GENTRIFICAÇÃO E NECROPOLÍTICA: uma observação dos processos de violência e ocupação da cidade do contexto no bairro São Pedro em Chapecó - SC

GENTRIFICATION AND NECROPOLITICS: an observation of the processes of violence and occupation of the city from the context of the São Pedro neighborhood of Chapecó - SC

Saulo Cerutti *

Arlene Renk **

 

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n33.70016.p217-238

 

 

Resumo

A análise dos conflitos e das violências de determinada sociedade não pode ser destacada dos fenômenos criadores, fazendo com que a identidade coletiva e a historicidade da estrutura comunal sejam parte integrante das dinâmicas sociais. O estudo das violências entre crianças e adolescentes no Município de Chapecó foi o fato gerador da análise dos processos de criminalização e do fenômeno urbanismo social e da qualificação ambiental como instrumentos de gestão social direcionando a investigação para o Bairro São Pedro em Chapecó, tanto pelo contexto histórico-formativo quanto pelo preconceito instalado pela estigmatização criminal. Por meio de levantamentos bibliográficos, que possibilitaram a compreensão da formação histórica da comunidade, em etnografias e publicações jornalísticas sobre o campo de estudo, aliado às percepções de membros das forças policiais, estabelecemos como objetivo da pesquisa compreender o tecido em que se desenvolvem as relações de violência, vulnerabilidade e ocupação espacial nas conexões entre o direito à cidade e a gestão social por parte do Estado e da exploração econômica. Notamos uma tendência necropolítica na atuação do Estado e da iniciativa privada — em especial com a atividade especulativa imobiliária — no controle das violências, com um processo consequente de gentrificação, não resolvendo as condições de vulnerabilidade da comunidade atingida, mas realocando habitações carentes e ampliando os processos de segregação para novas fronteiras de vulnerabilidade.

Palavras-chave: gentrificação; necropolítica; violências; bairro São Pedro.

 

Abstract

The analysis of conflicts and violence in a given society cannot be separated from the phenomena that create them, making collective identity and the historicity of the communal structure an integral part of social dynamics. The study of violence among children and adolescents in the municipality of Chapecó was the fact that generated the analysis of the processes of criminalization and the phenomenon of social urbanism and environmental qualification as instruments of social management, directing the investigation to the São Pedro neighborhood of Chapecó, both because of the historical-formative context and because of the prejudice installed by criminal stigmatization. By means of bibliographic surveys that made it possible to understand the historical formation of the community and journalistic publications about the field of study, together with the perceptions of members of the police [security] forces, we established as the research objective to understand the fabric in which relations of violence, vulnerability and spatial occupation develop in the connections between the right to the city and social management by the state and economic exploitation. We noticed a necropolitical tendency in the actions of the state and private enterprise — especially with speculative real estate activity — in controlling violence and a consequent process of gentrification, not resolving the conditions of vulnerability of the affected community but relocating poor housing and extending the processes of segregation to new frontiers of vulnerability.

Keywords: gentrification; necropolitics; violences; São Pedro neighborhood.

 

Introdução

 

A construção das compreensões sobre a criminalidade e as violências não costumam ser fidedignas quando não consideramos o recorte territorial e espacial em que estão inseridas. Dessa forma, os processos de violência (aqui compreendidos em seu caráter plural, englobando tanto aquelas violências criminalizadas quanto as discursivas e segregacionistas) não podem ser estudados em desconexão com o ambiente de inserção e com as definições de poder que emergem do espaço objeto. Assim, tanto na análise das causas como na proposição de políticas de ajuste, o campo deve estar inserido no contexto de observação, sob pena de traçarmos ações vazias e respostas estáticas a dinâmicas vivas e emergentes.

A investigação sobre os efeitos das relações de criminalidade entre o público infantojuvenil e as políticas de urbanização no município de Chapecó conduziu a análise para um necessário recorte espacial que nos direcionou ao bairro São Pedro, por ser, historicamente, conhecido pelo quadro vulnerável e violento, especialmente nos contextos que envolvem a questão das drogas, construído em processos de contínuas exclusões e que vem sendo alvo de políticas de reestruturação urbana com instalação de novos aparatos públicos como instrumento de melhoria da qualidade de vida dos residentes.

No cenário de implementação de modelos de urbanismo social, alguns pontos de destaque foram sendo notados. O Estado, enquanto centralizador do poder de decisão, condiciona sua atuação através da gestão da vida — indicando quem pode viver —, no sentido que lhe dá Rose (2013), e quando em comunidades mais vulneráveis permeadas pela criminalidade, age em um sentido mais nefasto, traduzindo os padrões da necropolítica — conjunto de técnicas de resistência, sacrifício e terror — para indicar quem deve morrer (Mbembe, 2016), numa espécie de gestão de vida e morte que se destaca em contextos de colonialismo, racismo e violência estrutural.

A necropolítica, como estratégia — não declarada — de gestão de violência por meio do terror, unida aos movimentos de qualificação urbana, funciona como propulsor de interesses da iniciativa privada na especulação imobiliária por intermédio da gentrificação. Há o deslocamento de famílias de baixa renda pela higienização social travestida de revitalização urbana (Pilatti; Grassi, 2018).

