A PROPOSTA DE MARIO MIELI PARA UMA TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

MARIO MIELI’S PROPOSAL FOR A SOCIAL TRANSFORMATION

Caroline Sátiro de Holanda *

 

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n33.70346.p302-313

 

 

MIELI, Mario. Por um comunismo transexual: elementos de crítica homossexual. São Paulo: Boitempo, 2023.

 

 

No ano passado, 2023, foi lançada pela Editora Boitempo a primeira edição brasileira do livro Elementi de critica omossessuale, do italiano Mario Mieli, publicado originariamente em 1977, na Itália. Sobre o título da obra, a nota da edição brasileira esclarece que se optou por intitulá-la de Por um comunismo transexual, mantendo no subtítulo a tradução literal do título original elementos de crítica homossexual, apenas para facilitar a identificação por parte daqueles que já conhecem o livro em italiano. Segundo a edição, a escolha pelo título Por um comunismo transexual apoiara-se em diversas passagens e seria uma síntese do argumento do tópico Fim, da obra. Para as pessoas que ainda não conhecem o livro nem as ideias de Mieli, vale elucidar, de antemão, que “transexual”, para o autor, não tem o sentido hodierno; sendo a “disponibilidade erótica potencial” (Mieli, 2023, p. 25), ou seja, o estado do desejo sexual para além da dicotomia “heterossexualidade versus homossexualidade”. O transexual, para Mieli, constitui um ideal político a ser recuperado. Nesse sentido, tendo em conta que nem Mario Mieli nem suas ideias ainda são amplamente conhecidos no Brasil, o título brasileiro pode favorecer mal-entendidos desnecessários.

Mas quem foi Mario Mieli?[1]. Nasceu em 1952, na cidade de Milão. Viveu no campo, no norte da Itália, até o ano de 1968, quando retornou a Milão e começou a participar do movimento homossexual. Em 1971, aos dezenove anos, quando esteve em Londres para aperfeiçoamento da língua inglesa, participou da Gay Liberation Front (Frente de Libertação Gay) — nome usado por vários grupos de libertação homossexual de diversos países, após a Revolta de Stonewall. Ainda no mesmo ano, quando retornou a Milão, ajudou a fundar a Fronte Unitario Omosessuale Rivoluzionario Italiano — FUORI (Frente Revolucionária Homossexual Unida Italiana), da qual, posteriormente, afastou-se após a Fronte estabelecer relações com o Partido Radical. Ao longo da década de 1970, fundou e participou de vários coletivos homossexuais em Milão. Mieli era o que hoje é chamado de gay efeminado, desafiando e transgredindo as normas sociais de gênero ao vestir-se com trajes femininos. Aliás, saliente-se que os coletivos dos quais Mieli fez parte adotavam como uma de suas ações políticas o travestimento, sendo, por isso, considerado um ativismo maricas. Em 1976, formou-se em filosofia pela Università Statale di Milano, tendo apresentado Elementi de critica omossessuale como tese de láurea (trabalho de conclusão de curso), a qual foi publicada em 1977 pela editora Einaudi. A obra é considerada, ainda hoje, um marco teórico importante para o movimento homossexual italiano. Mieli morreu em 1983, aos trinta anos de idade, por suicídio.

Embora o livro ainda seja bastante atual, por conter traços estreitos com as ideias da teoria queer, seria um grande equívoco lê-lo sem levar em conta o contexto histórico no qual foi escrito e do qual Mieli participou com seu ativismo homossexual. Estamos falando dos anos 1970, quando o movimento homossexual obteve uma organização coletiva ampliada em diversos países, especialmente depois de Stonewall, em busca de visibilidade, de direitos, de reconhecimento da identidade homossexual e da despatologização da homossexualidade. Todas essas organizações coletivas homossexuais também têm relação com outros movimentos da contracultura ocorridos na década de 1960. Pode-se afirmar, inclusive, que em razão do ativismo homossexual, a homossexualidade — então denominada de homossexualismo — foi retirada, em 1973, do rol dos transtornos mentais do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), pela Associação Americana de Psiquiatria (APA). O mesmo ocorreu, embora mais tardiamente, no âmbito da Organização Mundial da Saúde (OMS), que, em 1990, retirou a homossexualidade do rol da Classificação Internacional de Doenças (CID).

