DAR À LUZ: fotografia de parto e invisibilidade da mulher e da família negras no Instagram

 

GIVING BIRTH: birth photography and invisibility of the black woman and the black family on Instagram

 

Carolina Figueiredo *

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n33.69874.p49-69

 

Resumo

A partir da observação de que há uma sub-representação de mulheres e famílias negras em fotografias de parto postadas na rede social Instagram, o presente artigo realizou um levantamento das imagens indexadas nesta rede com a hashtag #fotografiadeparto com o objetivo de verificar as cores dos sujeitos fotografados observando a existência efetiva desta sub-representação. Para isso, usou-se um levantamento quantitativo de 249.863 publicações indexadas com a hashtag #fotografiadeparto, feita com o suporte da plataforma Gephi na etapa de coleta das imagens, acompanhado de uma análise qualitativa dessas imagens, organizadas em mosaico para melhor visualização. Chegou-se ao resultado de que a grande maioria das imagens postadas se refere a mulheres e famílias brancas. Como conclusão ficou observado que a sub-representação de mulheres e famílias negras em fotografias de parto invisibiliza o parir dessas mulheres e reforça estereótipos de raça e processos de violência obstétrica que são ao mesmo tempo causa e resultado desta sub-representação.

Palavras-chave: Instagram; parto; fotografia; mulher negra.

 

Abstract

Based on the observation that there is an underrepresentation of Black women and families in birth photographs posted on the social network Instagram, this article conducted a survey of images indexed with the hashtag #fotografiadeparto, aiming to verify the racial composition of the photographed subjects and confirm the existence of this underrepresentation. For this purpose, a quantitative analysis of 249,863 posts indexed with the hashtag #fotografiadeparto was conducted, with the support of the Gephi platform during the image collection stage. This was accompanied by a qualitative analysis of the images, organized into a mosaic for improved visualization. The results revealed that the vast majority of the images featured white women and families. The study concludes that the underrepresentation of Black women and families in birth photography contributes to their invisibility, reinforces racial stereotypes, and perpetuates processes of obstetric violence, simultaneously a cause and a consequence of this underrepresentation.

Keywords: Instagram; childbirth; photography; black woman.

 

 

A vagina também pode. Pode sofrer por nós e se abrir por nós, morrer por nós e nos trazer sangrando, sangrando a este incrível e difícil mundo

(Ensler, 2018, p. 54-55)

 

Fotografia, memória e humanização: produção de imagens e o sujeito na contemporaneidade

 

Fotografia, em termos estritamente etimológicos, significa escrever com luz. Mais do que isso, do ponto de vista simbólico, fotografar é estabelecer recortes e dar visibilidade a determinados aspectos da experiência humana, seja ela individual ou coletiva, em detrimento de outros. Para além de questões técnicas ou artísticas, a fotografia se impõe como forma de aprovisionar a experiência, projetando-a para o futuro para que o tempo vivido seja reacessado por aqueles que o experienciaram diretamente ou por terceiros. Esse aspecto da fotografia como artefato da memória é amplificado quando consideramos a fotografia familiar. Kossoy (1999) lembra que a associação imediata da fotografia à realidade é algo tão normalizado que existe na contemporaneidade uma predisposição para se acreditar que ela é um substituto imaginário e, por vezes único, do real, como se a própria memória fosse condicionada à existência do registro fotográfico. Deste modo, a história individual e familiar é mediada pela imagem fotográfica que passa a ancorar as relações entre os sujeitos e as experiências vividas.

Sontag (2004), ao tratar da relação entre fotografia e memória familiar, explica que cada família constrói “uma crônica visual de si mesma” a partir dos momentos fotografados que, entre outras coisas, atestam, ao longo do tempo, o pertencimento do indivíduo a determinado grupo familiar. Para a autora, é no exato momento em que a industrialização remodela a noção de família e a vida familiar na Europa e nas Américas que as imagens são configuradas como “rito familiar” para afirmar a própria existência da família nuclear e sua perpetuação ao longo do tempo, indicando os membros de uma família, suas celebrações, marcos temporais, ampliação com o surgimento de novos membros e de novos núcleos familiares, o nascer e o morrer. É por isso que, ainda na segunda metade do século XIX passam a ser recorrentes (West, 1996), de acordo com as condições materiais dos sujeitos, as fotografias de casamento, de crianças pequenas e mesmo a fotografia de mortos (fotografia pós-mortem), sendo esta último recurso para registrar a imagem dos entes queridos, em especial de bebês e crianças falecidos precocemente, antes que suas feições fossem permanentemente perdidas.

As fotos de indivíduos mortos, que se popularizam no período vitoriano, muitas vezes exigindo a remoção do morto para estúdios fotográficos e um cuidadoso trabalho de limpeza, vestimenta, preparação de penteados e maquiagem, indica a importância desses registros que, muitas vezes, eram as únicas imagens produzidas dos sujeitos fotografados, especialmente das crianças, cujos corpos eventualmente eram inseridos em contextos da dinâmica familiar, com irmãos e pais integrando as imagens ou mesmo cercados com seus brinquedos e outros objetos queridos. Contudo, cabe lembrar que estes, como quaisquer registros fotográficos, estiveram — e estão ainda — condicionados às condições materiais e tecnológicas dos sujeitos e do seu tempo.

