PAIXÃO PELO OFÍCIO: o fazer antropológico por Ednalva Neves

 

PASSION FOR THE WORK: anthropological workout by Ednalva Neves

 

Ednalva Maciel Neves *

Mohana Ellen Brito Morais Cavalcante **

Geziane do Nascimento Oliveira ***

 

https://doi.org/10.46906/caos.n32.70286.p228-249

 

Esta entrevista registra a trajetória e carreira da professora Ednalva Maciel Neves, que, recém-aposentada gentilmente aceitou conversar sobre seu legado docente. Médica e antropóloga, atuou no Departamento de Ciências Sociais/CCHLA da Universidade Federal da Paraíba e foi professora universitária desde 1996. Também teve passagem pela Universidade Federal do Maranhão. Doutora em antropologia social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2004), realizou estágio sênior junto ao PPGAS/UFRGS e CERMES3/CNRS, França (2013-2014). Professora permanente do PPGA e do PPGS/CCHLA da Universidade Federal da Paraíba. Integrante do Grupo de Pesquisa em Saúde, Sociedade e Cultura/GRUPESSC/UFPB e do Mandacaru – Núcleo de Pesquisa em Gênero, Saúde e Direitos Humanos/UFAL. Membra da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) desde 2001. Mesmo aposentada, continua com o ofício antropológico, participando de bancas, eventos e produzindo estudos com orientandos e amigos.  Suas produções estão relacionadas aos temas de biossocialidades, biomedicina, adoecimentos e práticas de saúde, risco e práticas de produção de conhecimento. A entrevista foi realizada pelas editoras Geziane Oliveira e Mohana Morais Cavalcante, a partir de um questionário semiestruturado, e aconteceu de forma remota, via plataforma de vídeo conferência, no dia 04 de maio de 2024. Ednalva é mestra no saber e no ensinar e fez (faz) diferença na vida de muitos de seus alunos.

 

Mohana — Somos muito gratas a você por nos ter cedido este tempo para esta conversa. Todos os caminhos levam a algum lugar. Queremos saber sobre Ednalva. Deixando a professora um pouco de lado, conte-nos sobre sua infância, sobre a trajetória que te levou até a UFPB.

Ednalva — A minha infância foi vivida no interior da Paraíba, na cidade de Sumé, no cariri paraibano, o mesmo cariri onde, mais tarde, fui fazer pesquisas sobre doenças raras. Foi uma infância típica, de brincar de roda, brincar de casinha e tudo mais que era de direito naquela época. Sumé era uma cidade pequena do interior, com a estrutura social provinciana, onde, inicialmente, meu pai trabalhava com o irmão dele. Depois, ele se tornou independente e virou comerciante.

Uma das coisas que marcou bastante a minha infância foi a convivência com famílias pretas. Minha mãe, às vezes, adoecia, e eu era deixada aos cuidados de mãe Dadinha e mãe Quitéria. Elas são lembranças boas do acolhimento vivido na infância. Quando eu estudei doença falciforme, descobri que eu era branca, porque até então, eu me achava parda. A minha família é bastante misturada.

Eu tenho lembranças de uma infância que mistura coisas agradáveis, cotidiano de famílias interioranas com suas rotinas de luta e a imagem de um pai que era muito ligado a livros e muito disciplinador. Na geladeira, ele colocava um cronograma especificando o que meu irmão e eu deveríamos fazer ao longo do dia. Eu ficava um pouco revoltada com esse controle todo, especialmente na adolescência, mas hoje eu entendo que era necessário.

Apesar da disciplina e controle, o meu pai e a minha mãe não só me apoiavam, como me davam liberdade e permissão para fazer as coisas sérias. Por exemplo, papai tinha negócios em Campina Grande e, mesmo ainda eu sendo jovem, ele me mandava para lá para resolver as questões do comércio. Isso, creio, ajudou-me a desenvolver  autonomia e inciativa para resolver problemas. Assim como ter responsabilidade para tomar algumas decisões, até porque eu sou a filha mais velha. Comparando a minha trajetória com a de algumas colegas daquela época, vejo que a minha trajetória se diferencia por causa desse apoio.

Eu vejo que as experiências e aprendizados que vivi na família influenciaram a minha trajetória como docente e como profissional da saúde. Nisso, sinto-me muito privilegiada. Minha mãe só tem a quarta série do, na época, ensino primário. Meu pai começou a estudar, praticamente, junto comigo e chegou a concluir o primeiro grau. A família mudou para João Pessoa e aqui ele fez o supletivo. Chegou a pensar em fazer vestibular para direito quando estava com sessenta e oito anos de idade. Ele gostava muito de ler.

Mohana — Você tinha quantos anos de idade quando veio para João Pessoa? Seu pai veio como comerciante?

Ednalva — Sim, como comerciante. Ele tinha caminhão e nós vendíamos cachaça, sabão e água sanitária. Tinha-se que fazer a contabilidade também. Assim, toda a família se envolvia nas atividades.

No começo, foi difícil porque se conhecia muito pouco de João Pessoa. Nós viemos morar em Manaíra, e o povo de lá era elitista; eles se referiam ao meu pai e à gente como caminhoneiros. Papai, além do caminhão, tinha um kombi que ele usava para vender os produtos nos bairros populares. No fim de semana, meu irmão e eu íamos receber o pagamento. Então, por causa disso, eu conhecia todas as barraquinhas e bodeguinhas da periferia, dos bairros bem simples das cidades da grande João Pessoa. Imagino que essa experiência me fez gostar e me sentir bem nesses lugares, o que é bom para quem faz antropologia.

No mestrado, por conta do tema da pesquisa, eu tive que selecionar famílias de bairros populares para discutir sobre  a morte. Escolhi bairros como o Baixo Roger. Isso não me assustava porque eu já tinha a convivência com aquela realidade. Mais difícil seria se fosse o bairro Cabo Branco, bairro da chamada elite.

 

Mohana — O trabalho antropológico te lembra um pouco o trabalho de  Ednalva comerciante?

Ednalva — Era um pouco isso. O trabalho de Ednalva filha de comerciante.

A família veio para João Pessoa em 1977, na época da Ditadura Militar. A imagem que eu tenho do meu pai não era a de um “bom capitalista”, porque ele não sabia trabalhar com juros e nas relações de trabalho. Não sabia calcular bem as coisas. Por isso, a gente estava sempre apertado financeiramente.

