CULTURA, EDUCAÇÃO E INFORMAÇÃO:
abordagem histórico-discursiva no contexto brasileiro

CULTURE, EDUCATION AND INFORMATION:
a discursive historical approach in the brazilian context

Regina Maria Marteleto1

RESUMO

O artigo trata da relação entre cultura, educação e informação no Brasil, recuperando alguns eixos discursivos sobre esses conceitos, formulados desde o final do século XIX e ao longo do século XX. Retoma discursos que relacionaram a cultura, no final do século XIX, à identidade nacional e ao nacional e popular. A partir dos anos 1920 as tentativas de descoberta do Brasil se orientaram para uma definição discursiva do caráter nacional brasileiro e por um projeto cultural amplo rumo à modernidade no país. Nos anos 1940 e 1950 os discursos referidos à modernização do país adquirem instrumental científico e feição pragmática com a aproximação das ideias de cultura e educação. No início dos anos 1960 elaboram-se contradiscursos nascidos dos movimentos culturais e educacionais para gerar conscientização e mobilização dos grupos populares. Com o golpe militar de 1964 e o regime autoritário que se seguiu, cultura e educação terão tratamentos políticos e técnicos diferenciados, formando esferas próprias e específicas sujeitas às políticas estatais. Ao mesmo tempo, era o momento da formulação de políticas de modernização econômica e da conformação de um mercado de bens culturais promovido pela indústria cultural que se implantava no país. Começava a se delinear uma cultura informacional de extensão mundializada.

Palavras-chave: cultura e educação. cultura brasileira. cultura de massa. cultura informacional.

 

ABSTRACT

The article deals with the relationship between culture, education and information in Brazil, recovering some discursive axes on these concepts, formulated since the end of the 19th century and throughout the 20th century. It takes up discourses that related culture, at the end of the 19th century, to national identity and to national and popular identity. From the 1920s onwards, the attempts to discover Brazil were oriented towards a discursive definition of the Brazilian national character and a broad cultural project towards modernity in the country. In the 1940s and 1950s the discourses referring to the modernization of the country acquired a scientific instrumental and pragmatic character with the approximation of ideas of culture and education. In the early 1960s, counter discourses born from cultural and educational movements were elaborated to generate awareness and mobilization of popular groups. With the military coup of 1964 and the authoritarian regime that followed, culture and education will have differentiated political and technical treatments, forming their own specific spheres subject to state policies. At the same time, it was the time to formulate policies for economic modernization and to shape a market for cultural goods promoted by the cultural industry that was establishing itself in the country. An information culture of worldwide extension was beginning to emerge.

Keywords: Culture and education. Brazilian culture. Mass culture. Information culture.

Artigo submetido em 09/10/2020 e aceito para publicação em 03/11/2020

1 INTRODUÇÃO

Foi na altura dos anos 1980 que se formou no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação do IBICT-UFRJ a linha de pesquisa “Informação, Cultura e Sociedade” para demarcar uma nova via de abordagem dos processos informacionais, com orientação socioantropológica. O foco de estudo orientou-se para as múltiplas mediações culturais, sociais, documentárias presentes na produção, organização, circulação e apropriação dos saberes, conhecimentos e informações inerentes às formas, às técnicas e aos contextos que participam da sua socialização. Novas perguntas, outras epistemologias eram trazidas ao campo para fundamentar a reconstrução do objeto informacional, em perspectiva inter e transdisciplinar, com ênfase nas Ciências Sociais.

Nesse tempo começa a se formar o Grupo de Pesquisa “Antropologia da Informação” (ANTROPOINFO), mais tarde denominado “Cultura e Processos Info-comunicacionais” (CULTICOM). O esforço inicial das pesquisas do grupo foi o de procurar realizar a reconstrução histórica e social da elaboração da ideia de informação, a partir de dois eixos principais: a) como um problema de ordem prática e simbólica das sociedades ocidentais nos processos de modernização cultural e social; b) como objeto de estudo da ciência. Procurava-se naquele momento alcançar uma compreensão a respeito dos processos discursivos e históricos relacionados à elaboração da ideia de cultura associados, num primeiro momento, à noção de educação e aos modos de aquisição e circulação de conhecimentos sistematizados e veiculados pela escola, enquanto vetor principal da dinâmica cultural do Ocidente. E os pontos de ruptura histórico-discursiva da relação cultura e educação, com a conformação de uma “cultura informacional” mediada pela tecnociência.