Demora quase um século para que a outra ponta da vida, o nascer, seja atada à fotografia. É a popularização dos estúdios fotográficos e depois o advento das câmeras domésticas que permitem que crianças cada vez menores sejam fotografadas. Se as técnicas primitivas de fotografia exigiam longos minutos de exposição — isto é, além de serem custosas do ponto de vista material, exigiam que o sujeito fotografado permanecesse imóvel, o que dificultava o registro de crianças[1] —, o avanço tecnológico que ocorre na primeira metade do século XX e a popularização das câmeras portáteis, na segunda metade deste século, tornou possível captar imagens de crianças mais precocemente, por vezes nos seus momentos iniciais de vida e mesmo no parto.

De mãos dadas com os avanços tecnológicos — considerando-se a produção de imagens digitais na primeira metade do século XXI e a possibilidade de registro fotográfico feito também a partir de dispositivos móveis (telefones celulares e outros) —, são as mudanças culturais que colocam a fotografia dos nascimentos na centralidade do debate que realizamos aqui. Ainda no final dos anos de 1980, o termo “parto humanizado” surge tanto como resposta ao número excessivo de partos cesarianos sem indicação adequada (Duarte, 2019) quanto a questões relativas ao feminismo, que colocam a mulher como protagonista no momento de parir, seja qual for a via de parto possível a cada contexto (parto via cesariana ou vaginal).

A humanização do parto implica em assistência integral à mulher e à família no momento de parir. Considera que todos envolvidos no processo — mulher, acompanhante(s) e bebê — têm participação ativa e merecem ser acolhidos e respeitados em suas particularidades e necessidades. Assim, o parto não deve ser tratado meramente como um evento médico, mas como um acontecimento estruturador e estruturante da vida da mulher e da família e momento em que o nascituro ganha status de cidadão. No Brasil[2], o artigo 7º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) afirma:

 

A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência. (Brasil, 1990).

 

Assim, a criança deveria ter assegurado por lei o seu direito à dignidade em todas as etapas do seu desenvolvimento, o que inclui o nascer. Embora o ECA não trate da construção da memória do indivíduo em formação, ele explicita a necessidade de se proporcionar desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social com dignidade. Em adição, a Política Nacional de Humanização (PNH), adotada pelo Sistema Único de Saúde (SUS) desde 2003, com base nas diretrizes de humanização da Organização Mundial de Saúde (OMS), estimula:

 

(…) a comunicação entre gestores, trabalhadores e usuários para construir processos coletivos de enfrentamento de relações de poder, trabalho e afeto que muitas vezes produzem atitudes e práticas desumanizadoras que inibem a autonomia e a corresponsabilidade dos profissionais de saúde em seu trabalho e dos usuários no cuidado de si (Brasil, 2013).

 

Cabe ressaltar que uma perspectiva humanizadora é

 

Uma aposta ético-estético-política. É uma aposta ética porque envolve a atitude de usuários, gestores e profissionais de saúde comprometidos e co-responsáveis. É estética porque se refere ao processo de produção da saúde e de subjetividades autônomas e protagonistas. E é política porque está associada à organização social e institucional das práticas de atenção e gestão na rede do SUS (Brasil, 2010).

 

De modo que a questão estética é contemplada e implica na produção de subjetividades. A perspectiva de Sontag sobre fotografia, já clássica, considera o aspecto da subjetividade quando a autora afirma que “a fotografia se tornou um dos principais instrumentos capazes de nos fazer conhecer determinada experiência, dando-nos a impressão de dela participar” (Sontag, 2004). A autora diz “impressão” porque a fotografia remonta o acontecimento vivido, mas não corresponde ao acontecimento em si. Trata-se de um olhar ou recorte sobre o evento que é também algo em si e que pode ter múltiplos significados em momentos distintos e a partir de múltiplos observadores.

 

Fotografia, linguagem e sentidos

 

Isso é reforçado pelo fato de a fotografia ser uma espécie de escrita — escrever com a luz — ou de linguagem. Especificamente sobre a linguagem, Agamben (2005, p. 56) afirma que “é na linguagem que o sujeito tem sua origem e seu lugar próprio, e que apenas na linguagem e através da linguagem é possível configurar a percepção transcendental como um eu-penso”. Sobre a questão da linguagem, e nos ancoramos aqui neste termo, pois não fomos capazes de localizar textos e pesquisas específicas sobre fotografia de parto, Szejer e Stewart (1997, p. 38) afirmam que “a mulher grávida se situa numa rede de palavras, de atos e de sintomas que vão, em parte, determinar não só o modo como ela vai viver, mas também os sentidos que a criança carregará ao nascer”. Mais especificamente sobre o momento em que a criança nasce, os autores afirmam que é necessário entronizar a criança na ordem da linguagem (Szejer; Stewart, 1997), falar com ela, nomeá-la, porque a linguagem, para além dos aspectos físicos envolvidos no parto e nas relações parentais, situa a criança recém-nascida na ordem da família.

