“DESCULPA, É QUE VOCÊ NÃO TEM CARA DE...”: a branquitude e o privilégio da normalidade em ambientes corporativos
“I’M SORRY, IT’S THAT YOU DON’T LOOK LIKE...”: whiteness and the privilege of normality in corporate environments
Marllon do Nascimento Conceição *
DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n33.70489.p90-112
Resumo
O presente artigo propõe discussão acerca das relações entre raça, trabalho e poder a partir do entendimento que Bento (2002) e Schucman (2012) apresentam sobre o conceito de branquitude. Para as autoras, tal conceito tem sido determinante na estrutura das relações raciais, sobretudo no contexto brasileiro. Por isso, é de suma importância que seja tomado como referência também para as relações trabalhistas. Verifica-se, portanto, que, no Brasil, assim como em outras sociedades forjadas na exploração escravagista, trabalho e raça estão imbricados e seus desdobramentos permanecem produzindo marcações sociais hierarquizadas. Observa-se ainda que a principal delas está ligada ao estereótipo de ocupação de cargos subalternos e de liderança. Qualquer perfil que subverta tal pressuposição é encarado com surpresa — aqui denominada susto racial — geralmente através da linguagem, evidenciando o que Carneiro (2023) avalia como “dispositivo de racialidade”. A branquitude, apoiada no privilégio da normalidade, perpetua valores e práticas excludentes, fomentando a estrutura racista (Almeida, 2019) que organiza a sociedade. Desse modo, buscou-se investigar, por meio de revisão bibliográfica e reflexão teórica, os modos de organização e ação do racismo nas relações trabalhistas brasileiras, sobretudo em cargos de liderança, comumente associados a perfis brancos, além de suas implicações pessoais e sociais. Concluindo-se que a meritocracia não se sobrepõe às questões raciais, agindo apenas como mais um fator que desvirtua o foco sobre a influência racial nas relações de poder. Observando-se também que, mesmo após os muitos anos que separam a escravidão das ações afirmativas, pessoas negras permanecem como figuras não reconhecidas em postos de relevância, posições de destaque, decisão e poder, sobretudo em ambientes corporativos.
Palavras-chave: linguagens; branquitude; trabalho; relações raciais.
Abstract
This article proposes a discussion about the relationships between race, work and power based on the understanding that Bento (2002) and Schucman (2012) present about the concept of whiteness. For the authors, this concept has been decisive in the structure of racial relations, especially in the Brazilian context. Therefore, it is extremely important that it is also taken as a reference for labor relations. It is confirmed, therefore, in Brazil, as in other societies forged in slavery exploitation, that work and race are intertwined and their developments continue to produce hierarchical social markings. It is also observed that the principal one is linked to the stereotype of occupying subordinate positions and of leadership. Any profile that subverts this assumption is met with surprise, here called racial scare, generally through language, highlighting what Carneiro (2023) evaluates as a “raciality device”. Whiteness, supported by the privilege of normality, perpetuates exclusionary values and practices, fostering the racist structure (Almeida, 2019) that organizes society. In this way, we sought to investigate, through bibliographical review and theoretical reflection, the modes of organization and action of racism in Brazilian labor relations, especially in leadership positions commonly associated with white profiles, in addition to their personal and social implications. Concluding that meritocracy does not overlap with racial issues, acting as just another factor that distorts the focus on racial influence in power relations. It should also be noted that, even after the many years that separate slavery from affirmative action, black people remain unrecognized figures in positions of relevance, prominent positions, decisions and power, especially in corporate environments.
Keywords: languages; whiteness; work; race relations.
Introdução
O presente artigo pretende discutir como operam os critérios da branquitude em contextos profissionais, apresentando o conceito de susto racial como produto de tais critérios e, ao mesmo tempo, fator estruturante das subjetividades. Importa dizer que se entende susto racial como o impacto ocasionado pela presença da pessoa negra em um espaço de liderança e poder, acontecendo todas as vezes em que se quebra a expectativa de que determinada função deveria ser realizada por uma pessoa branca, dadas as inúmeras qualificações exigidas para exercê-la, além da total naturalização dos perfis correspondentes a cada cargo. Tal susto se dá de inúmeras formas: olhares arregalados ou enviesados, sobrancelhas levantadas, desconfiança sobre a capacidade profissional, costas viradas em sinal de não reconhecimento daquela figura como autoridade ou simplesmente a frase: Ah, é você?
Além disso, este artigo pretende discutir de que modo a questão racial permeia as relações de poder quanto à ocupação de espaços considerados ilegítimos para pessoas negras na sociedade brasileira, como cargos de chefia, gerência, liderança, presidência, ou qualquer outro que simbolize poder e tomada de decisão. Além de poucos ou nenhum representante da população negra nesses espaços, quando há, é quase sempre para corroborar o discurso do mérito e de um antirracismo pró-forma, especialmente em ambientes corporativos, nos quais o racismo se revela muitas vezes de forma sutil, mas sem deixar de apresentar seu aspecto violento e desumano.
As relações de trabalho no Brasil estão desde sempre diretamente ligadas às questões étnico-raciais. Historicamente, essas relações sempre foram atravessadas por uma orientação racista que direcionava quem ocuparia determinados postos. Pela conjuntura escravocrata, naturalizou-se que pessoas negras deveriam estar em papéis sociais subalternizados, sempre em posição de subserviência diante de pessoas brancas. A perspectiva eugenista, por meio da associação entre brancura e progresso, colaborou para a fundamentação de tal pensamento. Com o fim da escravidão, herdou-se, entre outras atrocidades, o hábito de não oportunizar de maneira equânime a inserção, permanência e ascensão de pessoas negras em espaços de liderança, poder, tomada de decisões e prestígio social.