Vale chamar atenção para o estilo de escrita utilizado por Mieli, como bem demarcado pela tradutora da obra, Rita Coitinho (2023). Em sua proposta para enfrentar as normas sociais, Mieli também o faz por meio da linguagem, ao utilizar termos e expressões inusuais na escrita acadêmica, tais como: bicha, gay, viado etc. A publicação brasileira tem o prefácio e as notas de edição feitos por Marília Moschkovich, docente de sociologia, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora nas áreas de gênero, sexualidades, estudos queer dentre outras. O livro também conta com um apêndice, composto por resenhas de diferentes pessoas. A obra está dividida em oito partes: uma parte denominada de Premissa, seis capítulos e o Fim.

Já na Premissa é possível identificar o objetivo geral do livro: colocar a libertação da homossexualidade como condição essencial para criação do comunismo, inserindo-a no quadro de uma emancipação humana mais ampla. A pergunta enfrentada no livro é: por que a sociedade marginaliza e reprime a homossexualidade tão duramente e em que tal repressão contribui para com a consolidação/fortalecimento do capitalismo? A partir dessa resposta, o autor evidencia a necessidade de liberar o desejo homossexual como parte indispensável da transformação social. O trabalho é desenvolvido a partir das lentes teóricas do marxismo e da psicanálise freudiana, levando em conta a experiência de Mieli no movimento homossexual. Nesse sentido, é possível afirmar que o livro constitui uma teorização das reivindicações da militância.

Para esta resenha, escolhi examinar com mais detalhes o primeiro capítulo, intitulado O desejo homossexual é universal, no qual Mieli apresenta as concepções freudianas sobre a sexualidade, as quais sugerem o polimorfismo perverso infantil. O exame mais detalhado deste capítulo, em detrimento dos demais, justifica-se porque é nele em que Mieli apresenta as bases para sua crítica e para sua proposta de transformação social.

De antemão, cabe salientar que, para a psicanálise, o significado de perverso diferencia-se de seu sentido coloquial. Para Freud, a perversão constitui uma forma específica de lidar com o desejo e com a lei moral, sendo considerado “pervertido” o indivíduo cujo prazer desvia dos padrões normativos de sexualidade, que, no caso, é a heterossexualidade. Para Freud, as crianças têm uma predisposição, decorrentes do instinto sexual, às perversões. Mieli explica que Freud entende que existe sexualidade nas crianças, cujo prazer não está centrado nos órgãos genitais, tal como ocorre com as pessoas adultas. O comportamento sexual normal decorre de alterações orgânicas e de inibições psíquicas. Dentre os poderes inibitórios têm-se as construções sociais da moral (Mieli, 2023, p. 32). Mieli argumenta que a moral dominante é a heterossexual, ou seja, a “Norma” moral que vai inibir a polimorfia infantil é heterossexual. O autor denomina de “educastração” a repressão, o constrangimento que fazem com que as crianças recalquem as tendências sexuais consideradas perversas. Para Mieli (2023, p. 32), “a educastração tem como objetivo a transformação da criança, que tende a ser polimórfica e ‘perversa’, em um adulto heterossexual, eroticamente mutilado, mas em conformidade com a Norma”.

Para Mieli, o ódio aos homossexuais resulta do recalcamento das tendências homossexuais, o que colocaria a homossexualidade em estado de latência a ser reprimida, ainda que violentamente. Assim, a “homossexualidade latente existe realmente em todos aqueles que não são homossexuais manifestos, como resíduo da sexualidade infantil, polimórfica (...)” (Mieli, 2023, p. 33). A transexualidade é, portanto, para o autor, “a disposição erótica infantil, polimórfica e indiferenciada que a sociedade reprime e que, na vida adulta, todo ser humano carrega dentro de si em estado de latência ou confinada aos abismos do inconsciente sob o jugo do recalque” (Mieli, 2023, p. 33). Para Mieli, tanto homossexualidade como a heterossexualidade são expressões da transexualidade polimorfa infantil, sendo que a sociedade só considera “normal” a heterossexualidade. A “Norma” — no sentido de construção simbólica — é monossexual e heterossexual.

A repressão da polimorfia sexual infantil, na qual se encontra a homossexualidade, por meio da educastração implementada pela “Norma heterossexual”, constitui, para Mieli, um componente necessário para o fortalecimento do capitalismo, pois é ela que implementa a submissão do Eros ao trabalho alienado. Por tal motivo, a transformação social perpassa pela liberação sexual, mediante o retorno à transexualidade polimorfa infantil.