Toda criança vem ao mundo precedida de um “banho de linguagem”, isto é, de “uma história no seio da qual sua existência começou e se inscreve” (Szejer; Stewart, 1997, p. 43). Essa história, de acordo com os autores, é expressa por palavras, mas aqui estendemos a noção postulada por eles para a linguagem fotográfica, para a grafia em imagens que buscam representar o nascer e, ao fazê-lo, podem situar a criança na vida familiar. Deve-se considerar, certamente, o desejo individual do registro e a escolha legítima de não se fotografar ou expor determinado momento de foro íntimo, contudo, trata-se aqui de indicar a impossibilidade compulsória desse registro, levando-se em conta a prevalência da imagem fotográfica nas sociedades ocidentais contemporâneas. A ausência ou presença de registro fotográfico contribui — embora não seja determinante — para situar a criança recém-nascida na ordem da família, e a ausência de registros fotográficos do parto obscurecem o próprio momento do nascer na contemporaneidade.

Não se trata de sobrevalorizar a fotografia de parto, mas entendê-la no contexto ao qual a noção de hiper-registro se refere. Trata-se, naturalmente, de uma entre múltiplas linguagens e experiências que ajudam a criança recém-nascida a se inscrever na história familiar. Isso, obviamente, considerando o desejo dos envolvidos em fazer esse registro. Se há o desejo, algo que não se buscou analisar nesta pesquisa, pois exigiria uma abordagem etnográfica, e ele não é cumprido, obscurece-se um momento que deveria ser de dar à luz, tanto no sentido de nascer, quanto no de se permitir que haja a fotografia enquanto escrita com luz sobre esse momento. A partir da leitura de Didi-Huberman, Pereira e Coêlho (2021, p. 81), afirma-se que fotografias são “testemunhos, atos de fala, que nos revelam muito sobre as condições nas quais essas imagens foram produzidas [ou não]”.

Entender as precariedades que impedem o registro do ato do nascimento permite enxergar as estruturas sociotécnicas que dificultam a representação desses corpos parturientes e paridos. Sobre a intimidade, Sibilia (2008 p. 86-87) afirma que os depoimentos, e aqui tratamos de registros imagéticos que ao serem compartilhados em rede têm o potencial de depoimento, são valorizados como preciosos tesouros de sentido. Diante disso e considerando essa noção de “tesouros de sentido”, a partir da análise das imagens de parto publicizadas na rede social Instagram, busca-se apontar para a ausência do registro de mulheres e famílias negras, especulando sobre a relação entre esta ausência e dos dados relativos à violência obstétrica. Relacionando a análise das imagens e a questão da violência obstétrica no SUS e dirigida a mulheres negras, seria inadequado supor, mesmo em face da ausência de uma pesquisa etnográfica que aprofunde a questão do desejo de registro fotográfico por parte das parturientes e famílias, que não há uma correlação entre imagens publicizadas (e possivelmente do registro não realizado) e do sistema em que o parto foi realizado (SUS ou saúde suplementar), estabelecendo essa correlação um recorte étnico, econômico e social que vai além do desejo individual dos sujeitos.

 

Sobre o acesso à fotografia de parto no Brasil

 

Ao inscrever a criança no seio da família, a questão da fotografia de parto parece ser restrita a decisões de âmbito familiar, isto é, dos diferentes registros que a família decide fazer a respeito dos seus. Esta seria (e essencialmente deveria ser) uma decisão de ordem particular se o acesso à fotografia e aos meios de fotografar fosse igual para todos. Não é. A fotografia foi, ao longo de sua história, acessível a indivíduos e a grupos economicamente privilegiados, daí, entre outras coisas, os esforços materiais e simbólicos empenhados no período vitoriano para o registro dos entes queridos falecidos. Contudo, na pós-modernidade, o acesso a dispositivos móveis com câmeras amplia a possibilidade de registro, torna a fotografia parte da vida cotidiana, derruba muito dos seus rituais — podendo também criar outros — e viabiliza, através das redes sociais digitais, a circulação em massa das imagens.

Em 2024, há cerca de 258 milhões de aparelhos celulares em uso no Brasil (Correio de Minas, 2024). Não podemos falar em democratização do acesso a dispositivos móveis — e por extensão a mecanismos de registro fotográfico —, mas, pelo menos, podemos inferir que há uma facilidade de acesso à fotografia através desses dispositivos. Desse modo, seria possível inferir também que haveria uma facilitação da fotografia de parto em função do acesso aos dispositivos. Porém há um conjunto de outros fatores relacionados ao atendimento da parturiente e da sua família e da humanização dos procedimentos médicos relacionados ao parto que acabam por inviabilizar o registro desse momento quando há o desejo da família em fazê-lo. Isto é, além da disponibilidade de um dispositivo para registro (câmera, celular ou outro) há de se considerar, no contexto da medicalização do parto, algumas outras possibilidades que impedem a fotografia, tais como: proibição de acesso ao lugar do parto com o dispositivo de captação; proibição do registro; parto em local com condições inadequadas ou mesmo insalubres ou proibição de entrada no local do parto de acompanhante, entre outros.

