma unificação fechada sobre a população brasileira, construída por esses primeiros estratos da pequena-burguesia brasileira em transição à queda do sentido agrário essencial.
Como prática de justificação de dominação (Marx; Engels, 2019), a ideologia se fortificou, perpetuando a condição de subalternidade do trabalho para indivíduos negros, e a total exclusão dos indígenas, especialmente quando eles se mostravam resistentes a serem assimilados pelo sincretismo euro-moderno e pelas forças coloniais (Segato, 2021; Bento, 2022; Ribeiro, 2017).
Fazendo-se compreender o primeiro sentido, o segundo parte de um contexto histórico completamente diferente. Em momentos em que os Estados precisavam de aderência e aliança na transição do capitalismo monopolista para o capitalismo financeiro (Mészáros, 2007), no período do entre-guerras e das diversas crises do capitalismo mundial, as tentativas de captação de capital estrangeiro aumentaram e se justificavam para a consolidação da industrialização em solo brasileiro (Schwarcz, 2012). Por meio de viralatismos e más condições de trabalho, era necessário firmar contratos assalariados para criar um novo tipo de demanda de mão de obra, assim como de acumulação: agora, o salário era necessário para garantir o lucro inversamente proporcional (Oliveira, 2013; Marx, 2020).
Nesse contexto, e na corrida pela história do pós-abolição, a condição da população negra brasileira se demonstrava insuperável pelos mecanismos do Estado, que a relegava constantemente à exclusão e ao desaparecimento, para evitar a responsabilização pelo problema que ele próprio gerou. Frente também à transformação da ideia de “caráter nacional” para a de “questão nacional” (Chauí, 2023), as condições de readequação das ideologias nacionalistas se propunham a se enquadrar num quadro de industrialização, que partiu da Ditadura do Estado Novo até o início dos anos 60, quando o nacional-desenvolvimentismo se propagou como dependência regulada e a identidade nacional formulada pela nova pequena-burguesia na condição pós-primeira e segunda industrialização brasileira. A exaltação do mestiço como subproduto de um brasilismo incipiente e da configuração da classe trabalhadora brasileira, também formada pelo fenômeno do imigrantismo (Moura, 2019; Theodoro, 2022), condensou a experiência negra à negligência e à desproteção.
Então, o segundo significado de raça, partindo do ponto de vista da miscigenação, construiu uma noção de nação mestiça, firmada nessa necessidade imperialista externa de captação de capital para investimento interno (Tavares, 2019) e se perdeu numa hipervalorização do mulato como mito fundador da democracia racial (Gonzalez, 2020). Antes que os argumentos salientando a benesse do mulato sobre o preto identificado ganhassem força, Theodoro (2022) expõe que as condições de proibição de postos de trabalho formais, a orientação da demanda da força de trabalho disponível em solo brasileiro, e a situação subalterna do servilismo congregado no decorrer do século XIX como política de Estado foram condições criadas pela ideologia desenvolvimentista ao não tratar a questão dos trabalhadores negros no pré e pós-abolição.
Ainda, salienta que os poucos que conseguiram formar uma elite propriamente dita não agregavam substancialmente a um número residual para impactar na estrutura do mercado de trabalho brasileiro. Essa exclusão sistemática, que formou as condições objetivas para a produção e discursos estereotipados sobre a população negra brasileira (Daflon, 2014), está em sintonia com a crítica econômica do século XX, que não percebia as pessoas negras como centrais no debate da desigualdade social no país.
Nesse meio, o mito fundador nunca esteve perdido nas antigas percepções dos processos de racialização brasileira. Como é necessário um centro articulador para a composição das outras identidades apagadas, ou seja, do não existente (Fanon, 2022), foi necessário rearticular as três raças fundadoras (branca, negra e indígena; também um mito pela não existência de variação genética entre elas) num caminho que contemplasse a falha do primeiro projeto de branqueamento estatal (Munanga, 2020; Schwarcz, 2012) que enegreceu a população, mais do que embranqueceu.
Portanto, a simbolização do racializado no Brasil se transformou com a continuidade histórica referente à necessidade do centro dominante de se perpetuar em seus caminhos como branquitude. Agora, o negro precisava ser fluido para estar presente no controle da imagem e da produção da estereotipia moldada pelo branco (Daflon, 2014; Moura, 2014), assim como da contemplação dos mercados subalternizados que sustentavam todo o mecanismo da economia interna dos centros urbanos brasileiros (Oliveira, 2013; Theodoro, 2022).