As reflexões em torno dos discursos que historicamente buscaram interpretar e orientar os rumos da cultura e da educação no Brasil foram um dos eixos explorados naquele momento pelo grupo de pesquisa para buscar compreender o contexto social e institucional de conformação de uma “cultura informacional”, qual seja, a passagem de uma compreensão da cultura-educação cujo vetor é a instituição escolar, para a cultura-informação mediada pelos dispositivos técnicos e cada vez mais regulada por um “capitalismo midiático” e o setor que tornou-se economicamente dominante, denominado por Jeanneret (2014, p. 511) de “indústrias das passagens”, as quais não produzem propriamente obras mas desenvolvem, de forma incessante, formatos de comunicação.

Este artigo recuperar parte dessas vertentes acreditando na necessidade de abordar, a partir de regimes discursivos mais antigos do que os da assim denominada “transformação digital”, as mediações simbólicas, técnicas e sociais da cultura, da educação e da informação no contexto brasileiro. Para tal fim retoma os eixos discursivos que relacionaram a cultura, num primeiro momento, no século XIX, à identidade nacional e ao nacional e popular, quando o país buscava o seu destino, após ter conquistado a independência. A partir dos anos 1920 as tentativas de descoberta do Brasil se orientaram para uma definição discursiva do caráter nacional brasileiro e por um projeto cultural amplo fundado em diferentes correntes discursivas sobre os rumos da nação brasileira em direção à modernidade. Nos anos 1940 e 1950 os discursos referidos à modernização do país adquirem instrumental científico e feição pragmática ao colocarem em pauta e aproximarem as ideias de cultura e educação, de forma a alinhar as diferenças culturais e sociais do povo brasileiro na direção do desenvolvimento nacional. No entanto, deixando de lado as desigualdades sociais, os conflitos e a diversidade cultural do país. No início dos anos 1960 elaboram-se contradiscursos nascidos de ações de intelectuais, membros da igreja católica, operariado, estudantes reunidos em movimentos culturais e educacionais junto às camadas urbanas e rurais para gerar conscientização e mobilização dos grupos populares. Com o golpe militar de 1964 e o regime autoritário que se seguiu, cultura e educação terão tratamentos políticos e técnicos diferenciados, formando esferas próprias e específicas sujeitas às políticas estatais. Ao mesmo tempo, era o momento da formulação de políticas de modernização econômica e da conformação de um mercado de bens simbólicos promovido pela indústria cultural que se implantava no país. Começava a se delinear uma cultura informacional de amplitude mundial.

2 CULTURA E IDENTIDADE NACIONAL

O primeiro modelo que orientou a abordagem da “cultura brasileira” teve como base o discurso do nacional e do popular o qual configurou, no século XIX, a maneira do país tomar consciência do seu destino, após ter conquistado a independência. Ele representou, ao mesmo tempo, uma aproximação e uma tentativa de ruptura com a tradição cultural europeia. O paradigma da identidade nacional teria seus desdobramentos nas elaborações discursivas sobre cultura no Brasil com diferentes matizes intelectuais, políticos e ideológicos, ainda no século seguinte. Por isso é importante de ser considerado. Ele parece ser um traço marcante da tradição cultural do país.

Nos estudos clássicos sobre a “cultura brasileira” sempre se ressaltou, por diferentes focos, o seu caráter imitativo das tradições culturais dos países colonizadores, seja no período segregativo da colonização portuguesa, com o fechamento da Colônia às ideias estrangeiras, ou no Império, com a abertura cultural e o consequente contato das elites brasileiras com a cultura europeia – sobretudo a francesa. Mesmo considerando as distâncias ideológicas dos seus analistas, o caráter de cópia e, portanto, postiço da “cultura brasileira” era o seu ponto de concordância. Ora esse caráter mimético estava relacionado com as elites brasileiras e o seu distanciamento em relação ao povo iletrado (Sílvio Romero, por exemplo), ora ao caráter de passividade da raça brasileira (Nina Rodrigues, por exemplo).

