DIREITO À MEMÓRIA:
A Comissão Nacional da Verdade brasileira e as narrativas dos povos indígenas na construção da cidadania

RIGHT TO MEMORY:
the Brazilian National Truth Commission and narratives of indigenous peoples in the construction of citizenship

Valdir José Morigi1

Ana Maria Giovanoni Fornos2

RESUMO

Aborda o direito à memória no contexto da justiça de transição na história recente brasileira, tendo por objeto a Comissão Nacional da Verdade - CNV com foco nas informações relativas às violações dos direitos humanos dos povos indígenas. O objetivo é compreender como os documentos produzidos pela CNV auxiliam na construção do direito à memória dos povos indígenas, contribuindo para a promoção dos direitos humanos e na construção da cidadania. Emprega metodologia bibliográfica e documental através da análise textual discursiva proposta por Moraes (1999; 2003), numa abordagem qualitativa. Analisa as narrativas indígenas a partir dos depoimentos prestados à CNV. Examina a relevância da produção e disseminação dos relatos para a construção da memória e da cidadania. Aponta como as práticas documentais da CNV foram importantes para o direito à memória. Assinala a responsabilidade social da Ciência da Informação e seu papel estratégico na formulação de políticas de memória, tanto na perspectiva epistemológica, como nos campos regulatório e tecnológico.

Palavras-chave: Comissão Nacional da Verdade. Direito à memória. Memória social. Povos indígenas.

ABSTRACT

It addresses the right to memory in the context of transitional justice in recent Brazilian history, having as its object the National Truth Commission – CNV with a focus on information regarding violations of the human rights of indigenous peoples. The objective is to understand how the documents produced by CNV help in the construction of indigenous peoples’ right to memory, contributing to the promotion of human rights and the construction of citizenship. It uses bibliographic and documentary methodology through the discursive textual analysis proposed by Moraes (1999; 2003), in a qualitative approach. It analyzes the indigenous narratives from the testimonies given to CNV. It examines the relevance of the production and dissemination of these reports for the construction of memory and citizenship. It points out how the CNV’s documentary were important for the right to memory. Shows the social responsibility of Information Science and its strategic role in the formulation of memory policies, both in the epistemological and regulatory and technological fields.

Keywords: National Truth Commission. Right to memory. Social memory. Indigenous people.

Artigo submetido em 28/04/2020 e aceito para publicação em 23/05/2020

1 INTRODUÇÃO

Este artigo compartilha os resultados da pesquisa sobre as informações divulgadas nos documentos produzidos pela Comissão Nacional da Verdade - CNV, e analisa como elas auxiliam na construção do direito à memória dos povos indígenas, contribuindo para a promoção dos direitos humanos e na construção da cidadania.

O estudo aborda a função social da informação a partir da prática da documentação dentro do propósito das pesquisas sobre as políticas de informação. Versa sobre a questão do documento e sua relação com o direito à memória, considerando o contexto da justiça de transição3 na história recente brasileira, trazendo à luz o trabalho da CNV especificamente no que se refere às graves violações dos direitos humanos dos povos indígenas.

A ditadura civil-militar brasileira construiu uma memória oficial, fazendo uso da informação, a partir das práticas com documentos, como uma forma de manter o controle e o poder. O aparato repressor no período da ditadura civil-militar foi estruturado e sustentado por um sistema de informação complexo. Esse aparato controlava os distintos modos de produzir, processar, selecionar e distribuir as informações e determinavam os limites do quê dizer e do quê registrar nos documentos.

Na transição democrática, essa memória oficial foi sustentada por uma anistia negociada caracterizando uma política de silenciamento legitimada pela Lei da Anistia de 1979. Somente com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que institui um novo regime de informação, se abrem os caminhos para o favorecimento de mecanismos de justiça transicional no Brasil. A saída da ditadura civil-militar teve contornos de forças liberais hegemônicas4. De fato, o direito à informação podia ser invocado como um vago princípio constitucional com alguns poucos institutos jurídicos procedimentais adequados como o habeas data, por exemplo.

Contudo em 2011, com a criação da CNV (Lei n.º 12.528/2011)5 e a aprovação da Lei de Acesso à Informação – LAI (Lei nº 12.527/2011)6, se instaura um novo cenário ao reconhecimento e promoção do direito à memória e à verdade no Brasil, pilares de promoção dos direitos humanos e aprofundamento da democracia. A CNV ao instituir um grupo de trabalho que se debruçou nas graves violações de direitos humanos contra populações indígenas procurou o reconhecimento do Estado brasileiro pelos abusos cometidos em relação aos povos indígenas, principalmente em relação à ditadura civil-militar (1964-1985).

A violação dos direitos humanos dos povos indígenas na ditadura civil-militar se deu à continuidade de algo que já existia. Em consequência direta da ação governamental ou por sua omissão, foram estimados, em dez etnias estudadas, ao menos 8.350 indígenas mortos no período investigado pela CNV (BRASIL, 2014b)7. Portanto, a CNV constata que os povos indígenas foram uma das maiores vítimas desse período, tendo sido torturados, presos em presídios especiais e submetidos a trabalhos análogos à escravidão.

A inserção dos povos indígenas nos trabalhos da CNV trouxe luz e estendeu o foco dos atingidos, em razão de evidenciar que a violência do Estado não ficou limitada aos grupos políticos que fizeram oposição ao regime após o golpe de 1964. Foram atingidos os segmentos sociais que estavam no caminho do progresso. A política desenvolvimentista dos governos militares significou o aniquilamento cultural, econômico e comunitário de muitos povos, além de provocar perseguição, prisão, tortura, assassinato, remoção forçada e criminalização de indígenas.

O trabalho da CNV foi fundamental, pois ao utilizar a memória dos povos indígenas que sofreram tais abusos, procura restaurar a condição desses sujeitos como cidadãos, contribuindo ao avanço da democracia no país. Na medida em que desvela ações informacionais obscuras de apagamento da memória desses povos e dá materialidade a suas narrativas, a Comissão forja um novo regime de informação que favorece a consolidação dos direitos humanos e a cidadania desses sujeitos sociais.

O foco desta pesquisa está concentrado no modo de produção das informações desse grupo de trabalho voltado às questões indígenas. O interesse do estudo está na análise dos testemunhos dos sujeitos indígenas de cinco etnias dados em audiências públicas ou entrevistas individuais e depoimentos coletivos, eventos esses gravados em vídeo e disponibilizados no portal da CNV na Internet e no seu canal do Youtube8. A análise não recai somente sobre o que é lembrado pelas testemunhas, mas também como ocorreu o trabalho de seleção e de legitimação das narrativas transportadas para o Relatório Final.

O estudo está centrado na dimensão do direito à memória, um dos eixos de estruturação da CNV, e naquilo que ela provoca em termos de construção de um projeto memorialístico. O direito à memória consiste no direito subjetivo que os lesados e toda a sociedade têm de ter uma informação (ou narrativa memorial) verdadeira (ou mais próxima da verdade) sobre os fatos reais e as circunstâncias que gerarem graves violações de direitos humanos. Nossa atenção se dá nas ações empreendidas pelo grupo temático da CNV sobre as questões indígenas e o legado do seu trabalho à construção da memória social e da cidadania desses sujeitos.

2 MEMÓRIA SOCIAL, DIREITO À MEMÓRIA E A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA

Para compreendermos como se constituiu o direito à memória dos povos indígenas foi necessário refletirmos sobre a construção da memória social, o que nos remete aos elementos presentes em um regime de informação. Envolvem, portanto, atores, artefatos e dispositivos, que dialogam tanto com as possibilidades de esquecimento como com os diversos modos de lembrança.