A leitura feita no caso do bairro São Pedro em Chapecó busca apresentar as relações entre a gestão da violência (de forma multivocal) por meio de uma postura necropolítica do Estado, principalmente por ação das forças policiais que, embora não planejada, cumpre as expectativas do capital na valorização imobiliária e no deslocamento forçado da população mais vulnerável, complementada pela própria relação de identificação da comunidade por outros moradores de Chapecó como “conjunto criminoso”. Assim, estabelecemos como objetivo da pesquisa compreender o tecido em que se desenvolvem os processos de violências e as dinâmicas de qualificação ambiental no contexto da comunidade foco, levantando-se a hipótese de a revitalização funcionar não como instrumento de correção das vulnerabilidades e melhora na qualidade de vida dos habitantes, mas como fundamento para novas exclusões, mantendo — ou até aumentando — a segregação e as violências num processo de gentrificação do espaço urbano.

 

Metodologia

 

A pesquisa busca ir além dos recortes quantitativos expressos em índices criminais registrados pelas forças policiais ou de levantamentos sobre taxas de desenvolvimento, acesso a sistemas de educação (ou quaisquer outros serviços públicos) constantes em bancos de dados oficiais. Dirige-se para uma análise das percepções de diferentes participantes do contexto social, aliada a técnicas de observação e reconstrução histórica para compreender os limites intersubjetivos que são geradores das territorialidades. Na lógica de Ferrel, Hayward e Young (2019), a escolha da metodologia disruptiva no estudo da criminologia — e dos contextos de violência — não está afiliada a nenhuma técnica específica, mas, efetivamente, na crítica e incompletude contínuas, numa espécie de anarquismo metodológico na linha dadaísta expressa por Feyerabend.

Em um primeiro momento, buscou-se um recorte historicista na formação da comunidade do bairro São Pedro como mecanismo para compreensão dos fenômenos geradores dos processos de violência e das territorialidades, seguido por um levantamento documental de notícias que envolvam a região, sem um recorte temporal específico, dando destaque para a atuação do poder público nos últimos tempos como representação da preocupação mais recente sobre a região.

Por fim, a coleta, no contexto de 2021 a 2023, englobando o período da pandemia da Covid-19, de percepções de agentes envolvidos com a gestão das violências e atuação policial na região, tanto integrantes da polícia militar, responsável pelo policiamento ostensivo como pela polícia civil, incumbida do processo investigativo. Preferiu-se a participação de profissionais que trabalham na região e que têm acompanhado o processo de transformação espacial, das migrações humanas e da dominância de áreas por facções criminosas. Essa rede de fundamentos é traduzida através de um processo de observação, em especial a partir de 2020, sobre as dinâmicas da região, pela inserção dos próprios pesquisadores, dada a proximidade de suas moradias do contexto, utilizando as violências relacionadas ao comércio de drogas como instrumento inicial de análise na relação causa-consequência da identificação local, nos níveis de pertencimento e exclusão social sob um viés da necropolítica (de invisibilização dos “indesejados”) e dos processos de gentrificação, aqui compreendidos como as dinâmicas de revitalização e valorização urbana e imobiliária, atraindo novos residentes, geralmente de classes mais altas, provocando o deslocamento dos antigos moradores, transformando culturalmente o espaço.

 

Cenário da pesquisa

 

A pesquisa estava inicialmente planejada para uma abordagem generalista sobre os fenômenos de violências e drogadição (consumo e comércio) entre o público infantojuvenil. Contudo, com o desenvolver das análises bibliográficas e documentais, que aconteciam simultaneamente com as práticas de observação, tivemos a necessidade de efetuar um recorte territorial — não só no aspecto espacial, mas também na identificação social — enquanto formação de territorialidades específicas (Sack, 2011) na compreensão da identidade (“sou daquele bairro”) — para a inclusão das noções de gentrificação e da necropolítica na gestão das violências e do desenvolvimento urbano. Assim, delimitamos a análise para a área leste do município de Chapecó, em especial no processo histórico de formação e contornos do campo delimitado pelo bairro São Pedro.

A formação do bairro São Pedro é consequencial à organização espacial e estruturação do próprio município de Chapecó. A região oeste catarinense, conhecida como Sertão — pelo seu fictício vazio populacional (Renk, 2004) — era território objeto de constantes disputas. Em um primeiro momento, nos limites entre Brasil e Argentina, que só viria a ser resolvido pela mediação que tomou forma na Questão de Palmas em 1895, e posteriormente pela disputa entre Santa Catarina e Paraná, nos tempos da guerra do Contestado (1912-1916), que findaram na definição dos municípios de Chapecó, Mafra, Porto União e Cruzeiro (atual Joaçaba) pela Lei Estadual n. 1147, de 25 de agosto de 1917 (Santa Catarina, 1917).

Para a ocupação efetiva da região com objetivos de colonização (aqui a ocupação se dá apenas no sentido colonizatório, pois o território já era habitado) para domínio dos limites territoriais, à época definidos, iniciou-se o processo de loteamento do espaço para comercialização, principalmente aos novos migrantes, que já alcançavam a fronteira norte do Rio Grande do Sul. A região, contudo, não era o vazio humano relatado pelo Estado no fomento ao processo de colonização. Populações caboclas mantinham residência na região, sem, entretanto, estarem sujeitas à noção de propriedade privada e à titulação das terras. Vivia-se em regime de utilização comunal do ambiente. A estabilização das residências dos colonizadores e dos principais serviços públicos na atual região central do município promoveu a expulsão das populações autóctones que, segundo Vicenzi, ocorria de forma impositiva, já que a

 