De toda forma buscava-se resgatar o Brasil autêntico por meio da originalidade da sua cultura no contraste com a cultura importada, que só parecia encontrar lugar em meio às elites letradas. Porém, para o Brasil existir como uma nação cuja produção simbólica estivesse em sintonia com as aspirações e maneiras de ser do povo era preciso aproximar a nação do povo, ou o povo da nação, para se construir uma identidade nacional.

Para fazer a aproximação entre povo e nação, e assim construir uma identidade do ser brasileiro, os discursos sobre a “cultura brasileira”, no século XIX, propõem uma nova visão que superasse o pensamento romântico, que tivera sua expressão em Gonçalves Dias e José de Alencar. A produção discursiva sobre a nossa maneira de sermos uma nação vai encontrar apoio em três teorias que orientavam o pensamento científico europeu em meados do século XIX: o positivismo de Comte, o darwinismo social e o evolucionismo de Spencer (ROMERO, 1943).

Essas teorias tinham como paradigma a ideia de uma dimensão evolutiva e histórica dos povos e procuravam estabelecer as leis que comandavam as etapas do progresso das sociedades rumo a uma condição civilizada. Por esse prisma, a realidade sociocultural de uma nação emergente como a brasileira se encontrava em patamar inferior em relação à evolução natural e histórica dos países europeus:

Torna-se necessário, por isso explicar o “atraso” brasileiro e apontar para um futuro próximo, ou remoto, a possibilidade de o Brasil se constituir enquanto povo, isto é, enquanto nação. O dilema dos intelectuais desta época é compreender a defasagem entre teoria e realidade, o que se consubstancia na construção de uma identidade nacional (ORTIZ, [1985?], p. 15).

Tratava-se então de identificar o que de diferente existia na sociedade brasileira: a raça (critério biológico) e o meio (critério natural) que constituiriam a peculiaridade do povo e da nação emergente. No entanto, ao se transformarem em critérios do conhecimento para a interpretação da realidade brasileira, raça e meio pareciam contribuir mais para justificar o atraso brasileiro em relação à Europa do que propriamente para fundar uma identidade.

Para o funcionamento político da nação a ser construída era necessário ainda um Estado Moderno e para tal aportavam no Brasil as ideias do liberalismo europeu. Essas viriam a ter grande influência não apenas pelas cabeças daqueles que as traziam dos estudos na Europa, como através do incipiente quadro educacional brasileiro sob a hegemonia da Igreja. A importação das novas ideias liberais e democráticas do século XIX serviu para promover uma renovação no quadro do pensamento brasileiro sobre cultura e educação, o qual se restringia, no entanto, ao “mundo verbal”, sem provocar transformações práticas e imediatas, conforme viria a analisar mais tarde Fernando de Azevedo:

O que faltava para uma vigorosa obra de educação em alto nível e em grande escala eram, sobretudo, condições de ambiente realmente favoráveis à mudança de mentalidade e aos progressos da cultura no país. O sistema econômico, assentado em alicerce exclusivamente agrário e no regime da escravidão; a inexistência de uma cultura econômica básica ou de uma grande fonte de riqueza que pudesse acelerar o ritmo da transformação da fase agrícola para a de exploração industrial; a falta, em consequência, de uma extensa rede de comunicações que permitisse uma interpenetração maior das culturas e uma ação mais intensa dos focos de atividade intelectual sobre as largas “zonas de silêncio” - zonas culturais sem ressonância, e sem vibração; [...] tudo isto concorria para neutralizar os esforços construtores nessa sociedade heterogênea, fracionada em grupos sociais dos mais diversos níveis econômicos, isolados e dispersos a grandes distâncias (AZEVEDO, 1976, p. 92-93).

