BRANQUITUDE, SISTEMA RACIAL DE JUSTIÇA CRIMINAL E PROCESSOS (DE)COLONIAIS: uma análise crítica discursiva
Uebert Vinicius das Neves Ramos **
DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n33.70561.p113-133
Resumo
Em 2020, uma magistrada branca, vinculada ao Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR), publicou uma nota de esclarecimento após a repercussão pública da sentença judicial em que descreveu um réu negro como membro de um grupo criminoso devido à sua raça. Assim, discute-se neste estudo o fenômeno da branquitude e a consequente manutenção de pactos narcísicos da branquitude no sistema judiciário brasileiro, identificado por meio da análise de discurso crítica (ADC), em uma nota veiculada no site da Associação dos Magistrados do Paraná (Amapar). Sob uma abordagem qualitativa com propósito descritivo, na análise da ordem discursiva apreendida na nota, observou-se um processo de manutenção de pactos narcísicos da “branquitude” para reforçar o mito da democracia racial no Brasil, enquanto sustenta-se a lógica colonial-moderna-capitalista para constituir um lócus de poder e privilégio. Bem como, neste caso, por meio do caráter institucional do Poder Judiciário, há o reforço do sistema racial de justiça criminal que (re)age através da violência e dominação dos corpos não-brancos e da interseccionalidade para potencializar políticas de empobrecimento em proveito do capitalismo e do avanço civilizatório.
Palavras-chave: branquitude; racismo estrutural; teorias decoloniais; sistema racial de justiça criminal.
Abstract
In 2020, a white magistrate linked to the Paraná State Justice Court (TJPR) published a clarification note after the public repercussions of a court ruling in which she described a black defendant as a member of a criminal group because of his race. Thus, this study discusses the phenomenon of “whiteness” and the consequent maintenance of narcissistic “whiteness” pacts inside the Brazilian judiciary system identified by means of a critical discourse analysis (CDA) of a note disseminated through the Parana Magistrates Association (Amapar) website. Using a qualitative approach with a descriptive purpose, the discursive order analysis captured in the note revealed a process of the maintenance of narcissistic “whiteness” pacts reinforcing the myth of racial democracy in Brazil, while upholding the modern colonial capitalist logic to establish a locus of power and privilege. As well as, in this case, through the institutional character of Judicial power, there is a reinforcement of the racial system of criminal justice that (re)acts through violence and domination of non-white bodies and through intersectionality to enhance impoverishment policies to promote capitalism and civilizational advancement.
Keywords: whiteness; structural racism; decolonial theories; racial criminal justice system.
Introdução
Oito em cada dez juízes no Brasil são brancos e com um perfil majoritário de homens, cristãos e casados. É o que aponta o Perfil sociodemográfico dos magistrados brasileiros em 2018 (Conselho Nacional de Justiça, 2018). Entretanto, no estado do Paraná, o panorama é mais severo: dos juízes, 89% são brancos; e dentre as juízas, 92% são brancas (Conselho Nacional de Justiça, 2018). Em contrapartida, no segundo semestre de 2023, 29,67% da composição da população carcerária no sistema prisional brasileiro são de pessoas brancas comparadas a 66,54% que são de pessoas pretas e pardas, conforme dados obtidos a partir da Diretoria de Inteligência Penitenciária no 15º ciclo do Sistema Nacional de Informações Penais (Secretaria Nacional de Políticas Penais, 2024).
Em 2020, uma juíza vinculada ao Tribunal de Justiça do Paraná, majorou a pena de um acusado na primeira fase da dosimetria ancorando-se, exclusivamente, na categoria racial negra dele. Entre nove acusados, esse era o único negro, contudo, afirmou a magistrada em sentença judicial que este seria integrante de grupo criminoso em razão de sua raça.
Esse fato viralizou nas redes sociais, o que resultou em uma grande revolta na Internet contra o ato, e em um procedimento administrativo em desfavor da magistrada, arquivado conforme entendimento dos desembargadores de Órgão Especial do TJPR de que não houve intuito discriminatório ou racista por parte da magistrada (G1 Paraná, 2020). Antes disso, a juíza publicou uma nota de esclarecimento no site da Associação dos Magistrados do Paraná (Amapar). A nota constitui o objeto de estudo e análise da presente pesquisa, que possui o objetivo de compreender a ordem discursiva presente na nota com base nas teorias (de)coloniais e no processo psicossocial da branquitude.
Para tanto, o estudo foi dividido em três partes. Na primeira, são apresentados os aspectos teóricos em torno do racismo estrutural, do sistema racial de justiça criminal, da branquitude e dos processos (de)coloniais. Posteriormente, identificamos a ordem do discurso (gêneros, discursividades e estilos) por meio da análise de discurso crítica (ADC) na nota da magistrada. Por fim, a ordem discursiva identificada foi relacionada ao referencial teórico.
Racismo e o sistema racial de justiça criminal
“A raça é filha do racismo, e não a sua mãe”
(Coates, 2015, p. 19)
O conceito de raça foi/é usado para estabelecer classificações, adquirindo significados e significações a depender da configuração histórica, econômica e geográfica, pois, como assevera Silvio Almeida (2019, p. 18), “a história da raça ou das raças é a história da constituição política e econômica das sociedades contemporâneas”. Diferenças fenotípicas e culturais são antigas, mas a sua utilização como forma política de hierarquização é um construto moderno.
