“AUTOCRÍTICA DA BRANQUITUDE” NO INSTAGRAM:
limites e possibilidades de um movimento
THE “SELF-CRITICISM OF WHITENESS” ON INSTAGRAM:
limits and possibilities of a movement
DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n33.70661.p27-48
Resumo
A grande mobilização motivada pelos assassinatos brutais de negros nos Estados Unidos e no Brasil no ano de 2020, em plena pandemia de Covid-19, virou uma chave importante de compreensão das lutas antirracistas. Nos discursos de ativistas negros e negras, não só os perpetradores diretos da violência racista estavam no alvo da luta por justiça racial, mas toda a branquitude de modo geral passou a ser acusada de demonstrar solidariedade apenas nas aparências, mas sem engajamento efetivo e comprometido. Sob efeito dessas pressões, jovens pessoas brancas criaram, naquele ano, perfis públicos antirracistas no Instagram para divulgar conteúdo autocrítico sobre sua própria branquitude. Em 2021, analisamos o conteúdo das publicações de sete destes perfis, realizamos entrevistas com seus criadores e participamos de rodas de conversa sobre o tema, organizadas por eles e elas de modo remoto. Em março de 2024, voltamos aos perfis no Instagram para analisar se a sua atuação havia tido continuidade ou se teria sido somente efeito momentâneo das pressões sofridas mais fortemente entre 2020 e 2022. Concluímos que houve uma diminuição sensível de atividade ou interrupção total, enquanto perfis de negros e negras se mantiveram ativos e ampliaram seguidores. Se, por um lado, isso evidencia que são de fato as pessoas negras que realmente mantêm constância e compromisso com as lutas antirracistas, por outro, procuramos trazer neste artigo alguns dos aprendizados que o engajamento em rede da branquitude (auto)crítica produziu para as pessoas brancas envolvidas no letramento racial em rede.
Palavras-chave: branquitude; movimentos antirracistas; ativismo digital; redes sociais digitais.
Abstract
The massive mobilization motivated by the brutal murders of black people in the United States and Brazil in 2020, amid the COVID-19 pandemic, became an important turning point for the understanding of the focus of anti-racist struggles. In the speeches of black activists, not only were the direct perpetrators of racist violence targeted in the fight for racial justice, but all white people in general began to be accused of demonstrating solidarity only in appearance, but without effective and committed engagement. Under the effect of these pressures, young white people created public anti-racist profiles on Instagram to share self-critical content about their own whiteness. In 2021, we analyzed the content of the posts of seven of these profiles, conducted interviews with their creators and participated in discussion groups on the topic, organized by them remotely. In March 2024, we returned to the Instagram profiles to analyze whether their activity had continued or whether it had been just a momentary effect of the pressures they had suffered more intensely between 2020 and 2022. We concluded that there had been a significant decrease in activity or a complete interruption, while black profiles remained active and increased their followers. If, on the one hand, this shows that it is in fact black people who truly maintain constancy and commitment to anti-racist struggles, on the other hand, we sought to bring in this article some of the lessons that the network engagement of “(self)critical whiteness” produced for white people involved in online racial literacy.
Keywords: whiteness; anti-racist movements; digital activism; digital social networks.
Introdução
A pandemia de covid-19 não impediu que milhares de pessoas fossem às ruas nos Estados Unidos, em protesto contra a violência policial racista que vitimou o afro-americano George Floyd em maio daquele ano. Em meio às mobilizações, surgiu a ideia da campanha Blackout Tuesday, pela qual usuários do Instagram em todo o mundo publicaram telas pretas em protesto. No entanto, o que parecia ser um grande ato de solidariedade acabou dando lugar a uma virada de chave no discurso ativista antirracista, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil. Acusada de hipocrisia por atitudes como essas que, na realidade, não geravam um engajamento efetivo e responsável (Belchior, 2020), a branquitude que se diz solidária começava a receber fortes chamados de ativistas negros e negras nas mídias sociais nas Américas.
Pessoas brancas estavam sendo convocadas a assumir responsabilidades concretas e deixar sua condição de omissão e cumplicidade com o sistema racista do qual se beneficiam, mesmo que não fossem perpetradores diretos da violência que humilha e mata. Branquitude, palavra nova na gramática antirracista do Brasil, começava a se popularizar naquele momento e se tornava objeto de um desvendamento crítico profundo, gerando grandes incômodos e chacoalhando o modo como, até então, as relações raciais eram, em geral, descritas no país e na América Latina, com base no mito da mestiçagem. Enquanto o velho argumento de que “aqui ninguém é branco” (Sovik, 2009) voltava a ser acionado fortemente, algumas sensibilidades eram tocadas, especialmente as de jovens que começavam compreender que ter nascido branco numa sociedade racista é um privilégio que pode definir o próprio direito à vida, e essa consciência os levava a assumir autorresponsabilidades nas lutas antirracistas.
Em 2020, o surgimento de estatísticas ainda mais impressionantes sobre as mortes violentas de negros por policiais tornava a realidade do racismo inegável na abordagem policial no Brasil. Relatório do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2020) apontava que das 5.088 pessoas assassinadas por policiais no ano de 2019, 79,1% (4.024) eram negras. Muitos destes crimes eram flagrantes de racismo obtidos por meio de câmeras de vigilância e dispositivos móveis que, ao circularem nas redes sociais, geravam indignação e protestos nas mídias digitais (Mattos, 2017), como foi o caso de João Alberto Freitas, espancado até a morte por seguranças do supermercado Carrefour em Porto Alegre, às vésperas do Dia da Consciência Negra, ainda em novembro daquele ano.
Pesquisando movimentos antirracistas no Instagram no decurso dos anos de 2020 e 2021, marcados pela pandemia de covid-19, identificamos o fenômeno emergente de jovens pessoas brancas que criaram redes e perfis naquela rede social exclusivamente para se dedicar ao combate ao racismo, tendo como base o que chamaremos aqui de autocrítica da branquitude. Nosso objetivo neste artigo é apresentar alguns aprendizados advindos deste movimento, bem como verificar em que medida ele se mostra consistente enquanto atuação antirracista com continuidade e persistência.