Em suma, pode-se afirmar que o primeiro capítulo realiza uma argumentação psicanalítica para compreensão não só da homossexualidade, mas da própria heterossexualidade, apontada por Mieli como uma “Norma” socialmente construída, que gera não só a homofobia, mas também a dominação das mulheres. O capítulo termina com dois parágrafos que merecem ser transcritos e analisados:

 

Nós gays revolucionários sabemos ver na criança não o Édipo, ou o Édipo futuro, mas o ser humano potencialmente livre. Nós, sim, podemos amar crianças. Podemos desejá-las eroticamente respondendo ao seu desejo por Eros, podemos agarrar avidamente e de braços abertos a sensualidade inebriante que elas emanam, podemos fazer amor com elas.

É por isso que a pederastia é tão duramente condenada: dirige mensagens amorosas à criança que a sociedade, por outro lado, por meio da família, traumatiza, educastra, nega, rebaixando seu erotismo pela régua edipiana. A sociedade heterossexual repressiva força a criança a um período de latência; mas o período latente nada mais é do que a introdução mortal à prisão perpétua de uma “vida” latente. A pederastia, por outro lado, para tomar as palavras de Francesco Ascoli, “é uma flecha de luxúria disparada contra o feto”. (Mieli, 2023, p. 82-83)

 

Para tentar compreender o sentido dessa transcrição, faz-se necessário remontar ao contexto no qual foi escrita, mais precisamente ao ano de 1976, ano da defesa de sua tese. No período em tela, a homossexualidade ainda era considerada uma doença pela OMS e era associada à pedofilia/pederastia. O termo pederastia era praticamente sinônimo de homossexualidade e vice-versa — e em alguns contextos ainda hoje o é, embora tal equivalência esteja completamente equivocada. Não raro, os termos pederastia, pedofilia e homossexualismo eram expressões socialmente equivalentes. O próprio Mieli, na nota de rodapé 89 do primeiro capítulo, pontua que “pederastia (literalmente) e pedofilia são comumente usados como sinônimos” (Mieli, 2023, p. 83).

Em um dado momento, Mieli (2023, p. 57) chama atenção para o fato de os médicos distinguirem diferentes tipos de homossexualidade, de acordo com a idade do objeto do desejo, chamando de homossexualidade pedófila (pedofilia) ou de homossexualidade pederasta (pederastia) se o desejo for voltado para criança ou adolescente, respectivamente, passagem em que fica clara a associação entre homossexualidade e pedofilia/pederastia. O mesmo tipo de taxonomia não existe para a heterossexualidade, o que é problematizado pelo autor (Mieli, 2023, p. 57). Assim, na ausência dessa taxonomia, Mieli (2023, p. 57) assinala que, quando uma pessoa adulta tem práticas heterossexuais com crianças e/ou adolescentes, ela não é uma pederasta ou uma pedófila, mas tão-somente um monstro, uma pervertida, uma criminosa. Assim, diferentemente do que ocorre com a homossexualidade, na prática sexual com crianças ou adolescentes do sexo oposto, a heterossexualidade some/desaparece, ficando apenas o monstro. Enquanto isso, quando uma pessoa adulta tem prática homossexuais com crianças e/ou adolescentes, ela não é um monstro, mas um pedófilo/pederasta, criando-se, com isso, a associação quase que imediata entre a homossexualidade e a pedofilia/pederastia. No entanto, Mieli (2023, p. 57) chama atenção para a hipocrisia da sociedade, apontando que a revista Lolita vende muito e encontra-se nas prateleiras das melhores famílias, demonstrando, assim, a aceitação social das práticas heterossexuais com crianças/ adolescentes.

Levando em conta o estilo irônico do autor, o contexto histórico e a teoria da sexualidade freudiana adotada na argumentação teórica desenvolvida por Mieli, pode-se interpretar o texto citado no sentido que ele pretende apenas reconhecer a sexualidade polimorfa da criança. Desse modo, seria importante preservá-la da “educastração”, sendo os gays as pessoas mais indicadas a fazê-lo, já que saberiam ver em si mesmo e na criança essa polimorfia.