Conforme Almeida (2019, p. 112), a escravidão e o racismo constituíram elementos da modernidade e do capitalismo “de tal modo que não há como desassociar um do outro. O racismo, de acordo com esta posição, é uma manifestação das estruturas do capitalismo, que foram forjadas pela escravidão”. Nesse sentido, apesar de serem evidentes os efeitos do processo escravocrata na sociedade brasileira, não é a escravização um acontecimento inesperado, mas sim conjuntural, um passado que não passa, não apenas uma tragédia na historiografia nacional, mas a pedra de toque da racionalidade moderna do capital.
O racismo é constituído e constitutivo de relações econômicas, políticas, jurídicas, ideológicas, culturais, sociais, pessoais e interpessoais; sendo assim, desenvolve imprescindível papel na modulação de padrões comportamentais, não somente nas relações entre as pessoas, mas também nas instituições, no modo de organização da vida, “que produz e reproduz relações assimétricas de poder em todas essas dinâmicas” (Maldonado-Torres, 2019, p. 49).
Tendo em vista que o racismo é “um sistema de opressão que nega direitos” (Ribeiro, 2019, p. 07), não simplesmente uma atitude individual ou um problema moral da sociedade, mas uma construção social configurada por ações conscientes e inconscientes, o sistema de justiça criminal produz e reproduz relações assimétricas de poder, colaborando na manutenção de estereótipos para determinado grupo social, vez que retroalimenta inferioridades que colaboram para afetação do status material e simbólico da população negra. As desigualdades são baseadas em causas cumulativas de diversas opressões que têm o racismo como prática ideológica, institucionalizada e discursiva elementar na formação do Estado brasileiro.
Segundo Juliana Borges (2018, p. 51), é necessário compreender o “sistema de justiça criminal como uma instituição de grande importância no reordenamento sistêmico para a manutenção desse sistema racial de castas”. De maneira similar, Almeida (2019) argumenta que o racismo institucional opera por meio de práticas institucionais que perpetuam desigualdades e privilégios baseados na raça, com o objetivo de sustentar um projeto hegemônico. O Judiciário é um dos mecanismos que desempenham um papel nesse processo, enquanto o racismo estrutural evidencia que essa dinâmica está profundamente enraizada em uma ordem social que molda todas as relações sociais (Santos; Gericó; Ramos, 2020).
A seletividade racial não configura uma falha ou problema, mas o modo pelo qual ele se reorganiza para manter o controle social de determinado grupo. Consoante descreveu Borges (2018), o encarceramento no Brasil significa mais do que privação de liberdade, é, sobretudo, exercício de poder, controle de corpos, notadamente os das mulheres negras, e o extermínio físico, cultural e simbólico. Desse modo, “não se é “diferente”, torna-se “diferente” por meio do processo de discriminação (Kilomba, 2019, p. 75). Os estigmas articulam a construção social da diferença e da desigualdade e contribuem para caracterização do sujeito desviante da norma jurídica, sob o qual recai, consequentemente, a aplicação do Direito Penal. Ocorre que a reprodução desses estereótipos e das demais formas de opressão retroalimentam a marginalização e impedem a materialização de direitos fundamentais.
A prisão, segundo Borges (2018), é política, pois definida em regras políticas, por meio da manifesta conexão entre punição, castigo, criminalização, classe, raça e gênero. A atuação do sistema de justiça criminal sobre o corpo negro revela a pretensão de domínio sobre a corporeidade negra, que não é apenas biológico, mas configurado por circunstâncias históricas, morais, sociais e ideológicas. Nesse sentido, “as prisões são depósitos do que a sociedade marginaliza e nega” (Borges, 2018, p. 115).
Ao passo que inferioriza determinado grupo racial, haja vista que define o padrão, a norma e o perfil do sujeito a ser seguido, no caso, o homem branco-hétero-cis-normativo, nega a ocorrência do fenômeno ao não reconhecer as desigualdades sistemáticas e intergeracionais, difundindo o mito da democracia racial. Portanto, numa sociedade em que a necessidade de punição é manifesta, os estereótipos altamente presentes na mídia, nas piadas e demais relações interpessoais e institucionais influenciam na determinação do status material, cultural e simbólico das pessoas negras, indicando o tratamento recebido, as chances de mobilidade social ascendente e os lugares que serão ocupados.
Branquitude e os pactos narcísicos da branquitude
Maria Aparecida Silva Bento, afirmou que é preciso “observar como a branquitude enquanto lugar de poder, se articula nas instituições”, declarando-a como o “território do silêncio, da negação, da interdição, da neutralidade, do medo, do privilégio” (Bento, 2002, p. 175-6). A autora conceituou branquitude a partir dos traços da identidade racial do branco brasileiro, enquanto processo potencializador da reprodução do racismo que se sustenta no silêncio, na omissão ou na distorção sobre o lugar social que pessoas brancas ocuparam e ocupam nas relações raciais brasileiras, como uma guardiã silenciosa de privilégios (Bento, 2007).