Em consequência de fortes pressões de ativistas negros e negras nas redes sociais digitais, algumas jovens pessoas brancas passaram a se interessar por cursos e leituras sobre letramento racial, rodas de conversas e debates em torno do assunto e, por fim, criaram perfis no Instagram exclusivamente para divulgar conteúdo antirracista. No ano de 2021, identificamos e analisamos sete perfis públicos antirracistas no Instagram criados por brancos e brancas, individual ou coletivamente. Em março de 2024, voltamos a estes perfis para analisar se a sua atuação havia tido continuidade ou se teria sido somente efeito momentâneo das pressões sofridas com maior intensidade de 2020 a 2022.
No decorrer de 2021, foram conduzidas entrevistas com três autores desses perfis, todas em profundidade, sendo duas mulheres na faixa etária de 30 anos e um homem na faixa etária de 40 anos, todos cisgênero. Participamos também de rodas de conversas sobre branquitude organizadas por dois desses perfis de modo remoto, reunindo pessoas de diferentes regiões do país, entre junho de 2020 e maio de 2021. Trilhar um caminho a partir desses agrupamentos que observamos nos levou a um entrecruzamento de pessoas brancas ativas nas lutas antirracistas, majoritariamente jovens de classe média e nível superior, entre 25 e 40 anos de idade, mulheres feministas, LGBTQIA+ e homens que passaram a se reconhecer como parte do patriarcado e da branquitude e que se viam em processos de questionar perspectivas e comportamentos herdados de gerações anteriores.
Embora esse número possa ser considerado pequeno, e suas reverberações restritas a certas “bolhas de informação” (Pariser, 2011), consideramos qualitativamente importante reconhecer que, então, surgia um movimento novo no que tange ao modo de enfrentamento ao racismo no Brasil, pelo qual percebemos a agência de pessoas brancas de modo inédito no país, pois passam a não apenas desaprovar o racismo publicamente, mas a assumir suas responsabilidades pelas lutas antirracistas, deixando de atribuir o problema do racismo a outros brancos e brancas ou a outro lugar. Seriam estes sujeitos parte de uma branquitude crítica que, de acordo com Lourenço Cardoso, são “aqueles que desaprovam o racismo publicamente” (Cardoso, 2010). Tradicionalmente, no Brasil, a grande maioria sempre reconheceu que o preconceito racial existia, mas ninguém reconhecia ser racista, então o problema nunca era admitido em si mesmo, e sim nos outros. Pesquisas realizadas desde a década de 1980 e até o começo dos anos 2000 no Brasil mostram que entre 89% e 98% das pessoas reconheciam que existia racismo no país, mas, nas mesmas proporções, afirmavam eles próprios não serem racistas, “outros” é que seriam (Schwarcz, 2012, p. 30-31).
O momento em que o movimento que analisamos aqui emerge, nos anos de 2020 e 2021, com grande intensidade da pandemia de covid-19, e durante o governo de extrema direita de Jair Bolsonaro (2019-2022), era, por um lado, de muito pessimismo para os setores progressistas no país. Por outro lado, se a pandemia restringia as possibilidades de manifestações públicas nas ruas, possibilitava a criação de conexões online inéditas sobre essas questões, com frequentes reuniões utilizando plataformas como Google Meet e Zoom, repletas de brasileiros e brasileiras de distintas regiões do país e também fora dele.
Em uma primeira parte da pesquisa da qual este artigo é resultante, visamos detectar que compreensões estas pessoas expressavam sobre si como brancas, os fatores que as incentivaram a se envolver de forma mais incisiva no enfrentamento ao racismo e como enxergavam seus lugares nessa causa (Mattos; Barros, 2021). Ao voltarmos ao campo em 2024 para a escrita do artigo atual, buscamos perceber se o movimento havia tido continuidade no Instagram, e analisar quais os seus legados em termos de letramento racial das pessoas brancas que dele participaram.
Nota sobre nossas posicionalidades
Julgamos fundamental a identificação de nossas posições na qualidade de autores, em termos de raça, classe, gênero, sexualidade e geração. Considerando que partimos de um lugar particular que, por sua vez, não é neutro, da mesma forma que Kilomba (2019), tecemos crítica ao suposto neutralismo e rigor de autores brancos e brancas que reduzem o outro a objetos de pesquisa. Neste trabalho, assumimo-nos tanto como sujeitos quanto objetos à procura da apreensão de nós mesmos em processos de racialização, na medida em que da mesma maneira somos engajados no ativismo antirracista, e nosso aprendizado tem se dado em simultaneidade com estes interlocutores em redes de pesquisa e ativismo.
1) Sou mulher cis, hetero, branca, na faixa etária de 50 anos, classe média alta. Moro em Fortaleza, onde sou professora de sociologia na Universidade Federal do Ceará (UFC). Meu processo de racialização como mulher branca está descrito em outro artigo e faz parte do contexto de minha atuação como pesquisadora de movimentos antirracistas a partir de 2015 (Mattos; Accioly, 2023). Em 2020, bem como os interlocutores desta pesquisa, igualmente passei a ter uma conta no Instagram com a finalidade de promover conversas sobre racismo e branquitude. O intuito inicial desse perfil era, principalmente, veicular, no decorrer da pandemia, uma série de lives criada em conjunto com outras três mulheres brancas e uma negra — influenciadoras digitais com dezenas de milhares de seguidores cada uma. Conheci uma dessas mulheres em uma roda de conversa sobre branquitude em perspectiva autocritica — a primeira que participei, ainda em maio de 2020. Foi a partir daí que me inseri no movimento que analisamos aqui.
