EDUCAÇÃO, EXCLUSÃO E RACISMO: reflexões sobre as relações étnico-raciais na EJA na dissertação de Thâmara Borges
EDUCATION, EXCLUSION AND RACISM: reflections on ethnic-racial relations in EJA in the dissertation by Thâmara Borges
Henrique Cunha Júnior **
DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n33.70511.p314-326
Thâmara Nayara Alves Pereira Borges é professora de História, desenvolvendo seu trabalho no campo educacional, com foco nas questões sociais e raciais. A pesquisa que compõe sua dissertação foi realizada no âmbito do mestrado na Universidade Federal de Goiás (UFG), sob a orientação da professora Anna Maria Dias Vreeswijk. Ao longo de sua trajetória acadêmica, a autora demonstrou interesse profundo pelas temáticas que envolvem as relações étnico-raciais e a educação de jovens e adultos (EJA), questões centrais que estão presentes na dissertação aqui resenhada.
Intitulada Racismo e educação de jovens e adultos: análise das relações étnico-raciais em uma escola EJA, a dissertação analisa o impacto do racismo nas vivências de alunos e professores em uma escola de EJA em Goiânia. A proposta da pesquisa vai além da simples observação, incluindo a construção de uma sequência didática voltada para o enfrentamento das questões raciais no ambiente escolar. A pesquisa também visa a implementação efetiva da Lei 10.639/2003 (Brasil, 2003), que estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas brasileiras.
A dissertação foi selecionada para ser resenhada devido à relevância do tema para a atuação docente na educação de jovens e adultos (EJA), área em que a coautora da resenha possui vasta experiência. Diariamente, a prática pedagógica revela desafios que transcendem o ambiente acadêmico, como a dificuldade dos alunos em cumprirem os horários escolares propostos pelo currículo, devido às suas responsabilidades laborais ou familiares. Esse cenário afeta diretamente o desempenho e a assiduidade dos estudantes, especialmente aqueles que enfrentam dificuldades de interpretação de textos e outras atividades, o que, frequentemente, resulta em preconceitos por parte de colegas e, muitas vezes, até da própria instituição.
Os alunos negros, especificamente, enfrentam uma vulnerabilidade ainda maior no contexto da EJA, em função de suas trajetórias educacionais interrompidas e da opressão estrutural que permeia suas experiências. Essas desigualdades raciais tornam-se mais evidentes quando se considera a faixa etária e a necessidade de enfrentarem um sistema educacional que, em muitos casos, não está preparado para acolher suas demandas. A dissertação de Thâmara Borges se destaca por abordar essas questões e propor uma intervenção didática para lidar com o racismo na EJA, justificando plenamente sua escolha para análise crítica.
Esta resenha tem como objetivo analisar criticamente a dissertação de Thâmara Borges, destacando suas contribuições e fragilidades no campo da educação de jovens e adultos (EJA) e questões raciais. A análise aborda os objetivos da dissertação, seu suporte teórico, metodologia e resultados, além do plano de intervenção proposto. O texto será estruturado para comentar todas as partes da dissertação, finalizando com uma avaliação das contribuições e limitações do estudo.
A dissertação de Thâmara Borges tem como objetivo principal investigar as relações étnico-raciais em uma escola de educação de jovens e adultos (EJA), analisando como o racismo se manifesta nas interações entre alunos e professores. A autora propõe, também, a criação de uma sequência didática que possa auxiliar na implementação da Lei 10.639/2003, que inclui o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana no currículo escolar. A pesquisa busca contribuir para uma prática pedagógica mais inclusiva, que enfrente o racismo no ambiente escolar e promova a valorização das identidades negras no contexto da EJA.
O texto é dividido em seções que abordam, de maneira estruturada e coerente, os diversos aspectos do racismo no contexto da educação de jovens e adultos. Cada parte cumpre um papel importante na construção da argumentação da autora e no desenvolvimento de sua proposta de intervenção pedagógica.
Na introdução, Borges apresenta a relevância do tema e justifica sua escolha, destacando a importância de se discutir as relações étnico-raciais na EJA. Ela contextualiza a pesquisa ao lembrar que a Lei 10.639/2003, que inclui o ensino de história e cultura afro-brasileira nos currículos, ainda enfrenta dificuldades para ser plenamente implementada nas escolas brasileiras. A autora também menciona sua motivação pessoal para abordar o racismo, tendo como pano de fundo sua atuação no ambiente escolar.
