EDITORIAL
Giovanni Boaes
https://doi.org/10.46906/caos.n32.70206.p6-14
Entregamos ao público a trigésima segunda edição da Revista Caos. Este número se mostra um pouco diferenciado em relação aos demais números publicados desde dezembro de 2019, momento de relançamento da Caos.
Ele não traz um dossiê temático. Nós programamos os dossiês com antecedência de um ano ou mais. Para este número, planejamos o dossiê sobre minorias sociais. Iniciamos as negociações e diálogos com a organizadora no final de 2022, quando ela se mostrou disposta e interessada, porém o tempo foi passando e as promessas não foram se concretizando, até que, sem perceber, já havíamos ultrapassado o ponto de retorno seguro. Não haveria mais tempo e nem recursos (criativos e força de trabalho) para mobilizarmos um outro dossiê. Precavendo-nos em relação a futuros dossiês, implementamos um procedimento que, embora previsto em nossa política editorial, ainda não havia sido efetivado. Abrimos edital para submissão de artigos para dossiês. Atualmente, estamos com duas convocações ativas.
Sem o dossiê, este número apresenta oito artigos livres, uma artigo na seção do Prêmio Florestan Fernandes, um relato de experiência, uma resenha e uma entrevista. Além disso, ele traz outra novidade: adequamos as diretrizes de submissão de manuscritos à nova versão da NBR ABNT 10520:2023.
Ainda em termos de atualizações, a comissão editorial aprovou a recomendação dos editores para reduzir o limite máximo de palavras para artigos. Anteriormente, esse limite variava entre cinco mil e dez mil palavras. Nossa proposição surgiu a partir da observação realizada durante o trabalho editorial: muitos artigos dedicam uma parcela significativa do texto a discussões desnecessárias sobre ideias, conceitos, teorias, frequentemente relegando a parte mais importante, aquela que trata do objeto em si.
A partir desta edição, o limite máximo de palavras para artigos será de sete mil e quinhentas palavras. Vale destacar que, por ser um número de transição, o leitor ainda irá se deparar com textos que ultrapassam esse limite.
Outra novidade é a ativação dos metadados de referência de cada texto. Agora, o leitor não precisará abrir os textos para ter acesso à lista de referências, pois ela será exibida na página inicial de cada composição, abaixo do resumo da biografia do(a) autor(a). A apresentação das referências no campo de metadados visa otimizar a captura de informação pelos motores de busca e indexadores.
No processo de composição deste número, que normalmente leva em torno de seis meses, rejeitamos um número expressivo de artigos (oito artigos). A maior parte deles foi rejeitada por não se encaixar no foco e escopo da revista. Por outro lado, o grande número de rejeições também reflete um aumento importante no número de submissões.
Antes de passar à apresentação de cada texto, gostaria de falar sobre a capa. Ela traz a arte de um importante artista maranhense: Airton Marinho. A imagem da capa é uma de suas obras, que retrata Frida Kahlo. É um dos quadros que compõem a exposição Divas, realizada no Convento das Mercês, em São Luís, em março deste ano, como parte das comemorações em homenagem ao Dia da Mulher. A ideia de colocar a imagem feminina na capa veio do fato de termos neste número quatro textos que se constroem sobre a temática feminina. Ao conversar com seu Airton sobre minha ideia, ele me sugeriu que Frida seria a mais apropriada, pois ela era internacional. A Caos também quer ser um espaço no qual possamos prestigiar a arte de artistas como o senhor Airton Marinho, reconhecido nacional e internacionalmente por suas xilogravuras. Nos próximos números, obras de outros e outras artistas poderão estampar a capa.
Vamos à apresentação dos textos. Começamos com o artigo de Anderson Cordeiro. Ele foi um dos premiados no concurso de melhor monografia do ano de 2023, promovido pela Coordenação do Curso de Ciências Sociais da UFPB, no qual foram avaliadas as monografias apresentadas nesse ano por uma comissão de três professores. Três trabalhos foram premiados, sendo que o de Anderson recebeu uma menção honrosa. Cada um dos agraciados deveria produzir um artigo derivado da monografia e submetê-lo à Caos para publicação. Dos três, apenas Anderson Cordeiro fez a submissão, que, depois de ter passado pelo processo editorial e ser avaliado, foi aceito para publicação.