Defendeu ainda que há benefícios concretos e simbólicos que se articulam para evitar focalizar o branco e sua herança positiva obtida por intermédio da escravidão de pessoas negras e as sequelas e mazelas sociais que perduram no imaginário social, ou seja, fazendo com que o silêncio permita que não se preste contas, que essas pessoas que foram e são exploradas não sejam indenizadas, materializando um privilégio econômico e mantendo para si um sistema de autovaloração e autoestima, por referenciais positivos que formam construtos simbólicos (Bento, 2007).
Nessa perspectiva, Bento (2007) apresenta a noção de privilégio ancorada na teoria da discriminação por interesse. Nesse viés, a discriminação racial independe da intencionalidade ou do preconceito, mas sim do interesse em manter uma lógica de poder e privilégios de um grupo em detrimento de outros. Assim, constrói-se uma identidade que se retroalimenta de valores de proteção para sua imagem enquanto grupo e exclusão para o que representa o inimigo ou perigo, gerando o que a autora chama de descompromisso político com o sofrimento do outro.
Logo, a exclusão moral se concretiza pela desvalorização do outro como pessoa e retira sua condição de humano por meio de ações que vão desde discriminações até genocídios numa relação dialógica: estigmatiza um grupo como perdedor e se omite diante da violência que o atinge, enquanto possibilita um silêncio “em torno do grupo que pratica a violência racial e dela se beneficia, concreta ou simbolicamente” (Bento, 2007, p. 26).
O silêncio e o medo se articulam para negar a herança branca material e simbólica da escravidão no Brasil. Por meio da transmissão entre as gerações, forma, desse modo, um acordo ou pacto tácito e (in)consciente para evitar falar sobre racismo em detrimento da fecunda ideia de democracia racial no Brasil. Pela não focalização da categoria racial branca nos estudos sobre racismo, evita-se tratar da rede de privilégios simbólicos e concretos adquirida por pessoas brancas.
Processos (de)coloniais
O racismo enquanto um dos elementos da modernidade surge enquanto estratégia para possibilitar ideais capitalistas e noções eurocêntricas a partir da classificação e hierarquização social, da formação de identidades e da distribuição de todas as formas de trabalho. Nessa dinâmica, a ideia de raça ocupa um lugar crucial e intrínseco, inclusive na manutenção da colonialidade.
Quijano (2005) identificou dois processos históricos na constituição da modernidade na América que culminaram em dois eixos fundamentais para um novo padrão de poder: (a) primeiro, codificou-se os conquistadores e os conquistados por meio de raças delimitadas a partir de elementos biológicos que os marcavam, hierarquizando-os numa relação de superioridade-inferioridade, sendo um elemento constitutivo da relações de dominação consequentes; e (b) a formação de um sistema capitalista mundial em torno da distribuição e articulação de todas as formas de trabalho, recursos e produtos; por exemplo, para as pessoas pretas ou negras, designaram-se a escravidão e o trabalho braçal de base; para os povos originários ou indígenas, pensou-se a servidão.
Os colonizadores chamaram a si mesmo de brancos, outorgando pela conquista, noções eurocêntricas. Nesse processo, as identidades raciais foram naturalizadas pela relação colonizadores-colonizados. Dessa forma, “espanhóis e os portugueses, como raça dominante, podiam receber salários, ser [...], em suma, produtores independentes de mercadorias” (Quijano, 2005, p. 108), resultando numa “exclusiva associação da branquitude social com o salário e logicamente com os postos de mando na administração colonial” (Quijano, 2005, p.109).
A partir desse processo, a colonialidade e a modernidade se instalaram no imaginário social mundial como um específico padrão de poder que se articulou através do capitalismo e do eurocentrismo, em que formou-se uma nova concepção de humanidade baseando-se em uma diferenciação entre superior-inferior, racional-irracional, civilizado-primitivo, branco e não-branco etc., que acabou afetando toda a estrutura das sociedades ditas modernas, tornando-se um organismo que se alimenta desses padrões historicamente construídos, estruturando socialmente as práticas sociais que constituem o saber, o poder e o ser.
Assim, a colonialidade equivale ao padrão colonial de poder sustentado pela retórica da modernidade, enquanto a decolonialidade surge não como uma terceira via, mas como um desprendimento das macronarrativas coloniais a partir de um pensamento fronteiriço que, através de perguntas e indagações, pretende constituir consciências, identificando e desvelando o cerne colonial e moderno nas relações sociais, para construir uma rota de dispersão e de desobediência (Mignolo, 2017).
Análise crítica discursiva e postura decolonial
Fairclough (2001) conceituou o discurso como uma prática social, um modo de ação manejado pelos indivíduos e grupos para atuarem sobre o mundo e sobre os outros, implicado dialeticamente com a estrutura social e as práticas sociais, de modo que aquela é tanto uma condição como um efeito destas. Dessa maneira, molda e é restringido pela estrutura social, “pela classe e por outras relações sociais em um nível societário, pelas relações especificas em instituições particulares, como o Direito ou a educação” (Fairclough, 2001, p. 91).
A análise de discurso crítica (ADC) constitui um aporte teórico e metodológico específico ao tratamento e estudo de práticas sociais que, intercalada pela linguística e as ciências sociais críticas, tenta construir um quadro analítico que possibilite compreender as conexões entre relações de poder e recursos linguísticos utilizados por pessoas ou grupos sociais em detrimento de outros (Vieira; Resende, 2016).