Eles colocaram o mulato, a mistura, como centro da narrativa racial brasileira em meio ao século XX. Esse novo símbolo, unido às condições objetivas de trabalho e do apagamento da população negra, trazia um significado de nação: não existe problema racial no Brasil. E este negro inventado é, portanto, um mecanismo de articulação negativa a favor da elite dominante que compõe a branquitude, e que incide na leitura social de todos os brasileiros, afinal, ninguém está livre de ser condicionado pela ordem social vigente (Freire, 2022).
Vale destacar que este projeto branco nunca foi admitido sem resistência. A noção do negro invisibilizado é primordial aos lugares de fala e escuta que as narrativas generalizantes atribuem ao senso comum dominante (Ribeiro, 2017; Nascimento, 2021). A contra alternativa ativa do Quilombo dos Palmares relembra constantemente os esforços do Estado brasileiro de exterminar e vigiar continuamente a sua população negra por medo de uma consciência negra ativa (Gordon, 2023), política e que rumava a novas alternativas reais de composição de um novo modelo de sociedade, isto é, ameaçava o mandante de toda estruturação: a branquitude. A manutenção da branquitude só se dá através de uma lógica opressora em que o extermínio e a morte viram política de desaparecimento, invisibilização, e negação do lugar de existência na consolidação de uma identidade plenamente estabelecida (Mbembe, 2018).
Claro que os movimentos de resistência não pararam por aí. o Teatro Experimental do Negro, a Frente Negra Brasileira, o Movimento Negro Unificado, a Imprensa Negra (Gonzalez, 2020), os quilombos (Santos, 2023), os povos originários remanescentes (Segato, 2021), todos mostram uma movimentação de positivação do signo de raça para a composição de uma luta política em que se constitui a igualdade e a liberdade como horizonte futuro. Ou seja, são os condenados da terra (Fanon, 2022), os oprimidos (Freire, 2022), a população brasileira.
Portanto, é inegável que o racismo no Brasil é estrutural (Almeida, 2020) e que sua composição se perpetua ativamente com todas as outras formas de opressão e dominação existentes na territorialidade brasileira. E com isso, algo se torna notável: a raça só existe através de uma relação social.
A “raça”: análise e desdobramentos de sua construção
As aspas do título remetem a uma invenção, o significado de uma palavra varia de acordo com os discursos que são produzidos sobre o grupo de pessoas que determinada classificação agrupa (Butler, 2022; Foucault, 2021; Segato, 2021). Raça, deste modo, é fluida por sua natureza estrutural de atribuição, que é sempre negativa quando parte do centro que oprime e positiva para esse mesmo centro, e que se limita a uma composição fechada se não articulada conscientemente de uma consciência negra passiva, para uma consciência negra ativa, que não instaura os mesmos métodos de identificação e diferenciação referenciados pelo grupo dominante fundante (Segato, 2021; Gordon, 2023; Jesus, 2021).
Um termo recente pode confundir estudiosos do tema e também se inserir numa proposição de senso comum acadêmica que tende a não tomar responsabilidade por seu apagamento: o colorismo. Primeiramente pautado pela norte-americana Alice Walker (2021), o colorismo é um tipo de racismo intragrupo que demonstra o caráter da solidão da mulher preta dentro da negação da mulher negra pelo homem negro, que vira seus olhos para as mulheres brancas e negras claras como objeto de desejo (Goés, 2022). No Brasil, o termo foi usado por Devulsky (2021) para compor uma hierarquia de tons que estavam ligados à miscigenação, e que também atribuí uma violência significativa intragrupo racializado que torna ofensivo o que normalmente se enquadra como microagressões na hora de discorrer sobre as suas consequências.
No entanto, não concordamos que a utilização do termo colorismo seja usado como mecanismo estrutural no espectro de fluidez da raça como diluição do seu caráter ideológico e ontológico na composição das hierarquias e classificações na sociedade brasileira (Goés, 2022). A armadilha da autenticidade da raça e da ambiguidade assumida, é tratada por Goés (2022) enquanto ideologia racista, configurada para estruturar um terreno de competição entre os indivíduos racializados. Preferimos, então, utilizar do seu termo pigmentocracia como uma parte de composição da estruturalidade dos países latino-americanos que supõe a utilização da articulação racial usada de maneira dialética pela forma atribuída às negativações da branquitude referente aos grupos de pessoas que a ameaçavam, isto é: nenhum branco ameaça a branquitude, ao passo que este grupo, quando os indivíduos brancos se aproximam dela, são recebidos de braços abertos para compor os mecanismos de poder desta instituição.
Além disso, para superar a contradição da competição a fim de organizar taticamente o grupo dos negros brasileiros, opomo-nos ao termo colorismo como característica estrutural porque ele não abarca a necessidade exógena de configuração branca sem rogar a imposição da armadilha de autenticidade negra nos contextos que se supõe o conflito racial (West, 2021).