Parecia existir nesse momento uma distância entre a teoria e a prática, ou entre aqueles que a elaboravam e a maioria que a ignorava. Afinal, ela se resumia na dificuldade de interpretação pela grade das ideias científicas e políticas que se difundiam no país, de uma sociedade fragmentada e desigual. Essas ideias pareciam estar “fora do lugar”, expressão empregada por SCHWARZ (1977) para demonstrar o caráter desfocado dos ideais liberais como a ideologia de uma elite, durante o regime escravista brasileiro.

O incipiente quadro educacional do país parecia comprovar as ideias dos analistas da cultura. De caráter eclesiástico e humanista, as escolas existentes contribuíam mais para reforçar os valores de uma tradição cultural herdada da Colônia do que propriamente para se formularem novas ideias, capazes de emoldurar o perfil da jovem nação e assim participar do processo de montagem da sua identidade. A criação do Colégio Pedro II, por ato institucional do Governo Imperial em 1837, como colégio de instrução secundária, se por um lado representou uma tentativa de dar uma feição mais generalista à cultura escolar, e assim promover o contato dos estudantes com um modelo iluminista de cultura, por outro não logrou atingir uma reformulação dos modelos educacionais e culturais vigentes.

No quadro de um sistema de ensino “inorganizado, anárquico, incessantemente desagregado”, que refletia a tradição sociocultural do país, o Colégio Pedro II foi:

[...] a única instituição de cultura geral, criada desde a Independência até a República [...] excelente estabelecimento de ensino secundário em que os estudantes, terminado o curso de sete anos, recebiam o grau e as cartas de bacharel em letras, depois de prestarem o juramento perante o Ministro do Império que lhes punha sobre a cabeça o barrete branco da Faculdade de Letras (AZEVEDO, 1976, p. 78).

Apesar de sua importância na paisagem cultural e educacional do país no século XIX, a instituição criada por decreto imperial não atingia o ideal de cultura e educação veiculado pelas ideias liberais. Faltavam-lhe alguns elementos para funcionar em consonância com o modelo inspirador: 1º) era um Colégio de elite e portanto não correspondia aos ideais de emancipação da sociedade, através da cultura; 2º) seu ensino estava voltado para uma tradição humanista, caracterizando o clima intelectual herdado da Colônia, e não para uma formação científica com sentido pragmático e moderno, na interpretação de Fernando de Azevedo:

Certamente capazes de conceber planos de estudos em função das condições do meio brasileiro já em transformação, os estadistas do Império, imbuídos de fórmulas jurídicas e penetrados de cultura europeia, montaram um instituto de ensino secundário de primeira ordem, mas aristocrático, que tendia a separar o menino do seu meio, a afastar o homem das funções úteis, técnicas e econômicas, e a influir poderosamente, em colaboração com os colégios e seminários, como um instrumento de seleção e de classificação social (AZEVEDO, 1976, p. 80).

Em estudo clássico, “O caráter nacional brasileiro”, Dante Moreira Leite teceu um quadro ilustrativo a respeito daquilo que denomina “ideologias sobre o caráter nacional brasileiro”, mostrando que a busca desse caráter, se na fase colonialista e mesmo após a Independência, ressaltou o lado positivo do brasileiro, no período mais científico dessas abordagens vai se caracterizar por uma imagem pessimista, inaugurada por Sílvio Romero e ampliada com inspiração nas teorias científicas em voga na Europa (LEITE, 1969).

3 CULTURA E CARÁTER NACIONAL: os primeiros traços do moderno

Abancado à escrivaninha em São Paulo

Na minha casa da rua Lopes Chaves

De sopetão senti um friúme por dentro

Fiquei trêmulo, muito comovido

Com o livro palerma olhando pra mim

Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu Deus! muito longe de mim

Na escuridão ativa da noite que caiu

Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos,

Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,

Faz pouco se deitou, está dormindo.

Esse homem é brasileiro que nem eu...

(Mário de Andrade)

As tentativas de “descoberta do Brasil” para inaugurar a nação, moldar o perfil do seu povo e assim firmar uma identidade nacional se orientariam, a partir dos anos 1920, conforme se viu, para uma definição do “caráter nacional brasileiro”. Esta via, inaugurada por Sílvio Romero no final do século anterior, iria marcar com força de paradigma os discursos de cunho literário e ensaístico dos intelectuais brasileiros, pelo menos até a década de 1940. Nas obras que caracterizam essa linha de abordagem da cultura brasileira os critérios raça e meio continuavam a ser aqueles privilegiados para se compor o caráter nacional (LEITE, 1969).