Não há nenhuma lei ou norma que trate especificamente de fotografia ou de qualquer forma de registro antes, durante ou após o parto. Porém a Lei Federal nº 11.108 (Brasil, 2005) trata do acompanhamento durante o trabalho de parto, parto e o pós-parto imediato, o que pode incluir alguém designado a fazer os registros de parto, caso desejado. Não há, ainda em 2022, uma lei federal específica que tipifique e puna violência obstétrica. Apenas oito estados brasileiros possuem legislações que mencionam o termo (Distrito Federal[3], Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraná, Pernambuco, Rondônia, Santa Catarina e Tocantins). Outros dez estados (Acre, Alagoas, Amazonas, Ceará, Mato Grosso, Paraíba, Piauí, Rio de Janeiro, Roraima e São Paulo) possuem legislações que tratam de parto humanizado sem mencionar violência ou violência obstétrica. Em ambos os casos, as legislações incluem questões de ordem física e ações ou omissões que causem sofrimento psicológico à gestante ou cerceiem a sua liberdade, o que inclui a liberdade de produzir quaisquer registros sobre o parto.

Argumentamos aqui que a possibilidade de fotografar o parto, quando há o desejo disso, é absolutamente legítima e se inscreve numa perspectiva humanizada, lembrando-se que a violência obstétrica é uma forma de violência contra a mulher. Quaisquer proibições durante o parto que violem os desejos da parturiente, inclusive a proibição injustificada do registro fotográfico, atentam contra sua individualidade e podem ter consequências físicas ou psíquicas. Segundo a OMS (apud Brasil, 2019), o termo violência obstétrica refere-se à

 

Apropriação do corpo da mulher e dos processos reprodutivos por profissionais de saúde, na forma de um tratamento desumanizado, medicação abusiva ou patologização dos processos naturais, reduzindo a autonomia da paciente e a capacidade de tomar suas próprias decisões livremente sobre seu corpo e sua sexualidade, o que tem consequências negativas em sua qualidade de vida.

 

Segundo recomendação do Conselho Nacional de Saúde, de 2019, em que se indica manter no Brasil o uso do termo violência obstétrica, deve-se considerar

 

[…] que os direitos reprodutivos se desenvolveram no âmbito dos direitos humanos a partir da perspectiva dos direitos individuais; [...] o direito da mulher de passar pelo período de gestação, parto e pós-parto de forma segura e digna; [e ainda, para a finalidade deste artigo], os recortes raciais e regionais da violência obstétrica, haja vista que a maior incidência dos casos de violência obstétrica ocorrem contra mulheres negras, provenientes das periferias e regiões mais pobres do país (Brasil, 2019).

 

Assim, partimos aqui da argumentação que, embora a ausência de fotografia de parto não configure em si violência obstétrica, ela é provocada por um sistema de violência que restringe a autonomia da mulher no momento do parto, limitando ou impossibilitando suas escolhas das mais diversas naturezas (fotografar o parto ou não, por exemplo). Em amplo estudo sobre violência obstétrica, realizado por Marrero e Brüggemann (2018), evidencia-se que a violência do tipo psicológica, na qual proibições injustificadas, ameaças ou violência verbal podem se inscrever, foi a mais recorrente (87%):

 

[…] sendo a ausência do acompanhante o principal motivo do sentimento de violação. Para aquelas atendidas em maternidades públicas, o impedimento da presença do acompanhante de sua escolha durante o trabalho de parto e parto também gerou insegurança, medo e solidão, transformando a experiência em violenta, desagradável e sofrida. (Marrero; Brüggemann, 2018, p. 1224)

 

Em pesquisa realizada por Diniz e colaboradores (2014), demonstrou-se que cerca de 24,5% das parturientes não tiveram direito a acompanhante durante o parto, o que fere a Lei 11.108/2005 (Brasil, 2005), que define a obrigatoriedade da presença de acompanhante indicado pela parturiente. Os autores apontam ainda que 56,7% das mulheres contaram com a presença parcial do acompanhante durante todo o período de internação relacionado ao parto, sendo o acompanhamento “ainda um privilégio das mulheres com maior renda e escolaridade, brancas, usuárias do setor privado e que tiveram cesarianas como opção de parto” (Pontes; Soares, 2018, p. 5). Assim, ao tratarmos de fotografia de parto, nos dirigimos não apenas à questão da violência obstétrica, mas a sistemas de privilégio de classe e raça, expressos pela supressão da liberdade de escolha da parturiente. Efetivamente, quando tratamos da fotografia no contexto do parto, a violência é indicada justamente pela supressão da liberdade de escolha da parturiente e da sua família em fotografar ou não o momento.

Leal e colaboradores (2017) realizaram ampla investigação sobre o atendimento no pré-natal e no parto oferecido às mulheres negras. A pesquisa indica que em comparação às brancas, puérperas de cor preta possuíram maior risco de receberem atendimento pré-natal inadequado, falta de vinculação à maternidade onde o parto ocorreu e ausência de acompanhante — segundo os autores, 33,8% das mulheres negras relataram ausência de acompanhantes durante a hospitalização, número superior à média nacional —, peregrinação para o parto e ausência de anestesia local para o procedimento de episiotomia. De um modo geral, esses dados apontam para experiências de parto potencialmente mais traumáticas e, pensando-se especificamente na questão da fotografia, com menos margem para registro, uma vez que variáveis como, ausência de acompanhante, múltiplos deslocamentos até admissão na maternidade e a dor física da parturiente parecem apresentar-se como empecilhos para a fotografia no momento do nascimento. A ausência de humanização no atendimento é apontada aqui como a ausência de opções e de oportunidades para que o registro fotográfico ocorra, mas não se restringe a isso, pelo contrário a violência obstétrica pode se manifestar de múltiplas formas, de acordo com o contexto.