Os modos de produção da informação constituem documentos (como artefatos, imagens, fotografias, filmes, escrita, relatos, etc.) não apenas como suportes para consulta e uso com a finalidade de apurar o passado, mas como efeito político da tensão constituinte do passado e do presente. O documento é um produto das práticas sociais conformadas nas relações socioculturais, políticas, econômicas e subjetivas em diferentes espaços-tempos. Ele alude às tensões em relação ao quê deve ser lembrado e ao quê deve ser esquecido permitindo uma pluralidade de memórias, narrativas e interpretações. Nesse cenário, se inclui as comissões da verdade como um espaço para legitimação e publicização de experiências através de disputas de narrativas de um passado traumático, constituindo-se em um projeto memorialístico que articula passado, presente e futuro com a finalidade de promoção dos direitos humanos e construção da cidadania.

Portanto, é necessário apreender como se formam as memórias sociais e atentar às suas dimensões e fenômenos resultantes. O conceito de memória social está em constante processo de construção, tendo como cenário sua provisoriedade. É um conceito mutável, transdisciplinar e polissêmico, pois à medida que as circunstâncias sociais se alteram, seu fundamento e sua aplicação se modificam (GONDAR, 2016).

Maurice Halbwachs, discípulo de Émile Durkheim, reconhecido como o precursor do estudo sociológico sobre a memória, inaugurou novas tradições de pensamento sobre a temática. Para esse autor, a memória individual decorre da memória coletiva, visto que considera que as lembranças e as experiências cotidianas são elaboradas com base nos ensinamentos e nas relações que os indivíduos mantêm entre si e a sociedade. Afirma o autor:

[a memória individual] não está inteiramente isolada e fechada. Um homem para evocar seu próprio passado, tem frequentemente necessidade de fazer apelo às lembranças dos outros. Ele reporta a pontos de referência que existem fora dele e que são fixados pela sociedade. [...] a lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com ajuda de dados emprestados do presente, e, além disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada (HALBWACHS, 1990, p. 54 e 72).

A contribuição do pensamento de Halbwachs (1990) foi mostrar que a memória individual não pode estar afastada das memórias coletivas, pois não é o indivíduo sozinho que controla a evocação sobre o passado. Esse processo se dá nas interações dos grupos sociais. Ainda na concepção do autor, a memória coletiva e a história são duas instâncias que não se confundem. Mesmo que a história se pretenda universal, há muitas memórias coletivas.

Esse debate em torno da distinção entre história e memória é trazido por Pierre Nora na década de 1980. Nora (1993) traz para o campo da memória social a concepção de “lugar de memória”. A memória está aberta à dialética da lembrança, enquanto que a história é uma reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. Para o historiador a perda dos meios de memória advinda pelas transformações dos processos históricos só poderia ser recuperada à proporção que se identificassem lugares que ratificassem e condensassem a memória.

Nora (1993) refere-se à “aceleração da história” como um fenômeno contemporâneo. Acentuada pelo avanço tecnológico, ela afeta não somente a memória individual, como também a memória cultural. Diante disso, os lugares de memória seriam nada mais que restos. Em consequência da descaracterização das comunidades tradicionais baseadas na oralidade e do processo de globalização e midiatização, os meios e suportes convencionais de memória se rompem: a sociedade passa a necessitar de lugares de memória. A memória se converte em resíduos materializados simbolicamente em espaços potentes de “vontade de memória” de caráter compensatório a esta não-memória; lugares reais ou imaginários, tangíveis ou intangíveis (NORA, 1993, p. 22). Para o autor, os espaços aparecem para nos lembrar da fragilidade da memória, sendo necessário criar arquivos, museus, monumentos e celebrações como recursos que mantém dinâmica a história e a cultura da sociedade. A gestão controlada do esquecimento, ou seja, a seleção daquilo que carrega “vontade de memória” compartilhada social-histórica-culturalmente, é uma dimensão da memória reivindicada, que, segundo Candau (2016), se constitui o patrimônio.

Entretanto, a memória não é uma reprodução fiel das experiências do passado, mas uma reconstituição do passado no presente projetando o futuro, pois “a memória é, acima de tudo, uma reconstrução continuamente atualizada do passado [...]”, sendo que os diferentes suportes formam a memória dos indivíduos e grupos (CANDAU, 2016, p. 9). Quanto ao esquecimento, Candau (2016) observa que, da mesma maneira que a lembrança, o esquecimento também é seletivo e nem sempre é um inimigo da memória; às vezes ele pode ser um alívio quando as lembranças se tornam um ônus para o indivíduo e a sociedade. Dessarte, o tempo passado não pode ser retomado tal e qual, uma vez que não são realidades e sim fragmentos que sobram na memória, ou seja, representações.

Portanto, memória e identidade, recordação e esquecimento são conceitos dependentes visto que a narrativa pessoal ou coletiva depende das evocações selecionadas e das eliminações ou não que delimitam as próprias lembranças. Assim, “a existência de um discurso metamemorial [...] é um indicador precioso, revelador da relação particular que alguns membros do grupo consideram manter com a representação que eles fazem da memória desse grupo.” (CANDAU, 2010, p. 51-52).

A memória social é um processo cujas representações sociais são apenas um dos elementos arraigados em uma coletividade. A memória não se reduz a generalidade das representações, ela está encadeada com aquilo que nos afeta (GONDAR, 2016). A produção da memória se faz em um movimento onde o afeto e as representações se articulam, sendo partes integrantes de um mesmo processo.

Conceber a memória como processo não significa excluir dele as representações coletivas, mas, de fato, nele incluir a invenção e a produção do novo. Não haveria memória sem criação: seu caráter repetidor seria indissociável de sua atividade criativa; ao reduzi-la a qualquer uma dessas dimensões, perderíamos a riqueza do conceito (GONDAR, 2016, p. 40).

Pollak (1992), ao apontar os elementos constitutivos da memória - acontecimentos, pessoas e lugares, enfatiza que esses elementos podem corresponder à realidade. Tanto na memória individual como na coletiva, é possível acontecer fenômenos de projeção e transferência: portanto, a memória é seletiva, pois nem tudo fica registrado. Assim, “a memória é, em parte, herdada, não se refere apenas à vida física da pessoa. A memória também sofre flutuações que são função do momento em que ela é articulada, em que ela está sendo expressa” (POLLAK, 1992, p. 4). Desta forma, individual ou coletivamente, “[...] a sua organização em função das preocupações pessoais e políticas do momento mostra que a memória é um fenômeno construído” social e individualmente, “[...] havendo uma ligação fenomenológica muito estreita entre a memória e o sentimento de identidade” (POLLAK, 1992, p. 5, grifo no original).

Desse modo, memória e identidade são fenômenos negociados, ou seja, disputados em conflitos sociais e intergrupais, em que ocorre tanto o trabalho de enquadramento da memória quanto o de manutenção da memória constituída. O trabalho de enquadramento da memória se alimenta do material fornecido pela história: dos rastros significativos que uma pessoa, grupo ou nação vai deixando das suas experiências e que se tornam referências. Em consequência, “[...] cada vez que uma memória está relativamente constituída, ela efetua um trabalho de manutenção, de coerência, de unidade, de continuidade, da organização” (POLLAK, 1992, p.7), que é afirmado pela documentação, seja tratando-se de fontes escritas ou orais. Toda a construção que se faz do passado é sempre intermediada (e padece dos mesmos problemas do) pelo documento e, portanto, todo o trabalho se sustenta em uma reconstrução.