Companhia Colonizadora Bertaso colocava capatazes e homens de confiança à disposição dos novos proprietários, encarregados de zelar pelas terras. Esses capangas eram instruídos para agir com a máxima severidade – ou seja, através da violência –, expulsando intrusos que penetrassem ou habitassem nas terras vendidas. (Vicenzi, 2008, p. 65)

 

Este desterro involuntário provocava a migração das populações afetadas para regiões mais distantes do centro urbano. O planejamento urbano do município provocou um sistema de alocação concêntrica, em que a distância do centro é inversamente proporcional à renda das famílias, ou seja, quanto mais longe, menor a renda. A ocupação da região central por outsiders, compreendidos como aqueles novos migrantes que não compartilhavam a mesma origem identitária: “os outros” (Elias; Scotson, 2000), durante o período pós 1950, com o surgimento do frigorífico SAIC, fez com que a empresa colonizadora Bertaso, com o apoio das elites econômicas e políticas, promovesse o loteamento para a remoção das famílias irregularmente instaladas, com viés nitidamente higienista, estético e excludente. Criou-se, então, a delimitação da vila onde hoje está localizado o bairro São Pedro.

 

Figura 1 – Mapa das adjacências do bairro São Pedro

Fonte: Google Maps. Edição dos autores, 2024.

 

Reportagem publicada pelo jornal Oestão, em 17 de fevereiro de 1979 (Ceom, 2020), relata que os primeiros moradores da região eram colonos (migrantes de baixa renda e população cabocla — miscigenados de indígenas e brancos — que não compartilhavam o mesmo poder aquisitivo e traços étnicos com a população, em sua maioria, de ascendência italiana que ocupava a área central) que tinham comprado direito de propriedade na Fazenda Bertaso. Contudo, em 1968, foram intimados a deixarem suas moradias. Vendeu-se aos desalojados pequenos terrenos (10x15m) em área adquirida pela própria Bertaso e, os que se recusassem a sair, eram empurrados e suas casas derrubadas por caminhões. Diversos terrenos adquiridos não puderam ser escriturados por serem pequenos demais. À época da reportagem, já era inegável a intenção de invisibilidade imposta à região, por inexistir meio de locomoção pública que ligasse a área ocupada com a região central, distante 3 km.

Relatos provindos de uma pesquisa etnográfica das regiões periféricas de Chapecó (Antunes, 2005, p. 88) demonstram que, no processo de formação do bairro,

 

Lotearam e como eles iam tirando o pessoal da fazenda iam trazendo aqui pro São Pedro. E naquele tempo era meio grosseiro o negócio. Vinha-se com uma caçamba da prefeitura, a casa, a madeira pra casa, e mudança e era tudo ali. Eles chegaram e basculhavam ali no lugar da casa, ia embora o caminhão e o pessoal já ficava ali, levantando alguma tábua. Eu cansei de ver o pessoal morar aí debaixo de tábua dois meses, não tinha. As vezes, tempo de chuva, eles encostavam assim uma tábua na outra e ficavam morando, até que dava pra fazer uma casinha. (Antunes, 2005, p. 88)[1]

 

O processo de organização (ou conformação) do bairro São Pedro indica a tentativa de tornar invisíveis os indesejados, distanciando (posto que a ligação entre a região central e a localidade do loteamento apresentava diversos ramos hídricos que promoviam áreas de banhado que dificultavam a transposição) da região desenvolvida, esteticamente higiênica e com organização urbana moderna (Antunes, 2005).

O distanciamento da região central, por meio de loteamentos precários nas regiões das bordas (no próprio sentido periférico), promovia não só a neutralização visual da população residente como também um esquecimento pelo poder público, já que os serviços essenciais eram alocados na região urbanizada, inviabilizando o acesso. Segundo entrevista veiculada em 1979 (Ceom, 2020), “‘os coitadinhos [...] vão para o centro vender jornal, engraxar sapatos, procurar ‘biscates’ As especialidades são poucas: pedreiros e carpinteiros; outros trabalham nas lavouras próximas”, indicando categorias de subemprego e baixa remuneração, provocando um ciclo de exclusão social. Ademais, indicava-se que “com respeito à ação desenvolvida pela diretoria da comunidade do bairro, esta é quase nula, o que é lamentável, comentaram diversas pessoas consultadas. Isto decorre porque há desacordos entre os integrantes da diretoria”(Ceom, 2020), demonstrando que não existia unidade nos anseios, ponto representativo da multiplicidade no processo formacional. As distintas etapas de ocupação justificam o padrão de mosaico social, facilitando — tanto pela ausência do poder público enquanto garantidor como pela ausência de identidade histórico-comunitária de coesão étnica-cultural — a ascensão de redes de poder paralelas.

O recorte fotográfico apresentado acima indica que, ainda que em um contexto de urbanização acelerada, os limites da região leste, configurando uma borda do espaço urbanizado, ainda se confundem com a fronteira agrícola que está fora do eixo industrial (regiões sul, oeste e norte) e dos núcleos de comércio (com densidade maior na região central), dificultando o acesso dos residentes da região leste ao mercado formal com maior valorização de mão de obra (hoje relativizado pela facilidade de locomoção).