Aqui, contudo, é necessária uma ressalva: como não localizamos outras pesquisas que associem a produção de registros (fotográficos ou não) à humanização do nascer, para finalidade deste artigo, consideramos que a possibilidade de registro fotográfico do parto pode ser inserida num contexto mais amplo de experiência positiva de parto, contribuindo, como mencionamos, para a memória familiar e para situar o recém-nascido na história da família que o recebe.

Voltando mais especificamente para a questão da mulher negra, considera-se aqui que, por serem as vítimas mais recorrentes da violência obstétrica no país, as mulheres negras têm também menos chances de terem seus partos fotografados. Comprovar essa hipótese apresenta um entrave metodológico: como a fotografia familiar é um evento de foro íntimo, apenas indagando diretamente o público teríamos acesso adequado não só a esse dado, mas à compreensão dos motivos pelos quais não houve fotografia no parto e os impactos afetivos da ausência dessas imagens na vida das famílias. Contudo, a circulação de imagens de cunho privado nas redes sociais se apresenta como um caminho interessante para fins deste artigo, já que fotografias de parto são espontaneamente postadas em diversas redes sociais, compondo uma espécie de registro coletivo dos acontecimentos e vivências afetivas de nosso tempo.

A esse respeito, Manovich (2017) volta sua atenção para o Instagram. O autor argumenta que as ferramentas e plataformas digitais são utilizadas para a criação e compartilhamento de artefatos digitais sofisticados. Por esse motivo, ele considera que o Instagram é a plataforma perfeita para se estudar fotografia popular ao redor do mundo (Manovich, 2017, p.1), isso porque essa rede social digital tem sido usada — segundo dados coletados entre 2012 e 2015 — majoritariamente para a publicação de momentos nas vidas “ordinárias” — e por ordinário, o autor entende “comum” ou “cotidiano” — de milhões de pessoas. Cabe aqui um alerta feito pelo próprio autor (Manovich, 2017, p. 2): a noção de “ordinário” assim como os assuntos tratados, técnicas fotográficas e estilos variam de acordo com o local, grupo demográfico e subcultura (Manovich, 2017, p. 2), e isso deve ser levado em consideração nas pesquisas que tratam dessa plataforma.

O Instagram conta com 134,6 milhões de usuários ativos no Brasil em 2024, o que coloca o país atrás apenas da Índia (230 milhões) e dos Estados Unidos (159 milhões) em termos de utilização da rede (Statista, 2022). Dos usuários brasileiros, 58,5% são mulheres, de modo que diferentes momentos das vidas dessas mulheres e de suas famílias são registrados e ganham visibilidade através do Instagram, como indica Manovich (2017). Seguindo-se a lógica do autor, temos que parto ou nascimento podem entrar no rol dos temas tratados pelos usuários da rede nas imagens postadas. As redes sociais compõem, a partir dos conteúdos produzidos e postados por seus usuários, bancos de dados (Manovich, 2001) que permitem analisar o comportamento, interesses e tendências dos usuários, entre outras variáveis. Para recuperar conteúdos postados, as redes sociais mais populares (Instagram, Facebook e Twitter[4]) usam o sistema de hashtags, o que implica na utilização do símbolo de hashtag (#) seguida de números, palavras ou conjuntos de palavras que permitam a indexação de conteúdo e sua posterior localização.

 

Procedimentos metodológicos, resultados e análise

 

Ao estabelecermos uma correlação entre violência obstétrica e ausência de registros fotográficos de parto, implicamos que, por serem vítimas mais recorrentes de violência obstétrica, as mulheres negras têm seus partos menos fotografados. Implicação verificada aqui através do Instagram basicamente por três motivos: (1) como indica Manovich (2017, p. 2), o Instagram serve de plataforma de publicização de imagens de caráter pessoal, feitas por pessoas comuns e não apenas celebridades e empresas; (2) o uso de hashtags viabiliza a recuperação de imagens de acordo com a temática com a qual foram categorizadas; (3) o Instagram permite a extração de imagens postadas no modo público, isto é, cuja visualização é permitida por seus usuários para todos que acessam à rede. Entendemos que a apresentação dos dados quantitativos das fotografias de parto através de hashtags demonstra a desproporção de postagens de imagens de parto das mulheres pelo recorte de cor, mas não comprova, necessariamente, as causas desta assimetria. Contudo, os dados sobre violência obstétrica e cor da parturiente anteriormente mostrados parecem indicar uma correlação entre viabilidade do registro fotográfico e cor da parturiente/família.

Para operacionalizar a pesquisa, optamos por extrair exclusivamente imagens que usassem a hashtag  #fotografiadeparto. A escolha deste termo se deu para que houvesse um foco nas imagens de parto registradas sem finalidades médicas ou de estudo. Isso porque, numa análise preliminar, percebeu-se que o termo #parto inclui em sua categorização no Instagram imagens postadas por profissionais de saúde a respeito da fisiologia do parto, analgesia e outros temas correlatos. Optamos também por esse termo para que fosse possível incluir igualmente imagens de cesáreas e de partos via vaginal, já que quando utilizadas as hashtags #partohumanizado ou #partonatural, as imagens, em sua maioria, referem-se a partos via vaginal. De todo modo, já ao aplicarmos essas hashtags na etapa preliminar da pesquisa, notamos uma prevalência de imagens de mulheres e famílias brancas. Indica-se aqui, então, que os outros termos e hashtags podem ser tratados em pesquisas futuras sobre o tema.