Podemos apontar a partir das considerações apresentadas que existe o potencial emancipador que a memória exprime para a promoção dos direitos humanos; porém, a relação entre memória e democracia não é espontânea. É preciso estabelecer processos para o exercício da memória como reflexão crítica sobre acontecimentos passados, como por exemplo, as comissões da verdade. Esses processos “[...] desenvolvem uma dimensão reparadora da dignidade política das vítimas de violência, que resgatam seu status de cidadão ferido pelo arbítrio do poder” (TORELLY, 2012, p. 111). Além disso:

[...] tais processos possuem, em sua dimensão coletiva, a capacidade de incluir um grande número de reflexões sobre a experiência autoritária e sua superação em uma narrativa nacional em disputa, capitalizando, de modo consciente, o próprio projeto democrático, ampliando-lhe a base de sustentação na medida em que nele introduz noções de democracia nas práticas e percepções cotidianas (TORELLY, 2012, p. 111).

Ao longo do século XX a procura de justiça dos que foram vítimas de regimes de governo autoritários estimulou o debate teórico e político sobre memória. Mas foi a partir da década de 1980 que o tema da memória se destacou devido às transformações significativas ocorridas em diferentes contextos: a crise do socialismo soviético que trouxe à tona dezenas de relatos sobre a violência do Estado naquele contexto, a queda das ditaduras civil-militares latino-americanas fortemente ligadas a interesses econômicos, o fim do apartheid na África do Sul, as discussões sobre o Holocausto na Europa, entre outros acontecimentos. A memória se alinhou à luta por direitos humanos, abrindo caminho para a compreensão de particularidades históricas e sociais que o discurso universalista de direitos humanos relegou ao segundo plano.

Como lembra Cruz (2016, p.38) na América Latina e no Brasil a questão da disputa em torno da Memória e da História surgiu articulada à militância dos movimentos contra a ditadura e pela democratização do país. Entretanto, “[...] as lutas pelo Direito à Memória foram conduzidas por demandas e dinâmicas diferenciadas, e nem sempre convergentes, destacando, por um lado, as relações entre memória, cidadania e direitos, e, por outro, as relações entre memória, justiça e reparação.”

Compartilhamos que o direito à memória é um direito humano, pois, conforme Bragatto e Paula (2011, p. 137), “[..] a sua ausência responde, em grande parte, pela perpetuação ou repetição dos atos de violência e de barbárie já vistos no passado e, portanto, pela multiplicação das vítimas”. A perpetuação da violência não está somente no seu esquecimento, mas sim no fato de que “[...] seus perpetradores do passado ficaram impunes e as vítimas injustiçadas, o que significa dizer que não foram suficientemente rememoradas.” (BRAGATTO; PAULA, 2011, p. 137).

Ricoeur (2007) refere-se ao dever de memória, a fim de que haja uma “justa memória” como meio de enfrentamento dos traumas do passado, capaz de manter a sociedade a salvo de situações de abusos, injustiças e violações de direitos humanos. Sobre esse aspecto, Genro e Abrão (2010, p. 21) afirmam:

A experiência traumática só se supera a partir de um exercício do luto, que como lembra Paul Ricoeur, é o mesmo exercício da memória: paciente, afetivo, destemido e perigoso, pois revela que nossa sociedade hoje se estrutura sobre os cadáveres das vítimas esquecidas. É só no trabalho de rememoração que podemos construir uma identidade que tenha lugar na história e não que possa ser fabricada por qualquer instante ou ser escolhida a esmo a partir de impulsos superficiais. Trata-se, de fato, de um dever de memória, um dever que exige disposição e vontade: uma vontade política. O exercício deste dever é condição imprescindível para que haja verdadeiramente o apaziguamento social, caso contrário a sociedade repetirá obsessivamente o uso arbitrário da violência, pois ela não será reconhecida como tal (GENRO; ABRÃO, 2010, p. 21).

Assim, a memória assume um significado de justiça, ou seja, um dever de memória, plasmado nas relações entre experiências traumáticas do passado e a possibilidade de reconciliação com o presente.

O impacto das atrocidades cometidas durante a segunda Guerra Mundial colocou na agenda mundial a necessidade da construção de uma cultura universal de respeito aos direitos humanos. Para Boaventura de Sousa Santos (1997), os direitos humanos foram vistos pelas esquerdas como parte constituinte da Guerra Fria; porém, depois da crise do socialismo, as forças progressistas recorreram aos direitos humanos “[...] para reinventar a linguagem da emancipação” (SANTOS, 1997, p. 105). Nesse sentido, para pensar a potencialidade emancipatória da memória é importante abordá-la na sua dimensão pragmática, ou como propõe Ricouer (2007), em termos de “memória exercitada”.

Ao tratar a memória em uma abordagem pragmática, Ricoeur (2007) apresenta o exercício da memória como um diálogo entre diferentes modos possíveis de lembrar e as diversas possibilidades de esquecimento. O autor nos traz uma tipologia dos seus usos e abusos: a memória impedida, a memória manipulada e a memória obrigada. As formas de abuso da memória ocorrem pela sua vulnerabilidade, uma vez que é o resultado da coisa lembrada e sua presença na forma de representação.

Ao abordar a memória obrigada, Ricouer (2007) coloca a questão da legitimação do dever de memória como dever de justiça. O autor apresenta a memória enquanto trauma e como os grupos sociais ressignificam o trauma, transformando-o em um projeto memorialístico: “[...] extrair das lembranças traumatizantes o valor exemplar que apenas uma inversão de memória em projeto pode tornar pertinente. Enquanto o traumatismo remete ao passado, o valor exemplar orienta para o futuro” (RICOUER, 2007, p. 99). Para o autor, é a justiça que transforma a memória em projeto. Ao extrair das lembranças traumatizantes a sua condição de verdade, se “[...] dá ao dever de memória a forma de futuro”. E, “[...] enquanto imperativo de justiça, o dever de memória se inscreve numa problemática moral [...]” (RICOUER, 2007, p. 101 e 104).

A prática coletiva do dever de memória só é possível a partir da gestão democrática de dispositivos discursivos, políticos e sociais que permitam a formulação de novos regimes de informação fundamentados no Estado democrático de direito, no qual é necessário ir além da conservação de arquivos e acesso às informações. O imperativo ético de novas memórias até então subterrâneas provoca uma luta por direitos e por espaços no discurso memorialístico público, institucionalizado e oficial. A CNV se põe como uma das possibilidades de enfrentamento tanto às políticas de esquecimento, ocultamento e silenciamento impostas pelo regime de informação da ditadura civil-militar brasileira, quanto à desmemoria a qual o tema da ditadura foi reduzido desde a transição política.

3 O CAMINHO METODOLÓGICO

A pesquisa se caracteriza por uma abordagem qualitativa da temática, sendo um estudo bibliográfico e documental. O corpus de análise está composto pela legislação relativa à justiça de transição, pelo relatório final da CNV, partes do volume I e o texto 5 do volume II, além dos vídeos dos depoimentos e testemunhos prestados por indígenas de diferentes etnias. O estudo foi realizado durante o ano de 2019.

Da busca bibliográfica foram selecionados os estudos mais relevantes e afinados com o tema a ser investigado. Após a leitura seletiva definimos as abordagens teóricas e os principais autores que se debruçam sobre o tema da memória social e direito à memória sendo selecionados especialmente os trabalhos clássicos de Maurice Halbwachs, Jöel Candau, Michael Pollak, Pierre Nora e Paul Ricoeur.