2) Sou um homem cisgênero, bissexual e branco de 29 anos, mestrando em sociologia e membro do Núcleo de Estudos em Raça e Interseccionalidades (NERI), que tem entre suas iniciadoras a professora Geísa Mattos. Venho de família interracial, cujas referências de raça e identidade são confundidas pelo fator mestiçagem. Com ausência de debate racial em minha formação escolar, meu raciocínio sobre raça foi construído de forma confusa. Ao aprender bastante com movimentos antirracistas e a vivência universitária, aprofundei-me no debate racial e observei minha própria experiência. Além da participação em movimentos sociais e diálogos com ativistas negros, desenvolvi, sob orientação da professora Geísa, uma série de pesquisas sobre o racismo, antirracismo e os estudos críticos da branquitude. Destaco cursos ofertados, na Universidade Federal do Ceará, pela referida professora sobre racismo e branquitude como centrais no avanço de reflexões pessoais acerca de minha identidade racial e suas implicações dentro de uma sociedade estruturalmente marcada pelo racismo, como a brasileira.
Contexto da introdução do debate no Brasil: pressões e resistências
Branquitude entra como uma espécie de luz no debate antirracista das redes sociais digitais pela janela do mundo acadêmico, mas é pela porta do ativismo político de intelectuais negros e negras, pós-ações afirmativas no Brasil, que se expande. Enquanto conceito analítico ela se caracteriza por voltar a atenção aos grupos de indivíduos beneficiados pela estrutura racista e que contribuem, de modo consciente ou não, para seu reforço e manutenção. Embora Du Bois (1920) seja o primeiro nos Estados Unidos a centrar suas análises sobre racismo na crítica da supremacia branca, e, no Brasil, Guerreiro Ramos (1995) seja considerado o pioneiro, é somente na década de 1990 que o debate ganha um pouco mais de espaço em alguns círculos acadêmicos de universidades norte-americanas (Roediger, 2007; Morrison, 1992; Frankenberg, 1993). Inspirados nessa literatura, pesquisadores brasileiros também desenvolvem análises pioneiras no Brasil já no início do século XXI (Schucman, 2012; Cardoso, 2010; Sovik, 2009; Piza, 2016; Bento; Carone, 2016), mas, ainda assim, restritas a um menor número de institutos de pesquisa e universidades.
No contexto de formação de negros e negras que ingressam nas universidades públicas do país com a chamada lei de cotas, Lei 12.711/2012 (Brasil, 2012), debates mais amplos sobre raça começam a acontecer promovendo conexões entre leituras acadêmicas na universidade e o ativismo digital. Em 2020, branquitude passa a ser gradativamente considerada uma “categoria nativa” (Guimarães, 2003) ou êmica, pelo menos em círculos progressistas, ou seja, entrava para a nova linguagem política usada pelos ativistas dos movimentos negros, no dia a dia e em cenários problemáticos para identificar de maneira crítica os privilégios de pessoas brancas na estrutura social racista. O conceito analítico de branquitude mais difundido nos primórdios deste debate no século atual é o de Ruth Frankenberg, que define a branquitude como “localização de vantagem estrutural e de privilégio racial, um ponto de vista a partir do qual pessoas brancas olham a si próprias, aos outros e à sociedade” (Frankenbeg, 1993, p. 1).
Uma das atribuições é a própria ideia de raça, que para pessoas brancas seria “neutra”. Nomear branquitude nesse sentido significa racializá-la, desmascarar sua pretensa neutralidade.
Frankenberg, como autora que pesquisa sobretudo mulheres brancas, torna-se referência importante, uma vez que uma das portas pelas quais esse debate acadêmico chega primeiramente ao Brasil é por intermédio dos movimentos feministas, nos quais as perspectivas supostamente universais sobre ser mulher se baseiam em problemas e perspectivas tipicamente de mulheres brancas, e estas começam a ser cada vez mais desafiadas pelas feministas negras (Marcinik, 2018).
Também nos partidos políticos ditos progressistas e nos sindicatos, a centralidade da questão racial — sempre apontada pelo movimento negro historicamente no Brasil (Domingues, 2007) — começa finalmente a ganhar mais espaço de discussão e tensionamentos à medida que se avolumam os debates sobre cotas raciais para ingresso nas universidades, em concursos públicos e para as próprias candidaturas aos poderes legislativos.
Soma-se ao debate, o crescimento dos dados que apontam enormes diferenças em termos de renda e escolaridade entre trabalhadores negros e brancos. O rendimento médio de brancos supera em mais do que o dobro o de negros, e embora os pretos e pardos componham 53,8% dos trabalhadores no país, apenas 29,5% estavam em cargos de gerência em 2021 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2022). Fazer parte da branquitude é evidentemente um privilégio, mesmo dentro das classes populares.
Branquitude vai se convertendo, no debate público das redes sociais digitais, em categoria acusatória, produtora de muitos incômodos como o de que estaria dividindo a classe trabalhadora e que seria uma categoria identitária, termo que tem forte conotação pejorativa entre os que se opõem ao debate em que brancos e brancas são colocados na berlinda. No entanto, ativistas negros e negras, cada vez mais articulados tanto intelectualmente quanto em nível dos debates transnacionais, vão fazendo cada vez mais pressões dirigidas diretamente às pessoas brancas progressistas, indicando de modo concreto e veemente as formas como elas, mesmo as ditas progressistas, são cúmplices do racismo, e assim trabalham pelo reforço e manutenção, na estrutura social, de suas posições de poder.
Expandindo o debate crítico sobre branquitude no Instagram
Entre 2020 e 2021, acompanhamos os conteúdos publicados em sete perfis no Instagram, criados para discutir (auto)criticamente a branquitude. Todos estavam em atividade e eram geridos por pessoas brancas que, em suas jornadas de autopercepção racial, propuseram-se não apenas a compreender seus próprios processos de racialização, mas assumir também responsabilidades nas lutas contra o racismo.
