O PÓS-HUMANO COMO PARADIGMA EMERGENTE NA CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO

POST-HUMAN AS AN EMERGING PARADIGM IN INFORMATION SCIENCE

Silvana Drumond Monteiro1

Richele Grenge Vignoli2

Carlos Cândido de Almeida3

RESUMO

Estuda-se evidência do pós-humano como novo paradigma na Ciência da Informação a ser investigado. A partir de rejeição de visões binárias entre sujeito e objeto, no geral, e especialmente entre humanos e máquinas, e com o avanço das tecnologias da informação e informação, várias disciplinas e filosofias estão abordando esse novo cenário contemporâneo. Assim, após uma revisão de literatura crítica, identificou-se na Cibernética a gênese do pós-humano, por apresentar um conceito de informação desmaterializada e uma ontologia de similaridade entre humanos e máquinas, e tendo o ciborgue como imagem dessa realidade. Uma vez que o termo possui vários espectros de hibridização entre pessoas e máquinas, abordou-se o conceito de pós-humano, superinteligência e transumano, para apresentar algumas características do sujeito informacional. Assim, pretende-se esquivar-se da centralidade do homem como ser dotado de capacidades cognitivas elevadas frente a outros seres e máquinas e refletir sobre um pensamento interdisciplinar à compreensão de novos fenômenos sociotécnicos. 

Palavras-chave: Pós-humano. Superinteligência. Transumano. Ciência da Informação. Paradigma. Sujeito informacional.

ABSTRACT

he post-human evidence as a new paradigm in Information Science to be investigated is studied. From the rejection of binary views between subject and object, in general, and especially between humans and machines, and with the advance of information and information technologies, several disciplines and philosophies are dealing with this new contemporary scenario. Thus, after a critical literature review, it was identified in the Cybernetics the genesis of the post-human, for presenting a concept of dematerialized information and an ontology of similarity between humans and machines, and having the cyborg as an image of this reality. The post-human, superintelligence and transhuman concept was approached to present some characteristics of the informational subject, as the “post-human” concept has several spectra of hybridization between people and machines. Thus, it is intended to dodge the centrality of the human being as someone endowed with high cognitive capacities in relation to other beings and machines and to reflect on an interdisciplinary thinking in order to understand new sociotechnical phenomena.

Keywords: Post-human. Superintelligence. Transhuman. Information Science. Paradigm. Informational subject.

Artigo submetido em 18/07/2020 e aceito para submissão em 12/11/2020

1 INTRODUÇÃO

Descobertas e desenvolvimentos tecnológicos do final da década de 90, do século passado, permitiram (e permitem) que novos cenários se configurassem, como a Internet (rede de máquinas), o ciberespaço (rede de signos e pessoas, MONTEIRO; MOURA, 2016), incluindo a Web, as plataformas digitais e redes sociais, dentre outros.

No cenário científico, há um crescimento de estudos de temas inter (entre disciplinas acadêmicas) e transdisciplinares (além das disciplinas acadêmicas) como: Nanotecnologia, Microbiologia, Realidade Virtual, Inteligência Artificial (IA), Neurofisiologia, Ciências Cognitivas e outros. A ideia central é superar as cisões disciplinares e a ultraespecialização fundadas em um projeto de ciência subsidiado pela narrativa moderna do conhecimento.

Emerge, na cultura, o que se pode chamar de cibercultura, que busca compreender os fenômenos sociotécnicos de uma sociedade cada vez mais midiática. No campo da reflexão filosófica sobre o sujeito, termos como transumano, pós-humano, superinteligência, híbridos e singularidades tornam-se recorrentes em discussões que põem em pauta a relação dos seres humanos e não humanos, entre seres e tecnologias.

Em 2008, pensando nessas questões, foi publicado um trabalho no contexto da Ciência da Informação, sobre essas conexões no intuito de anunciar uma ontologia para as Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC). À época, Monteiro (2012) cotejou autores como, Latour (1994) e sua teoria sobre os híbridos, a dobra deleuziana e seus agenciamentos maquínicos (1991), a singularidade de Kurzweil (2007) e o manifesto ciborgue de Haraway (2009).

Esses teóricos, apesar da flagrante importância para o debate sobre o pós-humano, não serão revisados neste trabalho, têm provocado reflexões sobre a concepção de pós-humano, de superinteligência e de transumano. Contudo, cumpre saber concretamente: qual a relação desses debates com a Ciência da Informação? Genericamente, tudo que se aproxima da intersecção humano, tecnologia e inteligência deveria estar no centro das especulações e da pesquisa científica deste campo. A compreensão das mudanças sociotécnicas e do grau de aderências das tecnologias ao fazer humano, bem como os avanços das capacidades cognitivas, deveriam estar na linha de conta da Ciência da Informação. Presume-se que se avizinha um novo paradigma ou um novo capítulo para a Ciência da Informação, não mais aquele calcado na emergência de tecnologias de automação de sistemas de informação envolto a uma tecnofobia anacrônica e sem respaldo prático.

No final dos anos 1980 e durante a década de 1990, a compreensão do advento tecnológico nos sistemas de informação tomou por base um pensamento binário ainda difícil de ser transposto. Nessa concepção, tecnologias e seres humanos eram postos em constante confronto em diversas perspectivas, sejam elas mais humanistas ou mais próximas de uma análise marxista.

Do ponto de vista humanista, duas compreensões distintas foram produzidas: por um lado, entendia-se que as tecnologias substituiriam atividades particularmente humanas, tais como a interação social, a conversação e a racionalidade; ou, por outro lado, mais positivamente, as novas tecnologias atuariam apenas nas ações ou tarefas técnicas e repetitivas, tributadas a um autômato, não atingindo as capacidades intelectuais supremas e reservadas aos homo sapiens. Uma lembrança à querela surgida nas décadas de 1960 e 1970 referente aos apocalípticos e integrados de Umberto Eco (1993) não seria mera analogia.

Já do ponto de vista marxista, o confronto era mais declarado entre esses dois entes; máquinas e seres humanos. No contexto das relações de trabalho, entendia-se (e ainda se compreende) que todo e qualquer tipo de tecnologia de informação promove a redução dos postos de trabalho em razão da automação e do controle do operariado de diversas formas. Particularmente defendia-se a ideia de que a mais-valia - ou o lucro sobre a exploração da mercadoria chamada trabalho - era supervalorizada uma vez que a tecnologia – assim como uma ferramenta qualquer de um mecânico ou de um trabalhador do campo - potencializa o lucro na medida em que diminui o tempo de produção e assim o valor da mão de obra.

A entrada de tecnologias para a automação das fábricas de automóveis, como um exemplo clássico, era algo a ser evitado. No caso das bibliotecas tinha-se a desconfiança plausível que os computadores poderiam substituir o papel de bibliotecários, uma vez que os usuários consultariam livros e outros materiais por conta própria; além disso, os computadores faziam com agilidade a organização de listas de assuntos, autores e obras, entre outras tarefas que aparentemente exigiam inteligência humana.

As narrativas humanista e marxista mais ou menos sectárias não conseguiram explicar a simbiose entre seres humanos e tecnologias, inteligência e tecnologia, bem como a condição humana frente a este estágio de integração sociotécnico. Em que pese as particularidades dos sistemas de informação, as explicações supostamente humanista e marxista sobre a interação humano-máquina - se é que se pode sintetizar assim – têm gerado limites e freios hermenêuticos dificultando a apropriação adequada do debate pela Ciência da Informação. Nesse contexto, a visão de um novo paradigma se enubla.

Tanto o humanismo quanto o marxismo e o pós-humano são doutrinas filosóficas acerca do sujeito, sua essência e formas de relacionamento com seu entorno. Por razões de recorte teórico e o crescimento da tecnologia na contemporaneidade, o artigo cotejará algumas visões do pós-humano, como a superinteligência e o transumano e como se relacionam com os debates da Ciência da Informação.

Uma hipótese de trabalho é que o início dessa relação partiu da emergência da cibernética, na década de 1950, e o conceito de entropia e informação descorporificada, entre outros que serão explicitados mais adiante. Contemporaneamente, o aumento exponencial de conteúdos nas plataformas digitais deixa evidente que os recursos humanos estão competindo com outros recursos tecnológicos, seja para melhoria de habilidades, para correção de partes do corpo ou para a extensão da memória. Galloway (2020, p. 171) usa a metáfora do corpo para associar a empresa Google ao cérebro humano. “O Google tornou-se o centro nervoso de nosso cérebro prostético compartilhado.”

Para que possamos pensar nas consequências dessas abordagens ao escopo da Ciência da Informação, será importante retroceder um pouco e recuperar os traços dessa nova ontologia e epistemologia.

Para dar corpo à tese aqui apresentada, realizou-se uma revisão crítica de literatura, que tem como objetivo analisar, sintetizar e opinar sobre conteúdos disponíveis na literatura (MANCINI; SAMPAIO, 2006).