O propósito que circunda a abordagem é expor, tornar visível a ordem do discurso e de que forma a configuram como suporte para manutenção de estruturas de dominação ou que dificultam a transformação de tais estruturas. Objetivando “mapear conexões entre escolhas de atores sociais ou grupos, em textos e eventos discursivos específicos, e questões mais amplas, de cunho social envolvendo poder” (Vieira; Resende, 2016, p. 26).
Articulando esse recurso teórico-metodológico às teorias decoloniais, Resende (2019) afirmou que decolonizar consiste em identificar, visibilizar e encorajar a construção de lugares e alternativas outras e que é preciso uma renovação epistêmica em relação às análises discursivas. Dessa maneira, a colonialidade do saber relaciona-se com as representações e compreensões sobre as coisas e aspectos do mundo, ou seja, as discursividades; a colonialidade do ser com as identidades sociais construídas e a colonialidade do poder com a (re)produção de (inter)ações ordenadas, ambas articuladas sobre estruturações sistêmicas de raça, gênero e classe (Resende, 2019).
Por meio dessa postura, apresenta-se a ADC como recurso teórico-metodológico capaz de decolonizar os saberes e estudos sobre discurso; e como possibilidade de superação e construção de uma consciência crítica, emancipatória e criativa.
A pesquisa se configurou como qualitativa-descritiva (Gil, 2002). No procedimento de coleta, foi selecionado o texto publicado pela magistrada no site da Associação dos Magistrados do Paraná (Amapar), em 12 de agosto de 2020. O nome da magistrada não foi anonimizada nesta produção, pois encontra-se amplamente exposto nas mídias sociais e referenciado ao final do artigo, com acesso a integralidade do texto. Recomenda-se a leitura da nota antes de ingressar nos achados e resultados aqui expostos.
Em seguida, para o procedimento de análise foi delimitado o recurso teórico-metodológico da análise de discurso crítica (ADC), delineada por Resende e Vieira, na perspectiva de Norman Fairclough. Na fase de análise, para demonstrar os dados identificados, alguns trechos foram apresentados sem seguir a ordem em que aparecem no texto, relacionados aos agrupamentos teóricos-discursivos evidenciados.
De acordo com Fairclough (2012), primeiramente, observa-se a atividade social que constitui os gêneros, ou seja, “as maneiras diversas de agir, de produzir a vida social” (p. 310), que ora desenvolvem permissões ou constrangimentos de processos de significação. Estes “referem-se a modos relativamente estáveis de (inter)ação por meio do discurso” (Vieira; Resende, 2016, p. 62).
Na nota de esclarecimento, a juíza informa que “A respeito dos fatos noticiados pela imprensa envolvendo trechos de sentença criminal por mim proferida, informo que em nenhum momento houve o propósito de discriminar qualquer pessoa por conta de sua cor (Zarpelon, 2020).
Partindo-se da identificação da magistrada como enunciante da mensagem ora analisada, apreendeu-se os seguintes fatos encadeados na nota: (1) realizou-se uma investigação policial a qual identificou-se indícios de autoria de nove indivíduos para a conduta delituosa de organização criminosa; (2) instaurou-se uma denúncia criminal acusando as nove pessoas pelo crime de organização criminosa em que se cometia furtos e roubos; (3) a juíza julgou o mérito da denúncia e os contextos processuais da demanda, fixando as respectivas penas de cada acusado; (4) a imprensa noticiou os atos acerca de um trecho da sentença proferida pela juíza; (5) a juíza publicou a nota de esclarecimento pela repercussão do caso no site da Associação dos Magistrados do Paraná; (6) no fim da nota, a juíza fez um pedido de desculpas em razão da interpretação do texto específico da sentença. Contudo, convém demonstrar os silêncios e as significações desdobradas nessas interações.
No início da nota, pelo fato 4, extraiu-se a apresentação de um contexto fático originário de fatos articulados pela imprensa, passivizando a participação da magistrada na construção fática prévia e retirando-lhe a atuação ativa na formação dos fatos noticiados. A juíza construiu, a partir desse fato, um movimento que resulta na narrativa de que a linguagem pode formar contextos diversos e causar dubiedades, retirando novamente da magistrada a responsabilidade.
Quanto ao fato 3, a enunciante pretendeu defender-se por meio da suposta ausência de um propósito discriminatório, procurando se resguardar por meio de um senso de comoção para, caso tenha discriminado, eximir-se da responsabilidade pela ação discriminatória por meio do argumento de uma transmissão inadequada da mensagem.
Nos fatos 1, 2 e 3, a juíza reforçou o sentido de uma possível dubiedade quanto ao referido trecho da sentença debatido nas redes sociais, declarando uma suposta dificuldade em analisar a esfera textual de uma sentença com mais de cem páginas, ainda mais que se trata de um caso complexo de apuração da conduta de organização criminosa composta por pelo menos 09 (nove) pessoas. Por fim, declarou que todos os acusados foram condenados por existirem provas nos autos e que a cor não foi utilizada como fundamento para a sentença condenatória.
Encadeadas, essas ações da magistrada caracterizam uma constante passivização e legitimação de sua conduta perante o processo e a elaboração da sentença, atribuindo aos leitores e à imprensa, por possível falha ou dubiedade na recepção da mensagem, a responsabilidade por terem compreendido errado o trecho da sentença condenatória.