No primeiro capítulo, a autora faz uma caracterização detalhada da EJA, descrevendo seu público-alvo e as especificidades dessa modalidade de ensino. Borges enfatiza que a EJA atende, em sua maioria, alunos em situação de vulnerabilidade social e racial, o que torna a discussão sobre racismo ainda mais urgente. Ela analisa os perfis dos participantes da pesquisa (alunos e professores), destacando a heterogeneidade das turmas e as diferentes trajetórias de vida que se cruzam no ambiente escolar. Essa seção é essencial para entender o contexto social e educacional em que a pesquisa foi desenvolvida.
Para isso, é traçado um panorama histórico da modalidade EJA no Brasil, desde a produção latifundiária ao início da industrialização durante o governo Vargas (1935-1945). Borges aponta que houve entre os anos de 1940 e 1960 um boom no crescimento da educação de massa no Brasil, culminando em duas concepções de educação, em destaque nos anos de 1960. Uma voltada para a formação da consciência crítica e transformação político-social e outra focada na preparação de recursos humanos para a industrialização e modernização da agropecuária.
Essa primeira concepção de educação foi fomentada por instituições não governamentais, tais como o Movimento de Cultura Popular (MCP), o Movimento de Educação de Base (MEB), sob a liderança da Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB), entre outras. Nesse contexto, Paulo Freire se destacou com seu trabalho de alfabetização de adultos, adotado por muitos movimentos sociais.
Assim, no início de 1964, a autora aponta que todo esse fomento foi agregado ao Estado, mais especificamente pelo Ministério da Educação e Cultura como Programa Nacional de Alfabetização (PNA). Entretanto, com o golpe militar, tal proposta foi dissipada, dando lugar ao famigerado método tecnicista, instrumentalista, voltado para o mercado de trabalho, cujas consequências ainda estão presentes em nossa sociedade, atingindo a população mais pobre, sendo essa a maioria negra.
Concluiu-se aqui que a EJA foi menos prestigiada em relação à educação regular, recebendo menos verbas e tendo um foco instrumental com ações pontuais do Estado, fazendo com que essa modalidade de ensino continuasse a ser uma “alfabetização aligeirada para o trabalho” (Borges, 2018, p. 25), refletindo a postura do Estado em resolver problemas educacionais da população pobre, majoritariamente negra, com projetos emergenciais em vez de investir em reformas de base.
É destacado ainda que, embora a educação destinada à comunidade negra no Brasil tenha ocorrido, ela foi marcada por exclusão formal por séculos. Apesar disso, estratégias informais de ensino surgiram entre a população negra, como a criação de escolas próprias, instrução por pessoas escolarizadas e acesso a redes públicas, asilos de órfãos e escolas particulares.
Para traçar o perfil dos estudantes da EJA, Borges toma como ponto de partida trechos de um documento, formulado “na VI Conferência Internacional de Educação de Adultos (CONFINTEA VI)”, ocorrida em Belém do Pará, no ano de 2009, que apontou para a diversidade étnico-racial que frequenta a EJA, e da qual o Brasil é fruto, mas que nos documentos anteriores não eram enfatizados.
Apesar do reconhecimento da diversidade, Borges cita Galvão e Di Piero (2007), que afirmam que a maioria dos estudantes da EJA são de baixa renda, negros ou vivem em zonas rurais do Nordeste, com maior probabilidade de permanecer analfabetos do que pessoas de classe alta, brancas e urbanas. Dos 24 participantes da pesquisa, 14 se declararam pretos, e 6 se identificaram como pardos, evidenciando a exclusão da população negra de serviços básicos, como o acesso regular à educação.
Outros aspectos relevantes apontados pela autora discorrem sobre as questões envolvendo o gênero das e dos estudantes entrevistadas(os), a média de idade e a sua religião. A maioria são mulheres (15). Quanto à idade, 41,6% têm entre 14 e 20 anos; 25% entre 31 e 40 anos; 25% entre 41 e 50 anos; e 8,3% entre 21 e 30 anos, formando uma turma mista de jovens e adultos. Em relação à religião, a maioria é evangélica (12), seguida por católicos (10) e dois sem religião.
Vale notar que, em um primeiro momento, a maioria do público que frequenta as aulas da EJA, em Goiânia, é composta por mulheres negras. Essa predominância parece ser um fator recorrente nas salas de aula e merece uma investigação pautada no gênero, intersecionando com a raça, culminando em políticas públicas mais específicas para esse público.