2 A EMERGÊNCIA DE UM NOVO PARADIGMA

Dada a necessidade de incorporar à Ciência da Informação elementos de compreensão relativos ao pós-humano, superinteligência e transumano, deve-se aqui esboçar alguns antecedentes histórico-conceituais que atuaram na configuração de uma nova forma de pensar o ser humano.

A Cibernética, considerada a matriz da tecnociência, por Felinto e Santaella (2012), inicia uma mudança epistemológica na Ciência. Inaugura uma “virada não humana”, uma vez que, do ponto de vista teórico, interessa-se pelo funcionamento do cérebro humano, talvez influenciado por Arturo Rosenblueth, fisiologista especialista do sistema nervoso central, e da ligação entre seres humanos e máquinas. Do ponto de vista pragmático, conceitos como entropia, informação, termodinâmica, equilíbrio de sistemas e mensagens, homeostase, input e output e feedback contribuíram no aperfeiçoamento da acoplagem entre pilotos de avião durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e na artilharia antiaérea (FELINTO; SANTAELLA, 2012).

Norbert Wiener desenvolveu a Cibernética com base em seus conhecimentos e crenças na Física dos anos de 1950, por meio de estudos do matemático Josiah Willard Gibbs, na Teoria Matemática da Comunicação (TMC), de Shannon e Weaver (1948, 1975) e em acontecimentos do pós-guerra. Suas principais obras foram “Cibernética ou controle e comunicação no animal e na máquina” e “Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos”, publicadas originalmente em 1948 e 1950, respectivamente. As obras demonstram as influências do autor na Física, Matemática e Termodinâmica, além de outros estudos e áreas.

Com fortes traços constituintes da TMC, a Cibernética, palavra traduzida de Cibernetic foi derivada do termo grego Kubernetes, ou piloto que significa governador. Wiener esclarece que a palavra Cibernética já havia sido utilizada por Ámpere em referência à Ciência Política e em outro contexto por um cientista polonês nos primórdios do século XX.

A Cibernética poderia assim ser definida no contexto da teoria das mensagens e nos comandos existentes na comunicação entre homens e máquinas, por sistemas biológicos e mecânicos. Cibernética é a ciência que estuda os sistemas de comunicação, controle e regulação nos seres vivos e nas máquinas, como Wiener a projetou. Trata-se de uma ciência que incorpora a comunicação, sua ampliação por seres vivos e maquínico-mecânicos e nos meios de comandos executados para a ação de comunicar a informação.

Porquanto, Wiener (1970) atribuiu o significado de Cibernética, em seu livro “Cibernética, ou controle e comunicação no animal e na máquina”, na mesma classe de comunicação e controle.

Para Jacker (1964), a Cibernética trata não somente de máquinas, mas também do cérebro humano e seu sistema nervoso, assim como das formas pelas quais o ser humano pensa, reage, aprende e se comporta. Contudo, “Quando comando as ações de outra pessoa, comunico-lhe uma mensagem, e embora tal mensagem esteja no modo imperativo, à técnica de comunicação não difere de uma mensagem de fato.” (WIENER, 1973, p. 16). Repousa nesta afirmativa, a relação conceitual e aplicável dos comandos executados e contextualizados pelo autor.

Contudo, foi na Filosofia que sua repercussão foi mais profunda com a instauração de uma ontologia de similaridade entre seres humanos e máquinas em sua estrutura, tendo como base o seu conceito de informação como um terceiro elemento constituinte do mundo, ao lado da matéria e energia, não sendo redutível a elas (WIENER, 1970).

Nesse sentido, produz-se “[...] a emergência de um conceito de informação inteiramente descorporificado e imaterial [...]” e o ser humano como um conjunto de padrões informacionais (FELINTO; SANTAELLA, 2012, p. 48). Lafontaine (apud FELINTO; SANTAELLA, 2012, p. 49) argumenta que “O ser humano é resultado de um processo comunicacional transferível às máquinas.” Em síntese, o que sustenta a tese da similaridade é o tripé: informação, comunicação e controle; ou como a informação se manifesta nos entornos do controle e da comunicação.

Presume-se que a Cibernética possa ser considerada precursora do pós-humano. A similaridade e equiparação entre homens e máquinas, organismos e mecanismos e o apagamento do corpo e da materialidade permitiram concepções pós-humanistas, a posteriori, baseadas em dois aspectos principais aludidos por Kunzru (2009, p. 126): 1) o primeiro é sua descrição de mundo como uma coleção de redes; 2) o segundo é sua intuição de que não existe distinção tão clara entre pessoas e máquinas.

Infere-se, a partir de Kunzru (2009), que até aqui se tem trabalhado sob um enfoque antropocêntrico, o qual tem dificultado a apreensão do significado real de uma série de dispositivos e organismos inteligentes. Essa posição tem dificultado a compreensão de inteligências não humanas, o que tem sido reivindicado por campos como a Biossemiótica, Zoossemiótica e Fitossemiótica. A Ciência da Informação deve rever o antropocentrismo presente em suas teorias e abrir-se para outras abordagens mais integrativas e holísticas, sob pena de não conseguir responder às mudanças impingidas pela sociedade.

2.1 Pós-humano

A etiqueta “Pós-humano” é genérica, isto é, abriga vários conceitos e níveis de acoplamento com as tecnologias, não necessariamente cognitivas ou da Inteligência Artificial. Nesta seção pretende-se apresentar as linhas gerais da concepção de pós-humano.

Reflexo derivativo do movimento pós-moderno, que teve seu ápice principalmente na década de 1980 por meio da Arte, crítica literária e cultura pop (SANTAELLA, 2007), o pós-humano abre-se a um novo tempo, da simbiose e suas possibilidades entre homem e máquina. As tradições se esfumaceiam e tradicionais certezas se rompem na Arte e na Ciência, no aspecto material e imaterial, no logos e myhos, apontam Felinto e Santaella (2012).

Para Santaella (2007), as primeiras discussões a respeito do pós-humano ocorreram em 1988, quando Hans Moravec publicou o livro Mind Children com a expressão pós-biológico. Em seguida, uma exposição organizada por J. Deitch, em 1991, foi denominada por pós-humano.

A primeira menção ao termo pós-humano foi realizada por Ihab Hassan, teórico da pós-modernidade que, em 1977, acentuou para o fim de uma era do humanismo para o nascer do pós-humanismo (FELINTO; SANTAELLA, 2012). O humanismo marca a transição da Idade Média para o Renascimento, e o pós-humanismo enseja o momento dos híbridos e do homem em constante mutação com as tecnologias. Ocorre o desfalecer do absolutismo humano para a sua emancipação tecnológica e mecânica. Seu surgimento culminou também com a Cibernética e com uma série de palestras a respeito do pós-humano – não humano que ocorreu entre 1946 e 1953 (FELINTO; SANTAELLA, 2012). De todo modo, nascia naquele período, o fim da irredutibilidade humana frente à máquina e ao orgânico e de diversas forças culturais, naturais e tecnológicas (FELINTO; SANTAELLA, 2012).

Felinto e Santaella (2012) apresentam quatro formas de visualização do pós-humano:

  1. céticos: aqueles que ignoram ou desprezam o pós-humano totalmente;
  2. apocalíptico: horror tecnológico, fim da raça humana, medo de tecnologias como a clonagem, vida artificial, organismos geneticamente modificados, pesquisas com células tronco, entre outros;
  3. popular: imortalidade, desafio ao envelhecimento; o que une a todos é que o progresso tecnológico significa o progresso do homem;
  4. crítico: refere-se a diferenças substanciais entre as narrativas do pós-humano na internet e pós-humano crítico. Surgimento do interesse de feministas em nova consolidação do corpo humano, em que as velhas identidades e orientações patriarcais são destituídas para um corpo ressignificado aquém de valores masculinos (provável referência à HARAWAY, 2009).

O pensamento delineador pautado em Vilém Flusser, principal estudioso do conceito de pós-humano, é que não se deve dissociar a face humana frente às tecnologias, pois o humano e a máquina podem ser acoplados e um não existe em detrimento do outro (FELINTO; SANTAELLA, 2012). Portanto, embora a prefixo pós dê a entender que o humano se foi (SANTAELLA, 2007), essa é uma asserção arbitrária e descabida. Em outras palavras, o humano não se foi para dar espaço à técnica, à máquina e à tecnologia. A esse respeito, Monteiro (2012, p. 65) tangencia que “Perceber a máquina apenas como técnica é um grande erro de abstração.” Contextualizar o humano no pós-humano sem considerar suas caraterísticas cognitivas, intelectuais ou sociais, também o seria. Não há, nesse contexto, a substituição de um pelo outro.