O artigo intitulado Raça, miscigenação e o problema nacional em Casa-grande & senzala explora as ideias de Gilberto Freyre sobre a miscigenação no Brasil. A leitura atenta realizada por Anderson da Magnum opus de Freyre, apoiada em análise de conteúdo, levou-o a catalogar e relacionar uma rede de significados capaz de nos conduzir à compreensão das dinâmicas da miscigenação e das relações raciais no Brasil colonial. O texto enfatiza as qualidades da obra, sem, obviamente, desconhecer as críticas justas que são feitas a Freyre. Uma das principais qualidades da interpretação freyreana, segundo Anderson, é a substituição do conceito de raça pelo de cultura na explicação das relações raciais no Brasil. Além disso, Freyre conferiu à miscigenação um teor positivo, opondo-se às posições pessimistas que prevaleciam no final do século XIX e primeiras décadas do XX. Encerrando o artigo, o autor destaca que uma das maiores contribuições de Casa-grande & senzala é o convite que ela nos faz ao debate. Creio que essa afirmação também pode ser direcionada ao texto de Anderson.
Os três artigos seguintes se aproximam semanticamente por tratarem de temas parecidos e refletem sobre a situação da mulher na sociedade.
Alba Paulo de Azevedo é autora do texto Harriet Martineau: precursora das ciências sociais e da luta pela emancipação das mulheres. Fazendo uma revisão de literatura, ela analisa o que os autores lidos dizem sobre a contribuição de Harriet Martineau para a causa feminina e para a sociologia. Uma mulher intelectual que a história não lhe deu atenção pelo fato de ser mulher. Apesar de sua condição de ser mulher a tenha deixado no anonimato, é inegável o pioneirismo da autora britânica tanto para a reflexão sobre emancipação da mulher quanto para o desenvolvimento da sociologia como uma ciência. A prova disso é que suas incursões no campo da pesquisa sociológica a levaram a produzir livros metodológicos e teóricos cuja importância está sendo descoberta apenas recentemente. Ficamos felizes em publicar este artigo, pois ele complementa nossas propostas de divulgar o pensamento de autoras e autores rejeitados pela história. Fazemos isso não por simples capricho ou porque está moda, mas por reconhecer o mérito cognitivo e metacognitivo das obras. A Caos foi pioneira em publicar no Brasil a tradução de textos de Martineau.
O artigo Iniquidade e violência contra a mulher negra no sistema de saúde: uma revisão narrativa, de Bianca de Jorge e Tânia Maria Gomes da Silva, investiga a situação da mulher negra no Brasil em relação aos serviços públicos de atendimento à saúde. As autoras fazem um revisão narrativa da literatura, chegando à conclusão de que a sociedade brasileira alimenta um forte racismo estrutural/institucional em seus serviços públicos de saúde, dos quais a mulher negra é uma de suas principais vítimas, especialmente no que se refere à violência obstétrica. Com inspirações decoloniais, encerram o texto destacando “a importância de uma abordagem holística e sensível às questões de raça, gênero e classe na promoção da saúde das mulheres negras”.
Em “Saravá Kehinde!”: o carnaval do Rio de Janeiro como manifesto político, Carlos Antonio Nascimento de Souza analisa os aspectos emocionais e políticos do carnaval do Rio de Janeiro, colocando em foco o enredo de 2024 da Escola de Samba Portela. Esse enredo se baseou na narrativa literária de Ana Maria Gonçalves, Um defeito de cor, livro publicado em 2006. A autora do livro narra a trajetória da personagem Kehinde, africana sequestrada para o Brasil ainda criança, passando por sua vida de escravizada até seu retorno à África e sua volta ao Brasil em busca do filho, do qual foi separada violentamente pela escravidão.