Qualquer mudança que ressignifique essa lógica é, minimamente, estranhada por todos, brancos e negros, uma vez que a perversidade sistêmica e estrutural do racismo faz com que pessoas negras, também, não se vejam como capazes de ocupar aqueles espaços, sintam-se desconfortáveis ou vejam como algo estranho o fato de alguém com seus mesmos traços fenotípicos ocupando-os. Esse desconforto pessoal e social causado pela quebra de expectativa se evidencia de muitas formas, pois o racismo brasileiro é o que se pode chamar, paradoxalmente, de agressividade sutil. Olhares enviesados, meias palavras, aparência de surpresa, espanto, medo, decepção podem representar muito bem o pensamento racista tanto quanto atos, palavras ou expressões verbais.
Nesse contexto, cabe observar que a origem das relações trabalhistas no Brasil está diretamente ligada ao projeto exploratório de colonização. Ou, ainda, como afirma Holanda (1995, p. 48), “pode dizer-se que a presença do negro representou sempre fator obrigatório no desenvolvimento dos latifúndios coloniais”. Desde a chegada dos primeiros europeus, o trabalho foi utilizado como mecanismo de dominação, em que a força intelectual era ditada pelos brancos enquanto o trabalho braçal era exercido pelas demais raças, a princípio os indígenas e, em seguida, os africanos escravizados. Desses povos, foram retirados os saberes, práticas e tecnologias que garantiam a perpetuação do poder dos colonizadores. E assim também se construiu o imaginário social de quais são os corpos que têm o perfil para mandar e para obedecer.
Atualmente, anos após a abolição, ainda em uma sociedade que visa o lucro acima de quaisquer outros valores, colhemos os frutos da ideologia escravocrata, segundo a qual, pessoas negras não têm perfil de liderança, conhecimento técnico, capacidade de raciocínio, incapazes de gerenciar, devendo seguir sua suposta aptidão natural para os trabalhos braçais, de execução simples e comandada por pessoas com maior capacidade que, não por acaso, são majoritariamente brancas.
Desse modo, dissociar trabalho e raça, sobretudo no contexto brasileiro, é ignorar a profunda elaboração da construção subjetiva que envolve tais categorias. O sujeito, ao se pensar profissional de determinada área, precisa antes ver aquilo como um espaço possível de atuação. A ausência de pessoas negras em posições de liderança contribui para a exclusão de negros de espaços de poder e decisão.
O pensamento neoliberal em voga reitera de diversas maneiras a teoria de que o reconhecimento profissional que permite mobilidade social é resultado apenas de um esforço pessoal (meritocracia). Assim, o neoliberalismo ataca as coletividades reproduzindo, propositalmente, a coletividade do pacto narcísico da branquitude (Bento, 2002) na qual se insere. Acreditar que cada pessoa ocupa o posto de trabalho para o qual se esforçou, sem considerar qualquer outro fator, é isentar de responsabilidade todas as demais variáveis que influenciam o mercado de trabalho e estruturam a sociedade de modo geral.
“O perfil da nossa empresa”
Quando se observa um número expressivo de corpos com as mesmas características ocupando os mesmos lugares, sobretudo em uma sociedade tão miscigenada e diversa como a brasileira, perde valor o argumento meritocrático, sobre o qual acreditava-se que o esforço de cada indivíduo era o que garantia ou não suas oportunidades e consequente mobilidade dentro dos espaços de trabalho.
Sobre isso, Bento acrescenta que
o conceito comum de meritocracia é o de um conjunto de habilidades intrínsecas a uma pessoa que despende esforço individual e não estabelece nenhuma relação dessas “habilidades” com a história social do grupo a que ela pertence e com o contexto no qual está inserida. Ou seja, a meritocracia defende que cada pessoa é a única responsável por seu lugar na sociedade, seu desempenho escolar e profissional etc. Parte de uma ideia falsa para chegar a uma conclusão igualmente falsa. (Bento, 2022, p. 21)
Ocorre que, por tudo que foi exposto anteriormente, convencionou-se no Brasil a adoção do perfil em detrimento do mérito. Dessa forma, forjou-se uma sociedade na qual há lugares para brancos e lugares para negros, funções para brancos e funções para negros, postos de trabalho para brancos e postos de trabalho para negros. O que chamo de “susto racial” acontece quando esse status é alterado de alguma forma.
Bento, a partir de suas experiências, corrobora que, dentro dos espaços institucionais, tais questões
são tratadas a partir de uma perspectiva “racional”, que busca justificar as desigualdades a partir da ideia de mérito. Ou seja, se constatamos representação excessiva de pessoas brancas nos lugares mais qualificados é porque elas mereceram isso, e a ausência de negras e negros e de outros segmentos deve-se ao fato de não estarem devidamente preparados. (Bento, 2022, p. 19)
A duras penas e à custa de muita luta e resistência, o cenário vem se alterando dentro das instituições. Muito em razão de lutas permanentes, haja vista a questão das ações afirmativas, a dificuldade em estruturá-las, em setores públicos ou privados, e o constante questionamento por parte dos que ocupam os espaços de poder sobre sua validade e necessidade. Até o momento, podem ser percebidos avanços nítidos nesse sentido, uma vez que, embora seja ainda raro, já não é impossível ver pessoas negras, forjadas em um letramento racial crítico, com noção de pertencimento, apropriadas das epistemologias não canônicas, ocupando espaços de prestígio, liderança, tomada de decisões.
O pensamento capitalista, neoliberal, busca subterfúgios em sua própria estrutura para manter aquilo que acredita sem, no entanto, entrar em um embate com forças opostas. Tal movimento é da natureza do capitalismo, por isso perdura.
Apoiado na ideia de que o capitalismo é “uma forma sistemática de discriminação, que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes, que culminam em desvantagens ou privilégios, a depender do grupo racial ao qual pertençam”, Almeida (2019, p. 25) analisa as muitas discrepâncias de valorização entre o trabalho exercido majoritariamente por uma raça ou outra. Nessa perspectiva, racismo e capitalismo estão imbricados, reproduzindo uma contínua discriminação que afeta diretamente as relações sociais em todas as suas dimensões.
Isso se efetiva no cotidiano de modo intenso, porém, na maior parte das vezes, de forma velada, a ponto de muitos negarem a existência do racismo, creditando ao mérito e ao esforço pessoal a questão da desigualdade. Reforçam o pensamento de que todos partem do mesmo lugar, com as mesmas oportunidades e, então, não faria sentido evidenciar aquilo que supostamente não existe. Com isso, enganam-se e criam falsas e cômodas verdades largamente reproduzidas.