Por isso, é preciso cuidado para não sucumbir às tentações de um super-humano (FELINTO; SANTAELLA, 2012), um ser distanciado de si mesmo, somente idealizado maquinicamente. A ideia de pós-humano não é isso; trata-se da junção do homem à máquina, um ser híbrido, de tecnologias acopladas mais invisíveis possíveis, porém onipresentes e nômades.

Monteiro (2012, p. 80), fundamentada em Lévy (2002), explica que as atividades humanas abrangem interações entre pessoas vivas e pensantes (sujeito cognoscente); entidades materiais naturais e artificiais (máquina) e ideias e representação (significados,). Diante disso, o ser humano se agencia às máquinas e a outros elementos, em processos de agenciamentos maquínicos.4 Esse agenciamento é máquina, pois, o próprio homem é uma máquina, assim como existem máquinas científicas, teóricas e informacionais (GUATTARI, 1992).

Fato é que as TIC afetam a forma de viver em sociedade e os avanços tecnológicos também. Em decorrência disso, o humano se vê envolto em agenciamentos maquínicos quer queira ou não, quer aceite ou não. Monteiro (2012) explica que as experiências ou transações virtuais dobram-se e desdobram-se em novos e incessantes agenciamentos maquínicos pós-modernos, como exemplo, a experiência de fazer uma pesquisa em mecanismos de busca. É o pulsar efervescente da sociedade conectada em usufruto da ciência e da tecnologia.

Se para Monteiro (2012) os agenciamentos maquínicos se entrelaçam com as relações que unem o Ser e sua cognição, a ciência, as TIC e as semióticas, Santaella (2004) explica que as transformações do pós-humano são mais que intra ou extracorporais, já que são visíveis ao corpo. Segundo a autora, essas transformações se dividem em três etapas distintas:

  1. transformação de dentro para fora do corpo, que transportam a mente sem transportar o corpo e que ocorrem por smartphones, telepresença, Realidade Virtual (RL), entre outros;
  2. movimento intersticial que se exibe em aparência e localiza-se entre dentro e fora: como as cirurgias plásticas, enxertos, piercings, tatuagens, entre outras formas;
  3. vêm de fora do corpo para dentro dele, são os implantes e próteses que corrigem, transformam e/ou criam novas funções ao corpo, que coincidem com a personificação de ciborgues. Seres humanos com implantes de marca-passo permitem exemplificar um tipo de ciborgue (FELINTO; SANTAELLA, 2012).

O olhar crítico e atencioso às etapas transformativas de Santaella (2007) permite ao sujeito a compreensão de que o pós-humano é tão real e presente. Felinto e Santaella (2012) clarificam o contexto errôneo e imperfeito da compreensão do pós-humanismo5 como expressão de uma potência tecnológica sob o humano, como expansão da vida humana e da superação de seus limites por meios tecnológicos.

Outro equívoco é pensar o pós-humano com a ideia estranha e anômala de imortalidade, eis o que seria um super-humano falso, diferentemente de outros postulados. Os autores explicam que a intensificação da notoriedade dos discursos do pós-humano é proporcional ao aumento de sua complexidade, que em nada devem ser ligados à ficção. Diz respeito ao descentramento do humano, imbricado e hibridizado com as técnicas e tecnologias médicas, informáticas e econômicas, e não no seu desaparecimento.

Longe dos modismos e misticismos atrelados ao termo, a condição pós-humana se relaciona com a virtualidade, à genética, à vida, aos aspectos inorgânicos, aos ciborgues e à inteligência distribuída incorporada na Biologia, Engenharia e sistemas de informação (SANTAELLA, 2007).

Não raramente, são associados ao conceito de pós-humano, a ideia de um super-humano, com capacidades ainda inimagináveis a não ser em ficção científica e essencialmente, ao destino do homem como um robô, um ser robótico, meio homem, meio robô. Também, o movimento ciberpunk, de tecnologias flexíveis e plásticas fundidas confortavelmente ao corpo humano, carrega consigo tensão entre os limites possíveis entre corpo e máquina em alta consonância.

Questões ociosas nesse contexto costumam ser: o que é humano e o que é proveniente da máquina? Outra natureza de perguntas é mais relevante: quando a confluência entre humano e máquina (tecnologia) chega a ser imperceptível? É possível que a homogeneidade entre o homem hibridizado com as tecnologias se torne tão sutil, que será desnecessário considerar o fato?

Para Santaella (2007), as extensões tecnológicas se aderem à fisicalidade dos corpos para se tornarem cada vez mais imperceptíveis e invisíveis. Mesmo que as tecnologias se desenvolvam e se sofistiquem, não são radicalmente estranhas ao aspecto orgânico e biológico e tampouco, ao campo informacional. Nessa situação, a tecnologia estaria tão imersa ao corpo humano que não seria notada, a não ser em termos didáticos e explicativos. Trata-se de uma hibridização efetiva, não perturbativa, que embora artificial, ocorre o quanto natural possa ser. A informação se movimenta entre tecnologias e na simbiose entre sentidos humanos sem ao menos, ser notada. Mas, o pós-humano não se refere a uma transcendência extracorpórea ou surreal, apenas no campo das ideias, mas significa a uma junção naturalizada e real do corpo, da mente e da máquina, essencialmente com a informação que geram. Não é mais possível pensar a informação aquém das TIC e tecnologias inteligentes, protótipos, concretudes e práticas do pós-humano.

O sujeito híbrido está nas relações do humano hibridizado com os não humanos, ou seja, com as máquinas. Segundo Monteiro (2012, p. 75) “A importância das tecnologias e das ferramentas não está nelas mesmas, mas na sua relação com o homem, ou seja, com as misturas que tornam possíveis ou que as tornem possíveis designadas simbioses ou amálgamas [...].” É nessa mistura que o sujeito ao se confundir ou tornar a máquina parte de seu corpo, faz-se um sujeito híbrido que gera, recebe e compartilha informação.

Considera-se que “Um ser miscigenado e hipercomplexo está emergindo.” (SANTAELLA, 2007, p. 54) e se realiza em meio a toda a superabundância fatual da sociedade representa para Augé (2012, p. 32-33, grifo do autor) na supermodernidade: “Da supermodernidade, poder-se-ia dizer que é o lado ‘cara’ de uma moeda da qual a pós-modernidade só nos apresenta o lado ‘coroa’- o positivo de um negativo.” Como evolução do pós-moderno, ter-se-á nas concepções do autor, o pós-humano.

E ainda que “Não há nada que possa aterrorizar com mais intensidade o imaginário do corpo do que sua simbiose com as máquinas [...]” (FELINTO; SANTAELLA, 2012, p. 83), espécimes de ciborgues vivem naturalmente em sociedade. A possibilidade de existência dos ciborgues como algo monstruoso e horrendo, não se firma, mas se potencializa, pois parece haver “[...] o derretimento das fronteiras entre o humano e animal, entre gêneros, entre humano e maquínico, natural e artificial, mente e corpo, físico e não físico.” (FELINTO; SANTAELLA, 2012, p. 30).

No contexto do pós-humano, o ciborgue é um ser híbrido, formado por parte humana e mecânica. De acordo com Felinto e Santaella (2012, p.113), a figura do ciborgue borra as fronteiras entre organismos e máquinas, “Afinal, nele não se reconhecem mais as linhas entre o natural e o artificial.”

O termo é uma fusão de cybernetic e organism (cyborg), ou organismo cibernético, que foi utilizado em 1960, por Manfred Clynes (engenheiro) e Nathan S. Kline6(psiquiatra). Fundamentados nos principais conceitos de Wiener, mencionam os órgãos cibernéticos na medida em que interagem com o mundo através de informações e controle de feedback (retorno ou retroalimentação do sistema).

Outra autora relevante na discussão de ciborgues é Haraway (2009) pela publicação do “Manifesto Ciborgue”, a propósito de um relato feminista, em 1985. No entanto, seu tom é crítico e político, mas se utiliza do conceito para reivindicar a supressão de dicotomias e de identidades culturais que naturalizam a condição (inferior) da mulher na sociedade. Para a Haraway (apud KUNZRU, 2009, p. 123, grifo nosso), “Uma coisa porém torna o ciborgue de hoje fundamentalmente diferente de seus ancestrais mecânicos: a informação. Os ciborgues, explica Haraway, ‘são máquinas de informação.’

O conceito de ciborgue, no sentido fraco, é comum a qualquer amálgama entre homem e mecanismos. Hayles (1999) cita o exemplo de um homem com marca-passo. No entanto, alerta para o sentido forte dessa hibridação que é encontrado em alguns autores, a saber: “[...] o cyborg significa algo mais do que um ser humano adaptado. Aponta para um híbrido aprimorando espécies que têm capacidade para ser o sucessor evolutivo da humanidade.” (HAYLES, 1999, p.118-119).