Os procedimentos de escolha dos documentos tomaram como base a leitura exploratória do Relatório Final da CNV que é composto de três volumes, publicado na página inicial do portal da CNV na Internet. Assim, selecionamos os documentos principais de análise e os dividimos em duas categorias, conforme segue:

a) Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade: i) volume I (BRASIL, 2014a); ii) volume II textos temáticos: Texto 5 - Violações de direitos humanos dos povos indígenas (BRASIL, 2014b);

b) Campo empírico (vídeos): i) depoimentos de David Yanomani e outros indígenas, (KOPENAWA et al, 2013); ii) depoimento de Naílton Pataxó (PATAXÓ, 2013); iii) depoimentos do Cacique Babau Tupinambá e seu pai (TUPINAMBÁ, 2013); iv) 1ª Audiência Pública sobre Violações de Direitos Indígenas em Dourados no Mato Grosso do Sul, gravada em três vídeos (AUDIÊNCIA..., 2014a; 2014b; 2014c); v) depoimentos de Oredes Krenak e Douglas Krenak (KRENAK, O.: KRENAK, D., 2014).9

Quanto aos procedimentos técnicos, nos ancoramos na metodologia de análise proposta por Moraes (1999; 2003), análise textual discursiva, constituída de cinco etapas: “1 - Preparação das informações; 2 - Unitarização ou transformação do conteúdo em unidades; 3 - Categorização ou classificação das unidades em categorias; 4 - Descrição; 5 - Interpretação” (MORAES, 1999, p. 4).

A fase de preparação do material de análise dos vídeos se constituiu primeiramente no download dos arquivos para o computador para serem assistidos na íntegra. Para cada vídeo assistido foi criado um arquivo de texto onde registramos o tipo de evento, local e data, resumo dos casos investigados pela CNV, a respectiva etnia, o nome de cada depoente, o idioma utilizado (se o idioma originário ou o português) e a marcação do tempo do início e do término de cada depoimento.

A etapa da unitarização se constituiu na transcrição integral dos depoimentos dados pelos indígenas durante a audiência pública com as respectivas perguntas dos membros da mesa ao término dos mesmos. Também foi feita a transcrição dos depoimentos dos indígenas realizadas nos próprios territórios indígenas à Maria Rita Kehl. Foram transcritas as traduções dos depoimentos prestados na língua originária dos indígenas, sendo indicado esse fator.

Após as transcrições das narrativas, os vídeos foram novamente assistidos e anotadas observações quanto às sutilezas dos depoimentos e a relação da testemunha e os membros não-indígenas que fazem intervenções: dúvidas, silêncios, gestos, os ditos e os não-ditos e as relações intersubjetivas que permeiam sua construção.

A terceira etapa é a da categorização, que segundo Moraes (1999, p. 6) “[...] é um procedimento de agrupar dados considerando a parte comum existente entre eles. [...] As categorias representam o resultado de um esforço de síntese de uma comunicação, destacando nesse processo seus aspectos mais importantes.” Para esse trabalho, as categorias foram identificadas pelo exame das narrativas dos indígenas em seus testemunhos e o contexto de sua produção, ou seja, as investigações e esclarecimentos das violações aos direitos humanos cometidas contra os povos indígenas, à luz da fundamentação teórica que ancora este estudo.

Na etapa da descrição, foram extraídas as falas significativas dos indígenas no processo de escuta da Comissão. As falas foram escolhidas pelo reconhecimento de conteúdos comuns à maioria dos testemunhos, o contexto de sua realização e também pela relevância implícita em cada depoimento, mesmo que o conteúdo não tenha tido réplica, mas continha um valor em si e importância para o estudo. A abordagem de análise empregada foi essencialmente indutivo-construtiva (CAMPOS, 2010).

A última etapa, da interpretação, foi realizada através da exploração dos significados expressos nas falas significativas dentro das categorias de análise, cotejando com a fundamentação teórica apresentada, bem como com o documento final da CNV referente às violações de direitos humanos dos povos indígenas.

4 A CNV E AS NARRATIVAS INDÍGENAS NA CONSTRUÇÃO DO DIREITO À MEMÓRIA E DA CIDADANIA

Para fins deste artigo selecionamos fragmentos das narrativas de indígenas que prestaram seus depoimentos à CNV, nos anos de 2013 e 2014, examinando a relevância da produção e disseminação desses relatos ao direito à memória.

A CNV formalizou a criação do grupo de trabalho sobre violações de direitos humanos relacionados à luta pela terra e contra populações indígenas, por motivações políticas, através da Resolução n.º 5, de 5 de novembro de 2012. Ao grupo de trabalho foi dada a competência de esclarecer fatos, circunstâncias e autorias de casos de graves violações de direitos humanos, como torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres, relacionados a indígenas e camponeses no período determinado pela lei que criou a CNV (1946-1988), bem como de identificar e tornar públicos estruturas, locais, instituições e circunstâncias de violações de direitos humanos cometidas contra esses grupos (COMISSÃO NACIONAL da VERDADE, Res. n.º 5/2012, art. 1º, Parágrafo único e incisos).

A formação de um grupo voltado às violações dos direitos humanos dos povos indígenas nos trabalhos da CNV foi marcada por pressões de movimentos indígenas, de associações ligadas aos direitos humanos, de pesquisadores e de indigenistas. Assim, a CNV contou com a colaboração de diversas entidades, tanto aquelas ligadas à esfera estatal como organizações da sociedade civil. Esse trabalho foi condensado no Texto 5 - Violações de direitos humanos dos povos indígenas, apresentado no Volume II do Relatório da CNV (BRASIL, 2014b), sob a responsabilidade de Maria Rita Kehl.

O trabalho foi realizado por uma parceria entre a CNV e membros da sociedade civil, universidades e organizações não governamentais relacionadas ao tema que encaminharam relatórios circunstanciados em inúmeras fontes documentais, além da análise de documentos oficiais resgatados pela equipe de assessores e colaboradores. Além disso, foram realizadas audiências públicas com depoimentos de indígenas de diferentes etnias e coletados testemunhos em terras indígenas, estando todos os documentos de áudio, vídeo e bibliográficos arquivados no fundo CNV do Arquivo Nacional.

Mesmo que os povos indígenas tenham sido aniquilados em sua maioria e forçados a se integrar a um “projeto nacional”, esses coletivos persistem defendendo suas terras, mantendo vivos seus costumes, cultivando suas tradições. Isso acontece de muitas formas, inclusive por meio de suas narrativas. As narrativas aqui analisadas, prestadas em testemunhos à CNV, mostram as constantes violações de direitos das quais foram vítimas diferentes etnias indígenas ao longo do desenvolvimento da nação brasileira.

Os testemunhos orais que coletamos para esse trabalho foram selecionados entre as 14 atividades realizadas pela CNV em relação aos povos indígenas. As narrativas aqui analisadas são constituídas pelos testemunhos de 17 indígenas de cinco diferentes etnias: Yanomami, Pataxó Hã Hã Hãe, Tupinambá, Krenak e Kaiowá. Os depoimentos de indígenas das quatro primeiras etnias foram dados em forma de entrevista à Maria Rita Kehl nos territórios indígenas e os depoimentos dos Kaiowá na 1º Audiência Pública em Dourados (MS), conforme mostra o quadro abaixo:

Quadro 1- Depoimentos de indígenas à CNV- testemunhos, data, local, fatos

TESTEMUNHOS

DATA

LOCAL

FATOS

Líder indígena David Yanomami e outros (em torno de cinco indígenas, embora houvesse mais no evento).

24 de agosto de 2013.

Roraima, Aldeia Ajarani, Terra Indígena Yanomami, Município de Caracaraí.

Construção da Rodovia Perimetral Norte (BR 210).8

Naílton Pataxó.

03 de novembro de 2013.