Quase sempre, em nosso país, a questão não é de esforço, disposição ou conquista, mas de oportunidades, privilégios e mobilidade social. Quando um negro ou uma negra subvertem a ordem de subalternização pré-estabelecida, é comum que outras pessoas (em geral, brancas) tentem usar essas histórias exatamente para justificar que qualquer pessoa pode atingir tal objetivo e que as oportunidades estão disponíveis para todos, o que é, obviamente, uma falácia. Entretanto, o discurso meritocrático é tão contundente que chega a ser referendado, também, por alguns negros e negras que consideram sua ascensão fruto apenas de um empenho pessoal, pois isso torna socialmente mais nobre o prazer da conquista.
A meritocracia se mostra ainda mais falaciosa quando se observa um outro dado: à medida que aumenta o grau de escolaridade, aumenta a discrepância salarial entre brancos e negros. Ou seja, não é só uma questão de esforço conforme se costuma dizer no senso comum. Tudo colabora para o apagamento e a inexistência da pessoa negra como indivíduo, não como massa homogênea a ser explorada. A necropolítica (Mbembe, 2018b), antes de ser um conceito, é uma prática social que pode ser ao mesmo tempo violenta e sutil, de perpetuação de um exercício de poder, que se transforma ao longo dos anos sem, no entanto, perder a essência nociva.
Cabe aqui, então, falar de mortes no plural. Falar das políticas de morte, das incontáveis estratégias forjadas para a manutenção desse poder, sempre pensando e constituindo novas formas de assujeitamento do outro.
Em seu ensaio intitulado Necropolítica, Mbembe entende que
a expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Por isso, matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais. Exercitar a soberania é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder. (Mbembe, 2018b, p. 123)
Desse modo, reconhecemos ao longo da história humana diversos momentos em que a necropolítica se realizou, muitas vezes de forma explícita, violenta, e outras vezes de forma sutil, sorrateira, porém não menos cruel.
Ao teorizar sobre tais atos ao longo da história humana, Mbembe (2018b) nos ajuda a refletir sobre os contextos que vão ditar quem são aqueles que serão mortos e quem são aqueles a quem será permitido viver. E, para além disso, igualmente interessante e necessário é refletir sobre quem detém essa soberania da escolha de quem vai viver ou morrer. A constatação é que o controle sempre esteve nas mesmas mãos e as escolhas são sempre para que o poder ali permaneça.
Ora, por que ainda hoje no Brasil é tão surpreendente a presença de um negro ou de uma negra em posição de liderança? Em grandes empresas da sociedade brasileira, em que posição estão as pessoas negras? Lançando um olhar ainda mais específico, que espaços são comumente associados aos negros e negras no mercado de trabalho e por quê?
Cabe aqui apresentar a seguinte evidência.
Uma pesquisa realizada pelo Quero Bolsa, utilizando dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), apontou que apenas 3,68% dos cargos de liderança em geral são ocupados por pessoas negras (pretos e pardos) em São Paulo. Negros recebem, em média, 8% a menos do que profissionais brancos exercendo as mesmas funções de liderança.
Apesar de os negros serem maioria nas universidades públicas (50,3%), os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que ocupam apenas 30% dos cargos de liderança no país.
Uma pesquisa do Instituto Ethos com as 500 empresas de maior faturamento do Brasil aponta que os negros são de 57% a 58% dos aprendizes e trainees, mas na gerência eles são 6,3%. No quadro executivo, a proporção é ainda menor: apenas 4,7% são negros. (Nunes, 2020)
É notório o número reduzido de pessoas negras ocupando posições de liderança em ambientes corporativos no Brasil. Atualmente, embora esse número esteja em ascensão, ainda causa estranhamento para grande parte da sociedade, uma vez que esta julga que não seriam espaços legítimos para o povo negro.
Ao longo dos anos, todo o repertório formal de saberes socialmente valorizados foi de acesso restrito. A população negra não tinha sequer a possibilidade conhecê-lo. Tal discrepância estabeleceu fissuras sociais entre negros e brancos e suas capacidades técnicas. A falta de conhecimento até hoje atribuída aos negros e utilizada como justificativa para que não ocupem espaços de liderança foi produzida, estruturada, pensada para acontecer de tal forma. Agora, uma vez conquistado o acesso, são inúmeras as tentativas de desqualificação desse saber, para que se mantenha a hegemonia do poder nas mãos dos que sempre o tiveram, o que Mbembe (2018b) chama de “exercitar a soberania”.
A ausência de questionamento de tais práticas já naturalizadas ajuda a estabelecer uma suposta normalidade em que se apoiam aqueles que tentam justificar a surpresa ao se depararem com corpos negros em espaços outrora ocupados exclusivamente por brancos. O corpo negro ocupando um cargo de prestígio em um espaço corporativo é ainda uma subversão, resultando em um estranhamento naturalizado e repleto de justificativas preestabelecidas para essa quebra de expectativa do padrão.
Embora em contexto diverso da escravidão no Brasil, cabe citar o que Foucault (1977) chama de mecanismo de controle social, na medida em que se observa o modus operandi do racismo aqui. A disputa pelo espaço social e as relações de poder engendradas nela pressupõe que haverá sempre as figuras do dominador e do dominado, garantindo a manutenção desse controle de modo formal e informal, interno e externo, em uma constante relação de forças, nesse caso tensionadas pelas relações de trabalho.