A estigmatização da população do bairro São Pedro deve-se ao duplo processo de marginalização, no sentido literal de estar à margem (espacialmente falando), bem como no que se refere às dinâmicas de violência e criminalização estruturalmente ligadas às áreas de vulnerabilidade e de ausência de políticas sociais efetivas. O conhecimento levado a cabo pelo senso comum e pelos discursos dos habitantes relaciona o comprovante de endereço que indique a alocação no bairro como sinônimo de perigo. Tanto que, com o afastamento da vulnerabilidade para as regiões ainda mais distantes, promoveu-se, fruto da organização popular, o desmembramento da região, criando-se o bairro Bom Pastor, em 2004 (Antunes, 2005), buscando, talvez, o rompimento da identificação de marginalizados com uma nova demanda de exclusão social, agora para uma localidade mais distante e vulnerável.

A recente atuação do capital e da especulação imobiliária tem diversificado os modos da organização urbanística, fomentando uma nova periferização como uma linha de guetos às avessas, desenvolvendo bolsões populacionais de alta renda nas margens da malha urbana. O espaço que era desvalorizado tanto pelos aspectos sociais como pelo modelo de alocação (pequenos terrenos, irregulares ou não) passou a ser objeto de interesse desenvolvimentista, de asseio espacial pelo poder público e de lucratividade pela iniciativa privada.

 

Modificações no cenário e a reconstrução ambiental

 

A região leste do município é, historicamente, reconhecida como bolsão de violência e de altos índices de criminalidade. A vulnerabilidade populacional e a degradação ambiental, reconhecidas pelos terrenos de pequeno tamanho, ruas sem calçamento, pavimentação e passeio público, entremeadas por trilhas para facilitar a locomoção humana, moradias carentes e acúmulo de lixo nos terrenos baldios, são, segundo a escola de Chicago (Schecaira, 2013; Giorgi, 2006), elementos formadores de criminalidade. Esse campo da criminologia explora como as relações entre a estrutura e as dinâmicas da sociedade influenciam a criminalidade, especialmente a partir de fatores como a desorganização social — incapacidade de regular comportamentos —, pobreza e a formação de uma subcultura específica, que valoriza e legitima o comportamento criminoso. Assim, a estigmatização social, que por si só já fomenta a exclusão, aliada à baixa qualificação e à ausência de expectativas de incremento social pela distribuição restrita de possibilidades de crescimento na região, facilita a entrada e estabilização de processos de violência e alocação de criminalidade. Recentemente, a difusão espacial de grandes organizações criminosas tem encontrado campo fértil para estabelecimento nessas regiões vulneráveis.

Segundo relatos de um policial militar entrevistado, para as organizações criminosas que atuam nesses locais e para os criminosos que ali exercem suas atividades, a ausência do poder público é um elemento importantíssimo. Indivíduos danificam os sistemas de iluminação pública para que possam atuar na clandestinidade, fazendo com que a polícia tenha de agir com maior força nesses espaços para tentar coibir as ocorrências criminais. Nesses ambientes, mesmo que a vulnerabilidade social esteja estabelecida, as organizações e grupos criminosos não permitem a ocorrência de crimes (que não estejam sob sua jurisdição). Trata-se de uma usurpação do poder estatal de gestão de violência. Diante da ausência do Estado, o poder paralelo determina regras informais (por vezes formais, escritas) de convivência e os limites do certo e errado. Para os residentes, então, cria-se um quadro em que o crime protege os indivíduos residentes (existe aqui um caráter dúplice: os criminosos mantêm o domínio sob a população e evitam a entrada da polícia na área), que veem o Estado como violento e ausente: apenas vem à região para impor a força por intermédio da polícia.

Percepções policiais indicam, por exemplo, que os líderes criminosos não autorizam o comércio de crack em determinadas áreas, já que os usuários desse tipo de droga ficam zumbizando (termo equivalente a perambulando) pela região e cometendo crimes patrimoniais para comprar a droga. Está, então, posta a tempestade perfeita para a juventude local: ausência do Estado enquanto gestor de políticas públicas, dificuldades de acesso à educação emancipatória e ao mercado de trabalho formal com salários mais altos, usurpação da gestão humana pelas organizações criminosas, que protegem o ambiente, representam o poder e prometem retorno financeiro alto. Ademais, a figura da criança e do adolescente é de interesse para o mundo do crime, já que a inimputabilidade desses agentes (pelo critério etário) torna-os instrumento de cometimento criminal em delitos mais gravosos ou com maior atenção por parte dos poderes de segurança.

As políticas de (re)estruturação urbana, aliada ao capital imobiliário, têm promovido, nos últimos anos, por meio de políticas de urbanização e promoção de qualidade de vida, a chegada de asfalto às diferentes regiões do município, englobando também a região em estudo, numa perspectiva de reinvestimento do excedente econômico no direito à cidade (Harvey, 2012). Além disso, como Chapecó tem sido um polo de atração propagandeada, ocupando a 67ª posição no Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) em 2010, 52ª entre os 5.656 brasileiro e 1ª entre os municípios catarinenses com mais de 100 mil habitantes no Índice Firjan de Desenvolvimento Municipal (Prefeitura de Chapecó, 2016), o crescimento demográfico tem conduzido a um aumento nos valores imobiliários. Assim, regiões englobadas nos bairros que circundam o centro têm sido objeto de valorização com a aquisição de terrenos para derrubada das casas remanescentes (muitas ainda construídas em madeira) para alocação de novas unidades habitacionais indicativas de maior poder aquisitivo, invisibilizando a classe operária residente nas comunidades carentes, implicando na compreensão de que o “lugar não é uma mercadoria comum, mas um campo de batalha entre o valor de uso e o valor de troca” (Wacquant, 2010, p. 55).