Já que a figura do ciborgue alcança uma ubiquidade incrível de amálgamas na sociedade contemporânea, Gray, Mento e Figueroa-Sarriera (1995) apresentam uma taxonomia das tecnologias ciborguianas:

  1. restauradoras: permitem restaurar funções e substituir órgãos e membros perdidos;
  2. normalizadoras: retornam as criaturas a uma indiferente normalidade;
  3. reconfiguradoras: criam criaturas pós-humanas que são iguais aos seres humanos e, ao mesmo tempo, diferentes deles;
  4. melhoradas: criam criaturas melhoradas, relativamente ao ser humano.

Percebe-se, na taxonomia supracitada, que as tecnologias reconfiguradoras e as melhoradas já possuem um sentido forte de ciborgue, em que a tecnologia praticamente reconfigura o ser humano. Ciborgues vivem de um lado e de outro da fronteira entre a máquina e organismo, em que “Do lado do organismo: seres humanos que se tornam, em variados graus, ‘artificiais’. Do lado da máquina, seres artificiais que não apenas simulam características dos humanos, mas que se apresentam melhorados relativamente a esses últimos”. (TADEU, 2009, p.11).

Mas, qual a diferença dos ciborgues com os androides, robôs e bots? A ficção científica não só se encarregou de trazer essas criaturas à existência, antes mesmo que algumas delas tivessem um referencial na vida real como também e, em grande medida, de borrar a distinção entre elas. Para Gabriel (2019), esses seres são divisões da aparência das Inteligências Artificiais.

No entanto, os robôs possuem corpos artificiais e são frutos da robótica. Santaella (2004) considera a robótica como IA encarnada, pois os robôs estão situados no mundo. O termo foi cunhado pelo escritor checo Karel Čapek, em 1921, e vem de “robota” que significa “trabalho”. Foi utilizado pelo autor, em sua peça, para designar seres artificiais fabricados para servir humanos. Ainda, de acordo com Gabriel (2019, p. 216), robô significa, hoje, “[...] qualquer entidade – física ou virtual – que possua vida artificial, independente de seu nível de inteligência.” No sentido estrito, corpos físicos totalmente artificiais que têm formas, mas não humanos; pois somente os androides têm a forma humana. A IA, stricto sensu, por outro lado, preocupa-se com as mentes artificiais. Para simplificar, ciborgues são seres altamente hibridizados, robôs e bots não possuem forma humana, mas os androides sim.

Os bots são softwares robots e não têm corpo físico, como por exemplo, os web crawlers (robôs que percorrem o ciberespaço para encontrar, ler e indexar páginas de um website), ou chatbot de comunicação mediada por alguma tecnologia. De acordo com Gabriel, “Os bots são programas computacionais que realizam tarefas automáticas. Teoricamente, um bot pode ser um agente que faz desde simples ações repetitivas e programadas, até um agente inteligente [...].” (GABRIEL, 2019, p. 216).

Nessas imbricações, semprerelacionamento entre o real e o fantástico, fantasmagórico, e distante disso, o discurso é sobre coexistência, simbiose e hibridização. Deve-se vislumbrar além do pós-humano como modelo explicativo da condição humano-máquina atual, o advento das superinteligências na sociedade.

2.2 Superinteligência

Gabriel (2019) considera a superinteligência como um espectro da Inteligência Artificial, na qual a divide em: IA fraca, forte e a superinteligência. O termo superinteligência, cunhado por Nick Bostrom em 2018, abrange qualquer intelecto que exceda o desempenho cognitivo dos seres humanos (atuais). Para atingir esse objetivo, de acordo com Bostrom (2018), isto é, aumentar a inteligência humana, há vários caminhos, que incluem substrato humano e tecnológico.

A primeira abordagem é a IA, propriamente dita. Nesse sentido, seria necessário um substrato tecnológico, de grande alcance computacional, com capacidade de aprendizagem do sistema para conseguir atingir a inteligência geral humana, ou HLMI, sigla em inglês para “Inteligência de Máquina de Nível Humano”.

Bostrom (2018, p. 59) cita que a engenharia teria a possibilidade de produzir algoritmos genéticos capazes de alcançar esse nível, no entanto, indaga-se: “Mas seria verdade que em breve conseguiremos desenvolver capacidade computacional suficiente para replicar os processos evolutivos relevantes que culminaram na inteligência humana?” E respondendo a indagação, ele continua: “O fato é que os recursos computacionais necessários para que sejamos capazes de simplesmente replicar os processos evolutivos relevantes que produziram a inteligência de nível humano estão ainda muito longe de nosso alcance.” Mas quanto tempo uma HLMI levaria para atingir uma superinteligência? As variáveis do sistema e do tempo ditarão a resposta a esta questão.

A segunda abordagem de Bostrom (2018) é o uploading ou a emulação completa do cérebro para softwares inteligentes; para tanto, esses programas conteriam um mapeamento e modelagem precisa do cérebro. Pode-se afirmar se tratar de uma IA forte, com substrato tecnológico. Essa emulação necessitaria de três estágios: escaneamento; tradução e simulação.

Em geral, a emulação completa do cérebro depende menos de um insight teórico e mais da capacidade tecnológica do que da inteligência artificial. Exatamente quanta tecnologia seria necessária para a emulação completa do cérebro depende do grau de abstração no qual o cérebro é emulado. [...] Podemos também afirmar com muito mais confiança do que em relação à opção pela via da IA que a emulação não deverá acontecer em um futuro próximo (digamos quinze anos [sic]), pois sabemos que diversas tecnologias precursoras ainda não foram desenvolvidas. (BOSTROM, 2018, p. 72, 77).

Pesquisas desenvolvidas na Universidade da Carolina do Norte apontam que o córtex cerebral (essencial para o pensamento, processamento da informação, memória e atenção) foi mapeado geneticamente (GRASBY et al., 2020). Embora seja um estudo da Neurociência, seus resultados são importantes a todos os investigadores interessados na estrutura do cérebro e em suas formas de emulação.

A terceira abordagem é a cognição biológica e diz respeito ao substrato biológico e a uma superinteligência fraca, isso porque o intervalo geracional demandaria muito tempo para a formação de indivíduos superinteligentes. Bostrom (2018) cita que pesquisas com células-tronco, correção do genoma ou seleção genética derivada de gametas permitiriam que várias gerações fossem comprimidas em um espaço menor de tempo.

No entanto, técnicas de Engenharia genética, Biotecnologia e clonagem esbarram em vários problemas: científico, políticos, religiosos e principalmente éticos. “Todavia, melhorias, mesmo que moderadas, na capacidade biológica de cognição poderiam ter importantes consequências - como acelerar o desenvolvimento científico e tecnológico [...].” (BOSTROM, 2018, p. 92). Em vários cenários apresentados pelo autor, de seleção genética e aumento de Quociente de Inteligência (QI), no espectro mais alto, o ser humano cresceria em cem pontos no QI, no qual ele designa como um sujeito com inteligência “pós-humana”. Admite, portanto, que o substrato de máquina tem mais potencial que o biológico para se chegar a uma superinteligência, até mesmo porque, o controle na máquina é mais simples que no cérebro humano.

O quarto caminho são as interfaces cérebro-computador, substrato híbrido entre homens e máquinas, mas o autor não acredita que a superinteligência será alcançada com a “ciborguização” do cérebro, pois além de perigosas e arriscadas, “Não é necessário conectar uma fibra ótica em nosso cérebro para que tenhamos acesso à internet.” (BOSTROM, 2018, p. 92). Tais interfaces são efetivas em neurocirurgias para fins terapêuticos, como o mal de Parkinson e paralisias, entre outros.

O último caminho, apontado pelo autor, são as redes e organizações, obviamente mediadas pelas TIC (linguagem, escrita e imprensa). Essas redes formaram, ao longo da história, uma grande evolução para a humanidade e uma inteligência coletiva. As inovações tecnológicas e institucionais podem trazer avanços científicos, sociais, econômicos e organizacionais, no entanto, são formas fracas de superinteligência. A internet seria uma fronteira para se chegar à superinteligência coletiva. Para que isso aconteça, deverá a Internet “acordar”:

Uma versão mais plausível desse cenário seria aquela em que a internet acumula avanços gerados a partir do trabalho de inúmeras pessoas ao longo de muitos anos – criando as melhores ferramentas de busca e algoritmos de filtragem de informação, formatos mais eficazes de representação de dados, agentes de software autônomos mais eficientes e protocolos mais efetivos de controle de avanços incrementais poderia, enfim, criar a base para uma forma mais unificada de inteligência na web. (BOSTROM, 2018, p. 102).

A superinteligência coletiva é definida por Bostrom (2018, p. 111) como “[...] um sistema composto de um grande número de intelectos menores, de forma que o seu desempenho total supere significativamente, em diversas áreas gerais do conhecimento, qualquer sistema cognitivo atual.”