O pacto da branquitude e o privilégio da normalidade
É comum que atualmente, especialmente no Brasil, questione-se a categoria denominada branquitude, afinal, é um termo que vem se difundindo juntamente com os debates no campo das relações étnico-raciais e que, aos poucos, vem estruturando e sendo também estruturado pelos estudos nesse campo. No entanto, a discussão do papel social do branco como raça tem sido, muitas vezes, mal elaborada e, consequentemente, mal compreendida tanto pelo senso comum quanto pela comunidade acadêmica, sobretudo por aqueles que ainda entendem o preconceito e a discriminação como questões puramente ligadas à classe e não à raça. Schucman salienta que
a raça, como categoria sociológica, é fundamental para a compreensão das relações sociais cotidianas, não só no que diz respeito à experiência local, mas, também, nacional e global. A ideia de raça está presente em diferentes experiências da vida social: nas distribuições de recursos e poder, nas experiências subjetivas, nas identidades coletivas, nas formas culturais e nos sistemas de significação. Contudo, mesmo que a ideia de raça produza efeitos concretos no Brasil, falar dela e de racismo é estar em terreno movediço, considerando um país que ainda se identifica e se atribui, como marca positiva da identidade nacional, valores de miscigenação cultural e mistura racial (Winant, 2011). No cotidiano brasileiro, esses temas ainda constituem um tabu, já que o racismo brasileiro revela a faceta contraditória desse discurso, que sedimenta e estrutura não só desigualdades socioeconômicas, mas também simbólicas e culturais, relativas à população não branca do Brasil. (Schucman, 2020, p. 28)
O primeiro ponto a ser destacado é que o termo branquitude não tem relação direta com o tom de pele e nem tampouco com fatores biológicos, posto que não há qualquer qualidade que seja natural à pessoa branca somente pela ausência de melanina. O que se discute é como essa diferença é entendida e construída socialmente, estabelecendo modelos, padrões, normatizações que favorecem pessoas que possuem determinadas características.
De acordo com Schucman, a branquitude deve ser entendida como
uma construção sócio-histórica produzida pela ideia falaciosa de superioridade racial branca, e que resulta, nas sociedades estruturadas pelo racismo, em uma posição em que os sujeitos identificados como brancos adquirem privilégios simbólicos e materiais em relação aos não brancos. (Schucman, 2012, p. 7)
Trata-se, portanto, de uma condição de privilégio de uma determinada parcela da população em detrimento de outra que, embora seja quantitativamente majoritária, como no caso da população negra no Brasil, sofre o estigma (Goffman, 2008) das chamadas minorias, em favor da manutenção de poder do grupo até então constituído como superior.
O termo privilégio é constantemente mal compreendido. Por isso, cabe contextualizá-lo no que diz respeito aos estudos étnico-raciais. Quando nos referimos ao branco como privilegiado, não estamos dizendo que este obteve tudo facilmente, sem esforço ou mérito, ou que apenas o fato de ser branco tenha lhe garantido ocupar posições de maior prestígio (o que não seria surpresa se acontecesse). Entretanto, o que importa dizer é que a condição de normalidade, neutralidade e padronização garantem acessos, visto que a presença da pessoa branca em espaços de poder é considerada naturalmente legítima.
Desse modo, a pretensa normalidade estabelece o privilégio de não ser questionado ou simplesmente estranhado naquele papel social. Em uma sociedade como essa, não é raro que mesmo pessoas negras estranhem outras em posições de liderança, ou ainda, que tenham dificuldade de se ver ocupando tais posições, como se aquilo não pudesse lhes pertencer, já que o normal é ver pessoas brancas ali.
Ao lermos Achille Mbembe, em especial a Crítica da razão negra, impõe-se a reflexão sobre o fato de que “pela primeira vez na história humana, o princípio racial e o sujeito de mesma matriz foram operados sob o signo do capital, e é justamente isso que distingue o tráfico negreiro e suas instituições autóctones de servidão” (Mbembe, 2018a, p. 32-33). A exploração do negro se deu de forma diferente dos demais povos outrora explorados. Não havia a intenção de colonizar para fazer dele semelhante ao branco, mas sim para retirar dele qualquer resquício de humanidade, animalizando-o ou mecanizando-o, fazendo com que ele visse a si mesmo como menor ou nada perante aqueles que o dominavam.
Ser associado a um animal desprovido de racionalidade coloca a pessoa negra no lugar daquele que precisa de orientação, ordem, molde e, consequentemente, domesticação. Tudo isso embasa o processo de dominação que é não só pragmático, mas ideológico, pois opera na consciência coletiva de que pessoas com determinadas características e comportamentos estarão sempre abaixo de outras cujas características são supervalorizadas.
Lia Schucman lista oito pontos de caracterização global da branquitude, elencados por Ruth Frankenberg, socióloga britânica:
1. A branquitude é um lugar de vantagem estrutural nas sociedades estruturadas na dominação racial.
2. A branquitude é um “ponto de vista”, um lugar a partir do qual nos vemos e vemos os outros e as ordens nacionais e globais.
3. A branquitude é um lócus de elaboração de uma gama de práticas e identidades culturais, muitas vezes não marcadas e não denominadas, ou denominadas como nacionais ou “normativas” em vez de especificamente raciais.
4. A branquitude é comumente redenominada ou deslocada dentro das denominações étnicas ou de classe.
5. Muitas vezes, a inclusão na categoria “branco” é uma questão controvertida e, em diferentes épocas e lugares, alguns tipos de branquitude são marcadores de fronteira da própria categoria.
6. Como lugar de privilégio, a branquitude não é absoluta, mas atravessada por uma gama de outros eixos de privilégio ou subordinação relativos; estes não apagam nem tornam irrelevante o privilégio racial, mas o modulam ou modificam.
7. A branquitude é produto da história e é uma categoria relacional. Como outras localizações raciais, não tem significado intrínseco, mas apenas significados socialmente construídos. Nessas condições, os significados da branquitude têm camadas complexas e variam localmente e entre os locais; além disso, seus significados podem parecer simultaneamente maleáveis e inflexíveis.
8. O caráter relacional e socialmente construído da branquitude não significa, convém enfatizar, que esses e outros lugares raciais sejam irreais em seus efeitos materiais e discursivos. (Schucman, 2020, p. 73)
Esses pontos elencados apresentam elementos que podem auxiliar a definir o que seria a branquitude, inclusive distanciando o conceito de um aspecto puramente biológico, problematizando sua ocorrência e apontando semelhanças em diversas sociedades forjadas em uma estratificação racial.