O Modernismo, movimento que envolveu o mundo das artes plásticas e da literatura, trazia consigo uma nova consciência histórica presente, de formas diferentes, nas cabeças da intelectualidade brasileira e, de forma ainda latente, nas transformações que vinham ocorrendo de maneira esparsa na sociedade e que apontavam para os primeiros traços do novo, do moderno, entre nós.

A consciência histórica que antevê a modernidade se revela por um projeto cultural amplo, que iria envolver diferentes correntes discursivas sobre os rumos da nação brasileira em direção à modernidade capitalista, já àquela altura sedimentada como experiência no Ocidente europeu. Por detrás de todas as contradições que envolveram ideologicamente cada um dos discursos reformadores da nação brasileira, na busca do caráter do seu povo, existe um terreno comum quando se afirma que só seremos modernos se formos nacionais: “Entretanto, a nação permanecia alienada, reduzida a mera expressão do meio geográfico. Faltava-lhe dimensão política: uma ideia-força, capaz de mobilizar os diferentes sujeitos sociais. Mas não havia povo, apenas uma multidão indeterminada e vazia, que deveria ser reinventada a partir das projeções reformadoras”. Aos discursos sobre uma feição de cultura brasileira caberia então “criar uma intervenção cultural e movimentar os rumos da República, produzindo a presença das ausências: o Povo, a Pátria, a Nação, o Estado, o novo, o moderno” (MONARCHA, 1989, p. 72).

Entretanto, a projeção discursiva dessas noções produzidas pela modernidade europeia no entendimento da questão nacional brasileira ia de encontro a uma realidade fugidia que teimava em não se deixar explicar pelo modelo europeu. Daí se utilizar o critério da peculiaridade do país, da sua gente, do seu povo, ora pela denúncia do caráter ornamental da cultura brasileira, ora por uma ênfase no caráter peculiar do brasileiro e da sua terra.

Nesse desencontro entre o modelo discursivo e a realidade social, cindiam-se diferentes discursos entre os intelectuais modernistas. De um lado, os literatos, artistas e poetas, com duas interpretações básicas da brasilidade, ou do caráter nacional. Oswald de Andrade e os Antropófagos, para os quais o caráter brasileiro se caracterizaria pela maneira selvagem de “devorar, digerir e destruir o passado branco, cristão, colonial”; outros que se caracterizavam por uma alegre e folclórica aceitação do Brasil e das suas tradições. Entre esses dois polos colocava-se ainda a figura trágica de Mário de Andrade, que ao reconhecer “o brasileiro que nem eu” encontrou o Macunaíma, o herói sem caráter, símbolo da brasilidade. De outro lado, os intelectuais humanistas de espírito pragmático, que tinham na organização de um sistema educacional no país o meio essencial de transmissão e sedimentação dos valores da cultura ocidental, dos quais Fernando de Azevedo e Lourenço Filho foram as expressões mais marcantes naquele momento.

Dessa forma, ao buscarem uma definição do caráter nacional como meio de delinear a face da nação brasileira, a diversidade racial, simbólica e social do seu povo surgia como um obstáculo ao moderno. Em outras palavras, no fundo dessas interpretações do Brasil como sociedade dual pairava a dificuldade dos seus autores em projetar a cultura e, por sua vez, a realidade social do país no quadro de uma cultura universal modelar, pilar básico da modernidade capitalista, comandada pela tecnociência e pela expansão econômica.