Bostrom (2018) afirma que o mecanismo de busca do Google é, provavelmente, o maior sistema de IA já criado. Aliás, para Felinto e Santaella (2012, p. 81) “[...] quaisquer efeitos do ciberespaço produzem crise no conceito de corpos tradicionalmente tomados como garantidos.”

Gabriel (2019) considera que a internet é a segunda maior revolução cognitiva da nossa história (a primeira: o livro), porque tem a capacidade de permitir a conexão entre (todos) os cérebros humanos e também com cérebros computacionais. Três e meio bilhões de pesquisas realizadas por dia torna o Google a metáfora do nosso cérebro (GALLOWAY, 2020) e demonstra também como os recursos humanos são limitados e vêm estendendo-se às tecnologias.

Gabriel (2019), apresenta o crescimento exponencial do conhecimento e a aceleração tecnológica o que talvez seja o momento em que a internet “acorde” ou ainda, tenha sua “singularidade”7 tecnológica, conforme a figura 1.

Figura 1 – Crescimento exponencial da tecnologia

C:\Users\User\Pictures\Crescimento exponencial400.png

Fonte: adaptado de Gabriel (2019, p. 131).

Assim, várias TIC vêm colaborando com o crescimento do conhecimento e com a emergência de uma realidade pós-humana. Contudo, há versões que ultrapassam a configuração teórica do pós-humano, e nesse sentido, seriam de especial interesse para se compreender as mudanças que estão por vir.

2.3 Transumano

O transumano seria, nesse espectro, a abordagem mais radical do pós-humano. Entre seus exponentes estão Raymond Kurzweil (2007) e Ian Person (2014). O conceito de transumanismo também varia de acordo com os autores. Gabriel (2019) sustenta que a ampliação do ser humano, nessa corrente, se daria com a expansão cerebral remota e não na substituição de partes. Sustenta ainda, que nem todo transumano é ciborgue e vice-versa. Para Alves (2017), o transumanismo é uma perspectiva de superação das limitações da natureza humana, por meio do melhoramento biotecnológico.

Percebe-se que, para Pearson (2014), o transumanismo é a união de robôs, humanos e IA, até chegar ao homo whateverus (o homem tudo). O autor estuda o tema há 20 anos e considera que a Biotecnologia, a Nanotecnologia, a TI e a AI serão responsáveis pelas melhorias transumanas que possam vir à tona nos próximos anos. Em seu artigo, o autor questiona: “Então, onde podemos ir? O que podemos esperar no futuro caminho da evolução humana?” (PEARSON, 2014, p.1). Após várias atualizações de seus estudos, por fim, apresenta esse caminho da evolução humana, conforme pode ser observado na figura 02:

Figura 2 – Human-machine evolution

Fonte: Pearson (2014, p. 7).

Conectando a TI ao sistema nervoso, e eventualmente ao cérebro, os sentidos e a memória seriam elevados ao maior processamento de informação e da inteligência denominado homo-cyberneticus. Em uma evolução paralela, também estariam o aprimoramento genético e a otimização de recursos selecionados, dando origem ao homo optimus. Na convergência dos dois estágios apareceria o homo hybridus, que teria o corpo perfeito e a mente aprimorada.

Enquanto isso, no mundo dos robôs e da IA, a inteligência de máquinas poderia aumentar e, eventualmente, proporcionar a primeira IA/robô autoconsciente:

[...] (não faz sentido separar os dois já que a IA em rede pode ser facilmente conectada a uma máquina robô) e isso tem o seu próprio caminho de evolução para uma rica diversidade de diferentes tipos de inteligência artificial e robôs: robotus multitudinus. (PEARSON, 2014, p. 2, grifo nosso).

A evolução continua, tanto no mundo dos robôs quanto no mundo dos humanos, dando origem ao homo machinus. Aqui, todos conectados poderiam colocar as mentes em uma rede de consciência compartilhada.

Já que essas evoluções são paralelas, continua uma parcela humana convencional, com pequenas atualizações, que seriam os homo sapiens ludditus. No entanto, estariam em desvantagem em relação às outras espécies, humanas ou maquínicas coexistentes. Apresenta também, o homo zombius, assim como na ficção, alguns vírus, bactérias e outros parasitas podem afetar o cérebro das vítimas e mudar seu comportamento para aproveitá-los em seu próprio ciclo de vida.

Novas espécies vão aparecendo nesse cenário, como o gaia sapiens, que é a mistura do velho e novo modificado, seja pela manipulação, alteração ou adição de novos recursos. Antecessores dessa linhagem, conforme demonstra a figura 02, estão os sims sapiens e a bactéria sapiens. Os Sims seriam a evolução dos jogos permitindo que seres possam viver dentro de um jogo eletrônico, ou ao contrário, a emigração deste para um androide, ou simborgue (na terminologia de Orbe, significa um indivíduo reencarnado que reside num meio interligado) permitindo a imortalidade eletrônica (apud ALVES, 2017).

Pearson (2014), anteriormente, havia parado sua evolução com o gaia sapiens, no entanto, após atualização, incluiu outra espécie, as fairies, até chegar ao homem whateverus, ou seja, o “homem tudo”, “que é tudo”. Quanto às fairies, não se tem muita clareza, no entanto, seriam entidades capazes de viajar no tempo no ciberespaço depois de 2075. Uma implementação viável que permitiria viajar no tempo dentro dele. “É realmente uma bolha no ciberespaço que cruza com o mundo real na frente do tempo real, portanto, não causa nenhum problema físico [...]”. (PEARSON, 2014, p. 6).

A despeito de o pós-humano, da superinteligência e do transumano serem perspectivas complementares sobre a imbricação de seres humanos e máquinas, na sua mais elevada concepção, elas incitam um debate ético, geralmente explorado equivocadamente ou de forma sensacionalista pelos principais meios de comunicação de massa. A questão ética sempre estará posta de modo a frear quaisquer tipos de comportamentos que visem constranger, limitar ou ameaçar os “direitos pós-humanos” frente a interesses pessoais ou empresariais de companhias de alta tecnologia.

Não obstante, novos dilemas éticos serão abertos para o debate público e a ciberética, e esta, focada atualmente em normas e regras que regulam as ações de internautas humanos, deve ser ampliada e renovada. Um ciberética que compreenda e regule excessos de comportamentos próprios do contexto pós-humano e que leve, ao fim e ao cabo, a sanções sociais. O pós-humano não significará um estágio pós-ético, na melhor das hipóteses, estar-se-á tratando de um contexto “super-ético”, isto é, uma ética superior aplicada indistintamente aos comportamentos humanos e não humanos, responsabilizando-os com o mesmo rigor.

Esse novo contexto que possui uma circulação de informação penetrante e uma construção coletiva de conhecimento nunca antes vista configura-se ordenadamente como uma estrutura modelar que deve ser investigada por diversas áreas, como tem sido feito pelos campos destacados anteriormente, além, é claro, das Ciências Sociais, Ciências Cognitivas, Antropologia, Comunicação e Ciência da Informação. Contudo, para outros campos científicos, parece que o tema ainda está em um nível ficcional, embora as realizações científicas provem o contrário.

3 O PÓS-HUMANO COMO PARADIGMA EMERGENTE NA CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO

O que se impõe aqui é responder a pergunta inicial de como o pós-humano, entendido como uma possibilidade de configuração paradigmática poderia se manifestar na Ciência da Informação. Para tanto, deve-se, em primeiro lugar, rever como a Ciência da Informação tem narrado parte de sua história recente e se posicionado sobre a noção de paradigma; segundo, compreender como a noção de sujeito tem seus caracteres limitados; em terceiro lugar, deve-se apontar para as características da informação; e por último, apontar para abordagens filosóficas que possam suportar o pós-humano na Ciência da Informação.

Primeiramente, destaca-se que é notória e renitente a alusão à história da Ciência da Informação pelos paradigmas físico, cognitivo e social na decantada versão de Capurro (2003), mas anteriormente tratada de maneira excelente por Ørom (2000). O primeiro paradigma explica a informação como elemento físico, tradicionalmente tratado pela TMC. O segundo abre espaço para o entendimento do processo cognitivo e como as lacunas de conhecimento podem ser superadas incorporando elementos de informação. O terceiro volta-se ao contexto social que leva sujeitos inseridos em comunidades discursivas buscarem e aplicarem informações em situações concretas. Esse esquema é bem fácil de ser compreendido, mas deve ser apropriado com algumas reservas.

A separação dos paradigmas em físico, cognitivo e social não é tão simples de ser empreendida, pois as ações de informação envolvem ao mesmo tempo aspectos físicos, cognitivos e sociais. Mesmo o paradigma físico, gestado após a Segunda Guerra Mundial, não seria possível sem um contexto social voltado à valorização às novas tecnologias de processamento e transferência de dados para fins militares. O suposto paradigma social acomete um argumento tautológico uma vez que a condição de qualquer paradigma é funcionar socialmente e fazer referência às balizas sociais de justificação da verdade no interior de uma comunidade científica.