Essa mudança de perspectiva, ao se questionar o que sempre foi encarado como normalidade e universalidade, é o mote dos estudos acerca da branquitude. Bento sublinha que
Há vários estudiosos que destacam três ondas para delimitar o contexto de estudos sobre branquitude. Intelectuais negros no século XIX e da primeira metade do século XX descreveram e questionaram as estruturas da supremacia branca nos Estados Unidos, constituindo a primeira onda. [...] a fundação histórica dos estudos sobre branquitude é reconhecida a partir das obras de Du Bois. Ele destaca que preconceito racial, racismo institucional e supremacia branca formavam a base da sociedade dos Estados Unidos. Numa segunda onda, [...] escritoras como Toni Morrison ajudaram os estudos a migrarem do foco individual para análises de prática de discurso que tornavam a branquitude invisível. [...] pesquisadores analisaram como as instituições legais definem quem é branco e assim distribuem acesso a material e a avanços ligados à branquitude. [...] Na terceira onda, a branquitude aparece sempre muito ligada às reações brancas diante do aumento da presença de negras e negros em lugares antes frequentados só por brancos. A ampliação das vozes negras que denunciam a apropriação dos bens materiais e imateriais da sociedade pelos brancos e clamam por justiça e reparação ameaçam a supremacia branca. (Bento, 2022, p. 55-57)
Embora o foco desta investigação seja direcionado às relações de trabalho, não é apenas ali que a branquitude se evidencia, pois atravessa as relações sociais de modo abrangente, não ficando restrita a esse ou aquele ambiente. Em uma sociedade como a nossa, o racismo vai criando afluentes para fazer circular seu ideal de dominação e opressão, sustentado pelo capital. Ou ainda se ramificando e ressignificando e trazendo novos modos de se apresentar. O racismo, como tudo que é inerente ao humano, está atrelado à compreensão das relações.
No Brasil, em especial, por conta dos muitos anos de um projeto exploratório de colonização, a população se habituou a ver em determinados espaços os mesmos perfis. E, embora a condição racial estivesse desde sempre estruturando todas as relações, o mito de uma democracia racial pautada na miscigenação atrasou as possibilidades de um enfrentamento efetivo. Afinal, se não há racismo, não há por que combatê-lo.
É importante destacar que a racialização humana tem origem em um grupo que visava um processo de dominação do que entendia como sendo o outro: aquele que é diferente e precisa ser civilizado para ser visto como minimamente parecido com o padrão. Sabendo-se que esse outro jamais será tratado como o modelo; por mais que se assemelhe, ele vai ter a possibilidade de, no máximo, aproximar-se dele e ainda a ele ser grato por isso, estando, no entanto, sempre nivelado socialmente abaixo, visto que é impossível atingir todas as características do padrão hegemônico. A branquitude se coloca como o eu, todo o restante é alteridade, o outro.
Bento, acerca da branquitude, afirma que
não temos um problema do negro no Brasil, temos um problema nas relações entre negros e brancos. É a supremacia branca incrustada na branquitude, uma relação de dominação de um grupo sobre outro [...] e que assegura privilégios para um dos grupos e relega péssimas condições de trabalho, de vida, ou até a morte, para o outro. (Bento, 2022, p. 14-15)
Não se pode, portanto, dissociar o racismo do modelo econômico que o favorece, sobretudo na sociedade brasileira. Desde os tempos de escravização dos povos africanos retirados de suas terras e trazidos ao Brasil, o modelo das relações de trabalho que aqui se estruturou privilegia o acúmulo de bens e de poder por meio da exploração e dominação daqueles que são julgados meros trabalhadores, nesse caso, os negros.
Dentre as diversas acepções de trabalho, predominou no Brasil aquela que perpetua o modelo capitalista, dando seguimento às divisões de classe, subalternizando pessoas, garantindo a manutenção do poder nas mãos dos ricos que ditam as regras. Os mais altos postos de trabalho estão ocupados hoje, em nosso país, majoritariamente, por pessoas brancas, a pretexto do mérito, ideia-valor da branquitude. Uma vez que os que ali chegaram enaltecem os esforços que fizeram ao longo de suas trajetórias.
Em diversos momentos, pessoas negras foram vistas como empecilho para o crescimento econômico do país. A miscigenação entre brancos e não-brancos, na visão dos deterministas raciais, produziria uma geração de seres humanos menos desenvolvidos, inclusive intelectualmente. A partir disso, a teoria do branqueamento aliada à chegada dos imigrantes europeus previa que, a longo prazo, por conta das muitas misturas, o número de brancos superaria o de negros e assim a sociedade estaria salva daquele mal. Como bem define Souza (2022, p. 205), “a miscigenação não seria um fim em si mesma, mas uma transição visando à eliminação da população negra do povo brasileiro”.
Podemos fazer aqui alusão à obra de Clovis Moura (2021), intitulada O negro: de bom escravo a mau cidadão?, uma vez que, de acordo com o pensamento social hegemônico do início do século XX, o negro se adaptou à condição de escravizado e, por isso, ocupou esse papel social por tantos anos. No entanto, à medida que se percebe o negro como homem liberto, desestrutura-se a ordem social e ele passa a ser encarado como mau cidadão. Desde então, a presença do negro como indivíduo com igualdade de direitos foi um problema para aqueles que ainda não desvincularam a imagem da pessoa negra de papéis sociais subalternizados.
A partir disso, a pretexto de uma suposta ordem e de um consequente progresso, são elaborados mecanismos de resistência a essa mobilidade social da pessoa negra. Os parâmetros de acesso à educação, ao trabalho formal, à propriedade da terra, entre outros, eram nivelados de acordo com um padrão eurocêntrico. Sobre isso, Moura afirma:
Elide-se, assim, a escala de valores que a estrutura de dominação e seu aparelho ideológico impuseram para discriminar grande parte da população não branca. Essa elite de poder que se autoidentifica branca escolheu, como tipo ideal, representativo da superioridade étnica em nossa sociedade, o branco europeu e, em contrapartida, como tipo negativo, inferior, étnica e culturalmente, o negro. [...]