 

Geziane —  A vivência da infância e da adolescência já preparava para antropologia no futuro?

Ednalva — Geziane, isso é tão interessante, coisa que fui perceber claramente depois que me aposentei. É algo que dá continuidade ao que eu fazia quando era jovem nas minhas idas à periferia para receber o dinheiro dos clientes de papai. Hoje, eu acredito que esse fato tem a ver com as escolhas que fiz, incluindo a antropologia.

 

Mohana — Você já falou um pouco sobre isso, mas queria saber, de fato, quando a antropologia surgiu na sua vida? Quando ela cruzou o teu caminho?

Geziane — Aproveitando a pergunta de Mohana, de certa forma,  a gente já sabe que na sua infância e adolescência havia elementos que poderiam te levar para a antropologia.  Mas o seu primeiro caminho foi a medicina. Então, como se deu essa escolha profissional? E onde é que entra a antropologia?

Ednalva — Eu fiz o segundo grau, hoje equivalente ao ensino médio, no Liceu Paraibano. Lá, eu participava de um grupinho de quatro amigas. Quando chegou o vestibular, cada uma escolheu um curso. Eu escolhi a medicina. Eu não lembro bem, mas acho que foi um desafio que as quatro se colocaram. Quatro adolescentes vivendo uma época de Ditadura Militar, em 1979, em busca de afirmação.

Mesmo tendo escolhido a medicina, no curso, eu me inclinava muito para a  epidemiologia, gostava dos dados estatísticos, queria fazer pesquisas nesse campo. Inclusive cheguei a fazer pesquisa com um professor da área da economia e com o pessoal do Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva (NESC). Eu me aproximava de alunos, de um período à frente do meu. Na medicina, os quarenta alunos que ingressavam no primeiro semestre eram os mais privilegiados socialmente; os outros quarenta, que ingressavam no segundo semestre, eram pessoas mais modestas economicamente. Eu fui da segunda entrada, então, meus colegas eram quase todos de camadas populares.

Na época, eu conheci Severino – Biu, como era chamado — que, tempos depois, foi coordenador do Curso de Medicina. Ele era uma pessoa fora do comum, ele provocava, era do centro académico, enfim. Eu não fiz parte do centro académico, mas eu participava como plateia, até porque eu não tinha tempo. A vida era uma correria.

No curso de medicina, eu já tinha esse vínculo com o social. Quando eu terminei o curso, fui trabalhar no município de Guarabira, que tinha uma ligação com a residência em medicina preventiva e social. Aproveitando, quero deixar algo registrado sobre isso. A coordenadora dessa residência — uma residência multiprofissional, uma tradição forte  na Paraíba — era Ana Rita, uma comunista que tinha sido perseguida pela Ditadura Militar. Sob sua influência, a gente lia as obras de Karl Marx, como  O capital.

O Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva (NESC) organizava e ainda oferece hoje, eu acho,  um estágio rural (ERI) para todo estudante de medicina por dois meses, no último ano do curso, em uma cidade do interior. Eu fui para Guarabira. Eu já tinha feito pesquisa no NESC, como dito, com profissionais que já pensavam a medicina de forma diferente. Isso me influenciou bastante no trabalho que desempenhei em Guarabira, quando fui contratada como médica. Dois anos depois, eu pedi licença para fazer a residência em medicina preventiva e social.

Na residência, eu conheci grande parte dos meus amigos, como Cláudia Helena Freitas e muitos outros, cuja amizade permanece até hoje. Lá, a gente estudava ciências sociais, administração e planejamento de saúde. Tudo isso articulado pelas ciências sociais, e de uma forma muito clássica. Fátima Araújo, que era professora no Departamento de Ciências Sociais da UFPB, foi minha professora de ciências sociais. Ela nos passou os clássicos da antropologia. Quando eu terminei a residência, voltei a trabalhar, agora como médica sanitarista. Eu tive também a oportunidade de fazer algumas formações, oferecidas pelo  Ministério da Saúde, em saúde integral da mulher, saúde integral da criança e todas essas coisas.

Quando foi um belo dia, deparei-me com o edital para a seleção do mestrado em ciências sociais. Eu já trabalhava um pouco com o planejamento de saúde em Guarabira e, por isso, eu tinha visto uma alta taxa de morte sem assistência médica — era assim que a gente chamava o caso de pessoas que morriam em casa sem atendimento médico. Na época, não havia Instituto Médico Legal. Para os casos de morte por violência tinha o sistema de verificação do óbito. Então, o que acontecia? O médico dava atestado de óbito, mas no espaço reservado à causa da doença, ele registrava como “sem assistência médica”. E se você está fazendo planejamento em saúde, saber do que as pessoas vão morrer é super importante. Mas como você podia saber das causas de morte se cinquenta por cento dos óbitos vinham assinalados “sem assistência médica”? Ou seja, as pessoas estavam morrendo sem terem assistência médica no hospital.

Decidi que faria a seleção do mestrado em ciências sociais. O projeto de pesquisa estava voltado para a repartição da desigualdade a partir das representações sobre a morte na Paraíba.

Nessa época, eu já estava com meu companheiro, que era professor do Curso de Comunicação. Já conheci Otília Storni, por exemplo, que também era professora do DCS; já conhecia um pessoal do curso de artes também. Eu era médica, saía para dar plantão, saía para trabalhar, por isso tive que me dedicar bastante ao mestrado.

Passei na seleção, até bem colocada, décimo segundo lugar. Para mim, foi um grande desafio, mas foi muito bom porque eu tive a sorte de pegar o mestrado em outro momento, quando durava quatro anos. Com isso veio minha grande virada.

Destinaram-me uma antropóloga como orientadora, Simone Maldonado. Também tive a oportunidade de conviver com o grande antropólogo Theophilos Rifiotis e pude conhecer Maristela Oliveira de Andrade. Fátima Araújo não ensinava no mestrado, mas estava ali próximo, no Departamento de Ciências Sociais. Esses três professores foram marcantes na minha vida acadêmica. Simone foi quem me apresentou toda a literatura vinculada à antropologia. Foi ela que também me motivou bastante e me incentivou para fazer o concurso lá no Maranhão. Eu estava decidida a mudar de vida. Queria trabalhar em um só lugar, ganhar um salário que fosse suficiente para sobreviver. Foi, então, que surgiram dois concursos: em Goiás e no Maranhão. Meu companheiro estava cedido para o Maranhão, inclusive foi ele que me indicou o concurso. Como eu não conhecia nada de Goiás, concentrei-me no concurso do Maranhão. Eu já tinha ido para o encontro da SBPC que ocorreu em São Luís, então, eu já conhecia um pouco a cidade.