Assim, os discursos sobre a brasilidade, o caráter nacional, costumam ser considerados como “ideologias” por duas razões principais. A primeira, porque são “discursos de uma geração”, isto é, dos filhos das elites oligárquicas que formaram um conjunto de “explicadores do Brasil”, fora da realidade concreta do país, ou seja, dos conflitos políticos, de raça e de classes sociais. Desse modo, as ideologias da cultura brasileira que se formularam desde o final do século XIX até as primeiras décadas do século XX costumam ser consideradas, guardadas as suas especificidades e divergências, como contendo uma visão de cultura homogênea, harmoniosa e válida para todos. A segunda, por se pautarem num estilo ensaístico e literário, um obstáculo para uma aproximação objetiva, porque científica, da realidade cultural do país, a qual só se concretizaria a partir dos anos 40, com os primeiros frutos oriundos das universidades recém-criadas no país, na década de 30, das quais a de maior e quase única expressão foi a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, fundada em 1934, núcleo da futura Universidade de São Paulo.

Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda costumam ser consideradas como as últimas interpretações desse veio e também como casos-limite que juntamente com Evolução política do Brasil, de Caio Prado Júnior, abririam uma nova fase discursiva sobre a cultura brasileira (MOTA, 1990).

4 PROJETO DE MODERNIZAÇÃO E APROXIMAÇÃO DE CULTURA E EDUCAÇÃO

Hino Nacional

Precisamos descobrir o Brasil

Escondido atrás das florestas,

Com a água dos rios no meio,

o Brasil está dormindo, coitado.

Precisamos colonizar o Brasil.

***

Precisamos educar o Brasil.
Compraremos professores e livros,
assimilaremos finas culturas,
abriremos dancings e subvencionaremos as elites.

Cada brasileiro terá sua casa
com fogão e aquecedor elétricos, piscina,
salão para conferências científicas.
E cuidaremos do Estado Técnico.

***

Precisamos adorar o Brasil!
Se bem que seja difícil caber tanto oceano e tanta solidão
no pobre coração já cheio de compromissos…
se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,
por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos.

Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
***
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?

(Carlos Drummond de Andrade)

As tentativas de “descoberta do Brasil” vão se intensificar nos anos 1930 e 1940 com a multiplicação dos descobridores e das suas descobertas, caracterizadas agora por um aprimoramento do discurso do intelectual letrado, que ganha instrumental, se cientificiza. Os males enfrentados pelo país, ou seja, a falta de contato com a realidade nacional e a cópia de modelos estrangeiros poderiam agora ser sanados, uma vez as elites podendo superar o estado completo de desconhecimento da terra e do povo pela aquisição da competência requerida para a sua missão, pelo caminho do conhecimento científico. Assim, os temas críticos para a elite intelectual, que os aceitam como a “missão de uma geração” seriam a criação da nacionalidade e o estudo “científico” da realidade brasileira (OLIVEIRA, 1980).

Garantida a modernização do discurso intelectual pela racionalidade, a aspiração à modernidade só se torna mais explícita quando ao discurso da modernização cultural se alia o discurso da modernização social. Estava nas mãos do Estado moderno brasileiro o projeto social de sistematização das acentuadas modificações e conflitos gerados na sociedade: Com a Revolução de 30 as mudanças que vinham ocorrendo são orientadas politicamente, o Estado procurando consolidar o próprio desenvolvimento social. Dentro deste quadro, as teorias raciológicas tornam-se obsoletas, era necessário superá-las, pois a realidade social impunha um novo tipo de interpretação do Brasil (ORTIZ, [1985?], p. 40).

Não se tratava apenas de descobrir o país para encontrar sua identidade e transformá-lo em nação, e nem de reunir a fisionomia dispersa do seu povo no “caráter brasileiro”. Tratava-se agora de alinhar as diferenças na direção do progresso e da razão, deixando-se de lado o conflito, a marginalidade, o caos e as lutas sociais para dirigir e organizar a sociedade. O discurso sobre cultura brasileira não apenas adquire instrumental científico, como assume uma conotação pragmática. O pensamento sobre a cultura brasileira encontra-se, então, com o pensamento liberal sobre a educação, como meio de elevar o nível cultural da população em geral e organizar uma sociedade moderna.

A ambiguidade da identidade do ser nacional forjada pelos intelectuais do século XIX não podia resistir muito tempo. Ela havia se tornado incompatível com o processo de desenvolvimento econômico e social do país. Basta lembrarmos que nos anos 30 procura-se transformar radicalmente o conceito de homem brasileiro. Qualidades como “preguiça”, “indolência’, consideradas como inerentes à raça mestiça, são substituídas por uma ideologia do trabalho (ORTIZ, [1985?], p. 42).