Esse gradiente étnico, que caracteriza a população brasileira, não cria, portanto, um relacionamento democrático e igualitário, já que está subordinado a uma escala de valores que vê no branco o modelo superior, no negro o inferior [...]. (Moura, 1988, p. 62)
Desse modo, é possível entender que o pensamento hegemônico racista, em diversos aspectos e modalidades, é funcional para o capitalismo brasileiro, uma vez que o fator econômico está diretamente relacionado a tudo que interessa à hegemonia intelectual e moral.
Portanto, desde o determinismo racial e a política de branqueamento da população (projeto de identidade nacional apoiado na teoria do embranquecimento populacional a longo prazo através da mestiçagem), a ideia do progresso está atrelada à raça. A chegada orquestrada dos imigrantes europeus tinha como objetivo não só o trabalho como o embranquecimento da população a longo prazo, como se tudo isso garantisse a mudança do modelo econômico e avanço social da nação. A disseminação nacional desse pensamento racista estabelecia os negros como entraves para o progresso, e a precária situação da maioria da população negra passou a ser vista como algo natural, quase sempre com baixos salários, condições de trabalho insalubres e pouca ou nenhuma chance de ascensão (Ianni, 2004).
Como a branquitude opera sob o pensamento meritocrático, apoiada na já refutada democracia racial, além de já ter sido excluído por seus traços fenotípicos, o negro, por vezes, será também considerado o responsável por essa imobilidade social. Afinal, se ele não alcança determinados postos sociais é porque não se preparou suficientemente, e isso está atrelado à sua suposta incapacidade natural ou falta de esforço.
A ideia de raça, como marcador determinante dos espaços que o sujeito pode ocupar, tem ajudado a construir e perpetuar hierarquias que privilegiam exclusivamente uma determinada raça: a branca. Assim, a sociedade brasileira foi se estruturando em torno desses privilégios provocando fissuras abissais entre esta e as demais raças lidas socialmente como não-brancas.
A partir de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2023 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2023), que apontam mulheres negras e homens negros como 2,4% e 2,6%, respectivamente, dos trabalhadores em cargos de diretoria ou gerência em oposição aos 5,4% e 7,6% de mulheres brancas e homens brancos é possível realizar diversas constatações a respeito de raça, gênero e relações de trabalho. Uma delas é que quanto mais alto o posto de atuação, maior a probabilidade de esse ser ocupado por um homem branco. A naturalização dessa prática é tão corrente na sociedade que pouco se reflete sobre os impactos que isso produz em um contexto em que a maioria da população é feminina e negra, posto que, de acordo com o Censo Demográfico de 2022 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2022), as mulheres constituem 51,1% da população brasileira e, nessa mesma população, 56% são pessoas negras.
Quando uma pessoa negra alcança determinados postos sociais, tais como gerência, presidência ou outro tipo de liderança, outrora ocupados por brancos, quase sempre vê questionada sua capacidade técnica para estar ali. Ou ainda, precisa explicar como chegou a ocupar tais espaços, evidenciando mais uma vez que não é natural aquela ascensão. Afinal, ele/ela não tem cara de diretor/a ou gerente. Essa expressão é muito comum no Brasil, porque, durante muito tempo, um dos critérios de seleção para inserção no mercado de trabalho era o fenótipo. Ou seja, a cara. A aparência era prerrogativa de contratação. Assim, era possível (e é provável que ainda seja) ouvir coisas como, no caso sobre uma empregada doméstica branca: “Você é tão bonita, nem parece empregada doméstica”. Ou no caso de um médico negro: “Ah, é você? Desculpa, é que você não tem cara de médico”.
Esses enunciados são comuns no cotidiano brasileiro. Herança de relações de trabalho marcadas pela escravização do povo negro e pelo aspecto fenotípico como estigma. No nosso país, os postos de trabalho têm cara, aquilo a que formalmente chamamos de estereótipo e que muitas empresas chamam de perfil. É exatamente nesse perfil que esbarram pessoas negras tecnicamente qualificadas, preparadas e dispostas a ocupar determinados postos.
A título de exemplificação, em novembro de 2022, foi publicada uma reportagem no site da empresa Instituto Butantan, com o título “Temos que estimular negros em cargos de liderança para saberem que existe um caminho”, diz gestor médico do IB (Instituto Butantan, 2022). A reportagem apresenta o Dr. José Moreira, gestor de pesquisa clínica. De origem moçambicana, José é assim descrito na reportagem:
O especialista em Medicina Tropical e doutor em pesquisa clínica de doenças infecciosas pela Fundação Oswaldo Cruz hoje é um dos responsáveis pela gestão dos projetos que envolvem as vacinas da dengue, chikungunya e zika estudadas pelo Butantan. Natural de Maputo, no Moçambique, José é formado em Medicina pela Universidade Eduardo Mondlane, onde resolveu estudar doenças tropicais, o que o trouxe ao Brasil 10 anos atrás.
Neste tempo no país, José percebeu que faz parte de uma minoria da minoria, “um médico negro em cargo de gestão”, fruto de uma sociedade calcada no racismo “individual, institucional e estrutural”.
Efeito de um país politicamente colonizado que, até os dias atuais, mesmo após mais de 120 anos de abolição, mantém mentes majoritariamente colonizadas e atreladas a pensamentos que classificam profissionais por seus traços fenotípicos. O racismo, portanto, evidencia seu caráter sistêmico em práticas institucionais, intrínseco e enraizado na sociedade.
Desse modo, é possível observar que há uma ideologia racial que vai articulando e desenvolvendo essas manifestações. A racialização não é natural, biológica; “é uma construção social, uma condição social que envolve jogos de forças sociais, dominação, apropriação” (Ianni, 2004, p. 23) e “uma construção discursiva, um significante deslizante” (Hall, [2015]). Assim, não é apenas uma classificação, mas uma naturalização do branco como superior, favorecendo a hierarquização.