Na primeira etapa da sua pesquisa, ao longo deste panorama histórico e social no Brasil, a autora destaca a exclusão sistemática da população negra e os desafios que essa modalidade enfrenta até hoje. Ao integrar a análise histórica com a caracterização atual dos alunos, a autora prepara o terreno para discutir o racismo estrutural e as limitações das políticas públicas voltadas para a educação de adultos, especialmente no que se refere às questões étnico-raciais e de gênero. Esse contexto torna evidente a necessidade de intervenções pedagógicas e políticas que reconheçam a interseccionalidade entre raça, classe e gênero nessa modalidade de ensino.
No capítulo seguinte, Racismo e educação, Borges estabelece uma conexão entre racismo e o sistema educacional brasileiro, demonstrando como a imagem do negro foi moldada durante o período escravista e após a abolição. Para isso, a autora fundamenta-se em uma sólida base teórica para discutir as raízes históricas e sociais do racismo no Brasil e como esse fenômeno se manifesta no contexto educacional. A autora faz uso de autores fundamentais, como Munanga (2005), Gomes (2007), Schwarcz (1996, 2001, 2011, 2012) e Moura (1987), para embasar suas reflexões sobre o impacto do racismo na educação, com destaque para a educação de jovens e adultos.
No início do capítulo, a discussão sobre Escravidão e resistência no Brasil resgata a historiografia crítica, fundamentada nos estudos de Moura (1987) e Reis e Silva (1989), que desmistificam a visão passiva e submissa dos negros durante a escravidão. A autora utiliza esses autores para demonstrar as várias formas de resistência, como as fugas e a formação de quilombos, destacando que os escravizados sempre buscaram formas de enfrentamento, o que contraria a visão tradicional de submissão total. Essa abordagem de resistência é essencial para romper com o mito da democracia racial, uma questão trabalhada extensivamente por Munanga (2005), que argumenta que o racismo no Brasil é frequentemente negado e mascarado por essa visão ilusória.
Em seguida, em O racismo estrutural no Brasil, a autora utiliza Munanga (2005) e Schwarcz (1996, 2001, 2011, 2012) para aprofundar a discussão sobre as teorias raciais que influenciaram a sociedade brasileira, particularmente no período pós-abolição. O conceito de racismo estrutural, amplamente explorado por Munanga (2005), é essencial para entender como as ideologias racistas do século XIX, como o darwinismo social e a frenologia, justificaram a inferioridade racial dos negros e perpetuaram a exclusão. Schwarcz (1996) contribui ao demonstrar como o conceito de raça, historicamente construído, moldou as hierarquias sociais no Brasil, com consequências reais para a educação e as oportunidades dos afrodescendentes.
Ao final do capítulo, são analisadas as respostas de estudantes e professores da EJA sobre o racismo, fazendo uso das ideias de Gomes (2007), que são fundamentais para a compreensão do impacto do racismo nas práticas educativas e para discutir a implementação da Lei 10.639/2003. A autora relaciona as respostas dos participantes com a teoria de Gomes, mostrando que, apesar da obrigatoriedade, o racismo ainda é pouco abordado e compreendido no cotidiano escolar.
As descobertas feitas a partir das perguntas semiabertas do questionário indicam que a maioria dos estudantes escolheu a EJA por motivos relacionados ao trabalho. A autora corrobora a visão de estudiosos como Di Pierro e Haddad (1994), que defendem que o ensino na EJA deve focar no mundo do trabalho, suprindo necessidades básicas de compreensão para essa finalidade. Eles criticam a falta de uma formação mais crítica e elaborada, apontando que a busca por certificação rápida contribui para o fracasso da EJA em democratizar as oportunidades educativas para trabalhadores adultos.
Esses autores reforçam a importância de um ensino mais crítico em detrimento do instrumental, porém, na realidade, a perspectiva que se sobrepõe é a instrumental, visto que é uma forma de ensino mais acelerada se comparada àquela voltada para quem frequenta a educação regular. Consequentemente, seguindo essa lógica de um ensino instrumental, as temáticas trabalhadas na sala de aula devem ser as mais generalizantes possíveis, não cabendo a inserção, por exemplo, de argumentos mais específicos como os propostos pela Lei 10.639/2003, que trata do ensino da história e da cultura afro.