Território dos Pataxó Hã-Hã-Hãe, no sul da Bahia, no Município de Pau Brasil.

Luta do povo Pataxó Hã-hã-Hãe pelo seu território.

Cacique Babau Tupinambá e seu pai.

13 de novembro de 2013.

Aldeia Serra do Padeiro, Terra Indígena Tupinambá de Olivença, no sul da Bahia.

Remoções forçadas do povo Tupinambá.

Oredes Krenak e Douglas Krenak.

20 de junho de 2014.

Terra indígena Krenak, no Município de Resplendor, em Minas Gerais, vale do Rio Doce.

Exílios os quais foram submetidos os Krenak, a cadeia indígena construída em seu território e a formação da Guarda Rural Indígena -GRIn.

1ª Audiência Pública sobre Violações de Direitos Indígenas (1946 – 1988) – 9 depoimentos indígenas sobre cinco casos.9

21 de fevereiro de 2014.

Dourados, Mato Grosso do Sul, Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Faculdade Intercultural Indígena.

Todos os casos investigados estão relacionados à expulsão, remoção e intrusão de territórios indígenas.

Fonte: Dados da pesquisa1011

Em todos os relatos dos casos apresentados são explicitadas as violências, humilhações, descuido com a saúde, os abusos de autoridades, prisões, torturas e mortes sofridas pelos diferentes indígenas. Com o intuito de abordar as construções de narrativas realizadas por diversos atores indígenas a respeito do período investigado pela CNV, analisamos os discursos narrativos. Consideramos essas narrativas um visível “exercício de memória” (RICOUER, 2007), uma vez que não é uma memória que brota espontaneamente, mas é um esforço consciente para trazer ao presente aquilo que ficou esquecido ou foi silenciado pela memória oficial. Ao trabalhar com as “memórias subterrâneas” (POLLAK, 1989) desses sujeitos invisibilizados nas políticas de justiça e reparação há uma posição de subversão ao silêncio, ou uma “vontade de memória” (NORA, 1993).

As narrativas concretizadas nos testemunhos prestados pelos indígenas à CNV são entendidas como “lugares de memórias” que segundo Nora (1993, p.13) “[...] nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea”, pois estão relacionados a um projeto de memória coletiva. Esse projeto pode ser observado na fala do cacique Jorge Gomes, Kaiowá da Aldeia Pirakuá, quando se refere às novas lideranças que nasceram no movimento de luta pela terra, utilizando-se de uma analogia ao plantio e à colheita:

Toda a vida eu disse que o Marçal [líder indígena assassinado em 1983], antes dele tombar, o Marçal já tá fazendo a lavora, tava fazendo a lavora. O Marçal tava plantando semente e essa semente é que estão nascendo aí novas lideranças. Tombou, mas o Marçal já tinha plantado, já tinha feito a lavoura e plantou semente e nasceu. Nasceu várias lideranças não é só um que tá pra lidar com a questão do direito, questão da demarcação das terras. Então o importante é isso e eu torno a dizer, por exemplo, as sementes que está sentado, professor do FGDS, mais, mais semente que ficam lá na Aldeia (AUDIÊNCIA..., 2014a, 77min 15s).

Muitos relatos mostram a permanência de lembranças traumatizantes, que segundo Pollak (1989, p. 5) “[...] esperam o momento propício para serem expressas.” Em depoimento na Audiência Pública de Dourados traduzido por Tonico Benites, Micaela Kaiowá, ao recordar a retirada forçada de seu território (Jaguapiré) em 1980 repete sua dor ao ver sua família sofrer maus-tratos:

Fazenderos invadiram nós aquele dia e 24 mais ou menos pessoa homens que compareceram e atacaram nós e agrediram, minha filha sofreu mais ainda agressões e na sequência faleceu em decorrência do espancamento e dos ferimentos. Então isso que até hoje eu sinto a perda da minha filha em decorrência da violência sofrida naquele momento. [...] Minha mãe também é...foi machucada. Isso também levou ela a morte depois, nunca mais ficou...recuperou saúde, minha mãe também era velha, por isso na sequência também morreu por conta da machucadura que recebeu (AUDIÊNCIA...2014b, 13min 03s).

Contudo, estas memórias subterrâneas se mostram na narrativa do presente como uma forma de resistência aos discursos oficiais. Micaela, com muita veemência, tocando o maracá, reafirma a vontade de luta:

Nossa decisão era sempre voltar e ficar e morrer e ficar eternamente naquele lugar. Então isso era a nossa decisão, toda vez que expulsava a nossa decisão era a mesma, era retornar, voltar ao espaço e morrer naquele lugar. E por isso nós rezávamos e mostrando que era isso. [...] todo era contra e única forma que a gente, pra nós fortalecer era naquele momento fazer rituais, reza, canto, através do qual temo força pra voltar e enfrentar os pistolero. Assim realizamos e assim aconteceu e voltamos. [...] Voltamos porque temos certeza que aquela terra é...sempre foi nossas, é nossa! Por isso voltamos, por isso retornamos, recuperamos, porque é nossa. [...] E a minha decisão é sempre ficar onde está minha mãe enterrada, onde está a nossa luta e onde estamos hoje (AUDIÊNCIA..., 2014b, 22min 38s).

No relato de Micaela podemos observar as questões apresentadas por Paul Ricoeur (2007) principalmente quanto ao direito à memória ou dever de memória, ou seja, um projeto memorialístico no qual o trabalho de luto tem como horizonte a justiça de um passado. A memória declarada no testemunho projeta sobre o trauma uma diferente visão a seu respeito, aquela de que o passado não deve ser esquecido, mas ressignificado no presente enquanto um projeto de futuro. Portanto, o local da Audiência é um movimento para que ocorra a lembrança ou a “metamemória” na conceituação de Candau (2010; 2016).

É condição indispensável para uma sociedade mais justa que ela possa sentir no testemunho das vítimas o paradoxo de uma experiência traumática que se alastrou no conjunto dos povos indígenas justificada por um projeto de desenvolvimento nacional. Nas falas dos Yanomami sobre a construção da BR 210 podemos constatar os abusos cometidos pelo Estado contra estas populações, gerando desagregação social, extermínio, invasões, desassistência e morte, como observamos no testemunho de Antônio, da Aldeia Ajarani, traduzido por Davi Yanomami;

O que Antônio tá contando é assim: naquele tempo ele tava pequeno mais ou menos assim... 14, 15 anos. E o primeiro homem branco que chegou no Caracaraí, trazeram máquina, trator, caminhão, todo equipamento de máquina. E muita gente também tava preparando lá. E começou. Entrou aqui onde nós entramos hoje. Ai eles fizeram primeiro a picada, o caminho. Veio o caminho, fazer o caminho e outros derrubando, e outros cortando as árvore... com machado... [...] Aí o nosso Pata... chama Pata, é uma liderança... liderança que não sabia de nada. Não... não avisaram antes pra ele saber enquanto liderança da aldeia. Aí o pessoal homem branco eles pegaram de surpresa. [...] Assim é costume do homem branco que veio fazendo, aconteceu assim, mas não pensaram que vai acontecê depois, depois da entrada de invasores: veio a doença, veio a gripe é... outra doença... sarampo. [...] Morreu... Morreu velho, mulher velho, homem velho, porque não tava vacinado. [...] (KOPENAWA et al, 2013, 02min 34s):