Durante o mestrado, eu tive uma disciplina de metodologia do ensino, de sessenta horas, dada, por sorte, por uma professora do Centro de Educação. Hoje, com a redução do tempo do mestrado, não se tem mais disciplinas como essa, que preparava para a docência. Hoje, a licenciatura cumpre essa função na formação profissional. Na disciplina, tive a oportunidade de aprender sobre o que era educação, o que era um plano de curso e um plano de aula. Aprendi com aquela professora a fazer meu plano de aula, aquele que eu fazia para as disciplinas, todo arrumadinho. Também aprendi a definir os temas e a dividir a aula. Usei esse conhecimento quando fiz o concurso no Maranhão. Uma das coisas que ela me disse, que é marcante até hoje — lembrando que eu não tinha nenhum conhecimento de didática antes —, é que a relação de ensino-aprendizagem é uma relação processual, e para dar certo, deve ser uma relação “olho no olho”. Você precisa sentir como está chegando ao outro aquilo que você está dizendo. Eu não sei se eu alcancei essa capacidade, porque quando se começa a estudar demais, entra-se em um mundo de conhecimento gigantesco, no qual é necessário fazer a transposição didática (Abreu, 2024), o que é uma coisa muito difícil. Mas eu acho que, dentro das minhas possibilidades, consegui pescar alguns peixinhos.

 

Mohana — Considerando que seu interesse pelas ciências sociais surgiu durante o exercício da medicina, ou seja, antes do seu encontro com a antropologia, gostaria que você falasse sobre como você conseguiu unir medicina e antropologia, duas áreas aparentemente muito distintas.

Ednalva — São distintas, mas são complementares. Eu acho que a residência de medicina preventiva e social me deu o instrumental das ciências sociais para entender o mundo. Não na mesma dimensão que eu alcancei depois, no mestrado. Aprendi que o mundo biológico, do jeito que era apresentado pela medicina, não era suficiente para explicar o adoecimento. Eu trabalhei majoritariamente em serviço público — trabalhei apenas seis meses em um consultório privado —, então eu conhecia com precisão a dimensão das dificuldades de pessoas que vivem em situação precária. Era visível a diferença, por exemplo, no atendimento hospitalar, entre o perfil de uma pessoa de uma camada mais favorecida e outra de camada popular. Na trajetória da doença das crianças, principalmente, isso é muito perceptível. No caso de uma criança que vivia em situação precária de vida, a cada dois ou três meses, ela estava de volta ao hospital com problemas de saúde. Quando eu pensei em não mais trabalhar em unidade de saúde, a minha maior preocupação era perder o contato com essa realidade e, então, tornar-me cega a esse tipo de problemas. Vivi esse dilema. Eu tinha contato direto com a população, eu vi os problemas de saúde que a residência médica tinha me mostrado, como a desigualdade social, em termos gerais, pois naquele período não se falava tanto em gênero e em raça quanto se fala hoje. A grande linha crítica à sociedade se voltava para a desigualdade social, como a desigualdade no trabalho e a saúde do trabalhador, assunto que também me interessava. Então, eu já tinha uma posição crítica.

Há um texto de uma  pesquisadora mexicana, Asa Cristina Laurell (1983), que era um dos primeiros textos usado na residência — hoje, acredito que não seja mais utilizado. Nele, ela analisa as estatísticas de saúde e demonstra  a relação entre  adoecimento e classe social. Laurell faz uma articulação entre quem adoece e a classe social à qual pertence. Esse texto foi marcante para mim, pois se tornava muito concreto e se materializava no meu trabalho como médica de hospital público. Eu tinha muito medo de perder isso, mas, ao mesmo tempo, eu entendia que meu papel na unidade de saúde era muito limitado: a gente só podia fazer a terapêutica. Por exemplo, para as crianças que chegavam com diarreia e desidratação, o tratamento era o soro. Daí, elas voltavam para suas casas, onde as condições precárias que levaram à diarreia persistiam. Quando eu pensei em fazer ciências sociais, eu já tinha um olhar mais instrumentalizado porque já tinha passado pela experiência da residência médica e já havia trabalhado no município de Guarabira como planejadora em saúde. Com esse acúmulo de atividades, percebi que eu não tinha qualidade de vida. Trabalhar no setor público, onde se ganha pouco dinheiro, obrigava-me a trabalhar em vários lugares simultaneamente para obter um salário digno. A classe médica nem sempre reconhece que também é classe trabalhadora, assim como qualquer outra. A diferença está no status, mas o trabalho é semelhante ao de qualquer outra profissão em todo o mundo capitalista. Em resumo, meu dilema, ao considerar deixar a medicina, era a possibilidade de perder o contato direto com a população e não mais visualizar os problemas que a prática médica me mostrava claramente.

Então, explicar a morte pela via da desigualdade, pela via de como as pessoas entendiam o que era morrer, era uma forma de articular a medicina com as ciências sociais. Ao mesmo tempo, isso me levava a entender qual era o lugar do hospital na morte. O que eu aprendi em seis anos estudando medicina foi que o lugar de morrer era o hospital. Quando, entretanto, comecei a trabalhar no hospital, eu encontrei um monte de atestados de óbito dizendo que as pessoas morreram em casa. No geral, as pessoas me diziam que o lugar de morrer era em casa, junto da família, junto das pessoas de quem se gosta, no seu lugar. Essa descoberta foi muito radical para mim. A ideia era manter essa articulação, ou seja, não sair de onde estava a minha formação, mas continuar com o olhar crítico.

 

Mohana — Muito interessante. Percebe-se no seu discurso uma importância muito grande para a humanização do trabalho médico. O que você acha que a antropologia tem para oferecer à medicina?