A segunda pergunta semiaberta da pesquisa, que questiona sobre o tempo afastado dos estudos e os motivos, revela a predominância do trabalho como razão principal para a interrupção dos estudos. Muitos estudantes tiveram que começar a trabalhar cedo, impossibilitando a continuidade dos estudos na idade adequada.
São destacadas também as dificuldades específicas enfrentadas por mulheres, como a maternidade precoce e a proibição de frequentar a escola por parte de pais ou maridos/companheiros. Essas barreiras refletem problemas sociais como o machismo em uma sociedade patriarcal que impõe grandes limites ao desenvolvimento educacional das mulheres.
Quanto à continuidade dos estudos, muitos enfrentam dificuldades relacionadas ao cansaço da jornada de trabalho, idade e violência. Esses fatores afetam especialmente pessoas negras, dificultando sua permanência na escola e revelando os desafios cotidianos que interferem em seus estudos.
Outro aspecto da não permanência na escola, constatado pela autora, está ligado ao relacionamento entre estudantes de diferentes gerações. A heterogeneidade das turmas, com alunos mais velhos, que ficaram fora da escola por muito tempo, e jovens, que assimilam conteúdos mais facilmente, gera conflitos e tensões.
Borges também explora as perspectivas de docentes, com perguntas sobre seu tempo de atuação na EJA, participação em cursos de formação continuada e experiências de ensino. De quatro docentes entrevistados, três trabalham na EJA há mais de sete anos, e todos participaram de formação continuada específica para a EJA. No entanto, Borges critica a falta de ênfase nos cursos de licenciatura sobre a EJA, o que pode prejudicar o trabalho na sala de aula. Ela aponta que essa omissão é problemática, especialmente para brasileiros da periferia, majoritariamente negros, que dependem desse sistema para obter diplomas de ensino fundamental ou médio.
Um importante destaque de Borges refere-se ao fato de os docentes participantes da pesquisa adotarem uma perspectiva progressista de pedagogia, inspirada por Paulo Freire.
Esses docentes afirmam perceber a heterogeneidade das turmas como um desafio, mas que é possível superar. Eles mencionam o desinteresse de alguns estudantes, dificuldades de aprendizagem e baixa assiduidade como principais obstáculos. Além disso, notam a falta de interesse dos alunos em continuar seus estudos até o nível superior.
Para Borges, a visão dualista dos docentes impede um trabalho didático-pedagógico crítico que poderia influenciar positivamente os espaços sociais dos estudantes da EJA, especialmente nos locais de trabalho.
Em suma, o segundo capítulo da dissertação utiliza de forma competente os teóricos mencionados para articular uma crítica ao racismo no contexto educacional brasileiro, mostrando que a questão racial é fundamental tanto na construção da identidade nacional quanto na implementação de políticas públicas voltadas para a educação.
O terceiro capítulo da dissertação examina os desafios que os negros enfrentaram historicamente para acessar a educação no Brasil e a importância do Movimento Negro na luta pela inclusão educacional e social. O capítulo aborda o papel do Movimento Negro na conquista de direitos educacionais para a população negra, a exemplo de políticas afirmativas e mudanças curriculares que visam a inclusão de conteúdos relacionados à cultura afro-brasileira e à africana no ensino formal. A análise detalha como essas legislações foram moldadas pelas lutas do movimento, resultando em marcos importantes, como a Lei 10.639/2003.
Além do contexto histórico, o capítulo propõe uma intervenção didática para a educação de jovens e adultos, com foco nas relações étnico-raciais. Para isso, a autora desenvolveu uma sequência didática, baseada nas respostas de professores e alunos, que tem como objetivo conscientizar os estudantes sobre o racismo e promover o respeito à diversidade cultural. A sequência inclui a introdução de conceitos acadêmicos sobre racismo, abordando o racismo estrutural e os mitos da democracia racial no Brasil.
A proposta foi aplicada em uma turma da EJA e, conforme o capítulo explica, a avaliação mostrou que houve uma ampliação significativa na compreensão dos alunos sobre o tema, contribuindo para uma visão mais crítica do racismo como um fenômeno social e histórico. A aplicação dessa sequência didática não só reforçou o conhecimento sobre a história afro-brasileira, como também motivou o debate sobre o papel dos negros na sociedade contemporânea.