Quanto ao fato 6, que consiste em um pedido de desculpas, também se sustenta na possibilidade de o trecho da referida sentença ter causado a tal dubiedade, ou seja, um problema na recepção da mensagem. Logo, não se desculpou pela possibilidade de ter praticado um ato discriminatório. Dessa forma, reiterou outros pontos da nota: a postura de negar a prática discriminatória e o animus de discriminar o acusado por sua categoria racial. Saliente-se ainda que um pedido de desculpas não possuiria o condão de corrigir um erro in judicando, ou seja, um erro ao proferir a sentença, ao passo que o trecho discutido da sentença se tratou de uma majoração da pena do acusado, ancorada de forma indevida exclusivamente na categoria racial.
Nesse sentido, Lima (2020, p. 1621) afirma que “é vedado que o julgador imponha uma sanção padronizada ou mecanizada”, acrescentando que lhe é conferido uma discricionariedade relativa, pois todas as etapas da dosimetria da pena devem ser fundamentadas com os devidos apontamentos circunstanciais analisados, formando um raciocínio lógico e coerente em que todas as partes (inclui-se aqui a sociedade) possam compreender os critérios utilizados e evite-se quaisquer arbitrariedades.
Na primeira fase da dosimetria, estabelece-se a fixação da pena-base através das circunstâncias judiciais previstas no artigo 59 do Código de Processo Penal, e frise-se: “impõe-se ao magistrado uma análise individualizada de cada uma delas, sendo insuficiente, portanto, considerações genéricas e superficiais” (Lima, 2020, p. 1623).
Em breve síntese, Lima (2020) descreveu que as circunstâncias judiciais são: (a) a culpabilidade: o juízo de reprovabilidade do comportamento do agente; (b) os antecedentes criminais: observa-se a vida pregressa do agente; (c) a conduta social: o comportamento do agente em sociedade, em seus variados espaços familiares, de trabalho, lazer etc.; (d) a personalidade do agente: a síntese das qualidades morais e sociais do indivíduo. Nesse ponto, “incumbe ao juiz aferir a boa (ou má) índole do acusado, sua maior ou menor sensibilidade ético-social, a presença ou não de eventuais desvios de caráter” (p. 1625); e) os motivos do crime: apreende-se os antecedentes psicológicos da conduta delituosa; (f) as circunstâncias do crime: refere-se ao meio ou modo de execução da conduta delituosa; (g) as consequências do crime: afere-se a intensidade da lesão ou ameaça ao bem juridicamente tutelado; e( h) o comportamento da vítima.
Assim, fez-se necessário observar o trecho da sentença:
Sobre sua conduta social nada se sabe. Seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça, agia de forma extremamente discreta os delitos e o seu comportamento, juntamente com os demais, causavam o desassossego e a desesperança da população, pelo que deve ser valorada negativamente. [...] Assim, considerando a existência de uma circunstância judicial desfavorável (conduta social), elevo a pena base em 1/8 da diferença entre o mínimo e máximo da pena prevista para o crime (o que resulta em 07 meses), fixando-a acima de seu mínimo legal, ou seja, em 03 (três) anos e 07 (sete) meses de reclusão e 12 (doze) dias multa, no valor de 1/30 do salário-mínimo vigente à época dos fatos. (Paraná, 2020, p. 107-108)
Dessa maneira, não restam dúvidas de que a magistrada majorou a pena-base a partir da circunstância judicial da conduta social do acusado. Referente a possível dubiedade na escrita da magistrada, só é possível apreender dois raciocínios lógicos e ambos são racistas. Primeiro, após declarar que nada se sabe sobre a conduta social do acusado, a magistrada passa a valorá-lo socialmente através de estereótipos que perpassam o imaginário social sob a condição racial negra: afirmou que ele apresentou comportamento discreto para ludibriar as vítimas, causou desassossego e desesperança para a população; e que, devido a sua raça, é seguramente integrante do grupo criminoso, não abrindo-se margem para a dúvida de sua participação na organização criminosa.
E, pela nota, a magistrada ocultou e silenciou esse fato: há majoração sem os requisitos fáticos necessários, visto que o indício se fundamenta na raça do acusado e, consequentemente, estereótipos raciais.
De acordo com o jornalista Boreki (2020), em colaboração com a UOL de Curitiba, em 29 de setembro de 2020, o Órgão Especial (OE) do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) resolveu arquivar o processo administrativo instaurado por determinação do Conselho Nacional de Justiça em face da magistrada para averiguar o controvertido trecho da sentença condenatória. Como resultado, o órgão endossou todas as ações e reações investidas pela juíza.
Nessa perspectiva, o órgão entendeu de forma unânime que não houve quaisquer indícios de racismo e que ela arbitrou a mesma pena para todos os nove acusados, sendo que apenas um deles era negro. Ainda durante a sessão de julgamento, afirmou-se que ela possui um bom histórico e culparam a imprensa pela distorção, sendo tal investida contra a juíza vista como um ataque ao Judiciário. Tal fato representa um apoio institucional que impede o reconhecimento jurídico da prática racista, constituindo, principalmente, um endosso para o trecho da sentença e a nota publicada. Deste modo, corrobora o que Almeida (2019) denominou como racismo institucional por meio das práticas institucionais evidenciadas, que além de perpetuar desigualdades, concede privilégios baseados na raça.