Aliado ao processo de incremento dos valores pelas condições de crescimento urbano e de reestruturação do solo, o custo de vida nas áreas historicamente periféricas (no sentido de vulneráveis) vem sofrendo incremento, seja pelo valor dos aluguéis, dos impostos cobrados e pela própria realocação dos mecanismos de consumo, gerando, por si só, uma nova exclusão de vulnerabilidade, conduzindo a população que não mais consegue arcar com os custos locais e com a possibilidade de venda dos espaços — por valores baixos para os especuladores, mas suficientes para os proprietários — para novas fronteiras de vulnerabilidade.

Em novembro de 2020, concluíram-se as obras da Praça da Família na área em que se situava a antiga garagem da prefeitura, local em que, por décadas, veículos e maquinários ficavam estacionados. O projeto nasceu do Programa Ouvindo Nosso Bairro, sugerindo-se a construção de uma área com serviços para atendimento da região. Buscava “ser um espaço humanizado, com estruturas de lazer, playground, espaços de convivência, academia ao ar livre e contêineres para abrigar serviços (uma espécie de poupa-tempo)” (Moradores, 2020).

 

Figura 2 – Praça da Família Sandro Luiz Pallaoro

Rodovia com carros

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Moradores (2020).

 

Os investimentos públicos trazem a promessa de qualificação urbana num viés de urbanismo social (Jáuregui, 2010), melhorando a qualidade de vida dos residentes através da presença do Estado (implementação de rede de coleta de esgoto cloacal e roteirização da coleta de lixos) e reduzindo os índices criminais com a instalação de sistema de vigilância público — que, enquanto no centro servem de mecanismo de proteção, nos bairros periféricos funcionam como instrumento de vigilância tal qual o modelo panóptico (Foucault, 1997) —, projetando um padrão de organização social que rompa o modelo das janelas quebradas[2], defendido por todos os policiais entrevistados (Shecaria, 2013). A apropriação da ideia de vigilância, representada pelo panóptico, implica no comportamento e disciplina por receio de punição, extrapolada para os mecanismos de controle social. No caso em específico, os sistemas de videomonitoramento auxiliam no asseio ambiental sem, contudo, resolver a questão de vulnerabilidade, apenas migrando-a para novos espaços ainda não cobertos. Essa perspectiva implica na observação contínua de espaços antes invisíveis, não reduzindo a violência no ambiente urbano, apenas realocando-a.

A definição de políticas de segurança e de asseio, embora criem um ambiente mais agradável, não são suficientes para resolução das dinâmicas violentas que estão historicamente inseridas no tecido social. A dificuldade de acesso da população a mecanismos de qualificação continua sendo um entrave para o melhoramento econômico e reposicionamento social. De forma que a valorização dos espaços não tem reduzido a criminalidade, mas sim redimensionado os fluxos criminais e forçado os mais vulneráveis a regiões ainda mais periféricas. Os interesses especulativos mantêm uma relação simbiótica com o poder público e com as formas de atuação estatal. A identificação das violências e a imposição de instrumentos de controle acabam servindo aos interesses econômicos, sem que essa seja sua real intenção.

 

Gestão de violências e a necessária presença criminal

 

Os processos de violências devem ser trabalhados em seus múltiplos sentidos para a compreensão dos embriões da criminalidade. Quando falamos em violências, não as estamos resumindo aos aspectos criminais e aos índices delitivos, referimo-nos a todas as relações entre indivíduos ou entre estes e instituições que representem tendências conflitivas numa leitura de que se trata de qualquer dinâmica de desumanização conforme proposto por Chauí (Chauí et al., 2017). A exclusão que formou o bairro nos idos de 1960 foi um processo violento. A ausência de políticas públicas é violência. A estigmatização social é violenta.

Esse conjunto de violências explícitas faz eco com as microviolências: tendências de pequenas condutas em repetirem conceitos excludentes ou preconceituosos nas relações sociais que ampliam as dinâmicas de exclusão social e de identificação como grupo segregado. A vulnerabilidade social também tem sido constante instrumento de alocação criminal na região, com as facilidades que a ausência estatal promove. Enquanto algumas comunidades, que passam por reestruturações ambientais, encontram num passado comum um ponto de fixação e recriação comunitária (Silva, 2014), reforçando laços de pertencimento, a ausência de unicidade na formação do bairro São Pedro dificulta a união em torno de um passado comum como forma de proteção dos núcleos comunais, facilitando a segregação e desmantelamento populacional.

O combate às ocorrências criminais, nesse sentido, representa a urgência de ocupação pelo Estado dos espaços públicos e o melhoramento da qualidade de vida dos moradores. Contudo, para que ocorra essa atenção, o crime é necessário. A região leste sempre foi relatada como um antro de criminalidade, contendo pontos em que a própria polícia tinha dificuldades de acesso pelo controle de grupos criminosos e pelas próprias restrições de entrada (vias estreitas de estrada de chão que dificultavam a atuação com segurança para os agentes), em que o comércio de drogas era endêmico. Nesse caminho, a presença de um grande contingente de crianças e adolescentes sempre foi útil para o crime organizado (que ainda era de abrangência local). A criminalidade e a desestruturação funcionam como consequência direta do abandono e como justificativa para a necessária qualificação urbana, fomentando o discurso de que a violência não é a consequência da estrutura comunitária, mas sua causa.