A fim de entender essa procura de pessoas brancas por consciência racial, a antropóloga France Winddance Twine (2004, 2006) conceituou o racial literacy que, traduzido por Lia Vainer Schucman (2012), chamamos de letramento racial. Este, por sua vez, compreende a percepção dos privilégios da branquitude, da estrutura da sociedade atravessada pelo racismo e como isso repercute sobre as pessoas. Twine propõe como fundamental para a desconstrução do racismo, e transformação das identidades brancas, a autopercepção desses sujeitos como racializados. Twine apresenta o letramento racial como prática diária: “uma postura analítica que facilita a autoeducação contínua e permite que os membros de famílias inter-raciais traduzam códigos raciais, decifrem estruturas raciais e administrem o clima racial em suas comunidades locais e nacionais” (Twine, 2006, p. 344, tradução nossa).
Ainda que a passagem supracitada se refira a famílias interraciais, Twine observa que letramento racial não é resultado direto de envolvimento em relações interraciais, mas um aspecto que se desenvolve:
Letramento racial é um conjunto de práticas. Pode ser melhor caracterizada como uma “prática de leitura” — uma maneira de perceber e responder ao clima racial e às estruturas raciais que os indivíduos encontram [...] e incluem o seguinte: 1) um reconhecimento do valor simbólico e material da branquitude; 2) a definição do racismo como um problema social atual em vez de um legado histórico; 3) uma compreensão de que as identidades raciais são aprendidas e um resultado de práticas sociais; 4) a posse de gramática racial e um vocabulário que facilita uma discussão sobre raça, racismo e antirracismo; 5) a capacidade de traduzir — interpretar — códigos raciais e práticas racializadas; e 6) uma análise das maneiras pelas quais o racismo é mediado por desigualdades de classe, hierarquias de gênero e heteronormatividade. (Twine, 2006, p. 344, tradução nossa)
Destacamos, entre os pontos assinalados por Twine (2006), o fato de que as pessoas brancas que encontramos em atuação antirracista no Instagram reconhecem o valor simbólico e material de sua branquitude; caracterizam o racismo como questão contemporânea e não restrita ao histórico, tem vocabulário e gramática racial facilitando o debate racial. Analisando os conteúdos veiculados nestes perfis, todos se empenham a divulgar essa gramática racial, com o propósito de fornecer recursos para compreender e desenvolver tais debates e transmitir alternativas de conteúdos sobre o assunto.
Rayssa Kirinus, autora do @minhabranquitude no Instagram e jornalista, implica-se pessoalmente em suas publicações, vídeos e lives, admitindo os desafios que isso acarreta:
Percebi que ia precisar me expor, relutando muito com a ideia [...] porque pra mim é muito fácil cair nesse lugar de querer ser a estrela. Sempre tento trazer pro “eu também estou aprendendo”. Pra que daí as pessoas se sintam mais à vontade pra assumir isso também, porque senão paralisa, eu não quero ver pessoas brancas paralisadas, quero ver pessoas brancas que se movimentam (Rayssa Micalosky Kirinus, entrevistada para esta pesquisa em 02 de março de 2021)
Rayssa demonstra um esforço para deixar de ser o centro da narrativa ou estrela, que é parte do nosso habitus incorporado de pessoas brancas, acostumadas que estamos ao conforto da fala. Há um paradoxo implícito aí entre a necessidade de agência e o reconhecimento de que pessoas brancas sempre ocuparam um lugar central no mundo e que agora precisam conscientemente abrir mão dele. Também admite que está (estamos) em processo de tomar consciência do mundo racista em que vivemos e do qual nos beneficiamos. Admite que seu principal intuito é mobilizar outras pessoas brancas a se reconhecerem como parte do problema do racismo, e a fazerem algo a respeito. Mas o protagonismo envolve riscos, como, por exemplo, de ser acusada de ser branca salvadora, categoria nativa com a qual ativistas negros e negras acusam os brancos e as brancas recém-chegados nas lutas antirracistas de superestimarem os seus poderes de agência.
Uma das educadoras/ativistas negras com a qual Rayssa fez um curso sobre branquitude, que a inspirou a criar seu perfil no Instagram, foi Tatiana Nascimento. No entanto, ela tinha receio de como sua iniciativa seria vista pela mentora: “Sabendo também que eu não ia esperar muito do tipo "ah parabéns", não era isso que estava esperando, é um diálogo que eu tenho muito cuidado [...]”. O risco percebido aqui era por ter em mente algo aprendido nos cursos de letramento racial: são as pessoas negras as protagonistas das lutas antirracistas. E, assim, como branca, precisava pisar com cuidado num terreno escorregadio, experimentando como poderia contribuir sem querer estar no centro do palco.
Já as reações das pessoas brancas à iniciativa de Rayssa variavam conforme estas fossem mais próximas a ela em seu círculo de amizades – as quais, em geral, compreendiam-na melhor quando ela trazia questionamentos – e aquelas que reagiam contra, utilizando o discurso de que somos todos iguais. Rayssa também se utilizou da estratégia de responder a comentários racistas postados em outras páginas, de modo a provocar reflexões, embora buscando fazê-lo também de maneira cuidadosa, procurando chamar para o diálogo, mais do que enfrentamentos.
Para os criadores de outros perfis, os incômodos causados pelas suas iniciativas entre pessoas brancas são descritos como inevitáveis. Rodrigo Morais aponta que pautar a branquitude entre brancos, inevitavelmente irá gerar incômodos, mas é ao compreender a importância da disseminação desse assunto que ele se propõe a fazê-lo, mesmo que vá incomodar. “A gente foi dar a cara a tapa mesmo, a gente queria mesmo que tivesse aquele incômodo’, que quem estivesse assistindo ali e fosse branco ficasse incomodado, para o bem ou para o mal, mas que incomodasse” (entrevista para esta pesquisa realizada em 11 de março de 2021). Rodrigo também menciona as dificuldades de abordar o assunto e as tensões que geram entre os brancos, e relata até rompimento de relações de longa data com amigo branco. Mariana Cabeça relata experiência difícil com os brancos na Universidade, um esforço de “tirar o corpo fora” da conversa e evitar tocar no assunto (entrevista para esta pesquisa realizada em 11 de março de 2021).