A partir da ficção, a Portela politizou a situação de uma população cuja voz quase sempre foi silenciada. Para Carlos Antonio, “o carnaval abriu alas ao cordão dos excluídos e trouxe para o sambódromo da Marquês de Sapucaí mendigos, menores abandonados, gritos contra a intolerância religiosa e manifestos contra a fome, a pobreza e por mudanças sociais.” Tudo isso se sustentando em uma economia das emoções que se comunica pela condição de uma mulher africana, escravizada, e ainda que liberta no final da vida e repatriada, estava privada de exercer plenamente a sua maternidade. Privação que a colocou novamente dentro de um navio rumo ao Brasil, singrando o Atlântico Negro, já velha e cega, para buscar em vão o seu amado filho. Esse assunto, aliás, voltará à tona ainda neste número na resenha do livro da escritora nigeriana Buchi Emecheta. As histórias de Kehinde e Nnu Ego, personagens dos dois livros, tocam-se em muitas partes sobre o solo da maternidade, em África e no Brasil.
Norberto Quintana Guidotti de Ornelas, no artigo A dádiva paternalista: apontamentos sobre a reciprocidade das concessões na cidade-empresa, procura compreender o paternalismo a partir de um caso específico. Analisa os tipos de relações que se estabeleciam entre os donos, patrões de uma empresa, a Companhia Brasileira do Cobre (CBC), e os seus funcionários em Minas do Camaquã, Rio Grande do Sul. Utilizando o conceito de dádiva como chave de leitura, o autor mostra que o arranjo da chamada cidade-empresa, ou seja, vilas construídas pelas empresas para usufruto dos funcionários, gerava um tipo de laço (dar-receber-retribuir) que reproduzia as velhas formas de dominação da sociedade patriarcal/colonial. Isso ocorrendo em plena modernidade, contexto em que a lógica racional e burocrática deveria prevalecer a partir de relações comuns a “uma sociedade salarial”. Segundo o autor, essas concessões na forma da cidade-empresa serviam para exercer profundo controle sobre os funcionários.
Após discutir os enquadramentos teóricos da noção de dádiva, o autor conclui que as prestações paternalistas poderiam ser compreendidas como uma forma de dádiva. Nessa lógica, destaca a contraprestação como “um endividamento moral”, mecanismo que tem como principal função mediar e conter conflitos entre os interesses dos patrões e os dos funcionários, equilibrando a equação em uma sociedade cada vez mais definida entre capital e trabalho. Os leitores, além de encontrar argumentos sólidos no artigo, ainda podem se comprazer com os mosaicos de imagens, retratando uma época em que os funcionários da CBC e moradores da vila de operários achavam que “tinham tudo”.
Na sequência, Ulisses Rafael nos convida a pensar sobre um bairro periférico da cidade de Maceió, no estado brasileiro de Alagoas, no momento em que o século XIX dava passagem para o novo século. No bairro da Levada, pessoas se movimentavam nas ruas, nas praças e, especialmente, nos terreiros do xangô alagoano, motivados por suas atividades laborais, suas crenças e seus interesses. Formas de sociabilidades urbanas, especialmente as sociabilidades em torno das celebrações religiosas, são colocadas sob a investigação do autor, que se valeu de matérias veiculadas por jornais da época. Em Um verdadeiro cenário étnico em Maceió: sociabilidade urbana e arranjos culturais no bairro da Levada na Primeira República, Ulisses Rafael quis demonstrar como a Levada poderia ser estudada como um cenário étnico, pois era habitado, majoritariamente, por pessoas negras, ex-escravizadas e seus descendentes. O bairro, como muitos bairros periféricos no Brasil das primeiras décadas do século XX, formou-se como resquício das políticas de urbanização, higienismo e “civilização” implementadas pelos governos, de forma semelhante ao que ocorreu no Rio de Janeiro com a reforma Pereira Passos. Em Maceió, a história não foi diferente.