A branquitude, até então, foi privilegiada por uma visibilidade exclusiva, naturalizada. E essa afirmação está ancorada no conceito de normalidade, ao qual se faz alusão no título deste artigo. Ou seja, nunca se pensou a respeito do lugar social do branco exatamente porque ele ocupa o lugar da norma, do padrão, da regra. O ato de racializar o outro, gerando hierarquias, no intuito de inferiorizá-los é uma prática historicamente branca, apoiada em valores civilizatórios europeus.
O efeito pessoal e social dessa prática é sentido cotidianamente por pessoas negras ao não se julgarem capazes de ocupar determinados postos, ainda que tenham se preparado e qualificado para tal. A falta de referências e o receio do estranhamento pode bloquear a trajetória profissional de um indivíduo negro.
Além disso, a pessoa negra está sempre abrindo caminhos. Não é raro encontrar aqueles que dizem: sou o primeiro da família a concluir uma graduação, fui o primeiro líder negro nessa empresa, fui a primeira mulher negra a comandar uma equipe nessa instituição. Ou seja, tudo ainda é inédito, peculiar, longe do esperado, fora da normalidade.
Ainda que atenda toda a competência profissional necessária para liderar qualquer equipe, em qualquer área, a pessoa negra também precisa se preparar para ser encarada como incompetente ou, no mínimo, inadequada para ocupar aquela posição. Ao furar a bolha do acesso, depara-se com outra bolha, de textura ainda mais rígida: o reconhecimento e a permanência.
DiAngelo; Bento e Amparo, acerca do processo de racialização do branco, problematizam:
Eu, Robin, branca, não fui criada para pensar sobre mim mesma em termos raciais. Eu entendi que alguém tem raça. Você, Thiago, negro, tem raça e, se há um problema com raça, então, você tem um problema, e eu sinto muito que você tenha um problema, mas estou feliz que eu não seja parte dele, e espero que você desvende seu problema. É uma loucura. (DiAngelo; Bento; Amparo, 2023, p.19-20)
E acrescentam ainda:
Isso tem vários impactos. Ao realizarmos o outro e não a nós mesmos, nos conferimos objetividade, a chamada universalidade. [...] Ao marcar e nomear a raça daqueles que não são brancos, nós reforçamos essa noção de que as pessoas brancas são apenas pessoas. Entender que as pessoas brancas são o padrão para aquilo que significa ser humano, ser o humano ideal, e que todas as outras pessoas são versões deficientes desse ideal, é o que chamamos de supremacia branca. (DiAngelo; Bento; Amparo, 2023, p. 20)
É importante ressaltar que o conceito de normalidade é aqui tratado em oposição ao que se chama diferente, atípico, capaz de causar estranhamento, subvertendo o esperado. Uma normalidade provocada pelo que se entende como universalidade, nas palavras dos referidos autores. A universalidade traz consigo a superioridade e o poder perante aqueles que não possuem as mesmas características. De tal modo que esse mesmo poder acaba por se tornar partilhado somente entre iguais. O critério é ser igual, ter características afins, que ajudem a manter o padrão esperado. É o que a doutora Cida Bento, em diálogo com os demais autores, define como pacto narcísico, “um pacto de preferência e fortalecimento entre iguais”. E acrescenta que
olhar para um país como o Brasil e perceber que em todo o tipo de organização as lideranças são brancas. O Judiciário, o Executivo, o Legislativo, as grandes empresas, as organizações da sociedade civil, as esquerdas, as direitas e o centro são brancos. Eles têm um jeito de assegurar a presença branca contínua ao fortalecer a preferência silenciosa e profundamente ideológica por iguais. (DiAngelo; Bento; Amparo, 2023, p. 17-18)
O pacto da branquitude está em todos os espaços, sobretudo naqueles que conferem poder ou prestígio. É uma forma de garantir que o poder não saia de suas mãos para organizar hierarquicamente a sociedade, de modo que haja estabilidade e segurança na manutenção dos privilégios. O perfil da pessoa que ocupa o espaço de poder é uma dessas formas de segurança, uma vez que a possibilidade de sonhar em estar naquele espaço tem relação com o fato de se ver representado ali por um semelhante. Se a pessoa não vê ninguém sequer parecido com ela naquela posição, cria-se a mentalidade de que aquilo não foi feito para ela.
Quando a pessoa negra se vê representada apenas em funções ligadas à subserviência e de pouco prestígio social, tende a achar que apenas esses espaços são possíveis para ela. E isso é praticado há muito tempo, com certa naturalidade, reforçando a normalidade do privilégio branco.
Para Carneiro (2023), o conceito de dispositivo abordado por Michel Foucault serve bem à leitura das relações raciais no Brasil, visto que, para o filósofo, o termo está diretamente ligado à noção de poder.
Através deste termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não-dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos. (Foucault, 2002 apud Carneiro, 2023, p. 27)
Quando se pensa em lugares ou postos de ocupação que indicam liderança e destaque, o dispositivo opera ainda com mais ênfase, pois é ele quem ajuda a determinar quem estará ocupando tais postos, uma vez que isso determina também as mãos que terão o poder. Reorganizar esses lugares de liderança põe em risco certo padrão estabelecido, com o qual a classe dominante evita mexer, sob argumento de não se sentir devidamente representada.
Segundo a autora, o dispositivo de racialidade opera
como um domínio que produz poderes, saberes e subjetividades. Pode-se dizer que o dispositivo de racialidade instaura, no limite, uma divisão ontológica, uma vez que a afirmação do ser das pessoas brancas se dá pela negação do ser das pessoas negras. Ou, dito de outro modo, a superioridade do Eu hegemônico, branco, é conquistada pela contraposição com o Outro, negro. (Carneiro, 2023, p. 13)
Sueli Carneiro ressalta ainda que
[...] o dispositivo de racialidade ganha uma dimensão específica ao operar em conjunto com o biopoder e ser por ele instrumentalizado. Combinado ao racismo, o biopoder promove a vida da raça mais sadia e mais pura e promove a morte da raça considerada inferior, afinal, como diz Foucault “a função assassina do Estado só pode ser assegurada desde que o Estado funcione, no modo do biopoder, pelo racismo”. Contudo, para aqueles que sobrevivem, o dispositivo de racialidade reserva outras estratégias de assujeitamento. (Carneiro, 2023, p. 13)
Dentre os assujeitamentos a que os negros são submetidos, vale destacar o de âmbito profissional ancorado na pressuposição de que determinados cargos, sobretudo os de alto padrão executivo, de grande relevância técnica e intensa visibilidade, estão diretamente associados a perfis cristalizados, como nos casos de gerência, liderança ou presidência, comumente ocupados, no Brasil, por corpos que reforçam a ideologia da branquitude. A ausência de pessoas negras em tais posições é uma construção social proposital com o objetivo de inferiorização, a partir da qual são geradas interdições.