Dessa maneira, os fatos delineados e suas significações articulados constituem-se gêneros de governança que “regulam e controlam as maneiras como as coisas são feitas” (Vieira; Resende, 2016, p.63), elucidando, nesse caso, que o cerne dos fatos noticiados se trata de problemas de interpretação do público perante o trecho discutido, atribuindo para si o lugar de enunciar o verdadeiro sentido e como vítimas desse processo.
O racismo representa uma prática odiosa que causa prejuízo ao avanço civilizatório, econômico e social. A linguagem, não raro, quando extraída de um contexto, pode causar dubiedades. Sinto-me profundamente entristecida se fiz chegar, de forma inadequada, uma mensagem à sociedade que não condiz com os valores que todos nós devemos diuturnamente defender. (Zarpelon, 2020)
Em um segundo momento, Fairclough (2012) declarou que as representações da vida social elaboradas pelos atores sociais posicionados constituem discursividades (a expressão original utilizada pelo autor denomina-se discursos numa abordagem mais concreta). A partir dessa categoria, enunciam-se as diferentes perspectivas particulares sobre o mundo, sendo intrinsecamente interligadas às formas, ao manuseio consciente ou não de informações e da comunicação (Vieira; Resende, 2016). Nesse ínterim, Resende (2019) relaciona essa segunda categoria com a colonialidade do saber, a qual liga as compreensões e representações sociais a contextos interseccionais, constituindo a articulação de saberes para sustentar construtos estruturais.
A frase que tem causado dubiedade quanto à existência de discriminação foi retirada de uma sentença proferida em processo de organização criminosa composta por pelo menos 09 (nove) pessoas que atuavam em praças públicas na cidade de Curitiba, praticando assaltos e furtos. Depois de investigação policial, parte da organização foi identificada e, após a instrução, todos foram condenados, independentemente de cor, em razão da prova existente nos autos. (Zarpelon, 2020)
Assim, passou-se a identificar-se na superfície textual as discursividades ou representações sociais construídas e enunciadas pela magistrada. Primeiro, foi proposto um esclarecimento sobre o caso reduzindo a conduta discriminatória em sentença condenatória como fatos noticiados pela imprensa que se articularam através de dubiedades decorrentes da extração de um contexto maior, constituindo, assim, uma mensagem que declara não condizer com os seus valores.
Dessa maneira, delineou e reforçou um terceiro elemento, o produto da recepção pelo público para que seja dissociado do trecho da sentença e assim retirar de si mesma a responsabilidade por esse entendimento. A enunciante afirmou que a sentença criminal não apresentou cunho discriminatório e que o trecho da sentença ou a frase foi distorcida e retirada de uma sentença que é representada como complexa pela quantidade de acusados, por um contexto fático de maior reprovabilidade e fruto de uma investigação policial que identificou parte da organização, e em que a condenação se deu após a instrução e em razão de prova existente nos autos. Logo, representa-os a partir da ideia de um processo formalmente complexo, regular e legal, em que se cumpriram as devidas diligências e requisitos processuais.
Quanto ao racismo, representa-o como uma prática odiosa e que causa prejuízo ao avanço civilizatório, econômico e social e intolerável em qualquer civilização. Tais assertivas dialogam diretamente com as teorias (de)coloniais e com o mito da democracia racial. Sendo assim, apreendeu-se que a magistrada recaiu em um recorte ideológico que nega o processo histórico nacional em que as desigualdades sociais ainda não foram resolvidas, pois mesmo com o fim do colonialismo e do período escravocrata, os efeitos e herança racial persistem.
Conforme Almeida (Democracia, 2017), o discurso da democracia racial é reelaborado socialmente e forma a dinâmica das instituições sociais brasileiras, aqui se inclui o Poder Judiciário, para naturalizar processos de subalternização e a distribuição de espaços sociais por meio da construção de subjetividades. Enquanto a colonialidade, como abordada anteriormente, constitui um processo que se ancora na definição de identidades sociais a partir da raça para classificar os indivíduos e distribuir todas as formas de trabalho.
Nesse sentido, o racismo representado pela juíza recorre ao discurso da democracia racial, quando diz que combate a conduta, afirma seu conteúdo negativo, mas distancia-o e não reconhece como atual esse processo que está entranhado na sociedade brasileira e se articula institucionalmente, inclusive, no âmbito judicial. Além disso, não reconhece o recorte racial como fundamento na formação das civilizações modernas ocidentais nem o papel crucial que desempenhou na criação das desigualdades sociais, necessárias para o sucesso do plano econômico capitalista, tanto no período colonial, como após, através das estruturas que continuaram a atuar socialmente.
Por fim, negou que possa ser capaz de cometer tal prática, sendo essa uma das principais controvérsias do discurso brasileiro sobre o racismo: afirmar que existe o racismo, mas não se vê ou não se coloca como agente violentador. Nesse processo, ainda afirmou que a cor não foi e não será utilizada como argumento ou fundamento para a tomada de decisões judiciais.