O artigo em pauta derivou das pesquisas que o autor empreendeu para o doutorado, no início dos anos 2000, cujo objetivo era investigar a intolerância religiosa contra as religiões afro-alagoanas. Daí, ele ampliou seu interesse, chegando às perguntas que norteiam o artigo: Seria possível encontrar, naquela época, microcomunidades negras em Maceió? Quem eram seus habitantes? Como viviam? Como compunham sua autonomia comunitária? Suas conclusões, ao chamar a Levada de “cenário ético”, dizem que esse bairro era um exemplo de microcomunidade negra em Maceió, na qual se manifestavam as sociabilidades negras, especialmente as religiosas, que muito desagradavam à “boa sociedade” alagoana, como atestam as matérias veiculadas nos jornais da época. O texto de Ulisses transportará os leitores para o cenário narrado, aproximando-os dos eventos e dos sujeitos, como se estivessem em uma etnografia participante. A leitura nos leva a conversar com Chico Foguinho, vendo-o evoluir com o seu santo de cabeça; faz-nos duvidar de Euclides Malta, ao mesmo tempo em que desperta encantos e estranhamentos com as danças e os rituais do xangô alagoano.
Na sequência, temos o artigo Sociologia ambiental: uma análise dos possíveis efeitos socioambientais pré-implantação do projeto da Usina Hidrelétrica de Marabá, de Letícia Costa Silva. A autora faz uma revisão de literatura com o intuito de avaliar os possíveis impactos que a implantação da Hidrelétrica de Marabá, no estado do Pará, poderia causar à natureza e, especialmente, às comunidades locais de pescadores. O texto revisa as obras que, desde a década de 1970, vêm colocando em pauta os problemas ecológicos causados pela modernidade/modernização. Com isso, foca-se nos riscos que os grandes projetos na Amazônia podem causar não só ao ecossistema amazônico, mas a toda biodiversidade do planeta. A futura implantação da hidrelétrica de Marabá, caso venha a ocorrer, terá como função fornecer energia para as empresas de extração mineral e de produção de ferro, não contemplando benefícios para as populações locais. O grande mérito do texto de Letícia é desconstruir a ideia de que a produção de energia por meio de hidrelétricas é um modo limpo e ecologicamente correto. Na verdade, além dos efeitos negativos sociais e econômicos para os moradores locais, seus riscos e impactos não podem ser desconsiderados, como a metilação de mercúrio, a proliferação de insetos e a emissão de gases de efeito estufa derivados do represamento das águas. A autora finaliza o texto com uma exortação para o envolvimento e debate com a participação de universidades, movimentos sociais e grupos que habitam as áreas afetadas, para resistirem e buscarem justiça socioambiental.
O artigo Políticas públicas culturais em debate: estudo sobre as audiências públicas da Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, de Antonio Teixeira de Barros e Malena Rehbein Rodrigues Sathler, é o texto mais longo deste número. Os autores analisam as audiências públicas realizadas no âmbito da Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados durante todo o ano de 2019, procurando compreender as percepções do público participante das audiências sobre a dinâmica da Comissão. Aplicaram questionários com questões fechadas e abertas a 201 participantes. O rumo da pesquisa foi mostrar como a área da cultura sempre foi instável por andar a reboque de interesses de governos do momento. Em governos como o de Jair Bolsonaro, as políticas culturais sofreram grande descaso. Por outro lado, foi nesse mesmo governo que a Comissão se tornou bastante ativa e concorrida entre deputados governistas e deputados oposicionistas. Os autores, ao focarem a atenção para o público participante das audiências, pretendiam saber como ele avaliava os debates promovidos por essas audiências, considerando a atuação dos parlamentares, dos representantes de órgãos governamentais e dos representantes da sociedade civil.
O artigo é uma leitura importante para quem deseja conhecer um pouco da história das políticas culturais no Brasil, entender o funcionamento da Comissão de Cultura do Congresso Nacional e compreender as tensões que se estabelecem entre os representantes políticos e os setores da sociedade envolvidos na área cultural. Além disso, o texto esclarece sobre o rumo que as políticas culturais tomaram no Governo de Jair Bolsonaro, com o desmonte do setor, exemplificado pela extinção do Ministério da Cultura e pela aplicação de censura a temas identitários, entre outros. Esse clima tornou a Comissão de Cultura um palco acirrado de debates, destacando a intensidade e qualidade das discussões travadas ali. Ao mesmo tempo, a Comissão foi uma arena que atraiu a participação de um público bastante informado e qualificado.