Bancar o risco de serem criticados tanto pelas pessoas negras quanto pelas brancas e ainda assim agir, e seguirem dispostos ao aprendizado, é ir contra a paralisia que tradicionalmente marcou o comportamento da branquitude no Brasil. Dessa forma, Rayssa detalha as suas buscas para construir redes de ativismo em coletivos que a ajudassem a seguir ativa no debate e enfrentamento ao racismo:
Acho que eu vi a Izabel [Accioly, influenciadora digital que no Instagram é @afroantropologa] compartilhando e fui seguir, fui escrever “oi, sou Rayssa, conta comigo, tamo ai”. Pra me inserir no contexto eu fui pegando as indicações que uma pessoa marcava ou outra pessoa marcava. E entre as pessoas brancas, é meio que isso, eu estou tentando estar atenta ao que rola e vou me apresentando, e quero muito construir no coletivo. (Rayssa Micalosky Kirinus, entrevistada para essa pesquisa em 02 de março de 2021)
Enfatiza-se a busca pela construção coletiva em Rayssa, a conversa com quem vive inquietações parecidas, o estabelecimento de redes colaborativas de aprendizado. Tais redes possuem influência locais e globais ao mesmo tempo, sendo atravessadas pelo grande alcance das discussões acerca da morte violenta de George Floyd nos EUA e situações de grande alcance no Brasil. Partilham histórias de grande fluxo na internet, como o Blackout Tuesday, e discussões críticas em torno dessa campanha que é identificada como marco nessa virada de chave, pela qual jovens pessoas brancas como ela passam a se autorresponsabilizar pelo racismo. Manifestam conexões em identidades raciais e de gênero, e examinam outras discriminações como interligadas.
O autor do perfil @mentirinhabranca, Rodrigo Morais, insere-se no debate antirracista em razão de sua participação em grupos de “paternidades ativas” (Moura, 2022), em que pais têm procurado romper com padrões estabelecidos de paternidade de homens brancos, como Rodrigo, e têm desenvolvido, nesse percurso, conhecimento sobre desigualdades em relação à raça, gênero e sexualidade:
A gente queria uma coisa que tivesse algum significado, elegemos temas mais politizados, fizemos uma mesa sobre paternidade preta, tinha só pais negros conversando sobre a experiência deles que é diferenciada, fizemos uma de branquitude, tentamos colocar uma variedade grande de pessoas, dentro do possível, de pais que a gente foi encontrando pra fazer as discussões. (Rodrigo Morais, entrevistado para esta pesquisa, em 11 de março de 2021).
Na era digital, como aponta Castells, os movimentos são voluntários e encorajados por “centelhas de indignação” (2017, p. 194). No entanto, esta branquitude traz, em seus movimentos, um aspecto de maior complexidade que movimentos nos quais o enfrentamento é contra um outro. Nessa circunstância, o próprio grupo racial branco tem em suas ideologias e padrões, incorporadas pelos sujeitos, o alvo da indignação, resultando em maior complicação, uma vez que gera reflexões e conflitos internos.
Em conversas informais, boa parte de nossos interlocutores afirmaram, durante este processo, buscar acompanhamento terapêutico e instrução, solo ou em grupo, para lidar com o racismo incorporado. Foi o caso de Mariana Cabeça, psicóloga e cocriadora de duas importantes iniciativas no Instagram: o Núcleo de Estudos da Branquitude (NEB) e do Jornalzine Branquitudes. Ao refletir sobre como vivenciou raça em sua vida, ela reconhece moralidades sufocantes como núcleos centrais da branquitude. Aborda a necessidade de questionar e se distanciar para romper com o seu racismo incorporado, contando também com terapia.
Eu via quem era colocado em holofote, quem era colocado à margem. E eu tentava seguir o holofote porque eu sempre fui comunicativa [...] e estava muito interessada em sempre seguir isso. Sempre seguir coisas que eram bem vistas, seguir formas de viver que eram bem vistas por essa comunidade. Tem suas éticas e seus valores específicos, essa ética e valor da racionalidade acima do sentimento, de buscar ser sempre mais, de alguma forma não estar no presente, acho que não estar no presente é algo que resume bem, esse adoecimento. [...] Como é sufocante a ética e a moral branca (Mariana Cabeça, entrevistada para esta pesquisa, em 23 de março de 2021)
Letramento racial da branquitude para a branquitude?
Ao analisarmos os conteúdos dos perfis do que identificamos como branquitude (auto)crítica, notamos a recorrência de questões do tipo “sou branco, e agora?” ou “todo branco é racista?”, “eu, branco, posso falar de racismo?”. Porém, eles não falam a partir de si próprios; suas fontes de inspiração, sobretudo, vêm de mulheres negras, intelectuais e feministas, que compõem a maior parte das referências que são ofertadas por esses perfis para a compreensão e aprofundamento do debate sobre branquitude. Nomes recorrentemente citados são Djamila Ribeiro, Lélia Gonzales, Sueli Carneiro e Aparecida Bento, além de autoras estrangeiras, como Angela Davis, Audrey Lorde e bell hooks. Indicações de leituras, vídeos, filmes e podcasts de autoria negra também estão presentes, bem como ilustrações e artigos didáticos sobre conceitos centrais para esse debate, tais como branquitude como uma categoria analítica.
Além disso, ativistas e intelectuais negras, como Izabel Accioly, Tatiana Nascimento e Bruna Santiago, que, nos anos de 2020 e 2021, ministraram formações sobre branquitude, de modo remoto, tornam-se, nesse período, bastante influentes. Os cursos delas inspiraram a produção de conteúdo em perfis antirracistas no Instagram, por parte de pessoas brancas. Rodrigo Morais foi um dos alunos de Izabel Accioly (@afroantropologa). Ela possui mestrado em antropologia social (UFSCAR), e nos informou que entre 2020 e 2021, no curso Branquitude e relações raciais no Brasil, teve número superior a mil alunos em trinta turmas. Ainda que seja fortemente crítica da branquitude em suas publicações, o perfil @afroantropologa cresceu de 15,9 mil seguidores, em 2021, para 61,6 mil em 2024. Ainda mais rigorosa e pessimista com a branquitude, Tatiana Nascimento (@tatiananascivento), artista e escritora negra de literatura antirracista e autora do perfil Branquitude e seus silêncios (@branquietude), também cresceu em influência no período analisado, passando de 31 mil seguidores, em 2021 para 41,6 mil em 2024.