O conflito interno do negro observado por Neusa de Santos Souza (2021), em Tornar-se negro, demonstra como esta busca de ascensão social pelo ideal branco se projeta na construção psicológica das pessoas negras, que são sempre negadas quando buscam embranquecer para tornar-se o ideal de branco que nunca poderão se consolidar. Esta pesquisa demonstra algo muito importante: não é o caráter individual que constrói a lógica da racialização brasileira, além disso, não é sua fundante como proposta de hierarquização. O que Oracy Nogueira constrói na sua teoria é que as violências discriminatórias individualizantes se sobrepõem com uma carga maior para quem possui maiores características fenotípicas negróides (africanas) na aparência estética externa.
No entanto, longe de explicar completamente um sistema racializador assimilacionista, Nogueira constrói uma grade para o fenômenos do colorismo se perpetuar na visão intragrupo negro dentro do movimento negro: a autenticidade negra está em quem é mais negativado, portanto, quem for menos negativo que o indivíduo incidente de violência aparente maior é, portanto, menos negro.
A lógica é de separação da generalização feita pela branquitude, que acaba por ignorar o que os proponentes decoloniais e negros latino-americanos demonstraram: o caráter social de raça é mais complexo do que a simples atribuição de heteroidentificação que a constrói de maneira externa; ela tem suas implicações internas devido à desigualdade ontológica de formação do Ser como mecanismo fundante da lógica racial como um todo, que só permite sua perpetuação e manutenção em meio a relação social que a distingue dos outros tipos de dominação. Logo, a raça é mais do que apenas uma característica analítica com valor pejorativo a fim de determinar lugares subalternizados: ela é o apagamento das formas de humanidades legitimadas pelos grupos que antes da invasão euro-moderna capitalista se diferenciavam através de uma identidade própria que não precisava de designações racializadas para se positivar na instância estrutural (Gordon, 2023).
Essas estruturas permitiam que eles fossem quem eram, sem que precisassem lutar arduamente para que a identidade deles fosse reconhecida. Logo, quando o sistema é dominado por um centro de poder que compõe uma identidade específica dominante que ronda toda a sociedade com sua cara e sua pele, é impossível distinguir o caminho árduo da conscientização e classificações necessárias para superar as formas de hierarquização de seres inexistentes a nível social.
É isso que chamamos de pigmentocracia: um sistema que usa da política de identidade, do caráter ideológico da raça como fundante de uma estrutura num país colonizado que reorienta historicamente as oposições intragrupo e externas em relação a um grupo de Eu dominante, donde apaga e rouba sistematicamente as condições de possibilidade de existir dos outros grupos que por eles foram racializados. É um termo amplo, complexo e ainda em construção, mas nem por isso menos sério.
Portanto, parte de três princípios: as narrativas ideológicas e discursivas da miscigenação criaram uma complexidade de redes de significados perante os corpos racializados, dependendo da posição social que ocupam (Munanga, 2020; Devulsky, 2021; Schwarcz, 2012); confunde primordialmente a categorização colorismo como formação da pigmentocracia, a priori, a fim de focalizar a violência intragrupo como o principal proponente de autenticidade negra (West, 2021) dentro dos grupos racializados no Brasil; e figura-se como uma estrutura econômica, patriarcal e racial que agrupa indivíduos de modo abstrato o suficiente para a aniquilação dos seus saberes, modos de ser e de estar (Carneiro, 2005; Gonzalez, 2020; Ribeiro, 2017). Ou seja, torna perpétuo o presente inautêntico até a formulação de uma consciência negra que ativamente reformula a linguagem em que se enquadra, revaloriza os símbolos que a fundam e articula uma luta organizada para a superação do modelo racial (Haider, 2019; Gordon, 2023).
Além disso, a pigmentocracia se compõe através da estruturalidade do racismo estrutural (Almeida, 2020), ou seja, não é fenomenológica (Mészáros, 2008). Através da concepção fundante e da confusão diferenciadora fenotípica (Nogueira, 2007), o que antes Oliveira (Oliveira, 1974) chamava de “obstáculo epistemológico”, hoje, torna-se uma das principais potências para questionar a atribuição racial: o mulato. Hoje, pardo é nada mais do que uma construção coletiva de percepções historicamente manejáveis e ideologicamente condicionadas, que cria um meio-lugar perante a estrutura pigmentocrática que se estrutura com as mudanças históricas e objetivas da sociedade brasileira, e torna a flexibilização e a permissividade branca as referências para a constituição de identidade como forma de falsa legitimação das pessoas negras brasileiras. Ou seja, é uma forma referenciada, passiva em contraste com a branquitude, e que produz uma falsa consciência que permite a perpetuação do racismo como faceta invisibilizada, característico do racismo à brasileira (Gonzalez, 2020; Nascimento, 2021). Não é mais um problema metodológico de classificação (Oliveira, 1974), é, agora, um dilema político (Campos, 2013).