Numa leitura dos depoimentos prestados pelos indígenas Yanomami é possível perceber que os testemunhos remetem aos traumas de uma memória individual. Muitos evocam o sofrimento e mortes de familiares, narram as experiências de perdas e dores fruto de um desconhecimento das consequências da entrada do branco em suas terras, como que externando um sentimento de culpa: “Yanomami pensaram que é gente boa, que vai dar certo [...] o pensamento da nosso Pata, nossa liderança mais velho, eles acharam que o homem branco fazendo caminho, Yanomami pensá que é caminho bonito, porque não sabia, né?” (KOPENAWA et al, 2013, 06min 16s). Porém, é na voz de Davi, liderança do povo Yanomami, que essas experiências, frutos de um momento histórico-político, se inserem na esfera pública e acenam para a construção de uma memória de resistência:

Bom, então, depois da estrada a doença não saiu junto com ele não a doença ficô. [...] Até hoje. Então, a pessoal que tava construindo a perimetral parô de serviço, vão embora todo mundo, agora a doença que entrô, a doença ficô no lugá do Camargo Correa. Aí o meu povo continua morrendo. Epidemia que ficô, porque essa perimetral norte que governo abriu o caminho pra entrada, pra entrá a doença, gripe, tuberculosa, câncer, DST e outra doença nova está chegando cada vez mais...[...] Então, é... eu não sabia que o governo vem a deixá estrada na terra Yanomami, ele faltô avisá. Autoridade não avisô antes de destruí a nossa meio ambiente, antes de matá o nosso povo Yanomami, nosso povo no Brasil. Então, a estrada é o caminho de invasores, que abre essa estrada, é o caminho de invasores, garimpeiro, fazendeiro, coronheiro [que mora na beira da estrada], pescadô e caçadô e outra pessoa que venha coletando, venha interessando tirá biopirataria. [...]. Existe a Funai, Fundação Nacional de Índio, que cuida de nós e protege nós, mas ele não ajudô nós, não ajudô nós pra avisá. Avisá: Tê muito cuidado, estrada é perigoso, tem que não presta, tem gente que não gosta de índio, tem gente que mata gente. Ele não falô isso. Então, hoje, nós tamô reclamando. Demorô muito, demorô muito pra investigá [...] Dois mil e treze que vocês vieram aqui procurar a gente pra contar sobre a estrada que passa na terra Yanomami (KOPENAWA et al, 2013, 58min 44s).

Nos testemunhos das lideranças de diferentes etnias observamos que lidar com o passado é um trabalho pedagógico, um trabalho de construção social e política que envolve coletivamente diversos atores na construção do direito à memória. O dever de memória é imprescindível para o apaziguamento social, pois pelo esquecimento a sociedade repetirá o uso arbitrário da violência por não ser reconhecida como tal. As políticas de esquecimento perpetuam na sociedade atos de violência que são vistos como atos individuais; contudo, são heranças de um passado que não passou. No relato de Nailton Pataxó (2013), o episódio do incêndio deliberado de Galdino em Brasília no ano de 1994 é ressignificado na luta coletiva pela terra, que se iniciou desde o Governo Getúlio e se intensificou no período da ditadura civil-militar. Em sua narrativa percebemos que as experiências de perdas e dores não podem ser relegadas à esfera privada:

Em 94 foi feita a ocupação na fazenda Dom Sebastião, Fazenda Bom Jesus e Fazenda Paraíso e o fazendeiro entrou com o pedido de reintegração de posse ganhou a reintegração de posse e tiraram os índio a força. A Polícia Militar tirou os índio a força. [...] em 97 foi um grupo de liderança em Brasília reivindicar a volta pra Fazenda São Sebastião, Fazenda Paraíso e Fazenda Bom Jesus. E lá foi quando que incendiaram Galdino, em 97. Ele tinha ido nesse grupo reivindicar a volta pra essas fazenda. Aí incendiaram Galdino num banco, num ponto de ônibus em Brasília, ali na 703. [...] Aí aconteceu que a comunidade se revoltou com aquela situação em saber que os culpado ficaram praticamente impune, né. Já tavam respondendo em liberdade, a comunidade sentou, criou Assembleia interna e foi se organizar para reconquistar o seu território de uma maneira considerada como auto-conquista da terra (PATAXÓ, 2013, 13min 43s).

Ao assistir ao vídeo da 1ª Audiência Pública em Dourados percebemos que a solidariedade social se manifesta essencialmente quando o público presente exterioriza com palmas, com os sons dos maracás tocados entusiasticamente e com os cantos e danças realizados ao final. Essa experiência, muitas vezes de conteúdo dramático, causa sensibilização para com os depoentes, justamente por identificarem-se com os fatos narrados e com o lugar político e social que os testemunhos evocam. É vivenciado um exercício intercultural, com duas lógicas, uma em que a prova é o documento escrito e outra para quem a prova é a fala, é a memória, são os antepassados. Circula na Audiência a comunicação através da escrita, com a apresentação de documentos por parte dos pesquisadores, mas é na narrativa oral que as representações das violações do passado ganham vida e são reinterpretadas no presente. Isso pode ser vislumbrado no testemunho de Valdomiro Osvaldo Aquino, Kaiowá de Lagoa Rica:

[...] naquela época fazendero atacavam a gente fisicamente, vamo dizer assim. Ele atacaram uma forma que você não enxerga nada, mas ele tá enxergando ... é... atacando como antigamente atacava com arma, bala, essas coisa. Hoje não, ele tá atacando com papel, democracia. Ele fala bem, mas por trás ele fala outro jeito, é isso que política ele faz e o fazendero também faz contra da gente (AUDIÊNCIA..., 2014c, 26s).

Quando Maria Rita pergunta a Jorge Gomes se ele tem prova do assassinato de Marçal (líder indígena assassinado em 1983), ele responde: “Ó, eu não tenho prova, pra mim ter prova eu tenho que tá com foto da pessoa aqui e eu aprendi assim que a gente tem que ter prova na coisa assim” (AUDIÊNCIA..., 2014a, 79min 15s). Na continuação de sua fala percebemos que ele “aprendeu a lógica dos não-índios”:

[...] hoje eu saí meio apurado que eu me esqueci da minha Constituição, não trouxe, mas eu sempre tenho, sempre comigo... que vocês que são doutor pra isso eu nunca achei uma frase que dizia que tem que tirar o índio das terra dele. É bem ao contrário. Bem ao contrário, dizendo assim, se tirar o índio da terra dele, porventura ele pode retornar novamente para as terra dele, ou seja, desde que o índio é conhecido naquele lugar, ninguém pode tirar, nem Funai, nem governo do Estado, nem juiz, nem ninguém. Nem presidente. Nem presidente, isso a gente achou na Constituição Federal. Agora eu fico admirado uma coisa só que na época que o juiz deu uma liminar pra tirar o índio das terra dele. Um sabedor das coisas (AUDIÊNCIA..., 2014a, 121min 51s).

A fala de Cacique Babau da Terra Indígena Tupinambá de Olivença é simbólica quanto ao entendimento do documento: “Então os cara chegava aqui que nós nunca viu, declarava assim: Peraí, eu tenho um documento aqui dizendo que eu sou dono, apresente o seu. Como é que a gente vai apresentar documento que é dono?” (TUPINAMBÁ, 2013, 25min 28s). Quando a comissionada Maria Rita perguntou se seria um documento fraudado, Babau responde: “É. Sempre teve esses documentos que ... aliás, quase todos os documentos aqui são fraudice, são dessa época. Não tem documento moderno nessa região aqui de alguém” (TUPINAMBÁ, 2013, 26min 16s).

Já na fala de Douglas Krenak, observamos que ele domina a lógica informacional da sociedade ocidental, identificando o arquivo como um lugar de poder: “[...] eu tenho um arquivo lá em casa, um documento que tem a planta todinha desse perímetro aqui do presídio, do almoxarifado, da secretaria. Tinha celas individuais” (KRENAK, O.; KRENAK, D., 2013, 49min 56s).