A fundamentação teórica do capítulo apoia-se em autores como Cruz (2005), Barbosa (2002), Moura (1987) e Gomes (1997), que são usados para discutir tanto a resistência negra quanto a necessidade de transformar a educação em um instrumento de valorização da diversidade étnico-racial. A contribuição desses teóricos ajuda a reforçar o argumento de que o racismo deve ser entendido como um processo sistêmico e estrutural, que precisa ser enfrentado em todas as esferas sociais, incluindo a educação.
Na conclusão, a autora revisita os principais pontos da pesquisa e faz uma avaliação dos resultados. Borges reconhece que a sequência didática proposta é apenas um primeiro passo na construção de uma prática pedagógica antirracista e que sua eficácia depende de uma série de fatores, como o engajamento dos professores e o apoio das instituições escolares. A autora sugere que mais pesquisas sejam feitas para avaliar a aplicabilidade da proposta em outros contextos da EJA e reforça a necessidade de políticas públicas que incentivem a formação continuada de educadores na temática racial.
De forma geral, em relação a este estudo, o suporte teórico da dissertação está fundamentado em autores que tratam das relações étnico-raciais e suas implicações na educação. Thâmara Borges faz uso de contribuições significativas de estudiosos como Nilma Lino Gomes (2007; 2017), que discute a importância de uma educação antirracista, além de referências a Stuart Hall (2003), Munanga (2005) e Schwarcz (1996, 2001, 2011, 2012), cujas abordagens sobre a identidade negra e a resistência ao racismo estruturam as reflexões da autora.
A dissertação também dialoga com os estudos culturais e o feminismo negro, que oferecem um panorama crítico das formas de opressão e subalternização presentes no ambiente escolar, contribuindo para a compreensão da reprodução das desigualdades raciais na EJA. Esse referencial teórico permite à autora construir uma análise sólida das relações étnico-raciais, especialmente no contexto da educação de jovens e adultos, e fundamentar sua proposta de intervenção pedagógica.
A metodologia adotada é de natureza qualitativa, baseada em um estudo de caso em uma escola de educação de jovens e adultos, localizada em Goiânia. A escolha por essa abordagem permitiu à autora uma investigação profunda sobre as relações étnico-raciais no ambiente escolar, possibilitando uma análise detalhada das dinâmicas de interação entre alunos e professores, bem como das práticas pedagógicas adotadas. A pesquisa qualitativa, neste caso, foi fundamental para captar as nuances e sutilezas do racismo estrutural, que muitas vezes se manifesta de forma implícita nas relações cotidianas.
Borges utilizou múltiplas técnicas de coleta de dados, como entrevistas semiestruturadas com professores e alunos, além de observações diretas nas salas de aula. As entrevistas permitiram que os participantes expressassem suas percepções sobre o racismo e as dificuldades enfrentadas no ambiente escolar, enquanto as observações possibilitaram à autora identificar práticas pedagógicas que, intencionalmente ou não, perpetuam as desigualdades raciais.
Apesar de ser uma metodologia robusta para compreender o fenômeno estudado, o fato de a pesquisa ter sido realizada em apenas uma escola representa uma limitação. Como o estudo foi circunscrito a um único contexto, há uma dificuldade em extrapolar os resultados para outras escolas da EJA, especialmente em regiões diferentes do Brasil. Além disso, embora a autora tenha entrevistado professores e alunos, uma amostra maior poderia fornecer uma visão mais ampla das diversas experiências e percepções sobre as relações raciais no ambiente educacional.
Outro aspecto que poderia ser mais bem desenvolvido é o tempo dedicado às observações. A autora não especifica a duração exata do período de observação, o que pode levantar questionamentos sobre a profundidade da análise das interações em sala de aula. Estudos de caso que envolvem observação direta geralmente se beneficiam de um período prolongado de acompanhamento, permitindo ao pesquisador captar não apenas episódios isolados, mas padrões recorrentes de comportamento e prática pedagógica.
Ainda assim, a metodologia aplicada cumpriu seu papel ao permitir que Borges explorasse de maneira qualitativa e detalhada os efeitos do racismo na EJA, proporcionando uma compreensão profunda das questões enfrentadas pelos alunos e professores, além de fornecer insights valiosos para a proposta de intervenção didática.