Ednalva — Tem tudo a ver. Para a medicina, tudo se reduz a um processo patológico, a uma desordem de caráter biomédico. Então, a atuação médica se reduz meramente a uma questão técnica, numa leitura reducionista. Se você está com verme na barriga, você trata e acabou a doença. Se você está com algo te deixando doente, você tira esse algo do seu corpo e acabou. Hoje, contudo, a gente tem elementos importantes, outras estratégias que são revolucionárias dentro da medicina por considerarem que a terapêutica não é tudo. Um exemplo disso são os cuidados paliativos. Assim, a principal contribuição das ciências sociais é fazer a crítica a esse modelo biologicista. Então, acho que o mestrado teve essa função de desconstrução.

Eu sou uma profissional que tem uma história de vida privilegiada, mulher branca que teve acesso à escola, que pôde fazer o ensino médio no Liceu Paraibano e isso me garantiu entrar na UFPB e tal. Não quero dizer para vocês que foi fácil, certamente não o foi.  Eu estudava a noite inteira; minha mãe deixava a comida dentro do fogão; às vinte e duas horas, eu acordava, esquentava a comida, jantava e estudava a noite inteira. Então, esse era o ritmo. Não era fácil. Se para mim era assim, para quem não tinha acesso a um bom colégio, o esforço era, certamente, muito maior.

Na formação médica em geral, acho que falta a dimensão crítica. Em função do modelo capitalista de exercício da profissão não tem como a gente conseguir essa compreensão de toda a classe médica. Por conta também de uma ideologia hierarquizante. A gente tem uma sociedade na qual  predomina um padrão de poder muito claro. Na nossa sociedade, tudo passa por relações hierarquizantes: um que é o dono do saber; o outro não é.

Esse modelo societário nos convence de que é preciso trabalhar para se ter o salário no final do mês, sem se preocupar para quem vai a mais-valia do  trabalho. Esta é a crítica fundamental que une medicina e antropologia: estabelecer a ligação entre quem adoece, do que adoece e a posição que ele ocupa na sociedade. A outra crítica é sobre como nós estamos convencendo essa pessoa de que o lugar que ela ocupa na sociedade é o que ela merece. Por isso, não consigo desarticular as concepções de sociedade e cultura. Afinal, acredito que se trata de um processo contínuo de interação. Uma só funciona com a outra.

A antropologia pode oferecer outra perspectiva para o modelo biomédico: uma perspectiva complementar. Eu não estou dizendo que se deve descartar  a biomedicina, mas estou destacando suas limitações acerca  das diferenças na distribuição das doenças e as condições de vida das pessoas.

Reflexo que se sente na forma como o hospital funciona. Por exemplo, os chefes de clínica no hospital universitário da UFPB não são professores com formação em medicina preventiva e social, o que evidencia a necessidade de uma abordagem mais humanizada. Sobre isso, o livro organizado por Suely Deslandes (2006) é bastante esclarecedor a respeito de tentativas de quebrar o viés biologicista da medicina, o que não é fácil, pois quem tem acesso aos cursos de medicina são pessoas de camadas diferenciadas. Por isso, as ações afirmativas são tão importantes, pois permitem que pessoas menos favorecidas possam acessar esses espaços e atuar de forma diferenciada. Quanto a mim, não sei dizer se eu era assim tão humanizada. Mas, certamente, não era uma médica conservadora no sentido clássico.

 

Mohana — Você não tinha uma história de três gerações de médicos na família, com duas clínicas e um hospital com o nome!

Ednalva — Quando eu estava concluindo o curso, eu entrei em crise. Pensava: “meu Deus, eu não vou ser contratada. Quem vai dar emprego para mim?” Preocupação à toa, pois emprego não faltava.

 

Mohana — Foi boa essa deixa. Sabemos que a área de ciências sociais tem sofrido preconceito público nos últimos anos. No último governo, por exemplo, as críticas ao nosso papel profissional eram claras e diretas. Queríamos saber um pouco mais sobre como foi essa transição diária, levando em consideração que você saiu de uma área altamente prestigiada para outra menos valorizada.

Ednalva —  De fato, nessa transição, predominava uma dimensão pessoal muito forte que era o desejo de querer mudar de vida. Não estava satisfeita com a minha vida, especialmente por acreditar que estava sendo negligente com a minha família. Na época, minha filha já havia nascido. Houve um tempo em que ela estava na escola, e eu não ia a nenhuma festa do Dia das Mães porque caía na sexta-feira, dia que eu dava plantão em São Paulo do Potengi. Acordava antes das cinco e meia da manhã, tinha que pegar o primeiro ônibus para Natal, e de lá pegar outro ônibus para São Paulo do Potengi. Eu fui concursada no Rio Grande do Norte, mas não fiquei em Natal, escolhi a cidade do interior porque o salário era maior. Eu chegava ao plantão na sexta-feira à tarde. O diretor — havia aí uma questão de gênero, inclusive uma de minhas colegas enfrentou situações ruins —  determinava que eu cumprisse quarenta horas de plantão. Assim, eu saía no domingo à noite. Até que comecei a brigar e passei a sair no domingo pela manhã. E depois, com muita luta, comecei a sair no sábado à noite ou, às vezes, no domingo pela manhã, quando não tinha quem ficasse no resto do plantão.

As leituras que estava fazendo no mestrado estavam abrindo novos entendimentos. Tomava consciência de várias formas de opressão, como aquelas que o diretor do hospital de São Paulo do Potengi exerceu sobre nós, especialmente por sermos mulheres.

Eu comecei no mestrado sem bolsa e eu não fui liberada do trabalho. Assim, confluíram questões de ordem pessoal e questões de compreensão. Daí, eu mudei o meu desejo. Eu queria agora trabalhar num lugar só, ter dinheiro suficiente e poder conviver com minha família, especificamente com a minha filha pequena. Os problemas que o mestrado levantava, as leituras que eu estava fazendo, as coisas que eu estava gostando e uma orientadora maravilhosa me levaram a mudar de área e a mudar de estado.

A sensação de impotência em relação à medicina também foi uma coisa muito marcante para mim. Na época, eu também trabalhava no Hospital Clementino Fraga, exatamente no começo da epidemia de HIV/AIDS. Foi muito desafiante. Imaginem a situação dos pacientes internados com AIDS: situação de abandono e morte social.

