BRANQUITUDES E RELAÇÕES RACIAIS NO BRASIL: apresentação do dossiê

WHITENESS AND RACIAL RELATIONS IN BRAZIL: presentation of the dossier

Anderson dos Santos Cordeiro *

Aristeu Portela Júnior **

Giovanni Boaes ***

 

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n33.72350.p14-26

 

 

Resumo

Este texto tem como foco os estudos das relações raciais a partir de um dos seus conceitos mais evidenciados nos últimos tempos: a(s) branquitude(s). Fundamentam-se, nesse sentido, os estudos que buscam abarcar os privilégios, as instituições, as relações sociais e as questões em torno do sujeito branco no Brasil de maneira crítica, teórica e empírica. Nesta apresentação, situamos brevemente algumas problemáticas em torno de sua história, de seus significados e (des)usos, assim como algumas questões que estão na base dos estudos sobre a temática. Por fim, segue-se uma apresentação dos trabalhos que compõem o dossiê.

Palavras-chave: branquitude; relações raciais; racismo; Brasil.

 

Abstract

This text centers on the study of racial relations through one of its most prominent concepts in recent times: whiteness. The studies that seek to encompass the privileges, institutions, social relations, and issues surrounding the white subject in Brazil are grounded in this sense, approaching them critically, theoretically, and empirically. In this presentation, we briefly outline some issues regarding its history, meanings, and (mis)uses, as well as some foundational questions in studies on the subject. Finally, we present the works that compose the dossier.

Keywords: whiteness; racial relations; racism; Brazil.

 

Este dossiê é fruto de algumas inquietações e questões que estão no centro do debate e que versam sobre os marcadores sociais da diferença. Trata-se de uma preocupação emergente tanto da academia quanto de movimentos sociais/políticos das três últimas décadas. O que é a branquitude? — ou branquitudes, considerando que não há um único significado para ela. Como podemos caracterizá-la? Como se manifesta no Brasil? Essas questões organizam algumas das problemáticas que — juntas a outras perspectivas, como a das novas identidades, postuladas sob o termo de identitarismo — estão se tornando centrais nos estudos raciais contemporâneos.

Dentro das dinâmicas das relações raciais, o conceito de branquitude pode ser definido como uma posição de superioridade moral, intelectual, estética e social de maneira que produz uma superioridade material e simbólica em relação aos indivíduos não brancos (Silva, 2017). Mas essa definição não livra o conceito de algumas disputas, geradas por causa de sua polissemia. Segundo Schucman e Conceição (2023), o seu significado não é homogêneo entre os pesquisadores da temática. Os autores citados listam algumas possibilidades interpretativas: (a) branquitude como identidade branca; (b) como fenômeno estrutural; (c) como fenômeno discursivo atrelado às relações de poder e hierarquia; (e) e como ideologia. Apesar de apresentarmos essa categorização de possibilidades como distintas, mas, dificilmente, encontrá-las-emos em suas purezas classificatórias. Por ser um conceito emergente, há ainda muita flexibilidade nos (des)usos que lhe são dados. Além disso, ele tem aderência a várias áreas do conhecimento e da militância, o que otimiza a sua transdisciplinaridade. A revisão de literatura sobre a temática tem nos mostrado uma boa produção nacional sobre a branquitude, na qual podemos observar a sua polissemia. As obras de Cida Bento (2022), Cardoso (2020), Conceição (2020), Schucman (2020) e, em certa medida, Schwarcz (2024), Schucman e Ibirapitanga (2023) e Theodoro (2022), são exemplos que demonstram tentativas importantes de lapidação do conceito por meio da reflexão teórica e de pesquisas empíricas.

Esses autores observam na branquitude não apenas uma característica configurativa da sociedade brasileira — uma sociedade marcada pelo racismo contra os indivíduos negros e indígenas —, mas, sobretudo, uma construção social, permeada por privilégios que são usufruídos exclusivamente por indivíduos brancos. Nesse sentido, branquitude é uma chave (ou passaporte) que garante aos signatários/as do “pacto narcísico da branquitude” (Bento, 2022) o acesso a bens materiais e simbólicos importantes. Como uma estrutura civilizatória, a branquitude se materializa nas formas de distinção entre brancos e não brancos, nas artes, na história, na política, na linguagem, na economia, em tudo que é considerado válido e, sobretudo, no que é considerado norma e padrão. Enfim, a branquitude nos remente a um mundo construído para os brancos, como bem percebeu Florestan Fernandes (1972). E nesse mundo, qual seria então o lugar reservado para os não brancos? Especialmente para os que foram tocados negativamente pela escravidão, pelo cristianismo, pelo nacionalismo, pelo patriarcalismo e vários outros tipos de “ismos”? A branquitude, lado a lado com essas outras instituições, está ligada diretamente à manutenção do racismo como fenômeno que sustenta hierarquias raciais.