O nosso intuito com essa exposição é responder à pergunta: o pardo é negro?
Na condição ontológica de inexistência, sim. Na composição de identidade na lógica pigmentocrática também. Na violência intragrupo, também (há tensões entre pretos e pardos atualmente). Na formação dos ideais negativos pela orientação histórica do termo, também.
O que poderia diferenciá-los?
Em questão de experiência, todo individualismo é diferente. Em questão de abstração de classificação de grupo: o meio-lugar do pardo é regido por uma lógica interna mais profunda da branquitude quando for necessário a diferenciação dele pelos meios necessários previstos pela branquitude para o seu não questionamento. A priori, é um manejo da necropolítica, do uso institucional do termo como legitimador de maior igualdade (mesmo que falsa) e que articula o discurso da inexistência nos entremeios da permissividade e da negação.
A experiência parda: uma dupla negação de um reavivamento ontológico
Ao analisarmos os componentes construídos para compreender a classificação parda brasileira, primeiro, temos que salientar o caráter diferenciador das manifestações racistas e coloristas dentro do espectro de discriminação que esses indivíduos sofrem ao serem dotados de status racial.
A pesquisa feita pelo grupo Pigmentocracias, Etnicidade, Raça e Cor na América Latina (PERLA) (Telles; Silva, 2021) foi um marcador importante para compreender como a pigmentocracia atua misturando as ideologias difundidas da mestiçagem no Brasil, além de angariar dados quantitativos sobre um espectro de cores latino-americano que se modela através de uma linha entre o mais escuro dos pretos e o mais claro dos brancos. Se formos usar esse modelo para medir a legitimidade de assunção negra como autêntico ser oprimido, podemos cair numa armadilha ideológica grave para os movimentos negros da atualidade.
Quando Oracy Nogueira (2007) empreende sua pesquisa que demarca a diferenciação dos preconceitos entre os estadunidenses e os brasileiros, a detenção dos saberes sobre a corporalidade através da percepção ganhou um novo sentido de importância na pesquisa negra brasileira (Daflon, 2014). Ao demarcar o preconceito de marca e o preconceito de origem, as formulações de políticas públicas focadas na avaliação dos indivíduos que, a priori, carregam consigo uma marca visível do racismo, ou seja, seu fenótipo, foram individualizadas num aparato estatal que possui duas faces: a heteroidentificação e a autodeclaração (Jesus, 2021).
Esses dois termos foram importantes às pesquisas quantitativas feitas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), porque traçou a contradição existente entre as duas falas, as atribuições de significado de uma corporalidade que se questiona a partir de uma instância externa, afinal, o negro só existe pelo branco (Gordon, 2023), e essa formação racial é base da origem de nossas percepções (Quijano, 2009). O que importa aqui é que estes mecanismos foram utilizados para atribuir indivíduos como essencialmente racializados, partindo do ponto de vista individual de percepção composto pela dialética própria de condicionamento de um contexto específico (Daflon, 2014).
Ou seja, uma pessoa considerada negra no Sul do país poderia muito bem ser interpretada como branca quando reavaliada no Norte do país. Por conseguinte, pessoas que se autodeclaram pardas podem sofrer da instância de negação a partir do ponto de vista externo que busca individualizar a categoria da identidade negra, partindo da referência própria que é embutida em sua leitura: a branca.
Parte da construção de saberes de um movimento negro que buscava a conciliação política entre pardos e pretos se empenhou em demonstrar que as classificações eram aliadas políticas, sobretudo. Em parte, um número de indivíduos que se autodeclaram pardos, que aumentaram com a virada do século e com a aprovação da Lei de Cotas (Carneiro, 2011; Daflon, 2014; Jesus, 2021), sentem-se assimilados quando são considerados negros (Bueno; Saint Clair, 2023). E há um crescimento exponencial desse ressentimento que advém de um lugar psicológico estruturado na história da pigmentocracia brasileira.