A experiência testemunhal de Oredes e Douglas Krenak (2014) é referente às violações sofridas por seus familiares já mortos. Segundo eles, a morte foi em consequência dos maus-tratos sofridos no presídio indígena e principalmente pelo exílio forçado em outros espaços longe do Rio Doce, longe da sua terra, afastados de seus costumes e proibidos de falarem a língua originária. Nos testemunhos, percebemos que os depoentes interpretam sua memória ferida pelo passado e que isso traz consequências para o presente e para o futuro de todo o povo:

Douglas Krenak: Chorava quando falava do Rio Doce [...]

Oredes Krenak: Morreu no Vanuir chorando querendo que fosse enterrado aqui na terra dele. [...]

Oredes Krenak: Você viver feliz, no seu lugar, tudo, que é o rio Doce.

Douglas Krenak: Acho que o maior sofrimento, também acho que foi não viver no seu local, não sepultar o seu parente no seu local, com seu igual.

Oredes Krenak: Na sua terra sagrada...

Douglas Krenak: Acho que isso que o povo sofreu muito foi por causa disso [...]

Douglas krenak: É outra dificuldade que o meu pai de passar pra nós, questão nossa aqui e hoje a gente nem sabe como que vai fazer daqui pra frente, porque o que a gente tinha de referência era o pai da gente. Era essa questão de não poder terminar estes rituais de passagem, ritual fúnebre, com parente enterrado em outro local. Então isso é uma das dificuldades que o meu pai tinha às vezes de passar pra nós um... boa parte da nossa cultura.

Oredes Krenak: É, como ía ser, como funcionava isso.

Douglas krenak: [fala na língua originária 28:53 a 29:10] [...]

Douglas krenak: Pra nós é difícil porque hoje a gente busca o entendimento, igual o pessoal fala mesmo: Ah a ditadura acabou. A ditadura acabou, a ditadura acabou, mas muita coisa da ditadura vai ficar por muito tempo.

Oredes Krenak: Já feriu, feriu a alma da gente, tudo (KRENAK, O.; KRENAK, D., 2014, 20min 08s).

Ao se manifestar no meio de seu depoimento na língua originária, Douglas mostra que vai além de um testemunho biográfico, pois compreende em termos mais amplos o tempo da experiência sofrida pelos seus antepassados. Expressa um dever de que não seja esquecido o sofrimento de seu povo e suas consequências, mas projeta na disputa pelo fortalecimento da cultura originária a possibilidade de um processo reflexivo de superação do legado autoritário. Ao se referir sobre o funcionamento de uma escola já antes do período ditatorial, onde era ensinado o português e a língua originária fora proibida, Douglas constata que a ditadura “[...] só deu continuidade a esse esquema que foi montado aqui de épocas passadas” (KRENAK, O.; KRENAK, D., 2014, 30min 20s). A comissionada Maria Rita pergunta: “Queriam acabar com a cultura toda?” Douglas responde: “É, mata a língua e você acaba com o povo todo”. Logo é completado por Oredes: “Acabar com a cultura e acabar com o povo também” (KRENAK, O.; KRENAK, D., 2014, 30min 26s).

As memórias reivindicadas pelos testemunhos prestados pelos indígenas de diferentes etnias configuram a dimensão da construção da identidade coletiva desses povos, que ao dialogarem sobre si e sobre os abusos e violências sofridas, fomentam a discussão acerca da democracia e dos direitos humanos desde um ponto de vista prático. Possibilitam, assim, que estas informações se transformem em um capital social, político e simbólico para a formulação de políticas de memórias que contribuem à construção da cidadania.

Ao assistirmos aos testemunhos, percebemos que há uma quebra de temporalidade nas narrativas, uma ruptura com esse tempo linear que a história nos impõe. Elas são mais bem pautadas pela espacialidade, na qual tempo e lugar se mesclam e se transformam num espaço de reivindicação do presente e reinvenção do futuro a partir das diferentes histórias de cada povo.

A análise feita até aqui quanto ao papel desempenhado pelos testemunhos orais dos indígenas colhidos pela CNV no que tange à memória, nos permitem dizer que indicam um espaço importante para a composição de uma sociedade solidária e implicada na promoção dos direitos humanos.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim, retomamos as indagações do estudo: como o conjunto de informações levantadas pela CNV auxiliam no direito à memória dos povos indígenas? Como elas contribuem na promoção dos direitos humanos e na construção da cidadania? Na tentativa de resposta aos questionamentos, considerando a complexidade que a temática envolve, pensamos que a CNV vincula uma política de memória, sendo ela um dispositivo de ressignificação de um período histórico traumático, eivado por abusos e por violações dos direitos humanos.

A construção ao direito à memória envolve redes transversais engendradas entre atores sociais, artefatos e dispositivos informacionais, pois auxilia na promoção dos direitos humanos e na construção da cidadania. O dever de memória é fundamental para a paz social. As políticas de esquecimento eternizam na sociedade atos de violência que são vistas como atos individuais, porém são heranças de um passado que não passou. Os processos de negociação entre os diferentes interesses dos atores sociais intrincados no processo de ressignificação do passado são marcados pelas relações de forças entre os diferentes grupos sociais que disputam o poder político.

Ao conceder voz aos indígenas através de audiências públicas e de incursões em seus territórios, a CNV contribuiu à ressignificação da memória social, possibilitando a esses atores a representação do passado e a construção de mecanismos de transmissão da memória. O testemunho oral é um instrumento para o aprofundamento de uma democracia contagiada por violações aos direitos humanos cometidas pelo Estado contra os povos indígenas. A memória exercitada, comunicada através do testemunho, não apenas pelos documentos de arquivos como instrumento legal de prova documental, possibilita o aprofundamento democrático acerca dos acontecimentos. Desta forma, o trabalho da CNV se constitui uma fonte de informação para a história, além de evidenciar constantes tensões entre o passado, o presente e o futuro.

Os espaços de fala, proporcionados aos indígenas pela CNV, possibilitam que as vítimas antes ignoradas, e quem as ouvem, se tornem sujeitos atuantes sobre o quê falam e sobre o quê escutam. As práticas intersubjetivas de conhecimentos suscitam mediações no mundo real, uma vez que a importância do testemunho não está somente na corroboração dos fatos em si. O ato de testemunhar tem um potencial múltiplo, indo além de suas pretensões históricas ou jurídicas, pois constrói racionalidades que impulsionam à ação.

Os comissionados administraram o acesso às informações e o relato público das memórias, compondo uma narrativa final negociada entre os atores sociais, os artefatos de informação e as regras e as normas próprias à CNV. Essa narrativa autoriza e atualiza a memória social dos povos indígenas, ou seja, há um processo de enquadramento da memória. Entretanto, percebemos que nunca haverá um enquadramento finalizado, uma vez que a memória do passado é permeada pela análise do presente, que se sujeita às mutações produzidas pelo contexto atual. Para além do relato final produzido, as redes transversais constituídas durante o trabalho da CNV e os efeitos produzidos pelas relações intersubjetivas, dadas através do exercício da memória, permanecem como possibilidade de resistência aos retrocessos sócio-políticos percebidos hoje na sociedade brasileira.

Os mecanismos de justiça de transição no Brasil ficaram muito tempo circunscritos aos familiares de mortos e desaparecidos, na localização dos restos mortais e ao esclarecimento das circunstâncias dos assassinados. O resultado disso foi que não houve uma conscientização social sobre os impactos da ditadura no conjunto da sociedade brasileira. Produziram-se efeitos discursivos, políticos, psicológicos e sociais em relação aos diferentes grupos afetados, como aos povos indígenas, que ainda permanecem, devido à complacência da sociedade brasileira em relação aos casos de violência física e simbólica sofrida pelos indígenas e suas comunidades.