Apesar de o conceito de branquitude apresentar-se como emergente na atualidade, as ideias que o fizeram emergir têm ancoragens no pensamento de autores como William Edward Burghardt Du Bois[1], nos Estados Unidos da América; e Guerreiro Ramos, no Brasil, ambos intelectuais negros que, sob distintas perspectivas, criticaram a forma como eram empreendidos os estudos raciais no Brasil e nos Estados Unidos. Du Bois nasceu nos Estados Unidos, na mesma época que Émile Durkheim e Max Weber. Primeiro homem negro a obter o título de PhD pela universidade de Harvard. Pioneiro na fundação de uma escola de sociologia científica, em uma universidade específica da comunidade negra na Georgia, a Universidade de Atlanta (Morris, 2018). Contudo suas obras permaneceram na obscuridade durante largo tempo da história da sociologia, mesmo tendo sido predecessor de algumas técnicas de pesquisa para análise social do racismo, da sociologia urbana, da religião e da constituição do mundo moderno, evidenciando questões ainda sensíveis, hoje, à estrutura branca. Ele mesmo foi exemplo de discriminação por aquilo que chamou “linha de cor” (Du Bois, 2021).

Não sendo diferente com Guerreiro Ramos, nascido na Bahia, formado em direito e ciências sociais pela antiga Universidade do Brasil, hoje, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Desde cedo teve contato com a militância política, participando ativamente do Teatro Experimental do Negro, junto com Abdias do Nascimento. Nesse período, Ramos fez um estudo sobre a Patologia social do “branco” brasileiro, publicado originalmente em 1957 (Ramos, 1995), demonstrando que o negro como objeto privilegiado destes estudos, como “negro-tema”, representava uma forma deficitária nos estudos dos sociólogos brasileiros. A exclusão dos indivíduos brancos dos “problemas brasileiros” sob análise, reafirmava a noção de que o verdadeiro problema vinha dos brancos, que eram incapazes de explicar as relações raciais — e suas consequências — de maneira ampla, de tal modo que não se percebiam como raça (Ramos, 1982).

O que ambos os autores supracitados têm em comum além da racialidade e intelectualidade? Eles foram relegados a um papel diminuto em comparação com outros autores brancos do mesmo período. Controversamente, hoje, há um resgate de suas obras evidenciando seus argumentos e proposições que outrora foram negados ou considerados políticos demais para os padrões da academia. Aliás, esta é uma questão pungente do tema como aspecto da agenda política dos movimentos sociais e das pautas antirracistas, dando visibilidade ao que antes naturalizava-se como normal e padrão. Agora, questiona-se até que ponto o apagamento de intelectuais negro/as e indígenas não reforçaria a lógica desigual de manter o predomínio dos brancos sob os não brancos dentro dos muros universitários, isso sendo sintomático das inúmeras pesquisas realizadas ao longo dos últimos anos em relação à problemática da branquitude, das relações e identidades raciais no Brasil.

Em um pequeno levantamento que realizamos, constatamos que, nos últimos dez anos (2014-2024), foram produzidos cerca de sete[2] dossiês, compondo mais de 70 trabalhos em relação à temática da branquitude e das relações raciais sob distintas concepções. O volume de textos e o conteúdo mostram não apenas uma característica do campo e do conceito, mas também refletem como estão empregando-o para inúmeras perspectivas, direcionadas para a articulação de temas que anteriormente não eram sequer cogitados.

O que queremos dizer é que nem sempre se tem atentado para o uso de forma mais rigorosa do conceito. Ele está em “alta”, tornou-se um chamariz para propósitos, ainda que bem intencionados, ligeiros; não todos, obviamente. Em “alta” temporada, o conceito tende a se fetichizar. Talvez, seja por isso que Schucman, de maneira assertiva, ressalta o campo de estudos da branquitude e sua definição como um “nó conceitual”, pois não se trata apenas de uma questão de cor, mas das posições e lugares sociais que os sujeitos ocupam racialmente (Schucman, 2020).