Por outro lado, faz-se necessário pontuar que muitos dos movimentos de liberação sexual pós-maio de 1968 — momento no qual Mieli está inserido — passaram a defender abertamente a pedofilia, revalorizando-a em termos positivos, ainda que condenada pela maioria da população (Prado, 2023). Nesse sentido, Sara Manetti (2014) registra a tentativa de valorização da pedofilia, entre as décadas de 1970 e 1980, como parte de um processo de liberalização dos costumes. Na França[2], por exemplo, ocorreu entre os intelectuais uma série de debates sobre a idade de consentimento para a prática de atos sexuais com menores de idade (Prado, 2023)[3]. Os debates sobre a eliminação de uma idade mínima para o consentimento de prática sexual também eram feitos a partir da defesa da capacidade das crianças para o consentimento. Como bem anotado por Jean Bérard (2014), os intelectuais faziam questão de diferenciar a violação — prática sexual violenta — da prática sexual consentida, fazendo do consentimento o critério central para a legalidade da relação sexual. A aptidão/autonomia infantil para o consentimento não era um ponto do debate. Saliente-se, por fim, que no mesmo período histórico, as discussões e as reivindicações acerca dos direitos das crianças e dos adolescentes ainda estavam em disputas e não estavam plenamente estabelecidas, o que só veio, efetivamente, ocorrer no final da década de 1980, com a aprovação, em 1989, pela Organização das Nações Unidas (ONU), da Convenção Internacional sobre os direitos das crianças, inaugurando a Doutrina da Proteção Integral de crianças e de adolescentes.[4]

Sendo a passagem verdadeiramente uma apologia à pedofilia, hoje existem elementos necessários para realizar uma devida problematização. Primeiramente, a sexualidade das crianças não deve ser compreendida a partir do ponto de vista das pessoas adultas. A imaturidade biológica, psíquica e social das crianças compromete o consentimento e a autonomia delas. Entre uma pessoa adulta e uma criança existe uma relação desigual e de poder, que coloca a criança em vulnerabilidade. As crianças, e em muitos casos também os adolescentes, não têm autonomia para consentir em práticas sexuais com pessoas adultas. Por fim, cabe problematizar o próprio desejo sexual por crianças (pedofilia). Como o próprio Mieli vem desenvolvendo no seu texto, o desejo sexual não é inato, mas condicionado socialmente. Portanto, o desejo sexual deve ser examinado, levando em conta o papel das relações de poder na construção das subjetividades. Para tanto, cabe refletir sobre como a sociedade lida com a erotização infantil — se é legitimada, naturalizada[5] — bem como qual o tipo de pedofilia/pederastia é legitimada (se a homossexual ou a heterossexual).

A verdade é que não é possível averiguar com precisão a intenção do autor em relação ao texto transcrito, cabendo ao leitor ler a obra por completo, inteirar-se do momento histórico no qual o livro foi escrito e tirar suas próprias conclusões. De qualquer maneira, o livro não deve ser reduzido à passagem transcrita.

Dando seguimento à resenha, o segundo capítulo intitulado Como os homossexuais, de fogueira em fogueira tornaram-se gays apresenta a construção social da heterossexualidade como “Norma”, a partir da análise da repressão homossexual ao longo da história. Para Mieli, existe um entrelaçamento intransponível entre capitalismo, violência e proteção da homossexualidade, a qual ocorre por meio de uma moralidade permissiva aos guetos homossexuais (bares, clubes, hotéis, saunas etc.). Assim, o sistema produz a agressão para em seguida realizar a proteção, o que ofereceria “aos gays gratificações paliativas, como induzir à submissão e enfraquecer a ruptura de seu protesto” (Mieli, 2023, p. 125). Ao final do capítulo, Mieli desenvolve uma teoria crítica, em função de um projeto revolucionário gay, questionando tudo o que a cultura dominante considera normal, lícito e racional (Mieli, 2023, p. 136).

No terceiro capítulo (Os “machões” heterossexuais ou: as criptobichas), Mieli analisa como os heterossexuais lidam com o desejo homossexual reprimido e latente. O autor examina fenômenos sociais e individuais — como o esporte, o fanatismo patriótico, a amizade/camaradagem masculina, o ciúmes heterossexual, a violência homofóbica, o culto ao superstar — “à luz da noção de sublimação do desejo homoerótico” (Mieli, 2023, p. 142). Por exemplo, o esporte é visto como um espaço para o contato corporal homossexual não patológico, sendo, por isso, uma manifestação da homossexualidade latente. Da mesma forma são interpretados o fanatismo patriótico, o companheirismo e a amizade entre os homens. Por seu turno, a violência homofóbica é tida como uma forma indireta de descarregar o impulso homoerótico latente.