A disseminação das grandes organizações criminosas, como o PCC (Primeiro Comando da Capital), o CV (Comando Vermelho do Rio de Janeiro) e o PGC (Primeiro Grupamento Catarinense), forçou a cooptação de territórios nas cidades interioranas e, principalmente, nas regiões fronteiriças que facilitassem tanto a gestão do comércio de drogas como de outras atividades criminais. Esses grupos vêm dominando regiões vulneráveis e encontrando campo de atuação nas regiões periféricas de Chapecó. A juventude acaba sendo bala de canhão dessa nova fronteira criminal.

Segundo interlocutores policiais militares consultados durante a pesquisa, a região leste de Chapecó, em especial os bairros São Pedro e Pinheirinho, são dominados pelo PGC, uma facção criminosa que conta com a participação de residentes dessas localidades desde sua fundação. As demais áreas do município são dominadas pelo PCC. A atenção dada por essas facções para a região oeste catarinense se dá pela alocação geográfica, sendo cruzamento de corredores de distribuição de drogas da Argentina para o litoral catarinense e da região de Ponta Porã/MS para o Rio Grande do Sul. O controle das organizações criminosas é tão grande que, como disse um dos policiais ouvidos, “se você abrir uma boca de fumo sem fazer parte de uma facção eles vão lá e te matam”. O controle estatal fica, assim, relegado a segundo plano.

Não é suficiente, entretanto, para entender o fenômeno da delinquência pela ideia de exclusão social sob pena de vincular carência econômica com criminalidade o que, por certo, não é uma consequência absoluta, mesmo que com uma aproximação comum. Dowdney (2003), em um estudo sobre as crianças do tráfico, realizado no Rio de Janeiro, elenca alguns fatores preexistentes na inserção criminal: a dominação da área pelas facções, a pobreza, a falta de acesso ao mercado de trabalho formal (incluindo a estigmatização) e o tráfico aceito como atividade legítima. A par desses elementos, o status conferido (o respeito que a sociedade oficial não concedia, agora é recebido em um contexto paralelo), o acesso a dinheiro e bens de consumo, o pertencimento à subcultura das facções, a possibilidade de ascensão através de um sistema de recompensa pela lealdade, capacidade além da emoção e adrenalina. Reportam também que o envolvimento dos pais ou parentes no tráfico é um ponto chave. Um dos policiais entrevistados afirma que “a gente prende, mas o tráfico continua, fica o marido, a mulher, os filhos, todo mundo participa”. Também são notados o envolvimento de amigos com o tráfico e a falta de unidade familiar estável. Um indivíduo de 17 anos, participante do tráfico de drogas, na figura de gerente de soldados, questionado por Dowdney sobre os motivos que o fizeram entrar no movimento, responde que por “covardia da vida. A gente cansa de apanhar” (Dowdney, 2003, p. 124). No caso da etnografia promovida por Amaral e Pereira (2018) no bairro Euzébio Beltrão de Queiroz em Caxias do Sul, todos os entrevistados informam que o tráfico está relacionado com a falta de perspectiva de futuro.

As circunstâncias ambientais andam de mãos dadas com elementos sociais e condições psíquicas dos participantes, que encontram no mundo do crime formas de resistência e pertencimento. Passando de vítimas de um complexo social a detentores de poder simbólico (Bourdieu, 2015) e efetivo. Os confrontos ultrapassam a linha de gestão de conflitos e processos de criminalização para uma legítima luta simbólica pela identificação e detenção de poder e dominância.

 

Necropolítica e gentrificação

 

Os indivíduos pertencentes a determinado conjunto social subalterno e desviante se tornam problema tanto econômico quanto político e estão intimamente conectados com os projetos de gestão de vida, implicando na construção de relação de biopoder no controle de variáveis significativas, tais como a natalidade, morbidade, fecundidade, expectativa de vida, estado de saúde e doenças (Foucault, 2008; Rose, 2013; Lima, 2018), tendo o controle social, institucionalizado ou não, como veículo de conformação. Estruturam-se, portanto, sistemas e processos de gestão humana, conferindo redes de pertencimento e proteção aos adaptados e mecanismos de ocultação dos desviantes.

O controle social, no sentido que lhe dá Castro (2005), dá-se tanto de maneira institucionalizada e passível de gestão centralizada por meio das forças políticas e dos instrumentos públicos (forças policiais e sistema judicial) como também por meio de mecanismos não institucionalizados e difusos, como família, escola, mídia e religião, criando distintas instâncias de gestão da vida com diferentes formas e âmbitos de influência em cada ambiente humano. Nas comunidades vulneráveis, o mecanismo de controle institucional mais sentido ocorre por meio da gestão das violências pela mão armada do Estado.

Como analisado há pouco, a reestruturação ambiental é um instrumento de gestão biopolítica pelo poder público, redefinindo os limites e os modos de vida da população envolvida, estendendo-se “à gama de políticas que impactam a vida urbana, desde a manutenção de infraestrutura de escola e transporte até a provisão de amenidades culturais e policiamento” (Wacquant, 2010, p. 56). As mudanças no entorno físico não vêm acompanhadas, necessariamente, pela atuação através de políticas públicas proativas ou de ações afirmativas capazes de habilitar a população residente à mudança de status existencial, servindo de novo modelo colonizatório — com a ideia da situação colonial de Balandier (2014), em que se mantém um sistema de convencimento da condição de colonizado (submetido), instituindo uma nova fase técnica da dominância de territórios pela fase político-administrativa.