A procura por este dossiê, representada pela quantidade de artigos submetidos, demonstra o interesse vívido pelo tema. Vinte e dois trabalhos foram submetidos. Além da quantidade, o volume se sobressai pela variedade dos textos, provenientes das mais distintas áreas do conhecimento: comunicação social, administração, educação em saúde, linguística, direito, letras e sociologia. Por outro lado, na história da Caos, foi também o número que mais registrou rejeições ainda nas primeiras fases do processo editorial. Quatorze submissões foram rejeitadas: deixamos de fora aquelas que careciam de maior aprofundamento ou maturação dos argumentos e as que não eram inéditas. No geral, a experiência de organizar este dossiê, deu-nos uma ideia do que está sendo pensado sobre as relações raciais no Brasil, destacando-se os enfoques utilizados para analisar o fenômeno da branquitude.

Sigamos, então, para a apresentação dos artigos que compõem o dossiê. No conjunto, os trabalhos ilustram as múltiplas possibilidades de leitura e exploração da noção de branquitude, em diversas áreas disciplinares e com distintos recortes analíticos e metodológicos. Ora compreendida como identidade, ora como discurso ideológico ou como posicionamento institucional, a branquitude é apresentada nos textos a seguir, sobretudo na chave conceitual elaborada por Cida Bento (2022) em seu influente O pacto da branquitude — no que é posta em diálogo com autoras e autores já consolidadas/os e marcantes nesse campo de estudos no Brasil, em particular Lia Vainer Schucman e Lourenço Cardoso.

No artigo “Autocrítica da branquitude” no Instagram: limites e possibilidades de um movimento, Geísa Mattos e Euvaldo Barros discutem o que denominam de “autocrítica da branquitude”, através de perfis públicos antirracistas no Instagram criados por pessoas brancas para a discussão da branquitude e dos seus processos de racialização. A autora e o autor discutem dois momentos de acompanhamento desses perfis: em 2021, quando, em consequência de fortes pressões de ativistas negros e negras nas redes sociais, “algumas jovens pessoas brancas passaram a se interessar por cursos e leituras sobre letramento racial, rodas de conversas e debates em torno do assunto e, por fim, criaram perfis no Instagram exclusivamente para divulgar conteúdo antirracista"; e em 2024, para observar se tiveram continuidade ou foram fruto momentâneo das pressões maiores sofridas naquele momento. Observaram, nesse sentido, que alguns dos perfis já não estavam em atividade e, entre os que permaneciam ativos, apresentavam pouca regularidade de publicação. O que, segundo o artigo, “evidencia que são, de fato, as pessoas negras as que realmente mantêm constância e compromisso com as lutas antirracistas. Foram poucos os perfis que se mantiveram ativos, coincidentemente os de nossos interlocutores nesta pesquisa, que permaneceram não só com posts de divulgação antirracista no Instagram, mas com outras atividades, como promoção de cursos e eventos para o letramento racial de pessoas brancas”.

Ainda sobre o tema das redes sociais, no artigo Dar à luz: fotografia de parto e invisibilidade da mulher e da família negras no Instagram, Carolina Figueiredo construiu e analisou um mosaico de fotografias de parto postadas na rede social Instagram, observando a quase total ausência de pessoas e famílias negras em tais imagens. De acordo com a autora: “Quando tomamos a fotografia de parto como objeto de análise, fica evidente que este tópico é representado amplamente pelo viés da branquitude, isto é, da experiência de famílias brancas”. Em sua análise, os dados coletados na pesquisa são relacionados às assimetrias de classe e à violência obstétrica que atinge, sobretudo, as mulheres negras no Brasil.