No capítulo seguinte, denominado Dos delitos e das penas, a partir da revelação, pelo relatório Kinsey[6], de 1948, em que 46% da população masculina estadunidense tem relações homossexuais e heterossexuais, Mieli (2023) expõe a hipocrisia e a profundidade da repressão homossexual, a qual leva os homens que têm contatos sexuais com outros a negar a própria homossexualidade. O autor também chama atenção para a hipocrisia de uma certa concepção segundo a qual o macho “ativo” no coito anal entre homens não é tido como homossexual. E denuncia que o caráter machista da heterossexualidade ativa que enxerga o outro não como uma pessoa, mas apenas como um orifício. Desse modo, mesmo a mulher, em tais relações, fica esvaziada, negada. Para a visão “gaia-crítica” (crítica gay) de Mieli, se a transexualidade originária fosse assumida, haveria uma superação da polaridade entre os sexos. A partir desta perspectiva — a da homossexualidade enrustida na heterossexualidade —, Mieli analisa, no mesmo capítulo: o significado da brutalidade do assassinato do cineasta italiano Pier Paolo Pasolini; o papel da prostituição masculina na ordem sexual capitalista; e a repressão da homossexualidade pelos partidos de esquerda.

Como já apresentado, Mieli parte da concepção da existência de um desejo polimorfo infantil o qual é reprimido no processo de socialização. A partir de tal abordagem, no capítulo quinto — Mens sana in corpore perveso —, Mieli historiciza e desnaturaliza a heterossexualidade, enxergando na revolução homossexual uma forma de refutar a “hipostasia naturalista do status quo” (Mieli, 2023, p. 209). Então, o projeto do autor — sua ciência gaia (ciência gay) — consiste em demonstrar a construção histórica da “Norma” (heterossexual) e, com isso, a relatividade do próprio conceito de “normalidade”. Tendo em conta que, para a psicanálise, a negação constitui uma forma de tomada de consciência do recalcado, Mieli salienta que a negação do desejo homossexual reprimido/recalcado é, paradoxalmente, a afirmação do desejo homoerótico. Sendo assim, a negação da homossexualidade é uma forma de recusa em conhecer a própria realidade. Questionando a própria “Norma” heterossexual, Mieli analisa as concepções sociais da normalidade, da paranoia, da esquizofrenia e da loucura. A transformação social de Mieli passa pela libertação do desejo, porque tal significa a libertação do eu profundo e, com isso, a reconquista da vida, superando a “sobrevivência angustiada, teatralizada” (Mieli, 2023, p. 212). Tal significa o resgate da potencialidade estética e comunista intrínseca aos seres humanos.

Por fim, no sexto e último capítulo — Rumo ao gaio comunismo —, Mieli subverte a forma de analisar a sociedade, propondo uma ciência gaia (ciência gay), que seria olhar e compreender a realidade a partir da homossexualidade. Trata-se de um projeto radical de rompimento da norma heterossexual, questionando a própria heterossexualidade e propugnando a liberação sexual de volta à transexualidade polimorfa existente na fase infantil. Seria uma ruptura com a repressão sexual, promovida pela “Norma” heterossexual. É nesse sentido que propõe um comunismo transexual, conforme sugere o título brasileiro do livro. Ao fim, Mieli propõe uma ruptura com a monossexualidade (hetero ou homossexual), retornando-se à transexualidade polimorfa, o que é feito por meio da liberação do homoerotismo. Com isso, Mieli pretende demonstrar que a repressão da polimorfia infantil favorece a submissão de todas as vidas humanas ao domínio do capital. A ciência gaia não propugna pela aceitação da homossexualidade, mas sim a transformação da monossexualidade na polimorfia transexual.