Quando o assunto são os perfis antirracistas para discutir branquitude criados por pessoas brancas, de forma geral, a quantidade de seguidores não ultrapassa, em 2021, o número de 2 mil, alguns com número de seguidores inferior a mil. As instigações de gente branca sobre a branquitude compõem, majoritariamente, as publicações desses perfis, abrangendo desde as responsabilidades em relação ao racismo até dúvidas comuns que surgem no percurso de se pensar racializado.
No perfil @alobranquitude, somos recepcionados com uma bio que diz "desmistificar a subjetividade branca". Samara Simas, a autora, critica o racismo observando momentos do dia a dia ou filmes e seriados. O perfil não identifica a autora nem compartilha sua imagem, e em 2021, contava com 1465 seguidores. Majoritariamente, eram textos e ilustrações, acompanhados de um debate provocativo sobre branquitude, que compunham as publicações. Em uma dessas, o perfil pergunta: “o que é decoração para a branquitude?”. Samara traz essa reflexão por meio de uma experiência pessoal, assistindo a uma famosa série de televisão, na qual aparece rapidamente, no cenário, um homem africano animalizado em formato de máscara ornamental: “não é normal que se tenha diversos quadros, ditos ‘decoração’, que romantizam a escravização de povos indígenas e africanos”. Um detalhe facilmente ignorado pela branquitude gerou uma reflexão na autora que a expôs pedagogicamente: “olhe para as decorações [...] de literalmente todos os lugares, se você viu algo de cunho racista, reporte isso a quem é responsável pelo lugar, use seu privilégio, é importante”. Quando voltamos a analisar esse perfil em 2024, constatamos que o número de seguidores foi reduzido a 1249, provavelmente em razão do perfil ter sua última publicação datada de novembro de 2020 e já não estar mais em atividade, nem mesmo em stories ou interações via comentários.
Criado em 2020, o @minhabranquitude, contava com, em 2021, 911 seguidores. Rayssa Kirinus produziu e transmitiu ao vivo entrevistas com negros e brancos, ativistas antirracistas. A morte violenta de João Alberto Freitas pelo segurança da rede de Hipermercados Carrefour, nas vésperas do dia da consciência negra, causou grande comoção e o perfil produziu uma semana inteira de transmissões ao vivo para discutir o assunto. Nelas, Rayssa foi acompanhada por contatos que estabeleceu, formando uma rede de ativismos de branquitude (auto)crítica: advogados de direitos humanos, psicólogos e jornalistas e outros produtores de conteúdo. As supracitadas Samara Simas e Mariana Cabeça participaram dessas lives, nomeadas de forma provocativa como A responsabilidade de pessoas brancas no extermínio de vidas negras. Em 2 de junho de 2021, um ano após as telas pretas no Instagram, Rayssa recebeu Izabel Accioly em live que questionava: “quais os efeitos práticos do ‘apagão virtual’ na luta antirracista?’
Rayssa segue ativamente nesse perfil, tendo crescimento no número de seguidores para 1090. A pouca repercussão do perfil pode ocorrer em razão dos intervalos de meses entre as publicações, mas vale destacar a atuação contínua da jornalista em seu desempenho antirracista, que não se reduz ao Instagram, fazendo formações e conduzindo encontros online (Google Meet) e presenciais em São Paulo, em parceria com Mariana Cabeça, o que impulsiona trocas teóricas e práticas sobre antirracismo e branquitude.
Com apenas 436 seguidores em 2021, o @jornalzine se propunha a ser “um jornal periódico para apontar nossas branquitudes” e um espaço para fazer isso de forma coletiva. Consiste num coletivo com desempenho fortemente marcado pela articulação da rede, principalmente no desenvolvimento de rodas de conversa. Em 2020, o grupo organizou sua segunda roda de conversa e contou com @minhabranquitude e @nebbranquitudes. Motivavam o debate com a provocação: “como decodificar nossos racismos?”, e se apresentavam no título de uma “roda de conversa para nos mobilizar”. A expressão do Jornalzine melhor se consolidou quando ele se expandiu e, em 2021, tornou-se também um blog, como um espaço de compartilhamento, vivências e enfrentamentos aos racismos. Em abril de 2024, a página mudou de nome para @sobrebranquitude, e apresentava crescimento para 967 seguidores, também disponível no Linkedin.
Uma das principais articuladoras do Jornalzine, Mariana Cabeça, continuava bastante ativa nos movimentos antirracistas, tendo criado também o blog Branquitudes, (https://branquitudes.org/) com uma equipe de colaboradores que atuam produzindo colunas para o website, bastante provocativas para as pessoas brancas repensarem suas práticas cotidianas. Por meio do perfil atual no Instagram, vem promovendo a série de seminários Diálogos sobre branquitude, em parceria com Rayssa e com outras pesquisadoras do assunto. Como parte desse projeto, Mariana ministrou o curso Introdução aos estudos críticos sobre branquitude, com Amanda Coelho. A abordagem crítica da branquitude na clínica psicanalítica também se tornou tema de sua dissertação de mestrado na Universidade de São Paulo, onde está como mestranda em psicologia em 2024.
A definição de que “a virada de chave neste assunto está em falar de branquitude a partir das nossas próprias histórias” marcava a página inicial do Jornalzine. Criado em 2020, por Mariana Cabeça, com a finalidade de encontrar semelhantes e trabalhar angústias sobre desigualdade racial que, segundo ela, iniciaram de um jeito solitário, na graduação em psicologia na Universidade de São Paulo, com dúvidas e perguntas que lhe vinham à cabeça. Em seu último ano de graduação, 2019, relata que suas inquietações não ecoavam nos demais estudantes e professores brancos e brancas.