Eliane da Silva e Júlia Batista Alves, em O avesso da pele: o pacto da branquitude e a censura como estratégia de silenciamento e manutenção do poder, analisam o caso da tentativa de censura ao livro O avesso da pele, de Jefferson Tenório, ocorrido em escolas do Paraná, Mato Grosso do Sul e Goiás. A análise recorre aos conceitos de pacto da branquitude e de racismo institucional para explorar como, nos argumentos que buscavam legitimar a censura, as autoridades escolares reforçavam a hierarquia racial e buscavam evitar reflexões sobre as estruturas racistas de poder na sociedade. “Censurar obras que abordam racismo e identidade racial revela um viés institucional que suprime discussões sobre questões raciais, refletindo o racismo institucional. As estruturas educacionais marginalizam narrativas não hegemônicas, contribuindo para a invisibilização das comunidades negras. Essa prática perpetua desigualdades ao moldar currículos escolares para reforçar uma única narrativa, excluindo vozes não hegemônicas”, refletem no artigo, que tece ainda reflexões sobre a importância da literatura na construção de uma educação antirracista.

A partir de uma revisão da literatura sobre relações raciais, branquitude, trabalho e poder, Marllon do Nascimento Conceição apresenta reflexões sobre como operam os critérios da branquitude em contextos profissionais. Em seu artigo, “Desculpa, é que você não tem cara de…”: a branquitude e o privilégio da normalidade em ambientes corporativos, observa como o pacto da branquitude se apresenta no mundo do trabalho sob a cobertura do discurso meritocrático, e como ele naturaliza e universaliza a adoção de perfis para determinados cargos e funções, mantendo as pessoas negras nas ocupações subalternas. Nesse contexto, o autor apresenta a noção de susto racial “como o impacto ocasionado pela presença da pessoa negra em um espaço de liderança e poder, acontecendo todas as vezes em que se quebra a expectativa de que determinada função deveria ser realizada por uma pessoa branca”.

Pedro Henrique Alves Santos, Uebert Vinicius das Neves Ramos e Jeifa Alice Jericó apresentam o artigo Branquitude, sistema racial de justiça criminal e processos (de)coloniais: uma análise crítica discursiva. Nele, discutem a sentença judicial e a nota de esclarecimento de uma magistrada branca, vinculada ao Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, que descreveu, em 2020, um réu negro como membro de um grupo criminoso devido à sua raça. Através de uma análise crítica de discurso, mostram como a magistrada esquiva-se da responsabilidade na ação e na conduta racista, aproximando-se do discurso da democracia racial. Os autores mobilizam as noções de pacto da branquitude e racismo institucional para interpretar o apoio institucional recebido pela magistrada, cujos pares entenderam que não houve quaisquer indícios de racismo em suas ações: “Portanto, a branquitude se articula enquanto lugar de poder institucional no Poder Judiciário e em seus representantes, os magistrados e magistradas, para se formalizarem enquanto neutros e justos, potencializando, assim, a reprodução do racismo”.

O artigo de Fernanda Zeni de Ávila e Carla Macedo Martins, Capitalismo periférico e a materialidade ideológica da branquitude no Brasil, explora teoricamente a compreensão da branquitude como ideologia do capitalismo periférico brasileiro, observando seu funcionamento para a reprodução do racismo e a legitimação da exploração do trabalho. As autoras observam como a operacionalização ideológica da branquitude oculta a realidade contraditória da sociabilidade capitalista, contribuindo para sua reprodução. Nesse sentido, a branquitude, como ideologia, sustenta a promoção da ocupação de espaços de poder por brancos; busca também naturalizar, via racionalização, a realidade social, para que as desigualdades raciais não sejam questionadas, tampouco a superexploração do trabalho a que estão submetidos sujeitos negros; além de orientar os sujeitos sociais a praticarem cotidianamente atos racistas. Em síntese, para as autoras: “a ideologia da branquitude oferece formas ilusórias para universalizar representações, inclusive racial-fenotípicas, de ser sujeito humano; transformar desigualdades em efeitos de traços naturais; unificar classes sociais em torno da necessidade da reprodução da sociedade tal como ela se apresenta; racionalizar desigualdades e opressões; orientar práticas concretas; e legitimar as relações sociais existentes sob o capital”.