Tendo sempre em conta o horizonte da transexualidade polimorfa, Mieli questiona as normas sociais de gênero, chamando atenção para quão repressiva é a sociedade contra as pessoas que ousam deixar aflorar seu lado “transexual”, tais como as lésbicas de aparência masculina e as bichas efeminadas (Mieli, 2023, p. 238). Em análise sobre as vestimentas, Mieli considera que o travestismo pretende denunciar a “esquizofrenia que está no fundo da vida, por trás do biombo censor do travestismo ‘normal’” (Mieli, 2023, p. 239). E sumariza: “nosso travestismo é condenado porque lança a todos a realidade fatal do travestismo geral, que deve permanecer em silêncio, tacitamente evidente” (Mieli, 2023, p. 239). Quase vinte anos antes de Judith Butler, em Gender trouble: feminism and the subversion of identity, Mieli apontava que o “normal”/ “original” já era ele mesmo uma falsidade, uma criação que, repetida, apresenta-se como originalidade. Para Mieli, as pessoas ditas “normais”, nada mais são do que aquelas que “se adaptaram ao código masculino-heterossexual” (Mieli, 2023, p. 267).

No capítulo Fim, Mieli aponta que o colapso do sistema capitalista não ocorrerá sem o correlato colapso do sistema falocêntrico, visto que aquele se mantém sobre uma estrutura machista-heterossexual e na repressão-exploração do Eros. A transformação social depende, assim, não só do proletariado revolucionário, mas também do movimento revolucionário de mulheres — enquanto sujeitos históricos oprimidos pelo sistema falocêntrico — e da liberação do Eros, a partir do movimento homossexual revolucionário. Embora o proletariado esteja constituído por todas as pessoas historicamente oprimidas, a organização de movimentos sociais independentes, como o movimento de mulheres e de homossexuais, seria indispensável para a denúncia e para o colapso do poder masculino falocêntrico. Seriam as duas faces do “Partido Comunista-comunidade humana” (Mieli, 2023, p. 283).

O livro demorou quase cinquenta anos para ser publicado no Brasil, o que pode estar ligado às verdadeiras prioridades políticas da agenda da esquerda brasileira. Embora não houvesse, quando da publicação original (1977), espaço político para a publicação desta obra, em razão da censura promovida pela ditadura militar, nos anos seguintes as organizações brasileiras de esquerda priorizaram pautas como democratização e combate à desigualdade social, relegando ao segundo plano as pautas sobre gênero e sexualidade. Somente nos últimos anos, com o avanço e amadurecimento no campo dos estudos de gênero e sexualidade, o livro de Mieli encontrou espaço para recepção no Brasil.

Desde a primeira publicação do livro, em 1977, houve um grande acúmulo teórico — sobretudo com a teoria queer — e prático sobre gênero e sexualidades, o que tornou muita coisa do livro obsoleta, tais como os termos bissexualidade, transexualidade e hermafroditismo. Não obstante, o livro, além do valor histórico, constitui um exemplo, por si mesmo, de transgressão. Com sua linguagem ácida, irônica e até antiacadêmica, Mieli ridiculariza as normas e a normalidade, tornando-se um exemplo de criatividade de como denunciar e subverter as ordens e os poderes.

 

Referências

 

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BÉRARD, Jean. De la libération des enfants à la violence des pédophiles. La sexualité des mineurs dans les discours politiques des années 1970. Genre, Sexualité & Societé, Aubervilliers, n. 11, 2014. Disponível em: https://journals.openedition.org/gss/3134. Acesso em: 20 maio 2024.

BÉRARD, Jean; SALLÉE, Nicolas. The Age(s) of consent: gay activism and the sexuality of minors in France and Quebec (1970-1980). Clio: Women, Gender, History, Saint-Denis La Plaine, v. 42, n. 2, p. 99-124, jul. 2015. Disponível em: https://www.cairn-int.info/revue-clio-women-gender-history-2015-2-page-99.htm&wt.src=pdf. Acesso em: 20 maio 2024.

COITINHO, Rita. Nota da tradutora. In: MIELI, Mario. Por um comunismo transexual: elementos de crítica homossexual. São Paulo: Boitempo, 2023. p. 11-12.

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Recebido em: 28/05/2024.

Aceito em: 06/10/2024.

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n33.70346.p302-313

 

 



* Professora do Departamento de Direito Privado da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Brasil. Mestra em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Brasil. E-mail: carolsatiro@yahoo.com.br.

[1] A breve biografia de Mario Mieli foi escrita a partir de fontes diversas, acessadas pelo Google, dentre as quais destaca-se uma entrevista feita por Felix Cossolo com Mieli (Mieli, 2020) e um artigo de Gianni Rossi Barilli (2023).