A sequência didática proposta pela autora é um dos pontos mais importantes de sua dissertação. Ela visa fornecer aos professores da EJA ferramentas pedagógicas para abordar o racismo em sala de aula, promovendo a valorização das culturas afro-brasileira e africana. A proposta está alinhada com a Lei 10.639/03 (Brasil, 2003), e busca não apenas a conscientização sobre o racismo, mas também a construção de um ambiente escolar inclusivo e antirracista.
Esse material envolve atividades que estimulam o debate e a reflexão crítica, utilizando elementos como textos, vídeos e debates em grupo para discutir as contribuições da população negra à sociedade brasileira e para desconstruir estereótipos raciais. A proposta também incentiva os alunos a expressarem suas próprias experiências em relação ao racismo, promovendo um espaço de acolhimento e diálogo.
Embora seja bem estruturada, uma possível limitação está na implementação prática, considerando que muitos professores ainda carecem de formação adequada para lidar com questões raciais de forma aprofundada. Isso pode exigir adaptações ou treinamentos prévios para que a proposta alcance todo o seu potencial.
Os resultados da pesquisa apontam que o racismo afeta diretamente a vivência dos alunos na EJA, principalmente no que diz respeito à autoestima e à motivação para continuar os estudos. A autora observou que, muitas vezes, as práticas racistas dentro da escola, embora sutis, reforçam a exclusão social dos alunos negros, levando-os a se sentirem desvalorizados e deslocados no ambiente escolar. As entrevistas revelaram que tanto alunos quanto professores reconhecem a presença do racismo, mas há uma carência de estratégias pedagógicas eficazes para lidar com o problema.
A aplicação da sequência didática, ainda que em caráter experimental, mostrou-se promissora. Os alunos participaram ativamente das atividades e demonstraram uma nova percepção sobre suas identidades e a história afro-brasileira. A intervenção despertou reflexões importantes tanto para os estudantes quanto para os educadores, evidenciando a necessidade de expandir a aplicação de propostas antirracistas na EJA. No entanto, a autora reconhece que o impacto da sequência didática deve ser acompanhado a longo prazo e que o engajamento dos professores e a adequação curricular são essenciais para que essa intervenção seja sustentável.
A dissertação de Thâmara Borges apresenta méritos significativos ao abordar uma temática de extrema relevância e, muitas vezes, negligenciada no campo da educação de jovens e adultos. O estudo traz uma análise crítica das relações étnico-raciais e oferece uma intervenção prática para enfrentar o racismo no ambiente escolar, contribuindo diretamente para a implementação da Lei 10.639/2003. A sequência didática proposta é um ponto forte, pois fornece aos educadores uma ferramenta concreta para lidar com a questão racial de forma mais eficaz.
Contudo, a dissertação apresenta algumas fragilidades, principalmente no que diz respeito à abrangência da pesquisa. A escolha de uma única escola e a quantidade limitada de entrevistas restringem a generalização dos resultados. Além disso, a implementação da sequência didática pode enfrentar obstáculos relacionados à falta de preparação dos professores para lidar com a complexidade das questões raciais, o que sugere a necessidade de investimentos em formação continuada.
Como um todo, esta pesquisa é uma contribuição relevante para o campo da educação de jovens e adultos, especialmente ao tratar das questões raciais em um ambiente marcado pela vulnerabilidade social. A abordagem que a autora utiliza para discutir o racismo estrutural e propor uma sequência didática voltada para a implementação da Lei 10.639/2003 é inovadora e necessária. Concordo com o estudo no que se refere à urgência de intervenções pedagógicas que promovam uma educação inclusiva e antirracista.
Entretanto, vejo a necessidade de maior preparação dos professores para que possam implementar essa proposta de forma eficaz. A formação inicial e continuada precisa acompanhar a demanda de uma educação que valorize a diversidade racial, caso contrário, a proposta de Borges corre o risco de ser subutilizada. Apesar dessa limitação, o trabalho é um passo significativo para transformar a realidade da EJA em um espaço de empoderamento e combate ao racismo.
Referências
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Recebido em: 14/06/2024.
Aceito em: 23/10/2024.
DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n33.70511.p314-326
* Professora da Rede Estadual de ensino do Paraná. Mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Brasil. E-mail: analucia.mathias@gmail.com.
** Professor titular do Departamento de Engenharia Elétrica da Universidade Federal do Ceará (UFC), Brasil. Doutor em Engenharia Elétrica pelo Instituto Politécnico de Lorraine, França. E-mail: hcunha@ufc.com.
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