Na mesma direção, Rabello (2013) investiga as teorias envolvidas nas abordagens denominadas “tradicionais” e “alternativas”, conforme exposição de Dervin e Nilan (1986 apud RABELLO, 2013). As abordagens tradicionais voltam-se a um modelo sistêmico de análise cuja ênfase recai sobre o sistema de informação em detrimento do usuário. Por outro lado, as abordagens alternativas enfatizam um modelo emergente cuja análise volta-se ao usuário como centro do processo. As pesquisas qualitativas dão suporte ao modelo sistêmico clássico enquanto os métodos qualitativos subsidiam o modelo alternativo.

A partir da revisão de literatura empreendida por Rabello (2013), com base em uma análise diacrônica, ele concluiu que os estudos não apresentaram versões excludentes da noção de usuário nos dois paradigmas analisados, sendo difícil separá-los:

As três concepções de usuário – ‘usuário- repositório’, ‘usuário-produtor de sentido’ e ‘usuário-produtor de conhecimento’ – assim como a disposição teórico-relacional demonstrou que um modelo teórico não abrangeu modelos concorrentes ou distintos de modo a extinguí-los […]. (RABELLO, 2013, p. 67-68).

Esse argumento destitui por completo a ideia que os paradigmas de Capurro funcionaram como balizas da investigação e da explicação linear da Ciência da Informação na segunda metade do século XX.

O pós-humano se impõe como paradigma ou como possível configuração modelar de pesquisas futuras justamente porque intenta superar o antropocentrismo presente em análises como as de Capurro (2003). Nesse sentido, produz a necessidade de uma nova epistemologia e ontologia. Isto é, uma teoria do conhecimento geral e do conhecimento científico, em particular, centrada em um novo sujeito que não se baseia na oposição dualista entre sujeito-objeto. Nessa composição dualista, pessoas e tecnologias opõem-se, classificando esta última apenas como objeto a ser conhecido. Por outro lado, oferece uma nova concepção do ser.

A disposição dos paradigmas não toca no substancial, a emergência de uma nova forma de pensar a condição humana. Sendo assim, não consegue esquivar-se da centralidade do homem como ser dotado de capacidades cognitivas elevadas frente a outros seres e máquinas.

Em segundo lugar, o que importa é que essa discussão não destaca como paradigma as formas de conceber o ser humano. Os ditos paradigmas físico, cognitivo e social são na verdade uma mesma e única forma de compreender o ser humano, ainda apartado de seus condicionantes tecnológicos. São versões do humano enquanto um ideal antropocêntrico, purista e clássico. Servem mais para marcar, historicamente, proeminências aos agenciamentos da informação. Tais paradigmas versam sobre a informação, mas deveriam tratar da noção de sujeito da informação e para tal, resolveu muito pouco.

Embora Rabello (2013) tenha argumentado sobre as limitações de dessas segmentações grosseiras sobre o sujeito dentro dos modelos sistêmico e alternativo (entendidos aqui como supostos paradigmas da área), chegando a sistematizar as ideias de sujeito informacional encontradas na literatura da área como sujeito-repositório, sujeito-produtor de conhecimento e sujeito-produtor de sentido, o autor não se opõe ou questiona, pelo que parece, à noção geral de sujeito que encontra respaldo no cartesianismo, isto é, um sujeito humano racional puro. Esse mesmo sujeito valorizado e romantizado pela Antropologia, Sociologia e História, mas que, na atualidade, já é in concretum um ser híbrido.

Parece uma questão secundária tratar do sujeito como entendido pela Ciência da Informação, mas é de crucial importância para reconhecer um paradigma que apresenta as disposições reais e em curso de um novo estágio humanitário. Esse seria, de fato, um paradigma emergente, caso adotado pelos estudos da área.

Nesse sentido, poder-se-ia classificá-los como um mesmo paradigma sobre o humano que insiste em nutrir as atividades dos profissionais da informação quando se referem ao papel das tecnologias na sociedade. Esse único paradigma físico-cognitivo-social não destaca os avanços sociotécnicos como fundamentais para a reposição do humano. Oposto a esse paradigma está a proposta esboçada aqui. O pós-humano impõe a questão dos caracteres de humanidade sob outros parâmetros e rediscute o antropocentrismo presente nas noções de sujeito da informação, usuários etc. presentes na Ciência da Informação.

O sujeito tematizado aqui tem como base a inteligência, a realidade e a vida artificial, o simulacro, o ciberespaço, a robótica, entre outros avanços sociotécnicos que passam a integrar o pós-humano e ao humano em rede, tanto on quanto off-line e fundamenta, sob esse paradigma, a Ciência da Informação. A versão purista e sectária que compreende a ação dos agentes de informação exclusivamente como ação protagonizada por profissionais e usuários que aplicam tecnologias que são simples ferramentas acionadas ao prazer humano, deve ser evitada.

Quando a cognição ocorre em um contexto cercado por tecnologia, estamos em um processo representacional do qual fazemos parte de um todo interligado e qualquer distinção de entidades ou vetores do processo só se justifica em um cenário didático e propedêutico. No paradigma pós-humano, a separação do ser torna-se quase ficção.

Em terceiro lugar, no que tange à informação, deve-se rever novamente a primazia do suporte sobre o código. Esse novo sujeito celebra a informação desmaterializada ou fugidia no ciberespaço, consumida tanto por seres humanos quanto por crawlers, seja com propósito científico ou em uma corrida eleitoral. É necessário para tanto um pensamento interdisciplinar à compreensão de novos fenômenos sociotécnicos.

A informação no contexto pós-humano se constitui e se propaga não mais e somente em aportes materiais e institucionalizados (documentos em coleções de bibliotecas ou fundos de arquivos), mas, sobretudo em ambientes virtuais e nas dependências das tecnologias híbridas. Já, a partir da cognição distribuída nos fluxos digitais, a memória biológica está amalgamada com o ciberespaço, como afirma Kunzru (2009), os sistemas de recuperação de informação já são utilizados como próteses para as nossas memórias limitadas, ou seja, em alguma medida, já somos todos ciborgues.

A Ciência da Informação está inserida no pós-humano e o pratica por meio de sistemas inteligentes de busca e recuperação da informação. Talvez seja a principal ciência a promover a integração das massas ao contexto pós-humano justamente por propor serviços de interface entre necessidade de informação e grandes bancos de dados, entre outras atividades promotoras da integração.

O pós-humano instaura possibilidades e realidades já vivenciadas por e entre a junção de seres humanos e maquínicos. Na Ciência da Informação, a necessidade de entendê-lo nas investigações da disciplina torna-se importante para compreender o fenômeno sociotécnico da informação, as tecnologias, bem como a possível apropriação da área.

Nas ciências, de maneira geral, e na Ciência da Informação, especificamente, as tecnologias de ponta são utilizadas na substituição de ações humanas (manuais, repetitivas e lentas), a organização do conhecimento tem sido uma tarefa socializada pelas plataformas uma vez que facilitam o gerenciamento de coleções pessoais com base em IA, bem como a recuperação e/ou compartilhamento de informação entre dispositivos tecnológicos conectados à rede. O comércio eletrônico já antecipa as opções de compra utilizando essas mesmas ferramentas. Em outras palavras, há todo um novo contexto de potente integração que não pode ser mais medido e compreendido pelo parâmetro vigente.

Sendo assim, a Ciência da Informação não pode se furtar, como não tem se furtado, ao debate tecnológico, aos impasses éticos provocados por mecanismos eletrônicos que conduzem a opinião pública e que superem as categorias epistemológicas sujeito e objeto.

Em quarto lugar, além das abordagens conceituais trazidas aqui, pode-se apontar algumas possíveis filiações e abordagens filosóficas do pós-humano que podem ser de interesse a Ciência da Informação na busca de melhor entender esse o paradigma emergente. Sem procurar esgotar a discussão ou listar todas as fontes possíveis, encontramos uma identificação do paradigma pós-humano com filosofias não antropocêntricas e pós-culturais. Entre estas, cabe citar a Filosofia ecológica, a Filosofia peirceana e Filosofia transcultural.

A Filosofia ecológica defende a não separação entre organismo e ambiente, entre mundo físico e mundo mental. De acordo com Large (2011, p. 350), “Seguindo a abordagem ecológica, a Filosofia Ecológica produz uma descrição autônoma e independente dos seres conscientes, possuidores de mente, a qual possibilita novas análises da ontologia e epistemologia […]”. Pode-se extrair dessa abordagem filosófica a superação do antropocentrismo.