Graças à junção dos dois termos, alinhada com grandes esforços dos nossos ancestrais na luta contra o racismo (Gonzalez, 2020; Nascimento, 2021), há alguns erros de interpretação do sentido ideológico da miscigenação exposto na seção anterior. Por exemplo, quando Abdias do Nascimento (1978) coloca a questão da miscigenação como genocídio negro, ele está salientando o caráter da política de embranquecimento que alinhava uma noção de necropolítica (Mbembe, 2018) aos estupros sistemáticos das mulheres negras para a formação de uma geração de filhos/as/es embranquecidos/as/es. Aliás, outro dado importante na hora de considerarmos uma atualização desses termos na visão dos relacionamentos interraciais na sociedade brasileira, demonstra que, apesar de uma visibilização do racismo em escala nacional, as pessoas ainda preferem que não haja um negro para sujar o sangue dentro da família branca (Daflon, 2014). Há uma lógica do embranquecimento ainda viva, que mantém os mitos dos mestiçados pungentes através do imaginário brasileiro.
Por parte de pessoas negras, há a negação da identidade parda justamente por separar uma luta histórica que foi construída com unhas e dentes pelos militantes negros que vieram antes de nós (Gonzalez, 2020; Carneiro, 2011; Nascimento, 2021). Portanto, há uma reivindicação do pardo como expoente de identidade majoritariamente negra, e que disputa e conclama a volta do pardo para dentro das fronteiras do movimento negro (Akaotirene, 2023). No entanto, os dois conflitos se perdem quando não se aprofundam na instância contraditória que é a categorização racial no estilo fundante da sociedade brasileira.
No momento em que essas duas instâncias brigam, temos a materialização do colorismo, salientado por Devulsky (2021). Mas o que se esconde por trás dele são os sentidos ideológicos da pigmentocracia, que permanecem rogando a identidade branca como formulação da luta política (Gordon, 2023), que se faz referenciar pela perpetuação do seu eixo de poder.
Dessa forma, o indivíduo pardo é um signo não deslegitimado no seu sentido de raça, mas incompreendido fora da luta política que o une à luta política Negra (Com N maiúsculo). Portanto, o significado de pardo positivado, além das instâncias dominantes, é a da junção dos pretos e pardos a fim de conclamar um fim ao sistema de hierarquia racial imposta desde o início da história colonial (Quijano, 2009; Dussel, 1995; Segato, 2021; Gonzalez, 2020; Carneiro, 2011).
Essa luta política é individualizada tanto pelos mecanismos de autopercepção, que são medidos quando negados pela branquitude num espaço social configurado para ela (Bento, 2022), e ressentidos quando identificados como negros por serem descreditados numa posição de meio-lugar que é simbólico da fluidez contraditória da raça (Moura, 2014). A dupla negação de um reavivamento ontológico é configurada da seguinte forma: como existe um ideal de branco que perpassa toda estrutura brasileira, há, primeiro, o ponto negativo do corpo que foi desconsiderado ao não ser atribuído a uma posição socializada como branca (Bento, 2022); a primeira negação é, portanto, do branco. Neste sentido, há que salientar o que alguns autores negros escreveram sobre a percepção do corpo negado. Fanon (2022) deixava explícito que um corpo negro se reconhecia a primeira vez assim quando em contato de choque com um corpo branco. Esse choque é a primeira negação ontológica, de possibilidade de se encarar Ser. O pardo, no momento que é escamoteado pela branquitude, passa por este momento.
Por isso, não é incomum o entendimento de descobrir-se negro, afinal, para alguns, esse senso de percepção é construído com o decorrer da trajetória individual, e só é percebido quando fatores sociais suficientes se mostram opressivos para gerar a pergunta: quem sou eu? (Gordon, 2023). Ao contrário do caso do preto, que possui experiências avassaladoras com o contato com a lógica de preconceito de marca, muito mais salientada desde o início da infância (Nogueira, 2007).
O segundo ponto de negação acontece quando a consciência negra daquele corpo resguarda um saber estético-corporal experimental (Gomes, 2017) graças à negação primeira advinda pelo branco: ao se perceber minimamente prejudicado pelo signo de opressão, busca pertencer a algum tipo de contexto em que possa articular este sentimento de precarização que sofreu inicialmente (Gordon, 2023). O interessante de refletir sobre este ponto é que salienta um caráter implícito: agora que percebe que o pertencimento não pode ser adquirido com o branco, busca no preto a consolidação da própria identidade para a movimentação futura (Gordon, 2023). Se for posteriormente negado pelo preto, o que é muito comum (Bueno, 2023), sente-se em uma posição do que é chamado de “limbo racial” (Goés, 2022).
O limbo racial nada mais é do que o contraponto das duas negações, calcado por significados ideológicos que rogam a política de desaparecimento como forma de morte ontológica do sujeito (Gordon, 2023); não pode ser um “meio-Ser” (Goés, 2022), porque não é passível de consolidação objetiva de autonomia (Freire, 2022) e de liberdade (Dussel, 1995), assim como não é, graças à contraparte que também é negada ontologicamente, onde está o negro (Fanon, 2022).