O artigo Uma narrativa sócio-histórica sobre a flexibilização do trabalho no Brasil: trabalho em transformação, de Larissa Fernandes Camargo, Thais da Silva Ferreira e Ivan Lucon Monteiro Jacob, faz uma revisão narrativa de literatura sobre as mudanças no mundo do trabalho, passando pela reestruturação produtiva e chegando aos processos de flexibilização e uberização. Inspirando-se em algumas ideias do materialismo marxista, com destaque especial para as reflexões de Friedrich Engels sobre as condições da classe trabalhadora na Inglaterra, os autores apontam as várias formas de precarização e informalização do trabalho no Brasil. Dois fatores concorreram fortemente para o delineamento dessa situação: os avanços tecnológicos e a disseminação da ideologia neoliberal em contextos globais. Os quais, segundo os autores, devem ser compreendidos e enfrentados considerando a complexidade sociológica e histórica que os envolve. Apesar de terem o ponto de partida no pensamento clássico da sociologia, os autores, por meio da revisão narrativa, trazem assuntos que são extremamente atuais e que têm prioridade nos debates que se desenrolam atualmente no campo da sociologia do trabalho, assunto que não é exclusivo das correntes marxistas; ele tem mobilizado várias abordagens dentro das ciências sociais.
Na Seção Ofício de Cientista Social, Fábio França nos apresenta o inspirador relato: Pelas ruas do velho mundo: um relato fotoetnográfico sobre pobreza e segurança pública. O autor nos fala sobre as vertigens do estranhamento em terras que ainda não conhecia presencialmente. Ele confessa que foi impossível dissociar o turista do sociólogo; foi impossível desativar as disposições que animam a imaginação sociológica. Em viagem por Portugal, Itália e França, no final de 2019 e início de 2020, o autor se deparou com uma realidade um pouco dissonante com a imagem que se aprendeu a consumir do berço da civilização ocidental. Flanando por suas ruas, avenidas e praças, com a lente do seu aparelho celular apontado para cenas do cotidiano, o sociólogo-turista-fotógrafo capturou imagens que, somadas à crônica, produziram insights sobre pobreza, segurança pública, capitalismo e mercantilização de vidas. Por fim, suas reflexões o levaram a outro lugar: o da certeza de que a ciência não é apenas um exercício da razão, é um ato de empatia. Esperamos que os leitores se deixem levar pelas “escrevivências”, como diria Conceição Evaristo (2008), de Fábio França, e possam chegar a lugar de igual magnitude no final da rota.
Na sequência, surge a entrevista feita pelas editoras da Caos, Mohana e Geziane, com a professora Ednalva Neves, seguindo a trilha de números anteriores, nos quais trouxemos entrevistas de professoras do Departamento de Ciências Sociais que se aposentaram recentemente: a professora Maristela Andrade, no número 31, e a professora Lília Junqueira, no número 30.
A professora Ednalva se reuniu virtualmente com as editoras em uma tarde de sábado para uma conversa que foi muito descontraída e informal, apesar de existir um roteiro previamente montado. As entrevistadoras puderam mais uma vez ouvir as lições de sua eterna mestra, e mais que uma entrevista formal, o evento se converteu em um reencontro. Durante a entrevista, foram abordados temas relacionados à história de vida da entrevistada, sua carreira acadêmica e profissional, bem como à sua aposentadoria.
Destaca-se na entrevista o encaminhamento dado pelas interlocutoras (entrevistadoras e entrevistada) — ainda que não mencionem a sociologia disposicionalista em escala individual — aos imbricamentos entre as experiências socializadoras vividas pela professora Ednalva desde a sua infância e o que ela designará como escolha pelas ciências sociais, mais especificamente pela antropologia. Pela lente dessa abordagem sociológica, cujo principal expoente é Bernard Lahire (2012, 2004, 2002), na qual venho me embasando teoricamente, o texto da entrevista nos fornece elementos para compreendermos o repertório de disposições que compõem o social dobrado da entrevistada. Creio que a pergunta mais interessante é a que nos obriga a compreender os mecanismos das duas grandes escolhas feitas pela protagonistas: (i) tornar-se antropóloga e (ii) deixar a profissão médica. Tornar-se antropóloga profissionalmente, implicou em deixar de ser médica profissionalmente, o que, em uma fórmula econômica, pode ser lido como trocar uma posição de grande prestígio por outra menos prestigiada e recompensada financeiramente. Porém, se no campo profissional ela trocou o consultório pela sala de aula, na vida acadêmica, os mundos voltaram a se tocar, desta vez unidos pela antropologia da saúde, não só como disciplina acadêmica, mas como um objeto investido pela paixão, revelada pelo título da entrevista: Paixão pelo ofício: o fazer antropológico por Ednalva Neves.