Na mesma linha, tem-se a abordagem de Charles Peirce (1839-1914), filósofo americano, que sustenta, entre outras coisas, a primazia da semiose – ação dos signos – em inteligências que aprendem pela experiência, não separando seres humanos de outros capazes de produzir signos (genuínos ou degenerados). Também se encontra na Filosofia peirceana um tipo de idealismo objetivo que une mundo físico e mental como formadores de um mesmo universo inteligente. Nessa direção, Santaella (2004, p.9) afirma que a semiose não é antropocêntrica, “A autogeração não é privilégio exclusivo do homem. Ela também se engendra no vegetal, na ameba, em qualquer animal, no homem e nas inteligências artificiais.” A Filosofia transcultural, se é que podemos chamar assim, revela que as dicotomias construídas para entender as culturas, e mesmo a querela multiculturalista, estaria com os dias contados, uma vez que a comunicação e a interconectividade entre as pessoas propõem de maneira prática um contexto de superação das narrativas culturais vigentes. No interior dessas mesmas categorias estariam não apenas o que García Gutièrrez (2011, p. 24) apontou como os dualismos homem/mulher, negro/branco, civilizado/selvagem, crente/pagão, mas também se pode incluir a dicotomia também cultural homem/máquina. De certa forma, o paradigma pós-humano seria em alguma medida sustentado por uma dialética transcultural.

Com base nesses elementos de compreensão, pode-se conceber um melhor entendimento do sujeito pós-humano para a Ciência da Informação, como segue:

Quadro 1 – O sujeito informacional humano e pós-humano

Caracteres

Sujeito informacional humano

Sujeito informacional pós-humano

Ontológico

Humano “puro”

Humanos, máquinas e híbridos

Epistemológico

Sujeito e objeto do conhecimento como entes separados

Superação do dualismo sujeito-objeto

Perspectiva

Antropocêntrica

Pancêntrica

Filosofia

Filosofia Cartesiana e Racionalista

Filosofia Ecológica, Filosofia peirceana, Filosofia Transcultural, Filosofia deleuziana etc.

Disciplinas

Educação, Comunicação,Sociologia, Psicologia, Antropologia, Filosofia etc.

Cibernética, Realidade Virtual, Inteligência Artificial, Neurociências, Ciências Cognitivas, Filosofia da Mente, Semiótica, Engenharia Semiótica etc.

Interação Humana-Máquina

Separação completa entre homens e máquinas

Imbricação completa

Informação

Materializada e codificável para apropriação humana

Virtualizada, digitalizada, transterritorializada e codificada para todos os tipos de apropriação.

Inteligência

Determinada pela evolução biológica e cultural

Condicionada pela evolução científico-tecnológica

Fonte: Elaborado pelos autores.

Vale observar que as disciplinas incluídas no quadro 01 ilustram, mas não se esgotam nos exemplos mencionados. Como é possível verificar, o sujeito informacional pós-humano abre-se a novas possibilidades que se aplicam em certa medida, em incapacidades e/ou limitações do sujeito informacional, apenas humano.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Identificou-se a gênese do pós-humano na Cibernética, no entanto, faz-se necessário compreender sua evolução, para estabelecer a relação com a tecnologia na contemporaneidade. Na primeira ordem da Cibernética, as características principais, conforme já abordado, é a similaridade entre máquina e seres humanos e nesse aspecto, a homeostase constituía-se o conceito mestre. Na Cibernética de segunda ordem o conceito principal é a reflexidade e auto-organização.

Felinto e Santaella (2012, p. 28) explicam: “Enquanto na cibernética de primeira ordem observadores estavam fora do sistema observado, nesse segundo momento, a informação passa a ser vista como fluindo do sistema ao observador que se torna parte do sistema.” Autores como Von Foerster, Gregory Bateson (Ecologia da mente) e Maturana e Varela (reflexidade e dinâmica de sistemas biológicos) fazem parte desse estágio. No entanto, somente na terceira ordem da Cibernética que o campo da vida artificial ganha ascensão (FELINTO; SANTAELLA, 2012).

Essas três ordens trouxeram as condições teóricas para uma nova epistemologia bem como o ciborgue tornou-se símbolo do pós-humano, uma linha de ruptura entre o humano e pós-humano. O ciborgue trouxe a “[...] ontologia de fronteiras transgredidas, fusões potentes, possibilidades perigosas e sobre uma epistemologia que não teme identidades permanentemente parciais [...].” (FELINTO; SANTAELLA, 2012, p. 30).

Na atualidade, a informação e os agentes computacionais e inteligentes são parte integrante do sujeito informacional. Antigas epistemologias que privilegiam os dualismos parecem não abarcar as complexidades impostas pela condição pós-humana que impõem novas categorias epistemológicas.

Hayles (1999) estudando o pós-humano enfatiza a condição da informação descorporificada ao conceituá-la como entidade separada das formas materiais. “As raízes da descorporificação da informação se encontrariam na cibernética de primeira ordem, conceito que a cultura transferiu automaticamente para o ciborgue.” (FELINTO; SANTAELLA, 2012, p. 41). Já Thacker (2003) propõe uma nova proposta para essa questão, que chama de “essencialismo informático”. “O pensamento do informacionalismo essencialista não está na descorporificação, mas em algo mais perto das conversões de arquivos e da tradução dos dados.” (apud FELINTO; SANTAELLA, 2012, p. 42). Em suma, a materialidade, nesse caso, é um padrão informacional programável.

A informação, a tecnologia e a comunicação são entes com o mesmo status ontológico do ser humano na composição de um sistema, seja ele qual for, e nesse contexto, o sujeito informacional, em geral, e a Ciência da Informação, em especial, estão em franca contemplação pelo novo paradigma emergente.

Nesse paradigma a Ciência da Informação terá um papel especial, o de reconhecer a imbricação em curso para o avanço sociocultural, bem como promover forma de evitar a tecnofobia e novas modalidades de discriminações. Além disso, estarão em jogo novas formas de se acessar, produzir e validar conhecimentos. O pós-humano enseja uma nova configuração para se entender o fluxo da informação na sociedade e caso esse novo cenário não seja assumido pela Ciência da Informação, outras áreas serão convocadas para guiar a sociedade e os sistemas de informação nesse novo contexto.

O pós-humano já faz parte de nossa realidade, desde próteses mecânicas, implantes médicos, procedimentos estéticos até a extensão da nossa memória, por meio das plataformas digitais e dos mecanismos de busca. Ao longo da evolução, seja por meio dos resultados da Medicina seja por meio da Tecnologia, o humano vem melhorando suas limitações e, em grande medida, aumentando suas capacidades e habilidades. É fato que esse (não tão novo) sujeito informacional pós-humano deva corresponder a uma nova epistemologia e investir contra as interpretações tradicionais.

As etiquetas conceituais que surgem para definir este momento e outros que virão se não cotejadas, são vagas, porque o espectro da teoria do pós-humano é vasto e complexo.

Como pôde ser visto, este artigo buscou na Cibernética uma possível origem do pós-humanismo e ao contrário do humanismo, animais, homens e máquinas não têm privilégios ontológicos e existem em um mundo achatado (FELINTO; SANTAELLA, 2012).

A Ciência da Informação, nesse contexto, está inserida nos estudos de redes e organizações, exemplos de superinteligência de Bostrom (2018), nos sistemas de recuperação da informação, como próteses do cérebro humano, e nesse sentido, para Kunzru (2009), já somos pós-humanos. Incluem-se a organização do conhecimento e da informação, em sua recuperação e/ou compartilhamento entre dispositivos tecnológicos conectados à rede, o fenômeno da informação e as fakes news, entre outras tantas associações pragmáticas e estudos teóricos que consideram essa nova ontologia com a área da informação.

A proposta modelar do pós-humano não significa anti-humano, mas também não quer dizer contra o tecnológico. A Ciência da Informação, fundada por uma diretriz tecnológica de cunho militar-industrial no pós-guerra, tem por função manter-se sintonizada com esses avanços pragmáticos e hermenêuticos que incidem sobre as práticas de informação da sociedade.

REFERÊNCIAS

ALVES, José Eustáquio Diniz. Longevidade, singularidade, criogenia e transumanismo. In: ECODEBATE: site de informações, artigos e notícias socioambientais. 2017. Disponível em: 

https://www.ecodebate.com.br/2017/02/08/longevidade-singularidade-criogenia-e-transumanismo-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/. Acesso em: 01 jun. 2020.

AUGÉ, Marc. Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Tradução de Maria Lúcia Pereira. 9. ed. Campinas-SP: Papirus, 2012 

BOSTROM, Nick. Superinteligência: caminhos, perigos e estratégias para um novo mundo.  Rio de Janeiro: DarkSide, 2018.