Frise-se que a escolha de não usar o termo raça, reforçou mais uma vez o discurso da democracia racial, pois, deste modo, negou indiretamente a existência de raças sociais, como se existisse apenas a raça humana. Em termos estritos, tal fator não constitui razão para a majoração da pena-base, contudo, é o que afirma o trecho da sentença, entendimento esse não sendo recepcionado pelo ordenamento jurídico, mas tornou-se recurso possível através de um movimento ideológico como se apreende desse caso em concreto.
Conclui a nota representando suas sinceras desculpas como uma possibilidade de sanar os fatos noticiados, de encerrar a discussão sobre a conduta discriminatória e racista expressa na sentença. Saliente-se que as desculpas foram remetidas ao público em geral e, em nenhum momento, direcionaram-se ao acusado, que ora teve a pena agravada na fase de dosimetria e que também foi exposto nessa situação.
Todas essas representações articuladas atuam na sustentação do discurso da democracia racial brasileira, principalmente, em defesa do âmbito institucional judicial e na manutenção de um contexto colonial, moderno, capitalista e dos efeitos estruturais causados pela escravidão. A partir dessa articulação, os saberes são colonizados a repercutirem essa compreensão de mundo através de eventos isolados e de revitalização da estrutura racial brasileira.
Em nenhum momento a cor foi utilizada – e nem poderia – como fator para concluir, como base da fundamentação da sentença, que o acusado pertence a uma organização criminosa. A avaliação é sempre feita com base em provas. A frase foi retirada, portanto, de um contexto maior, próprio de uma sentença extensa, com mais de cem páginas. (Zarpelon, 2020)
A terceira categoria de análise, os estilos, é constituída pelas posições sociais ou pessoas particulares criadas pelo discurso, são elas que formam e denunciam os aspectos das identidades enunciadas e, portanto, as maneiras de ser (Fairclough, 2012). Essas maneiras formam padrões de identificação para classificar e hierarquizar, em que esse processo constitui a colonialidade do ser (Resende, 2019).
Reafirmo que a cor da pele de um ser humano jamais serviu ou servirá de argumento ou fundamento para a tomada de decisões judiciais. O racismo é prática intolerável em qualquer civilização e não condiz com os valores que defendo. Peço sinceras desculpas se de alguma forma, em razão da interpretação do trecho específico da sentença (pag. 117), ofendi a alguém. (Zarpelon, 2020)
Nesse aspecto, podemos identificar os seguintes sujeitos explícitos, a magistrada e a imprensa, e os implícitos, o acusado e o Poder Judiciário.
A enunciante, em um recorte interseccional, é atravessada pela sua condição de mulher-branca-magistrada e se veiculou por toda a nota como uma vítima profundamente entristecida pela distorção causada pela imprensa, isenta do propósito de discriminar e com valores que ora possibilitam o avanço civilizatório, econômico e social.
Na linha 1, ela apontou a imprensa e a posicionou como inimiga e responsável por distorcer os fatos noticiados. Assim, tem-se uma relação de vítima-transgressor.
A partir da fala, silêncios possibilitam que identidades sejam mantidas ocultas. Dessa forma, pode-se identificar o Poder Judiciário quando a juíza defende que a cor da pele de um ser humano jamais serviu ou servirá de argumento ou fundamento para a tomada de decisões judiciais, ou seja, a atividade decisória inerente aos magistrados e magistradas e, em específico, do Tribunal de Justiça do Paraná, ao qual a magistrada é vinculada.
Além de constituir uma defesa à imagem da instituição judiciária, recorreu à historicidade pessoal para embasar sua conduta diante do caso, constituindo uma rede de apoio institucional que reverberou no resultado do procedimento administrativo perante órgão colegiado instaurado para averiguar a prática de racismo.
Também, dessa forma, nota-se a ausência de qualquer menção direta à vítima potencial da prática de racismo a partir da conduta da magistrada. Ao final da nota, a magistrada pede desculpas caso tenha ofendido alguém. Nesse sentido, observa-se que o acusado não mereceu, por parte dela, um pedido de desculpas, sendo ainda representado indiretamente no meio de nove acusados que tiveram suas condutas apuradas por investigação policial e foram instruídos e condenados.
Portanto, o único negro dentre os nove acusados, após o controvertido trecho racista em sua sentença condenatória, além de ficar submetido a majoração da pena-base sem os devidos requisitos, foi posicionado em um lugar oculto, não-digno de ser mencionado e nem de receber desculpas, considerando que também teve sua identidade exposta pelos fatos noticiados.
Por causa da publicidade dos atos processuais, o caso passou de um alcance municipal para nacional e, dessa maneira, possivelmente, o acusado sofrerá os estigmas do cárcere em uma proporção ainda maior, enquanto a juíza (e sua a imagem) encontrou apoio institucional do Tribunal ao que é vinculada e da Associação dos Magistrados do Paraná (Amapar). Com o arquivamento do procedimento administrativo, não sofrerá nenhuma penalidade, nem mesmo uma advertência pela suposta dubiedade que tanto defendeu.
Ambas as identidades articuladas resultam da esfera de poder e enunciadora dos sentidos, valores e ações válidos à magistrada enquanto parte de um órgão institucional maior: o Poder Judiciário. Colonizando tais pessoas e posições, o discurso sustentou a imagem e poder institucional do Judiciário e seus representantes em detrimento da subalternização da imprensa e do acusado, afetando, assim, não apenas eles, mas a coletividade.