O trabalho no Pavilhão Henfil do Hospital Clementino Fraga foi decisivo nas minhas tomadas de decisões. Eu estudava escondida, preparava os planos de aula escondida durante os plantões, porque eu também estava como professora substituta na  Universidade do Rio Grande do Norte. Isso foi logo quando eu saí de Guarabira, porque lá assumiu um gestor que acabou com a estrutura do plano de cargos e salários dos profissionais, o que tirou todo o equilíbrio que havia. Ficar ali já não valia a pena.

Em resumo, eu trabalhava em São Paulo do Potengi, no Rio Grande do Norte; no Hospital Clementino Fraga, em João Pessoa; era professora substituta na UFRN; era aluna de mestrado na UFPB e tinha uma filha de quatro anos de idade. A essa altura, eu já estava morando na casa da minha mãe — considerando que meu esposo estava trabalhando no Maranhão —, o que me dava uma rede de apoio que, sem ela, eu não daria conta de tudo.

Se eu queria seguir esse outro rumo, então, precisava estudar muito para passar no concurso. Quero destacar que, nesse processo, Simone Maldonado foi muito importante. Mais que uma orientadora, ela foi uma grande incentivadora e amiga.

 

Mohana — É uma grande história.

Ednalva — E eu acho muito importante o que vocês estão fazendo, relacionando a trajetória de vida com a trajetória profissional. Permitam-me uma pequena digressão. Járdina Silva, minha orientanda, fez uma pesquisa sobre suicídio e racismo com mulheres no Centro de Referência João Balula. Nós organizamos  uma proposta de roteiro pensando em tópicos de racismo, de injúrias raciais e a relação desses eventos com as tentativas de suicídio. Para nossa surpresa, as mulheres disseram que não era nada disso: “Nossa história com o racismo começa desde a primeira infância; desde quando eu entrei num colégio, já diziam que meu cabelo era feio”.

Elas nos deram uma rasteira acerca da trajetória de vida, no sentido de dizer: “Pesquisadores ampliem o olhar. Que é isso? A história da gente de vida não começa quando você tem uma tentativa de suicídio. E quando está relacionado ao racismo, é uma coisa que vem de muito tempo. É, eu consegui empoderar minhas filhas, mas a mim mesma eu não consigo”. Então, claro que o trabalho de campo dela é maravilhoso; a dissertação também, mas foi um alerta disso que vocês estão fazendo nesta entrevista, tentando articular a trajetória de vida com o que você faz.

 

Geziane — A sua trajetória, no sentido de carreira profissional, está muito atravessada pela saúde. Isso acabou se apresentando na sua forma de trabalhar, ou seja, na antropologia da saúde. Você é reconhecidamente uma grande teórica nessa área.

Mohana —  Fizemos um estudo do seu currículo Lattes para poder perguntar sobre as incontáveis páginas com orientações de pessoas inteligentíssimas, com contribuições ótimas, abordando temas que são delicados e precisariam justamente desse mergulho, desse pontinho na saúde. Você tem orientações e textos escritos em parceria a morte, luto, doença falciforme, utilização de medicamentos e vários outros temas dentro da área de antropologia da saúde. Nessas produções, você faz provocações importantes e as deixa como herança científica para pesquisadores da área.

Geziane — Como Mohana falou, em várias áreas da saúde, pesquisando sobre doenças, você e seus orientandos estão trazendo uma contribuição importante para a área. O que você pode nos dizer sobre essa relação que sempre esteve tão interligada com sua história de vida e que acabou entrando também na sua carreira acadêmica? Como é essa antropologia da saúde, segundo Ednalva, por Ednalva.

Ednalva — É aquela ideia lá na residência, ou seja, conseguir manter uma crítica à visão do corpo e da doença segundo o modelo de abordagem da medicina, trazendo o olhar de quem não é visibilizado. Eu acho que é isso. Quando eu era médica, estava deste lado da mesa, e quando eu me tornei antropóloga, eu queria saber o que o outro do outro lado pensava. Então, eu acho que antropologia da saúde teve o objetivo de manter o meu foco com a minha formação. Ou seja, eu não saí do meu lugar, continuei pensando sobre saúde e doença. Com certeza, espero continuar contribuindo. Eu acho que a segunda coisa é desconstruir um pouco o modelo biomédico, no sentido de trazer outros olhares e trazer a vivência de quem passa pelo sofrimento de adoecer e do morrer. E terceiro, eu acho que há uma luta dentro do campo das ciências sociais, coisa que eu só vim me dar conta depois, quando uma colega me disse que precisava comprovar para os colegas de departamento dela que a antropologia da saúde é ciência. Tenho que demonstrar que o que eu faço é científico, mais empírico, menos empírico, mesmo que não possa generalizar e produzir grandes leis.

Então, diante da atitude da medicina, pautada no modelo biomédico, quem teria coragem de desafiar o diagnóstico e o poder do médico? A antropologia da saúde traz questões científicas importantes a esse respeito.

 

Mohana — Na verdade, é um pouco do que a gente está falando aqui. É a medicina que olha para a doença e não para o indivíduo. O indivíduo, nesse caso, não tem voz, ele é levado a fazer o tratamento.

Ednalva — E não é dito para ele assim: “tem essa opção, tem essa e tem essa aqui”.  Ao contrário, eles dizem “Olhe, você tem isso, então você vai fazer isso, isso, isso.” Pronto! No entanto, sabemos que existem alguns pacientes que não se submetem totalmente.

Em resumo, acho que a antropologia tem um grande desafio para demonstrar essas relações, essas propostas de atenção e de trazer a vivência para a reflexão médica. Já dentro do campo das ciências sociais, o desafio é ser reconhecido enquanto campo científico, com uma problemática importante. Vejam, o Comitê de Antropologia e Saúde da ABA, do qual faço parte,  está na segunda gestão colegiada. Isso significa que o comitê existe há apenas quatro anos, sendo que a ABA está completando 70 anos.

 

Mohana — A próxima pergunta é justamente sobre isso, sobre o que você poderia falar a respeito da antropologia da saúde do futuro. O que você espera para área? Como você percebe que ela está evoluindo?

Ednalva — Ah, eu acho que a área está maravilhosa. Há um florescimento do interesse de novos pesquisadores pelos temas e problemas voltados para saúde e doença.