Os instrumentos de gestão da vida pela biopolítica não são suficientes para entender todas as relações de violência e criminalização na atuação limítrofe do Estado sancionador. O crime e a criminalidade tornam-se elementos necessários para a administração da força pelo Estado. Dessa forma, enquanto instrumento de violência extrema, o controle da morte (tanto na cessação da vida como na morte social — neutralização) é a expressão máxima da soberania, traduzida na capacidade de dizer quem pode viver e quem deve morrer (Mbembe, 2016; Lima, 2018), ampliando-se a ideia da morte para o desaparecimento social no sentido literal da invisibilidade, afastando os indesejados do espaço de convívio para áreas ainda mais afastadas, cuja urbanização não foi planejada no sentido inclusivo (quando e, se foi, planejada).

Ademais, estas relações entre soberania e disciplina, exercício do biopoder, gestão de vida e de morte não podem ser compreendidas como ferramenta única e centralizada, mas como microcapilar em uma rede de interesses e relações de poder, ainda mais em situações em que a exclusão decorrente do processo colonizatório traduz a construção comunitária segregada e heterogênea nas relações de poder. As noções de biopolítica de deixar viver são úteis quando a ideia de invisibilidade é suficiente para a neutralização coletiva, tal qual ocorreu durante a formação do bairro São Pedro nos anos 1960.

O fundamento da identificação (pertencimento) é reconhecer-se igual e, para tanto, é preciso reconhecer-se entre os diferentes. Muito embora os moradores do bairro São Pedro não provenham de um mesmo contexto criador, o que dificulta sua identificação enquanto grupo comunitário que compartilhe da mesma história, são notados como alheios às dinâmicas colonizadoras que foram o fundamento da estabilização de outras regiões. Enquanto as camadas economicamente mais estáveis da população consideram-se estabelecidos (e legítimos detentores) em relação aos outsiders, que constituem a comunidade em análise (Elias; Scotson, 2000). Esse contexto ajuda a explicar não a identificação enquanto grupo homogêneo, mas como excluídos pela organização social. Repete-se, então, a situação colonial (Balandier, 2014) de forma tão forte que a ideia de cidadãos de segunda classe é reforçada pela estrutura ambiental (ausência de estruturas urbanas de qualidade, aspecto estético decadente).

A ausência de vínculos comunitários estáveis e de autogestão efetiva (pela não existência de grupos de poder representativos) faz com que a população afetada aceite e incentive a urgência de ingerência estatal na qualificação ambiental e melhora da qualidade de vida. Essa participação se dá, contudo, sob o aspecto de terceirização, tanto das atividades como das responsabilidades, fazendo com que o indivíduo se torne passivo na relação de reestruturação social.

Processo distinto ocorre em outros bairros de Chapecó com histórico formacional mais homogêneo. A exemplo do Jardim Itália, bairro considerado de classe média-alta, construído segundo uma linha distinta, o vínculo comunitário é mais presente e, mesmo que relativizado nos dias atuais (pela própria velocidade das relações sociais e da entrada de novos moradores), ainda existe aproximação na vizinhança que favorece o cuidado do bem comum, com asseio dos jardins e cuidados com a arborização pública em complemento ao serviço prestado pelo ente público.

A terceirização das responsabilidades potencializa a ausência (ou fragilidade) do pertencimento e o aspecto fraterno-comunitário de forma que, mesmo com a municipalidade (ou a iniciativa privada) investindo em melhoramentos ambientais na região, se não houver uma participação efetiva da população envolvida, existe uma tendência de que a qualidade de vida desta não se modifique de imediato, embora o ambiente já o favoreça. A qualificação ambiental acaba promovendo o aumento dos custos de vida e a consequente modificação paulatina do grupo habitacional, numa dinâmica de exclusão-inclusiva que tende a manter as relações de vulnerabilidade, agora, em uma nova fronteira territorial.

A criminalidade presente no bairro São Pedro, principalmente na questão da traficância, tem conexão com a fragilidade comunal decorrente da vulnerabilidade social, mas também da proximidade com o centro urbano e da matriz viária que facilitam o acesso ao mercado de consumo. A negligência contextual do Estado frente a estes territórios urbanos possui convenientes propósitos com a cumplicidade das relações de poder oficiais e das organizações criminosas (Amaral; Pereira, 2018).

As conclusões apresentadas no estudo de Amaral e Pereira (2018) sobre Caxias do Sul parecem ser uma constante nas dinâmicas de gentrificação, sendo sentidas (muito embora a comprovação por critérios quantitativos não seja de tão fácil redação) também no caso chapecoense. O interesse especulativo imobiliário na região estrategicamente situada nos entornos do centro administrativo e comercial do município[3] mantém atenção especial às áreas degradadas, no intuito de revitalização e incremento de valores para posterior comercialização.

A regularização fundiária e a escrituração dos terrenos — que vêm sendo promovidas e que são trazidas como um benefício aos proprietários —, além de promover a possibilidade de cobrança de tributos, facilita o processo de venda e aquisição posterior. A presença de vulnerabilidades e da criminalidade dentro das fronteiras da comunidade mantém os preços dos terrenos atrativos para a compra pela projeção de valorização (que já vem ocorrendo nas áreas centrais da comunidade). A violência cumpre um papel multifacetado: promove a desvalorização que é ampliada pela (forma de) atuação das forças policiais, além de criar o campo de intervenção pública com a justificativa de qualificação do espaço e ampliação nos padrões de vida que, indiretamente, condicionam o afastamento das populações mais carentes e a valorização imobiliária.