         Estabelecida a hashtag para o recorte das imagens a serem analisadas, decidiu-se utilizar o Gephi, programa que permite a visualização e organização de dados de redes sociais, para a extração das imagens utilizando a hashtag #fotografiadeparto no Instagram. Efetivamente, o Gephi permite a visualização de interações entre os usuários de diversas redes sociais, criando mapas que indicam os fluxos entre usuários de determinada rede a partir da sua relevância ou relevância do conteúdo tratado. Para fins desta pesquisa, adaptou-se o uso do programa através de plugins (Ognyanova, 2014) para a extração das imagens indexadas com a hashtag #fotografiadeparto e sua justaposição de forma horizontal, isto é, sem o estabelecimento de redes entre os usuários que utilizam a tag ou indicação de prevalência (relevância) de usuários, de modo que ficasse evidente apenas a predominância de cor dessas imagens quando justapostas. Ao lançarmos a hashtag #fotografiadeparto no Instagram apareceram (dados coletados em março de 2022) 249.863 imagens. Entre elas foram encontradas também fotografias de gestantes e/ou de recém-nascidos, assim como imagens em preto e branco. Notou-se, entretanto, que o resultado final da pesquisa não teria sido alterado se tais imagens tivessem sido excluídas.

         A partir do levantamento, foram montados diferentes mosaicos justapondo as imagens extraídas. Do mero agrupamento das imagens, partimos para sua análise qualitativa. Como optamos por tratar da cor predominante das imagens (Gouveia, 2018), tomamos como referência visual os fototipos de pele conforme indicados pela Sociedade Brasileira de Dermatologia, reproduzida abaixo na imagem 1:

 

Imagem 1 –  Fototipos de pele

Desenho de rosto de pessoa

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Fonte: Sociedade Brasileira de Dermatologia.

 

Embora seja uma representação simplificada, a imagem acima serve, nesta pesquisa, como parâmetro para a indicação de diferentes tonalidades de pele, permitindo uma análise comparativa com o mosaico produzido para este artigo. Como foram levantadas cerca de 200.000 imagens, e diante da impossibilidade de reproduzir aqui mosaicos com todas elas, optamos por montar um quadro com imagens publicadas entre os meses de janeiro e fevereiro de 2022 e coletadas em março do mesmo ano, indexadas com a hashtag #fotografiadeparto. O mosaico foi montado por meio do recurso de captura (print) de tela a partir dos resultados obtidos na pesquisa, resultando na imagem 2:

 

Imagem 2 — Mosaico representativo composto a partir de imagens indexadas com a hashtag #fotografiadeparto

Foto editada de grupo

Descrição gerada automaticamente com confiança baixa

Fonte: elaboração da autora, 2024.

 

O mosaico acima é uma justaposição de um recorte ínfimo das imagens coletadas, porém trata-se de tomar a parte pelo todo. Quando confrontado com a imagem 1, fica evidente a ausência quase que total de pessoas negras nas fotografias. De um modo geral, as fotografias que utilizam a hashtag #fotografiadeparto registram mulheres e famílias brancas, e há pouca representatividade de mulheres negras e de outras etnias. No caso específico das mulheres negras, isso reforça os dados de violência obstétrica, da qual elas são as principais vítimas, mas também aponta para um recorte de renda, no qual as mulheres e famílias que têm mais acesso a serviços e equipes particulares de saúde têm seus partos, seja qual for a via, mais respeitados e por extensão mais registrados fotograficamente.

 

Considerações finais

 

Tomando-se como referência os fototipos de pele da Sociedade Brasileira de Dermatologia, vemos que há uma sub-representação, se não a total ausência, de mulheres e famílias negras no mosaico criado para o presente artigo. Trata-se de um mosaico que ilustra uma quantidade imensa de imagens (cerca de 200.000). Contudo, ao produzirmos outros mosaicos a partir das imagens coletadas, o resultado é absolutamente o mesmo. A predominância de fotografias de mulheres e famílias brancas indexadas com hashtag #fotografiadeparto é tão gritante que não é nem necessário o uso de softwares de extração de dados para que seja feita esta observação, basta usar a hashtag #fotografiadeparto e outras associadas (#parto; #partohumanizado, #partonatural etc.) na ferramenta de busca do Instagram (identificada com o ícone de uma lupa) para que a sub-representação de pessoas negras no contexto do parto seja percebida. Praticamente todas as imagens reveladas através desta ferramenta serão de pessoas brancas.