Acho que a antropologia da saúde deu um grande salto e quero destacar o trabalho realizado na Paraíba pelo GRUPESC. Esse grupo foi fundamental para revitalizar o movimento que já estava em andamento, como evidenciado na entrevista com a Daniela Knauth (Knauth et al, 2021). Houve um seminário de antropologia médica, possivelmente organizado por Luiz Fernando Dias Duarte, com apenas duas edições. Daniela mostra a luta que houve na ANPOCS para aprovar um grupo de trabalho específico de antropologia da saúde, assim como na ABA. Atualmente, temos reuniões regulares desse grupo de pesquisadores no campo da saúde — Reunião de Antropologia da Saúde (RAS). A primeira foi aqui na Paraíba, em 2015, passando por 2017, 2019, 2021 até o ano passado, 2023. Já estamos na quinta edição desse evento.

Há, portanto, uma consolidação muito promissora da antropologia da saúde, com temas muito interessantes. Por haver essa abertura de espaço, podemos pensar em mercado. Espero que tenhamos governos progressistas para beneficiar o quadro favorável para os profissionais da antropologia da saúde. Já há sociólogos no Ministério da Saúde, já existem concursos que estão convocando antropólogos(as) para trabalhar em unidades de saúde, o que é muito importante. Além disso, temos antropólogos(as) atuando em unidade de saúde indígena e nos departamentos de medicina social e saúde coletiva. A Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva (Abrasco) e o Cebes, que são grupos que vêm discutindo saúde coletiva desde antes da Ditadura Militar, indicam que, no Brasil, há uma forte tradição que junta saúde coletiva e antropologia. Um tema que está na vanguarda tem se voltado para a genética e a identidade genética relacionadas a doenças.

Se vocês perguntam como eu me sinto em relação a isso, sou muito feliz por ter ajudado na construção desse cenário. Eu não sei se sou uma grande teórica, e ao dizer isso, não estou sendo falsamente modesta. Por vir da medicina, sempre me castiguei por não ser cientista social de origem, com formação clássica. Por isso, talvez, eu sempre me ache aprendiz. O que, por outro lado, é muito bom, pois quando você é aprendiz, você está sempre buscando mais. Estou aposentada, mas ainda estou lendo um monte de coisas, orientando algumas alunas de pós-graduação, fazendo diversos pareceres, estou no Comitê de Antropologia e Saúde da ABA. Enfim.

 

Geziane — Aproveitando que você falou sobre suas orientandas, a próxima questão diz respeito a isso. Você foi minha orientadora e auxiliou muitos cientistas sociais na Universidade Federal do Paraíba, onde tiveram sua influência acadêmica, de carreira. Sua trajetória de trabalho e de orientação foi muito em parceria com os estudantes. Isso sempre foi muito marcante. Gostaríamos de saber como você vê essa produção científica nesse formato de coletividade. É uma tendência que está em crescimento nas ciências sociais? Vemos que você contribuiu muito para essa ideia de trabalho coletivo. Como você vê isso?

Ednalva — Olha, no Maranhão, eu não tive muitas oportunidades de ter orientações. Mas eu convivi com isso, e acredito que essa tradição eu aprendi com a Universidade Federal do Maranhão. Com Maristela de Paula Andrade, que tinha um grupo muito grande sobre camponeses; com Marcelo Sampaio Carneiro; e com Horácio Antunes. Outro colega que também me chamava atenção era Sérgio Figueiredo Ferretti. Ele tinha um grupo de estudos sobre religião e cultura popular com muitos orientandos. Quando eu vim para cá, eu fiquei apreensiva, pois os professores que me formaram são/eram do Departamento de Ciências Sociais. Ou seja, eu estava voltando para o lugar onde estavam os meus ex-professores, como Jacob Lima, Fátima Araújo etc. Era uma preocupação. No começo, eu pensei em criar o meu próprio grupo, mas conheci Mónica Franch e Artur Perrusi e vi que nossos interesses convergiam, então passamos a trabalhar em um único grupo, o que foi muito bom.

Eu acho que eu tive uma grande vantagem, que foi ter pessoas que estavam interessadas e aceitavam compartilhar a formação e suas pesquisas.

O nosso trabalho era bom, eu gosto de ouvir todo mundo e procuro não fazer distinção a partir do grau de formação (doutorado, mestrado ou graduação). Então, quem estava nas reuniões, que leu o texto e disse alguma coisa, para mim era importante. No entanto, eu me deparei com algumas dificuldades, algumas situações problemáticas de orientação. Lembro de um caso em que não fui muito compreensiva com a orientanda, e ela, por sentir-se ofendida, acabou fazendo comentários públicos que me deixaram muito triste. Essa foi a única orientação cujas lembranças ainda me entristecem.

Depois dessa orientação, passei a ter um diário de orientação, no qual anotava tudo que fizemos na reunião. Hoje, eu tenho vários amigos e amigas que foram meus orientandos. Fiquei muito mais vigilante comigo mesma a ponto de exagerar no cuidado e zelo com meus orientandos. Esse caso serviu para eu perceber que não estava sendo tão antropóloga, porque eu não estava ouvindo o outro. Ou seja, eu era antropóloga para fazer pesquisa, mas não estava sendo antropóloga com os meus orientandos.

 

Mohana — Sua narrativa é bem interessante, pois me fez entender como é bom ter uma orientação na qual você vê o orientador como humano e se sente vista também como humana. Pegando esse gancho, queria te perguntar qual é a contribuição que, analisando a sua trajetória acadêmica, você destacaria como sendo a sua obra, seu legado?

Ednalva — Essa é a pegadinha. Ai, não sei. O meu legado são as pessoas que cativei, assim como as coisas que pesquisei, com quem pesquisei e que vi algum efeito de mudança. Por exemplo, durante minha pesquisa na Associação de Diabéticos de João Pessoa (ADJP), os membros da associação conseguiram que uma lei municipal fosse aprovada determinando que qualquer buffet nesta cidade deve oferecer uma comida própria para diabéticos, incluindo refrigerantes zero, diet e refeições adequadas. Se penso para além dos muros, acredito que essa é a minha grande contribuição: lidar com esses temas e ver que eles ganharam visibilidade.

A segunda contribuição é a consciência, que procurei passar aos meus alunos, de que a produção de conhecimento é um ato político. Pesquisar é um ato político; escrever um artigo é um ato político; apresentar um trabalho é um ato político de “falar sobre algo”. Então, tantas vezes meus orientandos foram apresentar trabalho em evento e a plateia não sabia o que era anemia falciforme.