O que fica claro é que a morte existencial parda, que cai na armadilha de identidades individuais para buscar o pertencimento de grupo que é social (Haider, 2019), alinha-se com a morte existencial preta, que é fundante da estrutura brasileira. Então, ambos são negados pelo branco, mas o pardo também é negado pelo preto, e essa negação pode se virar contra eles. Pode-se argumentar contra isso quando se levanta a questão de que negros também reproduzem atos discriminatórios contra outros negros (Gordon, 2023). De fato, isso pode acontecer, mas a referência de comportamento é da personalidade branca, com seus traços narcísicos que precisam ser a única legitimidade passível de existir num mundo feito para eles (Gordon, 2023). No entanto, esse é um tópico sobre consciência, e é disso que pretendemos tratar agora.
Precisamos diferenciar dois tipos de consciência existentes dentro da comunidade negra. Primeiro, temos a consciência negra (com ‘n’ minúsculo’), que é uma consciência corporal das negações impostas e referenciadas pelo branco (Gordon, 2023). E em segundo lugar há a consciência Negra (com “N” maiúsculo’), que se reconhece ativamente como um Ser que produz lógicas contrárias e oposicionistas dentro do sistema racista, e que compreende a complexidade dos saberes corporais dinâmicos que existem dentro de um espectro de concepção de negro existente (Gordon, 2023).
O que é primordial entre essas duas referências é que a primeira tende a fechar-se numa lógica individual, proposta pelo sentido liberal de pertencimento de identidade (Haider, 2019); e a segunda é uma “dialética aberta” (Gordon, 2023), que presume a transracialidade que pertence a interseccionalidade crítica, composta por inúmeros pensadores e trabalha com saberes que confluem (Santos, 2023), históricos perante a ancestralidade (Gomes, 2017), e que compreendem que o caráter dialógico da ação é o proponente essencial para a consolidação de objetivos demandados pela própria comunidade e também de sua identidade (Segato, 2021; Mészáros, 2007; Freire, 2022; Gordon, 2023).
Levando em consideração que para existir ontologicamente precisamos criar uma linguagem própria que não usa como referência a linguagem do dominador sobre as instâncias da nossa identidade (Dussel, 1995), fica claro que a concepção de colorismo de Devulsky (2021), quando analisa a violência intragrupo, recai sobre a concepção da primeira consciência que discorremos no parágrafo anterior, por ser um fenômeno-consequência da estrutura pigmentocrática. Por conseguinte, a individualização do pertencimento é diluída pela branquitude brasileira graças à narrativa histórica que foi construída durante os anos de consolidação da visão euro-moderna, capitalista e branca, durante toda a nossa formação e consolidação como país. Ao passo que o embate sobre a quem pertence as cotas se resguarda na referenciação do negro, devido a seu caráter baseado na observação e entendimento interno do indivíduo negro que se coloca a avaliar (Jesus, 2021).
Partindo do ponto de vista das figuras revolucionárias importantes para o movimento negro global, temos então a não confusão de intersecção destes grupos devido à demanda histórica de luta por igualdade e liberdade (Gordon, 2023). Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento e Abdias do Nascimento não queriam apenas mais direitos para as populações negras, eles queriam o fim do racismo de fato. Malcolm X, Martin Luther King Jr, Huey Newton, Angela Davis, Audre Lorde e James Baldwin não queriam apenas mais direitos, queriam o fim do racismo de fato. A nossa luta deveria ser pelo fim do racismo, e não pelo reconhecimento de corpos individuais que compõem coletivos, afinal, estes corpos, enquanto estrutura racializada, serão sempre tornados apenas negros e não Negros, devido ao branco que comanda toda a estrutura de reprodução institucional (Almeida, 2020), a cultural dominante (Williams, 2011) e existencial (Segato, 2021) de uma sociedade racista.
Dito dessa forma, o pertencer do pardo brasileiro não é individual pela consolidação de sua identidade, é o contrário. O pardo necessita compreender que as instâncias que negam duplamente o seu pertencimento, e, deste modo, seu existir ontológico social, é resguardado através da concepção de uma luta que almeja abolir a raça como materialmente submetida às instâncias brancas de significação. Quando a antropóloga Rita Segato (2021) nos diz que o mestiço é a abertura para uma nova forma de compreensão de raça na América Latina, ela discorre sobre como nesta estrutura formulada, temos que abrir o leque da dialética aberta (Gordon, 2023) para construir um movimento que se alinhe com a autonomia de todos os povos que compartilham uma territorialidade. Afinal, Quijano (2009) já demonstrou que nenhuma abstração generalizante dá conta de todos os povos que convivem em uma determinada terra, e que fazê-lo deste modo gera uma violência intrínseca aos métodos eurocêntricos de dominação pré-estabelecidos no tempo colonial.