Assim diz Carneiro (2023, p.14):
Destaco também, dentre os elementos do dispositivo de racialidade, as múltiplas interdições das pessoas negras que, além de serem assassinadas intelectualmente, são interditadas enquanto seres humanos e sujeitos morais, políticos e de direito. Com a função de produzir exclusão, as interdições – presentes tanto na produção discursiva quanto nas práticas sociais – promovem a inscrição de indivíduos e grupos no âmbito da anormalidade, na esfera do não ser, da natureza e da desrazão, contribuindo para a formação de um imaginário social que naturaliza a subalternização dos negros e a superioridade dos brancos.
As relações de poder operam através de ações que são inerentes aos dispositivos. Assim, é natural que se criem e se reproduzam perfis determinados por tais ações e baseados no que os dispositivos sustentam. A intencionalidade discursiva racista naturalizada como normalidade ajuda a criar paradigmas excludentes sobre marcações territoriais, inclusive nas relações profissionais, estabelecendo quem deve ou não ocupar postos de liderança, partindo de critérios que se antecipam ao da qualificação profissional e competência técnica. Nesse caso, o famoso perfil, elaborado a partir de critérios de subjetividade extrema fundamentada no racismo, é o fator determinante para contratações, promoções e aceitação social de um profissional como capaz para ocupação de um cargo de liderança ou destaque.
Carneiro aponta que
o dispositivo de racialidade também produz uma dualidade entre positivo e negativo, tendo na cor da pele o fator de identificação do normal, e a brancura será sua representação. [...] ao demarcar a humanidade como sinônimo de brancura, irá redefinir as demais dimensões humanas e hierarquizá-las de acordo com a proximidade ou distanciamento desse padrão. (Carneiro, 2023, p 31)
Desse modo, é possível dizer que a branquitude funciona também como a realização desse dispositivo. É onde se efetiva aquilo que Sueli Carneiro, debruçada sobre o conceito foucaultiano, apresenta como parâmetro para as desigualdades nesse entendimento entre as esferas do Ser, com as categorias filosóficas do Eu hegemônico e do Outro (Carneiro, 2023). Para Foucault (2002 apud Carneiro, 2023), o corpo, socialmente, é um signo, mostrando que é através dele que se revelam as marcas, valores e expressões que vigoram no pensamento social preponderante, inclusive nas relações de trabalho.
Conclusão
O estudo no campo das relações étnico-raciais se revela, portanto, primordial para a compreensão da sociedade em que vivemos, visto que estamos forjados em pensamentos sociais organizados em categorias como classe, gênero e raça. No que tange às oportunidades do mercado de trabalho, mostram-se evidentes os resultados do longo processo de escravização de pessoas negras, condenando-as a ocupar, com naturalidade, postos de subalternização com pouca ou nenhuma mobilidade profissional.
Os dados apontam o quanto ainda são nocivos os resultados dos muitos anos de escravização. Pessoas negras ainda são socialmente subalternizadas, independentemente do nível de escolarização. O próprio argumento meritocrático se mostra contraditório ao se deparar com a categoria racial, visto que a pessoa negra está em constante processo seletivo, devendo mostrar qualidades superiores às de uma pessoa branca ocupando a mesma função para justificar sua escolha. Provar constantemente que é capaz porque, na lógica da branquitude, sua presença ali não é natural.
Desse modo, é preciso compreender as especificidades da formação da sociedade brasileira, sua complexidade, suas contradições e paradoxos, e ressaltar que o Brasil se estrutura por meio de um processo exploratório, sob uma falsa perspectiva de civilização. A escravização que dá origem à segregação que perdura no país foi, desde o primeiro momento, uma construção europeia bem arquitetada para a consequente dominação.
O enraizamento da falácia é tão profundo que mesmo pessoas negras podem acreditar ser essa a chave para acessar determinados lugares que pareciam impossíveis. Para os brancos, o segredo pode ser estudar e trabalhar bastante. Para os negros, estudar e trabalhar bastante não são garantia de que serão aceitos, reconhecidos e valorizados. O fator racial vem antes de qualquer formação. O olhar incrédulo (por vezes desconfiado ou curioso) diante da quebra de expectativa ao ver uma pessoa negra em posições de prestígio, liderança e tomada de decisão, sobretudo em áreas não óbvias, perdura, apesar de tudo que já alcançamos.
Muitos profissionais, por não suportarem os diversos modos de discriminação, acabam internalizando que são incapazes ou insuficientes e estão sempre tentando provar para alguém ou para si mesmos que são qualificados. A qualificação do negro é diferente. Não se satisfaz com um diploma na parede ou um Lattes repleto de experiências e publicações. Aparentemente, nunca é bom o suficiente. Precisa ser mais do que bom. Com isso, vivenciam rotinas insanas com alto grau de dedicação em troca do mínimo de reconhecimento.
Sem o fortalecimento da luta antirracista, sobretudo embasada em uma educação a partir das (e para as) relações étnico-raciais, é praticamente nula a possibilidade de reorganização política, econômica e social necessária para a redução das desigualdades, visto que é no bojo do antirracismo que se encontram as ferramentas que trarão a real configuração de uma sociedade que se pretende equânime.
Referências
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Recebido em: 10/06/2024.
Aceito em: 16/10/2024.
DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n33.70489.p90-112
* Mestre em Relações Étnico-Raciais pelo CEFET-RJ, Brasil. Professor da Educação Básica dos municípios do Rio de Janeiro e de Nova Iguaçu, Brasil. E-mail: marllon0109@gmail.com.
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