Rafael dos Santos Lazaro e Isabelle Letícia Cerezo Cabreira, em O lugar da branquitude no enfrentamento ao racismo escolar: um diálogo necessário, apresentam os resultados de uma pesquisa com professoras da educação básica no estado do Rio de Janeiro, sobre o modo como entendem e inserem as questões raciais em suas práticas docentes. Nesse viés, destacam a ausência de debates antirracistas e decoloniais na formação e capacitação de professores e professoras, bem como as dificuldades derivadas desse vácuo formativo, mesmo quando se reconhece a importância e necessidade de tais discussões nos ambientes escolares. De acordo com o texto, esse cenário contribui para a “hipervalorização silenciosa do branco, pois reflete sobre a posição de vantagem estrutural que a branquitude assume, associada a valores de poder construídos historicamente, ou seja, o branco é retratado como o ideal dentro de uma sociedade”.

Fechando a lista de artigos, em Quem participa do jogo da branquitude? Do privilégio ao perigo amarelo, Aline Chima Komino, Gabriel do Carmo Yamamoto e Elisa Yoshie Ichikawa apresentam uma reflexão teórica sobre a noção de amarelitude, defendendo a ideia de que é essencial incluí-la na análise das relações raciais no Brasil. Nesse sentido, discutem o que chamam de “metamorfose do amarelo”, problematizando como pessoas oriundas do leste asiático e seus descendentes foram (ainda que de forma diferenciada a depender do país de origem) consideradas como um “perigo amarelo” ou uma “minoria modelo”, mas, em ambos os casos, sendo nomeadas e inventadas como um outro a partir do referencial ocidental da branquitude. É sob essa chave conceitual que discutem a relação das pessoas amarelas com o discurso da branquitude, e em particular com um discurso meritocrático da minoria modelo. “Há um pacto narcísico limitado com a branquitude em que as pessoas amarelas acabam se aliando para ainda obter acesso a alguns privilégios. Entretanto, é preciso também lembrar que esse privilégio racial amarelo possui aspas ocultas, pois quando é necessário e preciso, a branquitude sempre nos lembrará que não somos brancos”, afirmam.

Finalmente, como última peça do dossiê, temos a entrevista com a professora Lia Vainer Schucman, referência nos estudos de branquitude, e que tem desenvolvido pesquisas sob diferentes perspectivas acerca das relações raciais no Brasil sob o enfoque da branquitude e da teoria crítica de raça. A entrevista começou a ser esquematizada ainda em meados de 2023, quando realizamos uma primeira versão, e a segunda ocorreu neste ano, no mês de maio. O título escolhido (A branquitude não pode ser antirracista...) prioriza a problemática do antirracismo, que vem sendo utilizada sob inúmeras matrizes dentro dos movimentos sociais e dos trabalhos acadêmicos atualmente, a exemplo de “letramento antirracista” e “branquitude e antirracismo”. A professora Lia Vainer expõe, de forma bastante didática, algumas de suas opiniões e críticas acerca dos usos e interpretações da branquitude, derivando delas propostas que podemos considerar como ações concretas para o desmantelamento do racismo. É crucial que nos questionemos se um indivíduo branco pode ser antirracista e, excepcionalmente, o que é ser antirracista em uma sociedade racista? E ainda, em termos conceituais, é possível falar em branquitude antirracista?

A conversa prosseguiu revelando a diversidade de pesquisas em andamento no país e as conexões entre elas. A entrevistada explorou como seus trabalhos de mestrado e doutorado, juntamente com sua trajetória pessoal, se entrelaçam com as questões raciais brasileiras.

Discutimos temas, como antirracismo, racismo estrutural, formação do campo de estudos, interseccionalidade entre psicologia e ciências sociais, equidade e relações de poder. A autora também compartilhou informações sobre seu mais recente livro Famílias inter-raciais: tensões entre cor e amor, lançado pela editora Fósforo em 2023. Nessa obra, ela analisa como as dinâmicas raciais influenciam as relações familiares, abordando questões como cotas e bancas de heteroidentificação, que têm sido objeto de intensos debates.

Visando ampliar o alcance das produções nacionais sobre o tema, a entrevista estará disponível em duas versões: português e inglês, esta última traduzida pela socióloga Mariana Soares Melo Pires e revisada pelo professor Terry Mulhall. A conversa com a professora Lia Vainer Schucman, uma das principais pesquisadoras brasileiras sobre o tema deste dossiê, representa uma contribuição fundamental para os estudos sobre branquitude e relações raciais no país.