Nesse caso, a ordem discursiva do texto analisado consiste na legitimação da prática do racismo institucional enquanto lócus de poder atribuído ao Poder Judiciário de enunciar sentidos, valores e ações legítimas, sustentando-se em discursos que reverberam o mito da democracia racial brasileira. Dessa maneira, cria-se, em sentido amplo, um precedente que legitima a utilização da categoria racial como circunstância judicial negativa para valorar prejudicialmente a pena-base na primeira fase de dosimetria, constituindo assim um recurso ideológico para a definição de privilégios para brancos e desvantagens para a coletividade negra. E, nesse caminho, deslegitima quaisquer indivíduos ou grupos que possuam ações transgressoras à sistemática.
Esse marcador possui um encadeamento interseccional, pois a depender da articulação das categorias raça, gênero e classe, tem-se um grupo cada vez mais em desvantagem por ser posicionado cada vez mais próximo da base da pirâmide, atravessado por linhas coloniais hierarquizantes que os classificam. A partir de um índice sociodemográfico majoritariamente masculino, branco e cristão, tem-se sustentado um perfil branco para a magistratura brasileira e, em contrapartida, a população carcerária é majoritariamente negra. Esse construto colonial encontra sustentação no discurso delineado nos tais esclarecimentos da magistrada. Não se assume esses números, não se parte de uma conscientização sobre a máquina branca e seletiva que é o Poder Judiciário brasileiro.
Condutas institucionais com caráter discriminatório e racista que agregam o tom de imposição, legitimidade e naturalidade, reificam-se nos espaços sociais, possibilitando o avanço civilizatório, já que é fundamento e produto da modernidade e do capitalismo. É a partir dessa classificação e desigualdade social que o projeto moderno-colonial-capitalista se efetiva, tendo sido forjado no Brasil pela escravidão e pelo mito da democracia racial, para que se mantenham enquanto políticas públicas de empobrecimento e da negação de direitos fundamentais esculpidos na Constituição Federal.
Dessa maneira, é fortalecida a estrutura do capital forjada na constante agressão contra grupos sociais não-brancos. O Judiciário, enquanto uma das principais figuras do Estado brasileiro, e o sistema de justiça criminal (re)produzem estereótipos que legitimam as desvantagens materiais e simbólicas que constituem as relações assimétricas de poder, logo, possibilitam uma esfera de dominação a partir do controle de corpos e negação de direitos.
A partir da construção teórica de Maria Aparecida Silva Bento (2002), esse contexto e articulação discursiva são transmitidos entre as gerações por meio de pactos narcísicos da branquitude, que resultam na não focalização da rede de privilégios simbólicos e materiais adquiridos pela raça branca frente a violências e desvantagens contra grupos raciais não-brancos, possuindo ainda como objetivo o silenciamento e a ocultação da herança colonial resultante da escravidão no Brasil, fenômeno que Bento (2002) e Kaes (1997) denominam de alma de grupo.
Portanto, a branquitude se articula enquanto lugar de poder institucional no Poder Judiciário e em seus representantes, os magistrados e magistradas, para se formalizarem enquanto neutros e justos, potencializando, assim, a reprodução do racismo. Guardiã silenciosa de privilégios estruturais, não convém discutir a intencionalidade da magistrada em relação à prática racista cometida na sentença condenatória, mas sim o interesse em negar o ocorrido, em silenciar um contexto de estigmatização que atinge homens e, em especial, mulheres negras, como política pública de colonizar os corpos e seus saberes, subalternizando toda a coletividade e ancestralidade violentada que os compõem, reificando uma estratégia genocida para exterminá-los.
Considerações finais
Por fim, evita-se focalizar os brancos, os espaços de poder, as tomadas de decisões sem os devidos requisitos legais, as sequelas do período colonial e escravocrata para impedir a prestação de contas em favor de uma coletividade historicamente violentada e sustentar uma rede de privilégios materiais e simbólicos de autovaloração. Assim, a identidade branca se retroalimenta por meio da ausência de compromisso com o sofrimento do outro, que acaba sendo posicionado na condição de inimigo, o que Bento (2002) denomina de descompromisso político e constitui o componente narcísico: a ideia de autopreservar a coletividade branca, enquanto inerentemente humana e universal, para sustentar uma política colonial de estruturação social, econômica e política.
Observou-se um processo de manutenção de pactos narcísicos da branquitude para reforçar o mito da democracia racial no Brasil, enquanto sustenta a lógica colonial-moderna-capitalista para constituir um lócus de poder e privilégio e, nesse caso, por meio do caráter institucional do Poder Judiciário, fomentando o sistema racial de justiça criminal que (re)age através da violência e dominação dos corpos não-brancos e da interseccionalidade para potencializar políticas de empobrecimento em proveito do capitalismo e do avanço civilizatório.
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Recebido em: 20/06/2024.
Aceito em: 14/10/2024.
DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n33.70561.p113-133
* Graduado em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco (FACESF), Brasil. E-mail: pedrohenriquealvessantosadv@gmail.com.
** Graduado em Direito pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Brasil. E-mail: uebertvinicius@gmail.com.
*** Graduada em Letras pela Universidade de Pernambuco (UPE), Brasil. E-mail: jeifaalicegerico@gmail.com.
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