[2] Em 1977, em meio às discussões no Parlamento francês sobre a reforma do Código Penal, diversos intelectuais franceses — citando-se Louis Althusser, Simone de Beauvoir, Jean-Paul Sartre, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Roland Barthes, Jacques Derrida e Michel Foucault — assinaram uma “Carta Aberta”, defendendo a extinção do estabelecimento de uma idade mínima para o consentimento de atos sexuais por menores (Prado, 2023). Em outras palavras, a carta defendia a eliminação da presunção legal de violência nas relações sexuais abaixo de determinada idade, que no caso era de 15 (quinze) anos.

[3] Essa questão do debate francês sobre a idade mínima (maioridade sexual) para o consentimento de práticas sexuais estava ligada à repressão da homossexualidade, sendo particularmente importante para as pessoas homossexuais, já que existia o estabelecimento de idades distintas entre as práticas heterossexuais e homossexuais. Um decreto de 2 de julho de 1945 fixou a idade geral de consentimento em 15 anos. No entanto, o código penal francês criminalizava, até os anos 1980, qualquer relação sexual contra a natureza praticada com um menor de idade, a qual era de 21 anos até 1974, quando passou a ser de 18 anos (Bérard, Sallée, 2015). Sendo assim, as reivindicações de liberação da homossexualidade têm sido acompanhadas de uma crítica constante à arbitrariedade da maioridade sexual e de uma denúncia da repressão penal das práticas homossexuais (Bérard, 2014). Então, nesse contexto francês, falar em liberação da pedofilia era, em um certo sentido, falar em prol da liberação da homossexualidade. Já na Itália, conforme o próprio Mieli pontua, não havia leis como a francesa, sendo a legislação italiana “relativamente permissiva em relação à homossexualidade” (Mieli, 2023, p. 108). Isso não implica concluir, contudo, que a homossexualidade não fosse perseguida na Itália dos anos 1970. Neste sentido, Mieli registra que a repressão policial contra a homossexualidade era extremamente dura (Mieli, 2023, p. 108).

[4] Vale problematizar a nota da editora Marília Moschkovich à passagem transcrita de Mieli. Moschkovich (2023) diferencia a “pedofilia” — um tipo de desejo sexual — do “abuso sexual de menores” — uma violência contra as crianças. Para a autora, a pedofilia pode ser vivida “sem nenhuma interação abusiva real com crianças (há um filão no mercado da pornografia que utiliza atores e atrizes adultos que se parecem crianças, de modo a atender as fantasias do público sem incorrer em questões éticas e legais)” (Mieli, 2023, p. 83). Embora a pedofilia e o abuso sexual infantil sejam coisas distintas, e a associação imediata entre ambos seja considerada um problema para o tratamento terapêutico daquela e para o enfrentamento do abuso (Cf.: Manetti, 2014), caberia refletir sobre a produção do desejo pedófilo, examinando-o como expressão das relações de poder. Além disso, a pornografia, embora não seja crime, pode ser questionada sob o prisma ético, já que constitui uma tecnologia de subjugação de determinados corpos. Vale, assim, contextualizar e escrutinar a pornografia no âmbito das relações de poder, examinando o seu papel na conformação da ordem social capitalista, misógina e heteronormativa e, até, na produção dos desejos sexuais.

[5] A sociedade naturaliza, legitima e, em um certo sentido, até protege as relações sexuais entre homens (machos) adultos e as crianças ou adolescentes, especialmente quando as práticas são heterossexuais. Filmes, livros, músicas, videoclipes criam e naturalizam esse tipo de desejo e, consequentemente, o próprio abuso sexual infantil. O próprio Mieli, como dito, ironiza o fato de Lolita encontrar-se nas prateleiras das melhores famílias, o que evidenciaria a aceitação desse tipo de relação. No âmbito jurídico brasileiro, a chamada Lei de Alienação Parental atua em prol da proteção do abusador de crianças e de adolescentes, sendo sua revogação uma reivindicação das feministas e das pessoas que atuam pela efetivação dos direitos das crianças (Cf.: Severi; Villarroel, 2021).

[6] Relatório de um estudo, realizado entre os anos 1938 e 1953, feito pelo biólogo Alfred Charles Kinsey (1894-1956) sobre o comportamento sexual de homens e mulheres estadunidenses. O estudo envolveu a participação de 11.240 pessoas, sendo 5.300 homens e 5.940 mulheres (Sena, 2010).

 

 

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Desenho de um círculo

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