Cabe ainda, antes de fecharmos esta apresentação, dedicarmos alguns comentários sobre a escolha da capa, pois ela revela aspectos ligados à branquitude: reflete as dinâmicas raciais que permeiam as condições da produção artística no Brasil. A pintura, feita em um muro de um bairro popular da cidade de São Luís, é do jovem artista maranhense Gabriell Lopez, de 19 anos, morador da Liberdade, um dos bairros que compõem o primeiro e maior quilombo urbano da América Latina. Gabriell se define como negro, e relata que a pintura retrata as relações entre beleza negra, empoderamento e as influências do rap a partir de uma criança, cujo rosto estampa o futuro, chamado Brasil. Por acaso, pudemos passar naquela rua e fotografar a obra, antes que ela fosse completamente obnubilada pela propaganda política das eleições de 2024. O artista nos contou que seu processo criativo é intuitivo, mas carrega algumas influências da negritude, do cotidiano e da cultura maranhense. Em suas obras, Gabriell exalta a beleza da pele negra e seus traços fenotípicos, desafiando os padrões de beleza eurocêntricos. Para ele, suas pinturas soam como “uma ofensa ao sistema branco”, um ato de resistência contra o sistema que marginaliza artistas negros e periféricos, confinando-os a espaços limitados. Gabriell ainda nos relatou que no dia em que fez a pintura no muro, estava voltando de um “trampo”, realizado numa loja para duas mulheres brancas. Ao se acidentar durante a realização do trabalho, caindo da escada fornecida pelas donas da loja, ele refletiu sobre as dificuldades e os perigos que os profissionais negros e periféricos enfrentam. Instigado por suas “descobertas”, com o restante da tinta nas mãos, diante do muro branco, decidiu pintá-lo. A imagem que vemos na capa, teria outras características, mas, na hora, Gabriell pensou que a imagem deveria representar o que outrora deveria ser a experiência coletiva da negritude, esperança em sua brasilidade (título da pintura). Vale destacar que, para compor a capa, em acordo com o autor, ocultamos alguns elementos a fim de evitar confusão com o título do dossiê, como a expressão Brasileiragem e a sua bio do Instagram.[3]

Este dossiê reafirma nosso compromisso em desconstruir o racismo e seus dosséis, e nos convida a uma profunda reflexão sobre as múltiplas faces da branquitude, visando um futuro mais justo e igualitário. Convidamos os/as leitores/as a se aprofundarem nessa reflexão.

 

Referências

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THEODORO, Mário. A sociedade desigual: racismo e branquitude na formação do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2022.

 

Recebido em: /11/2024.

Aceito em: /11/2024.

 

DOI: https://doi.org/10.46906/caos.n33.72350.p14-26

 

Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes/Brasil) pelo apoio financeiro concedido a um dos organizadores deste dossiê: Anderson dos Santos Cordeiro, bolsista de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco, sob orientação do professor Aristeu Portela Júnior.

 

 



* Graduado em ciências sociais pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Integra o grupo de Estudos e Pesquisa em Pensamento Social e Político Brasileiro (ARIADNE). Editor assistente da Revista Caos. E-mail: andersondsc97@gmail.com

** Professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Brasil. Docente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da UFPE. Docente da Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS) da UFRPE. Doutor em Sociologia pela UFPE, Brasil. E-mail: aristeu.portela@ufrpe.br.

*** Professor do Curso de Licenciatura Interdisciplinar em Estudos Africanos e Afro-brasileiros da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Brasil. Doutor em sociologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP, Araraquara). Editor da Revista Caos. E-mail: giboaes@gmail.com.

[1] Du Bois é considerado um dos pioneiros da agenda de estudos sobre branquitude ainda no século XIX. No processo de consolidação e institucionalização da sociologia, empreendeu pesquisas em relação aos indivíduos brancos, racismo, discriminação, desigualdades sociais e segregação espacial. Cf.:Gato (2024).

[2] O levantamento levou em consideração os dossiês que tinham sob título a palavra branquitude, demarcando assim o intuito ou proposta. Entre eles estão: Schucman e Cardoso (2014); Ruoso, Lima e Pereira (2019); Fernandes, Passos e Santos (2021); Dionísio (2021); Oliveira e Gonçalves (2021); Alves, Santos e Duarte (2021); Ferreira, Verástegui e Santana (2022).

[3] O/a leitor/a pode ter acesso à pintura original e outras obras suas no Instagram: @vgabrielpz.

 

 

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Desenho de um círculo

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