Portanto, os saberes construídos através dos movimentos negros, confluem para o sentido de heterogeneização estrutural dos eixos de poder (Quijano, 2009), que compreendem que a memória (Nascimento, 2021), as posições sociais (Gonzalez, 2020) e os diferentes modos alternativos de Ser e estar no mundo (Nascimento, 2021; Santos, 2023) estão em conflito direto com a dialética do mundo colonial-moderno, com os outros sentidos de positivação das identidades políticas negras (Segato, 2021) dentro do espectro pigmentocrático brasileiro. É, deste modo, invariavelmente interseccional (Gordon, 2023), graças às interlocuções que tornam plurais as experiências entre os diferentes tipos de saberes corporais, identitários e políticos (Gomes, 2017), ao passo que reconhece a interculturalidade e o confronto direto entre saberes diferentes para a produção de uma outra realidade libertária (Freire, 2022).
Considerações finais
O pardo faz questionar, então, algumas coisas. Por exemplo: os limites da classificação racial como essência do indivíduo racializado, o contexto histórico de formalização da racialização, as dúvidas geradas perante a noção de leitura social coletiva; suscita o conflito entre os mitos feitos pela classe dominante no país e, além disso, permite uma coletividade extensa levando em consideração a necessidade de uma dialética aberta a serviço da consciência Negra. Nesse sentido, a pergunta A quem pertence o pardo no Brasil? possui um sentido oculto-político, além de metodológico: o pardo pertence a ninguém, muito menos à sua própria consciência. O pardo pertence a uma estrutura historicamente formada por pessoas brancas, por uma elite que lhes deu as ferramentas para questionar minimamente as suas origens, além de permitir o repúdio com a sua mescla. O pardo foi uma tentativa de genocídio, que se tornou massa, que se consolidou como ambiguidade estatal, diluiu-se em formalizações individualistas de identidade que perseguem o apagamento político negro[1]. Mas, antes de qualquer negação, o pardo existe, e existe de maneira mentirosa: o pardo não pode existir sendo meio-alguma coisa, assim como o preto não pode existir sendo nada. Ambos só pretendem existir, ou melhor, lutam por existir através da história, através da simbolização de sua luta positivada, buscando superar as classificações embutidas através do orgulho, da negritude, da resistência e das proposições invertidas.
O pardo é um dilema (Campos, 2013), é uma contradição da racialização (Goés, 2022), e tanto é assim que suscita conflito, disputa, debate, teoria e reivindicação. Toda contradição é percebida quando é resguardada ao enfadonho destino de ser confrontada nos meios de desaparecimento e atualização contínua da história (Mészáros, 2007). Contradições coexistem com a realidade material, algumas contradições podem ser proveitosas, outras são apenas mecanismos de manobras ideológicas a favor de uma elite branca (Robinson, 2023; Gonzalez, 2020).
Referências
AKAOTIRENE, C. Devolvam o pardo ao movimento negro. Publicado em 13 de julho de 2023. Instagram: @carlaakotirene. Disponível em: https://instragram.com/p/CtbyevTrl4K. Acesso em: 04 mar. 2024.
ALMEIDA, S. L. Racismo estrutural. São Paulo/SP: Jandaíra, 2020.
AL-SHABAZZ, A. H. M. Há uma revolução mundial em andamento: discursos de Malcolm X. São Paulo: Lavrapalavra, 2020.
BENTO, C. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
BRASIL. Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 2012.
BUENO, B. Parditude, mestiçagem e identidade no Brasil: uma crítica à rigidez binária e as suas implicações para a população parda. Rio de Janeiro: UFF, 2023
BUENO, B; SAINT CLAIR, E. Impedidos de entrar em Wakanda: reflexões sobre parditude, manifestações midiáticas e desafios de pertencimento. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO (VIRTUAL), 44., 2023, São Paulo. Anais [...]. São Paulo: [virtual], 2023. p. 1-17. Disponível em: https://sistemas.intercom.org.br/pdf/link_aceite/nacional/11/0816202323114364dd81dfa0c23.pdf. Acesso em: 22 nov. 2024.
BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2022.
CAMPOS, L. A. O pardo como dilema político. Rio de Janeiro: Insight Inteligência, 2013.
CARNEIRO, S. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.