A terceira contribuição diz respeito às orientações acadêmicas. Vejo que colegas de grandes universidades — não que a UFPB não seja grande, eu amo esse lugar onde eu me formei e onde me aposentei — têm número grande de páginas no currículo dedicadas a orientações. Eu não tive isso tudo, mas todos os meus orientandos foram muito especiais. Aprendi muito com eles e sou-lhes muito grata.

Enfim, pensando em possíveis contribuições, listo essas três. Por último, poderia acrescentar a ideia de que a antropologia da saúde tem um espaço significativo no campo da antropologia e no campo das ciências sociais. Hoje, por exemplo, na sociologia da saúde, muito poucos profissionais estão produzindo na área; enquanto na antropologia da saúde, há vários grupos atuando e vários temas sendo discutidos. E mesmo quem está na sociologia recorre à antropologia para pensar saúde e sociedade, corpo e sociedade.

 

Geziane — Muitas contribuições. Já passando um pouquinho para o último bloco, sobre a questão da sua aposentadoria, eu imagino que você tem feito bastante falta na UFPB. Você sentirá falta do trabalho na UFPB?

Ednalva — Eu sinto muita falta. Em 2019, quando eu já tinha tempo para me aposentar, deixei de fazer projetos para concorrer ao edital do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic), coisa que sempre fiz. Eu já comecei a sentir falta aí, porque não conseguia mais ter aquele grupo coletivo que, segundo vocês mesmas, era um coletivo que chamava atenção. Deixar de concorrer ao Pibic era uma perda para mim. Faltava-me ler os editais de publicação de financiamento de projetos. Frustrava-me o fato de ter abdicado da ideia de ser pesquisador-produtividade. Diante de tantas oportunidades que não existiam durante os meus 20 e tantos anos de academia, eu sinto falta de estar na ativa. E, como não poderia esquecer, sinto falta da sala de aula. É certo que da graduação, nem tanto. Porque eu ficava muito tensa e, por isso, eu voltava a ler muito. Como falei para vocês, descobri que não sabia fazer a transposição didática do volume de conhecimento teórico para um conteúdo mais sistematizado.

Hoje, também sinto falta da convivência com os colegas e de não estar mais assumindo orientações. Elas são para mim uma fonte de provocação, de leitura e de aprendizado. Em suma, sinto falta do reboliço na lanchonete de dona Socorro. A falta de ir ao CCHLA, de frequentar os espaços que eu ocupava, como a bat caverna, a concorrida sala 42. Eu estou declarando isso para vocês de forma muito emocionada, mas também acredito que estava no tempo certo de me aposentar, porque eu estava ficando cansada, impaciente e chata.

Além disso, há pessoas muito legais que estão chegando, e a gente deve saber em qual fase da vida a gente está. Vale destacar, por outro lado, que a aposentadoria não me fez parar totalmente. Semana que vem, mandarei um e-mail para um ex-orientando, convidando-o para escrevermos um artigo juntos. Para este ano, se vocês virem no Lattes, já tenho várias bancas. E há algumas que eu ainda nem coloquei lá porque ainda não recebi o certificado. Procuro deixar o meu currículo Lattes sempre atualizado.

Atualmente, preocupo-me muito em me manter sempre atualizada. Para isso, estou usando os meus problemas, isto é, ser cuidadora de uma pessoa com demência, o que é um grande desafio. Então, estou estudando um pouco sobre o que é o cuidado com idoso.

 

Mohana — Aproxima-se de mim... no meu caso, é o cuidado com crianças! Mas estamos no mesmo barco, discutindo o cuidado.

Ednalva — Pois é. O que é cuidado? Cuidar está muito na moda, mas o cuidado implica uma relação de poder que ninguém tem discutido.

 

MohanaCuidado tem muito a ver com a sua discussão. Tem a ver com saúde, com geração e com poder público.

Ednalva — Tem uma relação de poder. Porque é o cuidador que define o que a pessoa cuidada quer. Quem já foi cuidado sabe disso. Nem sempre você quis uma determinada coisa, mas o outro leu daquela forma e fez a escolha por ti. O caso da pessoa com demência é mais grave ainda, pois ela não pode se expressar.

 

Mohana — Na minha tese, eu levanto a questão de que o cuidado é inerente à condição da vida humana, principalmente em duas fases: na primeira infância e na velhice. De fato, a questão do poder não pode ser esquecida.

Ednalva — É, principalmente, o pessoal da antropologia da deficiência que tem puxado a discussão sobre como a relação entre cuidador e a pessoa que está sendo cuidada é uma relação de poder. O pessoal da  antropologia da(s) deficiência(s) está chamando atenção para essas questões. Estávamos tratando o cuidado como um grande conceito das ciências sociais, que consegue fazer a crítica ao gênero, à sociedade e a tudo, mas estávamos esquecendo de que vivemos em uma sociedade hierarquizante, ou seja de produção de hierarquias. Ela dita quem pode consumir, quem pode fazer isso etc.

 

Mohana — Pelo que ouvimos até aqui, podemos presumir que ainda vamos ler muito a produção de Ednalva autora, pesquisadora?

Ednalva — Coautora. Enquanto minhas parceiras me aceitarem como coautora, tudo bem. Preparem-se, pois já está no prelo um artigo e três capítulos de livro como coautora.

 

Mohana — Muito bacana. É muito bom saber que continuaremos lendo suas obras, e que você continua envolvida em ações da universidade. Finalizando, o que você diria para os futuros antropólogos? Para os alunos da UFPB? Como você resumiria a sua passagem de mais de 20 anos pela UFPB?

Ednalva — Eu não queria falar da minha passagem, acho que eu já disse tanta coisa para vocês.