CAPURRO, Rafael. Epistemologia da ciência da informação. Tradução de Ana Maria Rezende Cabral, Eduardo Wense Dias, Isis Paim, Ligia Maria Moreira Dumont, Marta Pinheiro Aun e Mônica Erichsen Nassif Borges. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO (ENANCIB), 5., Belo Horizonte-MG, 2003. Anais [...]. Belo Horizonte-MG: ANCIB, 2003. Disponível em: http://www.capurro.de/enancib_p.htm. Acesso em: 11 jun. 2020.

CLYNES, Manfred; KLINE, Nathan. Cyborg and space. Astronautics, United States, p. 26-30, 1960. Disponível em: http://www.guicolandia.net/files/expansao/Cyborgs_Space.pdf. Acesso em: 31 mar. 2020.

DELEUZE, Gilles.  A dobra: Leibniz e o barroco. 5. ed. Campinas: Papirus, 2009.

ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectivas, 1993.

FELINTO, Erik; SANTAELLA, Lúcia.  O explorador de abismos.  São Paulo: Paulus, 2012.

GALLOWAY, Scott. Os quatro: Apple, Amazon, Facebook e Google – o segredo dos gigantes da tecnologia.  Rio de Janeiro: Alta Books, 2019. 

GARCÍA GUTIÉRREZ, A. Pensar la transcultura. Madrid: Plaza y Valdés Editores, 2001.

GRASBY, Katrina L. et al. The genetic architecture of the human cerebral cortex. American Association for the Advancement of Science, United States, v. 367, p. 6484, 2020. Disponível em: https://pure.mpg.de/rest/items/item_3208577/component/file_3215230/content. Acesso em: 17 abr. 2020.

GRAY, Chris H.; MENTOR, Steven; FIGUEROA-SARRIERA, Heidi J.  Cyborgology: constructing the knowledge of cybernetic organisms. In: GRAY, Chris H. (ed.). The cyborg handbook. New York, London: Routledge, 1995. p. 1-14.

GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

HAYLES, N. Katherine. How we became posthuman: virtual bodies in cybernetics, literature, and informatics. Chicago, (IL): University of Chicago Press, 1999.

HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue: ciência, política e feminismo-socialista no final do século XX. In: HARAWAY, Donna; KUNZRU, Hari; TADEU, Tomaz  (org.).  Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. 2. ed.  Belo Horizonte: Autêntica, 2009. p. 33-118.

JACKER, Corine. O homem, a memória e a máquina: uma introdução a cibernética. Tradução de Luiz Corção. Rio de Janeiro: Florense, 1964. 134 p. 

LARGE, D. O que é filosofia ecológica? Kínesis, Marília-SP, v. 3, n. 5, p. 349-355, jul. 2011. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/kinesis/article/view/4414. Acesso em: 02 jul. 2020.

KUNZRU, Hari. Genealogia do ciborgue. In: HARAWAY, Donna; KUNZRU, Hari; TADEU, Tomaz (org.).  Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. 2. ed.  Belo Horizonte: Autêntica, 2009. p. 119-126.

KURZWEIL, Ray.  A era das máquinas espirituais. São Paulo: Aleph, 2007. 

KURZWEIL, Ray. The singularity is near: when humans transcend Biology. London: Penguin Books, 2006.

LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaios de antropologia simétrica. Tradução Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994. 

LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed 34, 2000.

MANCINI, Marisa Cotta; SAMPAIO, Rosana Ferreira. Quando o objeto de estudo é a literatura: estudos de revisão. Rev. bras. fisioter,  São Carlos ,  v. 10, n. 4, dec.  2006.  Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-35552006000400001&lng=en&nrm=iso. DOI 10.1590/S1413-35552006000400001.  Acesso em: 17 jul. 2020.  

MONTEIRO, Silvana Drumond. A dobra Semiótica e os agenciamentos maquínicos: por uma ontologia das Tecnologias da Informação e Comunicação.  In: CERVANTES, Brígida Maria Nogueira (org.). Horizontes da organização da informação e do conhecimento. Londrina-PR: Eduel, 2012. Cap. 3.

MONTEIRO, Silvana Drumond; MOURA, Maria A. Knowledge Graph e Peirce: uma abordagem semiótica dos índices contemporâneos no ciberespaço. In: TOMAÉL, Maria Inês; ALCARÁ, Adriana R. (Org.). Fontes de informação digital. Londrina-PR: EDUEL, 2016.  p. 119-146.

ØROM, A. Information science, historical chances and social aspects: a nordic Outllok. Jornal of Documentation, United Kingdom, v. 56, n. 1, p. 12-16, jan. 2000. Disponível em: https://www.emerald.com/insight/content/doi/10.1108/EUM0000000007133/full/html. Acesso em: 01 jun. 2020.

PEARSON, Ian. The more accurate guide to the future: thoughts from Futurizon’s Dr Pearson. 2014. Disponível em: https://timeguide.wordpress.com/2014/06/19/future-human-evolution/. Acesso em: 28 abr. 2020.

RABELLO, Rodrigo. Noções de sujeito em modelos teóricos na ciência da informação: do enfoque no sistema à consideração da agência em contexto. Informação & Sociedade: Estudos, João Pessoa, v. 23, n. 3, p. 57-71, set./dez. 2013. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ies/article/view/15144. Acesso em: 02 jul. 2020.

SANTAELLA, Lúcia. Linguagens líquidas na era da mobilidade. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2007. (Comunicação).

SANTAELLA, Lúcia. Navegar no ciberespaço: o perfil do leitor imersivo.  São Paulo: Paulus, 2004.

SANTAELA, Lúcia. A teoria geral dos signos: como as linguagens significam as coisas. São Paulo: Pioneira, 2004.

SHANNON, Claude Elwood. A Mathematical theory of communication. Bell System Technical Journal, Nova York, v. 27, p. 379-423, jul./out. 1948. DOI: 10.1145/584091.584093. Disponível em: https://dl.acm.org/citation.cfm?doid=584091.584093. Acesso em: 01 jun. 2020.

SHANNON, Claude Elwood; WEAVER, Warren. A teoria matemática da comunicação. Tradução de Orlando Agueda. São Paulo-SP: DIFEL, 1975. 

TADEU, Tomaz. Nós, ciborgue. O corpo elétrico e a dissolução do humano. In: HARAWAY, Donna; KUNZRU, Hari; TADEU, Tomaz (org.).  Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. 2. ed.  Belo Horizonte: Autêntica, 2009. p. 7-15.

WEAVER, Warren. Contribuições recentes à teoria matemática de comunicações. In: SHANNON, Claude Elwood; WEAVER, Warren. A teoria matemática da comunicação. Tradução de Orlando Agueda. São Paulo: DIFEL, 1975. p. 01-30.

WIENER, Norbert. Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos. 4. ed. rev. pelo autor em 1954. São Paulo: Cultrix, 1973. 190 p.

WIENER, Norbert. Cibernética ou controle e comunicação no animal e na máquina. Tradução de Gita K. Ghinzberg. São Paulo: Polígono; EDUSP, 1970. 256 p.


1 Professora Sênior do Departamento de Ciência da Informação. Universidade Estadual de Londrina, Brasil. Bolsista de Produtividade CNPq. ORCID https://orcid.org/0000-0001-7228-1380. E-mail: gpciberespaco@gmail.com

2 Doutoranda em Ciência da Informação no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Brasil. ORCID https://orcid.org/0000-0003-1550-5258. E-mail: rivignoli@gmail.com

3 Professor do Departamento de Ciência da Informação. Universidade Estadual Paulista, Brasil. ORCID https://orcid.org/0000-0002-8552-1029. E-mail: carlos.c.almeida@unesp.br

4 Conceito discutido por Monteiro (2012, p. 93) fundamentado principalmente em Deleuze e as máquinas abstratas. O agenciamento maquínico corresponde a fenômenos sociotécnicos sem dualismo de homem versus máquina e oposto a pensamentos bipolares, maniqueístas e hierarquizantes.

5 Enquanto o Pós-humano se realiza na condição humana provida pelo estado de coisas vigentes, o Pós-humanismo está relacionado aos discursos manifestados no estado que os estimula (FELINTO; SANTAELLA, 2012).

6 No artigo, há a indagação: e se pudéssemos viver no espaço? E se, em vez de adaptar o ambiente a nós mesmos, nos adaptássemos ao ambiente? Para fazer isso, você precisa de um sistema de feedback cibernético para manter a homeostase inconscientemente. Esses sistemas precisam se tornar parte do organismo. Um organismo cibernético. Um Cyborg. (CLYNES; KLINE, 1960).

7 A Singularidade é um termo utilizado para definir um período futuro durante o qual a vida humana será irreversivelmente transformada e representará o culminar da fusão do pensamento biológico e da nossa existência com a tecnologia, resultando em um mundo que ainda é humano, mas transcenderá as nossas raízes biológicas. Não haverá distinção, Pós-Singularidade, entre homem e máquina ou entre o físico e o virtual. (KURZWEIL, 2006).

artigo de revisão