Aquela ausência de identificação comunitária construída sobre a base de respeito mútuo conduz à fragmentação das relações de poder que, por sua vez, fomentam e facilitam os mecanismos de gentrificação. Enquanto a biopolítica promove a gestão da inserção humana, a necropolítica surge como necessária gestão da violência, dos processos de exclusão e morte (nos limites entre a mera neutralização e a eliminação cabal). A violência é, então, necessária para a governança humana, já que para Amaral e Pereira (2018, p. 213), “as lógicas punitivas se encontram no âmago da soberania política estatal, o que implica dinâmicas urbanas absorvidas diretamente por formas de reprodução de violência, exercidos sobre territórios marginalizados e incessantemente produzindo fronteiras de exclusão social”.

Trata-se de uma confluência de interesses não programada — não pensada explicitamente pelos participantes —, mas que são interesses convenientes a um conjunto de anseios que dependem da exclusão social. A feição da violência estatal representada pela atuação das forças policiais é instrumento de gestão pública no controle das massas segregadas e serve de mecanismo para atuação da qualificação espacial, valorização especulativa imobiliária e fomento de novas fronteiras de exclusão.

 

Conclusão

 

O ambiente do bairro São Pedro vem passando pelo incremento da atuação da municipalidade na qualificação ambiental, na colocação de bens públicos e melhora na prestação de serviços básicos. Como reflexo direto, percebe-se uma mudança qualitativa nas áreas em que a participação é mais efetiva. A instalação de um posto avançado da polícia militar em outubro de 2019 (que já foi vítima de vandalismo) e da praça da família em 2020 são indicativos de uma maior presença do Estado. Também em 2020, a Escola de Educação Básica Professora Irene Stonoga, que mesmo não pertencendo ao bairro São Pedro, mas recebe alunos dessa localidade, foi transformada em escola cívico-militar, reforçando mecanismos de controle social através da promessa de reforço de atividades de civismo e cidadania.

As benesses erguidas sob o manto das promessas de melhoramento social, quando não acompanhadas de políticas sociais e ações afirmativas efetivas com princípios de empoderamento local e melhoria das condições de vida da população diretamente afetada, afiguram-se infrutíferas diante da perceptível exclusão dos mais carentes entre os carentes para novas fronteiras de segregação. A gestão da violência por parte do Estado, embora prometendo ser instrumento de pacificação e solução de conflitos, acaba servindo como mecanismo necessário para efeitos necropolíticos de alocação humana, que cumpre com os anseios da higienização e estética do poder público e da valorização imobiliária para a iniciativa privada especulativa.

A violência e a criminalidade não foram eliminadas no contexto do bairro São Pedro, apenas transferidas para novas fronteiras suburbanizadas (bairros Bom Pastor, Pinheirinho e São Pedro II), ampliando a segregação e a vulnerabilidade (já que alocados em novas áreas carentes de serviços públicos e de redes de proteção), criando novos padrões de criminalização e facilitando a instalação de organizações criminosas que fazem as vezes do Estado na garantia de segurança e de concessão do mínimo existencial àqueles que se submetem ao seu jugo. A gestão das cidades, enquanto direito social, deve ser estruturada com planos de qualificação ambiental aliados a mecanismos de gestão humana e garantias sociais que possam implicar numa redução de violências, exigindo estudos específicos para a compreensão das causas da degradação socioambiental e levantamento de alternativas.

Percebe-se, nas conversas com os interlocutores e nas observações conduzidas, que a promessa de melhoramento ambiental pelo poder público em conjunto com a iniciativa privada e pela especulação imobiliária não alcança todos aqueles que são residentes no espaço alvo de atuação, promove-se uma limpeza étnica e econômica, afastando os problemas para novos limites de invisibilidade. Embora não possamos afirmar que é uma intenção direta do poder público e do capital privado, varrer a sujeira para debaixo do tapete é uma ferramenta necropolítica que, convenientemente, favorece o processo de gentrificação, deslocando contingentes humanos (população original) para a alocação de um novo modelo habitacional e novas regras culturais.

 

Referências

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Recebido em: 27/04/2024.

Aceito em: 19/10/2024.

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n33.70016.p217-238

 

 



* Professor titular da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (UNOCHAPECÓ), Brasil. Doutor em Ciências Ambientais pela UNOCHAPECÓ, Brasil. E-mail: saulo.ce@unochapeco.edu.br.

** Docente dos Programas de Pós-graduação em Direito, Ciências Ambientais e Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (UNOCHAPECÓ), Brasil. Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. E-mail: arlene@unochapeco.edu.br.

[1] Depoimento de Izalino Ribeiro, entrevistado por Antunes.

[2] A teoria das janelas quebradas é uma leitura do fenômeno criminal dada por Wilson e Kelling em 1980 (Schecaira, 2013), que explica como pequenas degradações podem levar ao aumento da criminalidade, fazendo referência à ideia de que se uma janela não for consertada pode transmitir a impressão de que não há cuidado com o local, encorajando ocupações ilícitas, vandalismo e o cometimento de crimes mais graves.

[3] Chapecó vive um grande crescimento populacional e valorização imobiliária com crescimento vertical dominante na região central e nos bairros circundantes, além da ampliação horizontal com novos loteamentos em áreas que eram utilizadas para produção agropecuária nas regiões mais distantes ou, tão somente, mantidas como terrenos baldios para especulação.

 

 

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Desenho de um círculo

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