Desde 2018 trabalho na clínica pública [...] a gente tem que atender a população [...] E começar a perceber essas discrepâncias de quem acessava o sistema público, quem acessava o sistema privado, quais eram as demandas das pessoas brancas, que eram a maioria que acessavam a faculdade, quais eram as demandas das pessoas negras. O debate racial inexistente entre pessoas brancas que ainda eram a maioria da faculdade, (Mariana Cabeça, entrevistada para esta pesquisa, em 23 de março de 2021)
Mariana participou da criação do Núcleo de Estudos sobre Branquitudes, (@nebbranquitudes) que, em 2021, tinha 1153 seguidores. Esse perfil é fruto de um movimento de diversos estudantes de graduação e pós-graduação no campo das humanidades, de diversas universidades, majoritariamente de São Paulo; no entanto, também contava com pessoas não acadêmicas. Apresentava-se como um coletivo de pessoas brancas com as quais o “horizonte ético-político é a luta contra as opressões”. Não se utilizava da linguagem acadêmica formal, o que era parte do projeto de expandir esse debate para públicos mais amplos e de produzir novas epistemologias que questionem a hegemonia branca ocidental nos espaços acadêmicos institucionalizados. Promoviam também rodas de conversa sobre branquitude que agregavam, desta rede, diversos setores e pessoas. Ao voltarmos a analisar esse perfil em 2024, notamos uma falta de atividade no perfil, que se encontra sem conteúdo novo desde 2021. Mesmo tendo parado de veicular novos conteúdos, ainda tem 1055 seguidores. Os seus principais articuladores, como a própria Mariana, continuavam ativos desenvolvendo diversos tipos de projetos de pesquisa e intervenção sobre o tema.
O perfil @mentirinha.branca, administrado por Rodrigo Morais, o único homem dos perfis analisados, apresenta 757 seguidores em 2024 e continua ativo. Citações de ativistas negros e intelectuais que abordam a branquitude compõem as publicações do perfil, junto com pequenos vídeos de intelectuais antirracistas. Carla Akotirene, doutora em estudos feministas e professora da Universidade Federal da Bahia, é mencionada criticando a “Corte, tradicionalmente masculina e branca”, para quem é “muito difícil compreender a identidade interseccional e criminalizar o racismo e o sexismo”. Para Rodrigo, atuar de modo antirracista sendo branco, “é sobre uma prática de se pôr no lugar do outro”, e fazer isso desconstruindo o próprio lugar hegemônico como homem, heterossexual, cisgênero e branco, ainda que procure não se expor de forma direta. A página não exibe seu rosto ou foto: “É algo que não quero o foco em mim, quero que seja centrado no assunto”, disse a esta pesquisa em março de 2021.
O núcleo de branquitude crítica, @nubrac_UFMG, contava, em 2021, com 913 seguidores. Vinculado à Universidade Federal de Minas Gerais, desenvolvia, desde 2019, grupos de estudos a respeito do tema. Cida Bento, Lia Schucman e Toni Morrison estavam entre as indicações de autores. As publicações giravam em torno de dicas “para uma branquitude antirracista”, em que abordavam ações a serem incentivadas e a serem evitadas. O conteúdo é creditado de forma coletiva como Nubrac. O perfil continua ativo, tendo publicado pela última vez em novembro de 2023. Em 2024, ampliou seu número de seguidores para 1590.
O @branquitude.empauta, em 2021, contava com 1106 seguidores. Beatriz Almeida, autora, trazia a proposta de um lugar “de letramento racial feito por uma branca para repensar privilégios e responsabilidades”. Ainda que siga disponível no Instagram, o perfil está, desde 2021, sem atualizações, mesmo que apresente 1219 seguidores em 2024. Conceitos como necropolítica e provocações de autoras negras eram divulgados no perfil. Beatriz publicou citação de Tatiana Nascimento, em que alguns desafios que se apresentam a pessoas brancas ao ingressar nas lutas antirracistas podem ser observados. Tatiana aponta como delírio branco a ideia de que ser antirracista te desloca desse lugar de branco ou te aproxima do lugar de negro, chegando a usar termos como oportunismo ou cinismo racista. Isso demonstra como, por mais bem intencionado que seja, uma pessoa branca ainda encontrará ativistas que não creem no engajamento de pessoas brancas na pauta racial.
Limites da atuação da branquitude (auto)crítica no Instagram
Voltando ao campo em 2024 para verificar a atuação dos perfis criados em 2020, percebemos pouca alteração no pequeno alcance dos perfis administrados por pessoas brancas no Instagram. Para além de alguns deles já não possuírem atividade, aqueles ainda ativos em 2024 têm pouca regularidade de publicação, havendo espaços como semanas ou meses entre as publicações. Isso definitivamente impacta a consolidação das atividades em um contexto no qual “o rápido processo de automação e robotização faz parte, [...] de um cenário mais amplo de mudanças sociais significativas” (Paraná, 2020, p. 23) e o algoritmo das redes sociais recomenda perfis com maior atividade em detrimento daqueles com pouca atuação.
Tal declínio pode especialmente ser percebido quando comparamos com os perfis de ativistas e intelectuais negras, que possuem, além da maior regularidade — com publicações com apenas dias de distância uma da outra —, um maior crescimento de seus alcances. Por exemplo, Izabel Accioly cresceu de 15 mil para 60 mil seguidores nesse mesmo espaço de tempo, enquanto perfis criados por pessoas brancas, nesta rede de branquitude (auto)crítica, tiveram apenas algumas dezenas de crescimento ou ficaram praticamente estagnados.