Sobre a questão da raça, Thompson-Spires (2021, p. 48) afirma que “microagressões permeiam a vida de pessoas negras desde muito cedo; ainda criança nos deparamos com a violência racista”. A autora trata especificamente da questão do “racismo cotidiano” (Thompson-Spires, 2021) relacionado ao ensino nessa passagem, contudo esta lógica pode ser extrapolada para o objeto em questão neste texto. O recém-nascido negro e sua família são alvos de violência simbólica por não terem possibilidade de registro fotográfico durante o parto. Sem a imagem fotográfica, sem o registro através da linguagem fotográfica, por assim dizer, fica faltando a origem através da linguagem de que Agamben (2005) fala ou o banho de linguagem do qual Szejer e Stewart (1997) tratam.

Questões que são invisibilizadas pela sociedade — ou por parecerem menores ou de foro íntimo, como a fotografia de parto — deixam marcas visíveis (Thompson-Spires, 2021). Essas questões, para Thompson-Spires, são aquelas vivenciadas em “espaços” físicos ou simbólicos destinados a sujeitos brancos. Ao se representar majoritariamente fotografias de parto de mulheres brancas é dado um lugar privilegiado para essas mulheres e suas experiências em detrimento das mulheres negras. Sobre o parir de mulheres negras permanecem marcadores sociais e a interseccionalidade, o que provoca sofrimento em múltiplos níveis, como os dados sobre violência obstétrica entre mulheres negras e a presente pesquisa revelam.

É necessário compreender que a ausência de memória, expressa pela ausência de registro fotográfico, retira, na contemporaneidade, visibilidade e memória do sujeito. As dificuldades e impedimentos do registro de mães e bebês negros, que nos parecem ser resultado de sistemas de acolhimento ao parto precários e de violência obstétrica, inscrevem-se, no campo das imagens, num cenário maior de empecilhos encontrados ao tentar-se fotografar pessoas negras. Desde as fotos analógicas, com seus filmes e métodos de revelação projetados para favorecer peles claras, até os atuais dispositivos digitais de captura e processamento de imagens, que clareiam peles escuras na tentativa de embelezá-las e mostram dificuldades em reconhecer rostos negros como humanos, a história da fotografia é marcada pelo apagamento de características físicas que não sejam lidas como brancas e ocidentais (Pereira; Coêlho, 2021), e nisso se inclui também a inacessibilidade do registro fotográfico.

Grada Kilomba (2019) explica que para que alguém seja considerado “sujeito” é preciso que alguns níveis sejam contemplados. São eles, o político, o social e o individual que integram o campo da subjetividade. Sendo assim, ela conta que

 

Ter o status de sujeito significa que, por um lado, indivíduos podem se encontrar e se apresentar em esferas diferentes de intersubjetividade e realidades sociais, e por outro lado, podem participar em suas sociedades, isto é, podem determinar os tópicos e anunciar os temas e agendas das sociedades em que vivem. (Kilomba, 2019, p. 74)

 

Quando tomamos a fotografia de parto como objeto de análise, fica evidente que este tópico é representado amplamente pelo viés da branquitude, isto é, da experiência de famílias brancas. Naturalmente, isso tem outras implicações que podem ser exploradas em pesquisas posteriores. As famílias retratadas não são apenas brancas, mas possivelmente economicamente privilegiadas, pois a fotografia de parto — conforme a análise das imagens feitas no Instagram — parece ser mais recorrente em hospitais privados e mesmo num contexto domiciliar, o que exige contratação de equipes particulares. Do mesmo modo, é necessário um equipamento mínimo para fotografar, nem que seja um dispositivo móvel, e em muitas das fotografias coletadas fica evidente o olhar de fotógrafos profissionais, contratados para o registro. Assim, há, para além da raça, uma assimetria econômica na assistência ao nascer que, possivelmente, inclui mulheres brancas de baixa renda, mulheres pardas e de origem nativo-brasileira, além de outras etnias. Isso, contudo, não exclui — pelo contrário, apenas reforça — a questão racial implicada na assimetria dos registros publicizados na rede social em questão.

A esse respeito, Kilomba (2019, p. 130) afirma que “o racismo não é biológico, mas discursivo. Ele funciona através de um regime discursivo, uma cadeia de palavras e imagens que por associação se tornam equivalentes”. A cadeia de imagens acessadas, quando tratamos de fotografia de parto, refere-se quase exclusivamente a pessoas brancas, o que gera um regime discursivo específico a respeito do tema. O parir da mulher branca com acesso a meios — em sua imensa maioria privados — de suporte e acompanhamento de parto é belo, situa o bebê discursivamente na família e romantiza o próprio ato de nascer. Para as mulheres negras, parece, pelo menos através dos registros fotográficos extraídos do Instagram com a hashtag #fotografiadeparto, que não há esse lugar.

O nascer das crianças negras é invisibilizado, seguindo a lógica do racismo cotidiano de que Thompson-Spires (2021) fala. É preciso, então, dentro do conjunto de múltiplas e incessantes ações que devem ser tomadas para se combater o racismo, pensar que o próprio nascer das crianças negras deveria ser visibilizado e celebrado, que a violência obstétrica, que acaba por inviabilizar esse registro, deve ser combatida veementemente e que a vida de mulheres e bebês negros deve ser valorada. Por fim, gostaríamos de lembrar que a ausência de fotografias de partos de famílias negras é apenas uma de múltiplas violências sofridas por mulheres e crianças negras no parto, que tem como sua mais dolorosa implicação um índice maior de óbitos de mães e bebês negros no Brasil (Cerquetani, 2021).