O que eu queria dizer aos próximos antropólogos é sobre a minha paixão pela antropologia. Acredito que a antropologia implicou tanto na minha compreensão do  mundo social quanto na minha visão existencial. E eu acho que esse é o grande desafio do cientista social, ou seja, perceber que ele tem que dirigir a crítica para o lugar onde ele se reproduz. Porque, quer queira ou não, você é mãe, você conhece o que é ser mãe pela análise sociológica da pesquisa, e você, ao mesmo tempo, tem que praticar esse ato de ser mãe nesta sociedade com suas regras. Isso é muito difícil. Eu acho que era isso que eu via nos alunos dos Fundamentos de Antropologia I: “Poxa, eu aprendi isso? E essa sociedade não é a melhor do mundo?” Então, o que eu diria é isso: fazer ciências sociais é um desafio, como é um desafio ser profissional nessa área, mas, apesar disso, é muito instigante porque tem uma dimensão existencial e é, fundamentalmente, um ato político. Na minha visão, ser cientista social, ser antropólogo, é um ato político. São poucas, digamos assim, as profissões que têm essa visão crítica sobre a sociedade, que falam sobre as produções humanas, para o bem ou para o mal, como os constrangimentos. E não há sociedade humana que não produza constrangimentos sobre os indivíduos. Como diziam Lévi-Strauss e o velho Durkheim, nós temos que estabelecer algumas regras para convivermos juntos.

Em uma palavra, diria que é desafiante, mas para mim, o desafio se tornou emocionante e existencial. Tanto está no meu trabalho quanto na minha maneira de viver e de olhar a realidade. Estou sempre perguntando: “E se não fosse assim, como seria?” Por ser uma profissão difícil, ela se torna instigante e está ligada às escolhas pessoais em relação à sua visão de mundo e à sua visão existencial. Quando se é cientista social, é porque se fez a escolha. Só pode ser uma questão de escolha.

 

Mohana — Muito obrigada. Sua fala me deixou emocionada e creio que uma palavra não deve faltar no título desta entrevista: paixão.

Ednalva —Essa história de paixão pelo fazer antropológico, acho que ficaria legal, mas tenho um pouco de dúvida. Vocês, como minhas ex-alunas, acham que eu demonstrava bem a paixão pela antropologia?

 

Geziane — Era justamente isso que eu ia falar agora. Como sua aluna, posso dizer que você apresentava muita paixão pela antropologia. A minha primeira aula na graduação foi com você. Eu fico emocionada por fazer esta entrevista e ouvir tudo isso. Cada coisa dita estava em correspondência com o que de fato aconteceu. Essa era Ednalva. Você fazia com que nós, alunos dos Fundamentos I, quiséssemos pesquisar. Muito do que você nos ensinava era para nos tornamos pesquisadores. Na primeira aula, ao ver teu desempenho, tive a certeza de que tinha escolhido o curso certo. Era o que eu queria. Como você falou, é uma escolha. Eu escolhi ser cientista social. Eu nunca tive uma oportunidade de falar, mas quero agradecer a você por tudo que você fez na universidade. Eu só me mantive na universidade por sua causa, por conta das suas aulas, da motivação que me deu ao me inserir num grupo de pesquisa. Com isso, eu pude me manter na universidade, porque se não fosse o primeiro Pibic — quando eu comecei, não tinha nem três períodos de curso ainda —, eu não teria me mantido na universidade porque eu não tinha condições financeiras suficientes. Durante os primeiros períodos, eu faltei muito por não ter dinheiro para pagar as passagens de ônibus. Quando eu consegui o primeiro Pibic por seu intermédio, a situação melhorou. Por esse motivo, abro uma exceção no protocolo desta entrevista para agradecer do fundo do coração por ter compartilhado o mesmo tempo de universidade com você.

Ednalva — Geziane, não acho que tenha feito grandes coisas além do meu trabalho. Suas palavras me deixam emocionada.

Então eu fico muito feliz. Espero que tenha tocado muitas pessoas. Eu realmente gosto da antropologia. Se você consegue levar a antropologia a sério, como paixão, vai doer um pouco. Falando como cuidadora, estou vivendo um pouco isso. A antropologia me deixa o tempo todo em estado de questionamento. “E aí, Ednalva, presta atenção. Tu estás ouvindo direito o que a realidade está te dizendo?”

 

Mohana — Muito obrigada, Ednalva, por ter cedido o seu tempo.

Ednalva — Eu quero agradecer a vocês e à Revista Caos por essa oportunidade de falar um pouco sobre mim. Além disso, aprendi bastante com vocês e espero também ter estimulado reflexões sobre essas relações que acontecem dentro da universidade, levando-os a relativizar os sentimentos e as paixões. Considero importante esse diálogo, e espero que possa reencontrá-las em algum momento, talvez, durante suas próprias orientações.

 

Mohana —  Muito obrigada por ter cedido duas horas do seu sábado. É sempre bom fazer essas entrevistas, ouvir história, pegar um pouquinho de ânimo, impulso para que a gente continue.

Ednalva — Eu acho que foi até um pouco catártico. Disse coisas que, talvez, só tenha dito antes na terapia.

 

Mohana e Geziane — Sentimo-nos honradas pelo privilégio. Muito obrigada.

Ednalva — Beijo para vocês.

 

Referências

ABREU JR., Luiz Trajano de. Transposição didática: a experiência no programa residência pedagógica: sociologia como experiência formativa para os/as graduandos/as de ciências sociais na UFPB. 2024. Trabalho de conclusão de curso (Licenciatura em Ciências Sociais) — Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2024.

DESLANDES, S. F. (org.). Humanização dos cuidados em saúde: conceitos, dilemas e práticas.  Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006.

KNAUTH, Daniela Riva. Sobre antropologia e saúde, engajamento político e ética em pesquisa: uma conversa com Daniela Knauth. [Entrevista cedida a]  Mónica Franch e Ednalva Maciel Neves. Anuário Antropológico, Brasília, v. 46, n. 2, p. 305-321, 2021. Disponível em: https://journals.openedition.org/aa/8349. Acesso em: 27 maio 2024.

LAURELL, A. C. A saúde-doença como processo social. In: NUNES, E. D. (org.). Medicina social: aspectos históricos e teóricos. São Paulo: Global, 1983. p. 133-158.

 

Recebido em: 23/05/23.

Aceito em: 03/06/24.

 

https://doi.org/10.46906/caos.n32.70286.p228-249

 

 



* Doutora em antropologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil. Professora titular aposentada da Universidade Federal da Paraíba, Brasil. E-mail: ednmneves@gmail.com.

** Doutora em sociologia pela Universidade Federal da Paraíba, Brasil. E-mail: mohanamorais@hotmail.com

*** Mestra em sociologia pela Universidade Federal da Paraíba, Brasil. Professora de sociologia na Rede Pública de Ensino do Estado do Espírito Santo, Brasil. E-mail: gezianeoliveira91@outlook.com.

 

 

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Desenho de um círculo

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