No relatório final não houve um aprofundamento dos testemunhos indígenas. Entretanto, o trabalho da CNV foi relevante quanto à produção e à disseminação de documentos em relação aos povos indígenas, contribuindo para o direito à memória desses povos e para a consolidação do regime democrático. No atual cenário brasileiro, marcado pelo encolhimento dos canais de representação democrática no âmbito das políticas públicas, o papel das informações que constam no relatório final se reveste de importância, pois representam uma contribuição necessária ao enfrentamento das políticas de silenciamento.

O trabalho da CNV efetiva publicamente o acolhimento de amplas atrocidades cometidas contra os povos indígenas, de diferentes etnias, ao longo do período investigado pela Comissão, mostrando-as como práticas coordenadas pela ação do Estado, que assumem mecanismos próprios durante a ditadura civil-militar. Além disso, reconhece que a perseguição aos povos indígenas incidiu no próprio modo de ser indígena, constituindo-se como um crime de motivação política. A Comissão admite que a forma mais fundamental de reparação coletiva pelas graves violações sofridas pelos povos indígenas é a regularização e desintrução das terras indígenas; recomenda a recuperação ambiental de suas terras, esbulhadas e degradadas pela política de colonização e pela implantação de grandes empreendimentos. Ademais, aponta a necessidade de inclusão da temática em ações no âmbito da educação e da saúde, explicitando a preocupação com a memória como um dispositivo de construção democrática, onde se vislumbra a possibilidade de uma “não repetição”.

Atualmente, presenciamos o encolhimento do espaço democrático, o aumento de homicídios e a perseguição às lideranças e movimentos indígenas, assassinatos de defensores dos direitos humanos com propostas de mudanças na legislação em vigor que significam um retrocesso aos direitos humanos no Brasil. A omissão dos parlamentares e a implantação de medidas antidemocráticas do Estado brasileiro trazem impacto para o reconhecimento, delimitação e demarcação de terras indígenas, bem como propiciam a ocorrência de atos de violência contra os povos indígenas e suas lideranças. Embora a Constituição de 1988 tenha garantido a conquista de direitos por parte da população indígena, no Brasil atual se vislumbra um retrocesso em relação às políticas públicas, com novas violações e tentativas de apagamento do passado.

Embora o trabalho da CNV tenha sido desvanecido pela crise política-institucional em consequência do processo de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff (2016) e a eleição de Jair Bolsonaro (2018), os povos indígenas do Brasil e suas organizações têm exercido um protagonismo na agenda nacional e internacional, forçando o Estado brasileiro a se comprometer com o marco legal dos direitos humanos e por colocar em prática os direitos conquistados.

Desse modo, assinalamos o papel estratégico e a responsabilidade social da Ciência da Informação ao propor pesquisas sobre formas de produção, registro, arquivamento, preservação, recuperação e disponibilização de informações e documentos relativos à repressão e a resistência. Ressaltamos, ainda, a importância das fontes orais para o registro da memória social e consolidação do direito à memória. A Ciência da Informação pode contribuir na formulação de políticas de memória, tanto numa perspectiva epistemológica, através da construção de redes de pesquisa, como no campo tecnológico (convergência tecnológica, digitalização, interoperabilidade) e regulatório (codificação, padrões, gestão).

Lembramos que respeitar a memória é como cicatrizar feridas. A memória não respeitada é como uma fratura exposta, como uma úlcera aberta.

Agradecimentos - A pesquisa obteve o financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

REFERÊNCIAS

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1 Docente permanente no Programa de Pós-graduação em Comunicação e Informação. Universidade Federal do Rio Grade do Sul, Brasil. ORCID https://orcid.org/0000-0002-2304-399X. E-mail: valdir.morigi@gmail.com

2 Professora da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre, Brasil. ORCID https://orcid.org/0000-0002-9971-944X. E-mail: anagiovanonifornos@gmail.com

3 A justiça de transição é um mecanismo adotado em países submetidos, em larga escala, por graves violações dos direitos humanos e seu objetivo amplo é assegurar a prestação de contas, a justiça e a reconciliação. As iniciativas de justiça de transição objetivam reconhecer o direito das vítimas, viabilizar a reconciliação, promover a paz e fortalecer a democracia (TEITEL, 2011).

4 Eleição indireta de Tancredo/governo Sarney/eleição e impeachment do Collor, dois governos FHC, dois governos Lula e somente no governo Dilma, por razões que são delineadas vagamente, é que se preenche este hiato legislativo.

5 A Lei n.º 12.528/2011 estabeleceu o período a ser investigado pela Comissão entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988, datas de promulgação de duas constituições democráticas, ou seja, remeteu ao período estabelecido pela Assembleia Nacional Constituinte para autorizar a concessão de anistia aos que foram atingidos em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares. Embora ao longo do seu Relatório haja referências em consonância com este período, a CNV concentrou seus esforços para o esclarecimento de graves violações de direitos humanos no período de 1964 a 1985, por haver identificado uma prática disseminada em larga escala nesse sentido pelo regime militar. (BRASIL, 2014a, p. 41).

6 A Lei nº 12.527/2011 regula o acesso a informações, garantindo o alcance a qualquer documento e informação de interesse público mantido pelos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, pelos Tribunais de Contas e por Ministérios Públicos, além de autarquias, fundações públicas, empresas públicas, sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente por governos. Esta legislação foi determinante para o trabalho da CNV.

7 Essa cifra inclui apenas os casos estudados pela CNV em relação aos quais foi possível ter uma estimativa. Em nota final no relatório a CNV informa: “Cerca de 1.180 Tapayuna, 118 Parakanã, 72 Araweté, mais de 14 Arara, 176 Panará, 2.650 Waimiri-Atroari, 3.500 Cinta-Larga, 192 Xetá, no mínimo 354 Yanomami e 85 Xavante de Marãiwatsédé” e admite:“Não ousamos apresentar estimativas para os Guarani e Kaiowá mortos no Mato Grosso do Sul e Paraná, por exemplo, embora tenhamos abordado esses casos aqui” (BRASIL, 2014b, p. 254).

8 Com o encerramento dos trabalhos da Comissão, após a entrega do Relatório Final, a cópia do portal da CNV é mantida pelo Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985) – Memórias Reveladas, do Arquivo Nacional, criado pela Portaria nº 204, de 13 de maio de 2009.

9 Estes vídeos também se encontram gravados em DVD e arquivados no Arquivo Nacional sob o n.º BR RJANRIO CNV.0.DPO.00092002579201477 na coleção CNV, Depoimentos com o título “Conjunto de depoimentos sobre violação de direitos indígenas (1946-1988). Registros realizados pelo projeto ‘Vídeo nas Aldeias’, sob a coordenação de Maria Rita Kehl”.

10 A BR-210 (Perimetral Norte) foi planejada no auge do desenvolvimentismo econômico da ditadura civil-militar, em meados de 1970, para cortar a Amazônia brasileira fazendo parte do Plano de Integração Nacional -PIN.

11 Sessão I: O caso Rancho Jacaré-Guaimbé (1971); Sessão II: O caso Nhanderú Marangatú - Pirakuá (1983); Sessão III: O caso Jaguapiré (1980); Sessão IV: O caso Panambizinho – Lagoa Rica (1971); Sessão V: O caso Lagoa Johá (1983).

relato de pesquisa