Nota-se que corpos negros e, observando-se para além da hipótese este artigo, corpos não normativos em geral, são invisibilizados por sua condição social, algo que se reflete nas postagens do Instagram com a hashtag #fotografiadeparto. Com a ausência de corpos negros, cria-se um vácuo representacional dentro de uma determinada ideia de parir. Se não há representatividade da mulher negra na lógica do parir registrado em imagens e publicizado em rede social, então, qual é o espaço dessa mulher? Como ela deve parir? Ampliando-se essa lógica, a falta de representação pode tornar esses corpos ainda mais suscetíveis à violência. Tratamos da mulher negra neste artigo porque é fundamental tratar dessas mulheres e do racismo estrutural por elas sofrido no momento do parto, é importante sublinhar ainda mais uma vez que os dados apontam que a maioria dos casos de violência obstétrica no Brasil se dirige a elas.

Embora não tenhamos feito uma pesquisa indagando diretamente os sujeitos e suas vontades no que se refere à fotografia, parece-nos um absurdo analítico inferir que haja mais fotos de parto de mulheres brancas do que de mulheres negras no Instagram por uma mera questão de escolha. Sobretudo, ao fazer tal suposição, corre-se o risco de repetir a mesma lógica racista que supõe que mulheres negras sentem menos dor ao parir. Dentro da proposta metodológica endereçada por Manovich (2017), devemos considerar que, até certo ponto, o volume de imagens coletadas fala por si. Outras pesquisas e de naturezas distintas desta podem propor uma metodologia etnográfica no sentido de verificar o que apontamos aqui a partir das imagens. Em adição, embora a experiência de parto seja individual e englobe uma diversidade de variáveis, não podemos negar o papel das imagens nas sociedades contemporâneas.

A análise das imagens feita aqui indica que, para além da mulher negra, há uma inviabilização de um modo geral do parto de mulheres não brancas e corpos não normativos, como um todo. Temos aí, pelo menos, duas questões paralelas, mas que podem e devem ser tratadas interindividualmente a partir de coletas mais robustas, considerando-se, inclusive, outras metodologias: 1) a ausência de fotografias de parto ou menor incidência de fotografias de parto realizados no SUS, em função da ausência de uma perspectiva humanizada na prática; 2) a violência obstétrica em si — que acaba por impedir a fotografia de parto — ter mais recorrência sobre as mulheres negras; 3) a necessidade de se tratar de humanização do parto e de acesso/direito ao registro fotográfico no parto como um todo e como parte da humanização do nascer de modo amplo, já que, como vimos, a fotografia ajuda a elaborar, como forma de linguagem específica, a memória da família, da criança e de situá-la na vida familiar.

Alijar a criança de seu registro fotográfico, em uma sociedade na qual as imagens possuem relevância na vida cotidiana, é alijá-la de um rito familiar, como propõe Sontag (2004), é roubar dela e da sua família o direito à memória e à cidadania. Por fim, destacamos que este trabalho busca indicar que a ausência de uma lei federal sobre parto humanizado ou violência obstétrica cria lacunas como esta da fotografia. Fotografar o parto quando desejado pela família faz parte da humanização do nascer? Ao longo deste texto defendemos que sim. Se a vontade de fotografar for manifestada pela parturiente, ela deve ser acolhida e, sobretudo, deve haver condições adequadas no momento de nascer para que a vontade da gestante seja respeitada, para que não haja qualquer tipo de violência e para que o bebê possa integrar a ordem do discurso do seu núcleo familiar a partir das formas de registro que sejam significativas para sua família.

 

Referências

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Recebido em: 10/04/2024.

Aceito em: 16/10/2024.

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n33.69874.p49-69

 

 



* Doutora em Comunicação Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Brasil. Professora do Departamento de Comunicação Social e membra do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFPE, Brasil. E-mail: carolina.figueiredo@ufpe.br.

[1] Isto fez com que, ainda no período vitoriano, tenha surgido um tipo particular de fotografia (hidden mother photography) em que as mães seguravam as crianças para o registro, mas permaneciam ocultas ao fotógrafo, escondidas por meio de cortinas e outros recursos (Bathurst, 2013).

[2] Chama-se atenção para a conversão do nascituro em cidadão, considerando-se as especificidades da legislação brasileira. Embora durante todo o início deste texto a questão do registro fotográfico e do nascer tenha sido tratada de forma mais geral, porque o nosso recorte analítico recaí sobre o Brasil, os países-membros da Organização das Nações Unidas legislam de formas diferentes sobre os direitos de crianças e adolescentes.

[3] As leis que tratam deste tema nos estados acima mencionados são: Lei 7.461/2024 (Distrito Federal); Lei 19.790/ 2017 (Goiás); Lei nº 5.491/2020 (Mato Grosso do Sul); Lei nº 19.207/2017 (Paraná); Lei nº 16.499/2018 (Pernambuco); Lei 4173/ 2017 (Rondônia); Lei nº 17.097/2017 (Santa Catarina); Lei nº 3674/2020 (Tocantins).

[4] Utilizamos aqui o nome antigo da plataforma, pelo qual ela ainda é conhecida, contudo, desde julho de 2023, o nome foi modificado para “X”.

 

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Desenho de um círculo

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