A falta ou diminuição de atividade de perfis criados por pessoas brancas, quando comparamos as atividades deles no Instagram entre anos de 2021 e 2024, também evidencia que são, de fato, as pessoas negras as que realmente mantêm constância e compromisso com as lutas antirracistas. Foram poucos os perfis que se mantiveram ativos, coincidentemente os de nossos interlocutores nesta pesquisa, que permaneceram não só com posts de divulgação antirracista no Instagram, mas com outras atividades, como promoção de cursos e eventos para o letramento racial de pessoas brancas. Todavia, como nossa pesquisa se restringiu às atividades no Instagram, é possível que os criadores desses perfis continuem ativos em movimentos antirracistas de outros modos, como foi o caso de Mariana Cabeça e Rayssa Kirinus, citadas aqui, das quais acompanhamos mais de perto suas atuações consistentes ao longo destes anos, mesmo que não estejam mais tão ativas em seus perfis no Instagram.
O processo de comprometimento intenso de pessoas brancas no antirracismo nos confronta com dificuldades, e fazemos uso do pronome nós para ressaltar que igualmente estamos lidando com elas. De um lado, a desconfiança de ativistas negros, tal qual Tatiana (citada acima), que desacreditam do potencial de existirem pessoas brancas efetivamente compromissadas com as práticas antirracistas. Quando observamos que o engajamento público pode ser apenas pontual como no caso das telas pretas em resposta à morte de George Floyd, essa desconfiança acaba se confirmando. Por outro lado, observamos em diversos círculos, mesmo os acadêmicos, a resistência da branquitude — ainda que do campo progressista — quanto a esse debate. Muitos se recusam em se pensar como sujeitos brancos no contexto brasileiro, e como beneficiados por privilégios, tendo responsabilidades que não se reduzem a se afirmar não racistas.
A despeito do relativo desengajamento que observamos nos perfis no Instagram em atuação em 2021, é fundamental refletirmos aqui sobre os efeitos que a atuação (auto)crítica da branquitude teve e continua a ter nos nossos interlocutores que se mantiveram engajados após esses anos. Exploraremos esses aprendizados como base na análise das entrevistas feitas com nossos interlocutores na última sessão deste artigo.
Considerações finais
A partir dos depoimentos e de nossas observações nas rodas de conversa da rede de que participamos, chegamos a algumas conclusões que nos permitem analisar o aprendizado adquirido nas redes de ativismo da branquitude (auto)crítica para além dos números que indicam, de fato, um declínio de suas atividades como perfis públicos antirracistas no Instagram. Mesmo que haja descontinuidades e desengajamentos, percebemos a formação de uma nova geração de pessoas brancas conscientes da desigualdade racial e eticamente comprometida com sua transformação no Brasil, ainda que sejam minoria neste momento, e que isso coexista com o avanço do racismo e da extrema direita.
Para essas pessoas, há uma ênfase no aprendizado contínuo por meio de redes e coletivos, que leve à ação política concreta e a uma produção teórica que não abstraia a raça como central às vivências autorais. Elas reconhecem que o que de fato as tocou para a conscientização sobre o racismo foi a experiência concreta, traduzida em uma linguagem menos conceitual e teórica e mais afetiva, ética e existencial. Notamos que um efeito central desses aprendizados é que a branquitude é percebida enquanto uma categoria totalizante, que ao ser acessada de modo (auto)crítico obriga os sujeitos a repensarem suas práticas pessoais, acadêmicas e a compreendê-las como politicamente atravessadas por nossos pertencimentos raciais.
Um aspecto em comum em todos os depoimentos é a percepção de como somos impactados em todos os aspectos de nossas vidas ao experienciar processos de racialização. A relevância dada por esses interlocutores e interlocutoras à ideia de repensar suas histórias de vida reflete o desejo de um engajamento antirracista de forma autêntica e coerente em suas/nossas vidas, tal como nos é cobrado de ativistas negros. Em virtude da grande riqueza do que temos aprendido e experienciado com esta rede de branquitude (auto)crítica, partilhamos aqui reflexões, dos interlocutores, que nos encorajam a pensar no desenvolvimento de novos padrões no engajamento de brancos em movimentos antirracistas, antes de esboçarmos algumas conclusões.
Eu tenho um amigo que [...] fala uma coisa assim “a gente não muda o mundo pela gente, a gente muda o mundo através dos nossos filhos”, o que a gente passa pra eles é o que vai mudar o mundo lá na frente, eu tento fazer isso. Tentando criar um menino branco que não vai ser um menino branco típico, vai crescer com mais conhecimento, com mais vontade de ver as coisas melhores.(Rodrigo Morais, entrevistado para essa pesquisa, em 11 de março de 2021)
Já vivi muita vergonha em relação as minhas ações ou o que eu acabava percebendo que eu pensava ou que eu reproduzia em relação às minhas amigas não brancas. Eu acho que foram pessoas que dispararam isso sensivelmente muito forte em mim, porque eu via que o que elas estavam falando que viviam eram coisas que não estavam muito distantes do que eu reproduzia. (Mariana Cabeça, entrevistada para essa pesquisa, em 23 de março de 2021)
Eu fico pensando sempre, eu posso ficar três meses sem postar porque não interfere na minha vida, mas isso ao mesmo tempo que me incomoda é também o que está sempre ali martelando. Você quer que as coisas se transformem ou não quer? É meu lembrete constante. (Rayssa Micalosky Kirinus, entrevistada para essa pesquisa em 02 de março de 2021)
Enfim, este movimento da branquitude(auto) crítica, pós-2020, pode ser analisado como um modo coletivo, em rede, de letramento racial que tem reverberações muito mais profundas nos sujeitos que nele se engajaram. Mesmo que nem sempre esteja visível de modo público no Instagram, mostra ter sido bem mais do que telas pretas em protesto, embora ainda seja bem menos do que o movimento negro espera de nós pessoas brancas no Brasil.
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Recebido em: 28/06/2024.
Aceito em: 20/09/2024.
DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n33.70661.p27-48
* Professora de Sociologia do Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal do Ceará (UFC), Brasil. Doutora em Sociologia pela UFC, Brasil. E-mail: geisamattos@ufc.br.
** Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Brasil. E-mail: euvaldobarros@gmail.com.
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