CARNEIRO, A. S. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005. Tese (Doutorado em Educação) — Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
CHAUÍ, M, S. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.
CHAUÍ, M, S. Conformismo e resistência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2023.
DAFLON, V, T. Tão longe, tão perto: identidade, discriminação e estereótipos de pretos e pardos no Brasil. 2014. Tese (Doutorado em Sociologia) — Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
DEVULSKY, A. Colorismo. São Paulo: Jandaíra, 2021.
DUSSEL, E. Filosofia da libertação: crítica à ideologia da exclusão. São Paulo: Paulus, 1995.
FANON, Frantz. Os condenados da terra. São Paulo: Zahar, 2022.
FERNANDES, F. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Contracorrente, 2021.
FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. São Paulo: Contracorrente, 2020.
FOUCAULT, M. História da sexualidade: a vontade de saber. São Paulo: Paz e Terra, 2021.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2022.
FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
GÓES, Juliana Moraes. Reflexões sobre pigmentocracia e colorismo no Brasil. Revista REVES, Viçosa, v. 5, n. 4, p. 1-22, 2022. Disponível em: https://doi.org/10.18540/revesvl5iss4pp14741-01i. Acesso em: 22 nov. 2024.
GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador: saberes construídos na luta por emancipação. Petrópolis: Vozes, 2017.
GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
GORDON, L, R. Medo da consciência negra. São Paulo: Todavia, 2023.
HAIDER, A. Armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje. São Paulo: Veneta, 2019.
HOOKS, B. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017.
JESUS, R, E. Quem quer (pode) ser negro no Brasil?. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.
MARX, K. Salário, preço e lucro. São Paulo: Edipro, 2020.
MARX, K; ENGELS, F. A ideologia alemã. Rio de Janeiro: Vozes, 2019.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018.
MÉSZÁROS, I. Filosofia, ideologia e ciências sociais. São Paulo: Boitempo, 2008.
MÉSZÁROS, I. O desafio e o fardo do tempo histórico. São Paulo: Boitempo, 2007.
MOURA, C. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 2019.
MOURA, C. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo: Fundação Maurício Grabois: Anita Garibaldi, 2014.
MUNANGA, K. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional vs identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
NASCIMENTO, A. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1978.
NASCIMENTO, B. Uma história feita por mãos negras. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.
NOGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem: sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil. Tempo Social, São Paulo, v. 19, n. 1, p. 287-308, 2007. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-20702007000100015. Acesso em: 22 nov. 2024.
OLIVEIRA, E. O. O mulato, um obstáculo epistemológico. São Paulo: Argumento, 1974.
OLIVEIRA, F. Crítica à razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2013.
PRADO JR, C. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, Boaventura; MENESES, Maria P. (org.). Epistemologias do sul. Rio de Janeiro: Cortez, 2009. p. 73-118.
RIBEIRO, D. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2017.
ROBINSON, C, J. Marxismo negro: a criação da tradição radical negra. São Paulo: Perspectiva, 2023.
SANTOS, A. B. A terra dá, a terra quer. São Paulo: Ubu, 2023.
SCHWARCZ, L. M. Nem preto, nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na sociabilidade brasileira. São Paulo: Claro Enigma, 2012.
SEGATO, R. Crítica da colonialidade em oito ensaios: e uma antropologia por demanda. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
SOUZA, N. S. Tornar-se negro. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.
TAVARES, M. C. Maria da Conceição Tavares: vida, ideias, teorias e políticas. São Paulo: Fundação Perseu Abramo : Expressão Popular, 2019.
TELLES, E; SILVA, G. M. (org.). Pigmentocracias: etnicidade, raça e cor na América Latina. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2021.
THEODORO, M. A sociedade desigual: racismo e branquitude na formação do Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.
WALKER, A. A cor púrpura. Rio de Janeiro: José Olympio, 2021.
WEST, C. Questão de raça. São Paulo: Companhia de Bolso, 2021.
WILLIAMS, R. Cultura e materialismo. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
Recebido em: 10/04/2024.
Aceito em: 11/09/2024.
DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n33.69872.p257-279
* Bacharel em Sociologia pelo Centro Universitário Internacional (UNINTER), Brasil. E-mail: henricoi@hotmail.com.
** Graduando em Administração pela Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), Brasil. E-mail: rafaelcardiano.aluno@unipampa.edu.br.
[1] Não nos referimos aqui a apenas pessoas pretas.
É permitido compartilhar (copiar e redistribuir em qualquer suporte ou formato) e adaptar (remixar, transformar e “criar a partir de”) este material, desde que observados os termos da Licença CC BY-NC 4.0.