Em junho de 2023, fui transferido da UFPB para UFMA, onde passei a integrar o quadro docente do Curso de Licenciatura Interdisciplinar em Estudos Africanos e Afro-brasileiros (LIESAFRO). Trata-se de um curso pioneiro no Brasil, criado em 2015, na Universidade Federal do Maranhão, e é hoje um modelo de ensino, pesquisa e extensão voltado para a formação de profissionais habilitados e capacitados para atuarem em favor de uma sociedade igualitária e descolonizada.
Na UFMA, comecei a lecionar a disciplina Sociologia Africana. Por meio dela, tive a oportunidade de travar conhecimento com autores e ideias africanas, até então, inéditos para mim. Os cursos de ciências sociais no Brasil privilegiam os conteúdos europeus ou norte-americanos, dos quais viriam as verdadeiras teorias. Tudo o que não é ocidental costuma ser visto com certa desconfiança. Por exemplo, nem mesmo a sociologia latino-americana está incluída no currículo do Curso de Ciências Sociais da UFPB. E lá, até então, tínhamos apenas uma disciplina obrigatória em toda a grade curricular voltada para a sociologia brasileira. Essa experiência na UFMA tem ampliado os meus horizontes intelectuais e minhas redes de conversação e de pessoas. Aproveitei o entusiasmo desse novo aprendizado e convidei alguns alunos e alunas da Liesafro para produzirem a resenha deste número.
A resenha, elaborada por Cassirene Milena Silva Lima, Nanashara Carneiro Oliveira Santos e Rodrigo Ribeiro Santos, descreve e comenta a obra de Buchi Emecheta, socióloga e escritora nigeriana. As alegrias da maternidade, publicado em 1979, é o seu livro de maior repercussão e aceitação mundial. Ele narra a história de Nnu Ego, mulher nigeriana que enfrenta todo tipo de provações para ser mãe e sustentar sua prole em um mundo que se comporta entre a modernidade e a tradição. A história de vida de Buchi Emecheta se transmuta na trama da vida de Nnu Ego, as quais os autores da resenha nos convidam a conhecer. A leitura da resenha nos leva a passear pelas Áfricas que servem de cenário ou condições sociais de produção do romance.
Por fim, resta agradecer à(os) editores da Caos, à(os) avaliadores, a Jonas de Sene pela arte final da capa, ao artista Airton Marinho por permitir que usássemos a sua arte na capa e ao professor Terry Mulhall por sua sempre presença na revisão do inglês. Agradecemos também a todos(as) que submeteram seus manuscritos para este número.
Aos leitores, agradecimentos prévios e desejo de boa leitura. Leiam, divulguem e avaliem criticamente. Que esta trigésima segunda edição seja um convite à reflexão crítica e ao diálogo acadêmico.
Referências
EVARISTO, Conceição. Escrevivências da afro-brasilidade: história e memória. Releitura, Belo Horizonte, n. 23, 2008. Disponível em: http://nossaescrevivencia.blogspot.com/2012/08/escrevivencias-da-afrobrasilidade.html. Acesso em: 3 maio 2024.
LAHIRE, Bernard. Monde pluriel: penser l’unité des sciences sociales. Paris: Editions du Seuil, 2012.
LAHIRE, Bernard. Retratos sociológicos: disposições e variações individuais. Porto alegre: Artmed, 2004.
LAHIRE, Bernard. Homem plural: os determinantes da ação. Petrópolis: Vozes, 2002.
https://doi.org/10.46906/caos.n32.70206.p6-14
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