Neste contexto as elites intelectuais se dividiam entre duas tendências opostas, as quais de certa forma traduziam os seus propósitos políticos imediatos. Se para um grupo o progresso alcançado pelo mundo civilizado é a meta a ser perseguida pelo país, para outros a questão é colocada como um dilema entre civilização e cultura. Esses últimos, que tentam alcançar a realidade nacional, investem contra a civilização, que seria representada pelo cosmopolitismo e o liberalismo, aos quais se contrapõe o nacionalismo e o autoritarismo, que aparecem associados na elaboração do que seria a cultura nacional (OLIVEIRA, 1980).

No embate político e teórico aos poucos o discurso da cultura brasileira vai se encontrar com o discurso da educação, sobretudo pela voz e ação do grupo de intelectuais mais diretamente ligados à comunidade científica internacional e aos avanços do “mundo civilizado”, os quais ressaltavam os progressos científicos alcançados em relação à educação, nos países que tinham ultrapassado a fase de transição para a modernidade capitalista.

Nesse projeto de transição para a modernidade capitalista, ou nos sucessivos deslocamentos operados no ideário liberal, a força motriz está na cultura, particularmente na concepção de cultura pragmática, portanto, moderna, simbolizando oposição à metafísica e a ausência de diretrizes [...] a cultura era a via para a promoção de uma ampla reforma das consciências, maneira pela qual realizava-se o essencial do projeto liberal: a revolução dentro da ordem (MONARCHA, 1989, p. 17).

Os intelectuais mais sintonizados com a ideia de alcance de um nível cultural no país, compatível com o modelo cultural civilizado, tinham na educação o meio para alcançá-lo e, desde o Modernismo, formavam um grupo expressivo que veio a ser conhecido como os “reformadores da cultura e educação nacional”. Estes, e o seu movimento, a “Escola Nova”, procuravam mobilizar a sociedade em torno de uma mesma questão: a superação do atraso nacional e o ingresso no moderno. Propunham uma visão instrumental de cultura, voltada para a reforma da realidade imediata e uma revisão da noção de tradição, que significava naquele momento o oposto de modernidade. A modernização, sucedânea da industrialização, surgia como uma tarefa intelectual, dentro do modelo racional da realidade (MICELI, 1979).

É nesse contexto dos anos 1930 e 1940 que a cultura e a educação passam a ser encaradas como produtos a serem oferecidos a todos no processo de modernização, marcando um período de intensos debates entre intelectuais, políticos e membros do clero, ou seja, entre a pequena elite que detinha o poder de encaminhamento da questão nacional, agora identificada com os rumos da educação e da cultura.

A questão educacional vinha sendo ardorosamente discutida desde o início dos anos 30, e nessa discussão destacava-se o conflito entre a ideologia da igreja católica e a ideologia dos Pioneiros da Escola Nova. Este conflito é arbitrado pelo Estado, que utiliza uma e outra para garantir o predomínio sobre a sociedade, o que de certo modo explica, na política educacional desse período, a convivência entre a visão pragmática e liberal de educação e cultura, defendida pelos Pioneiros acima citados, e a manutenção de um sistema educacional baseado no ensino humanístico tradicional, defendido pelos membros do clero e intelectuais a eles alinhados, os quais detinham ainda uma grande fatia da oferta educacional. Entretanto o interesse pela educação e o dissenso em torno da questão no país encontra sua razão de ser:

[...] nas experiências de construção nacional em processo na época, como o nazismo, o fascismo e o comunismo, [que] tratavam a educação como o instrumento por excelência de fabricação de tipos ideais de homens que assegurassem a construção e a continuidade de tipos também ideais de nações. Assim a ação educativa era vista como um recurso de poder e, portanto, ardorosamente disputada (SCHWARTZMAN, 1984, p. 190-191).

O que é importante reter aqui, no quadro amplo de discussão da cultura pragmática, cujos padrões deveriam ser fornecidos pela escola, de modo a nivelar os cidadãos para sua inserção social idealizada pelo Estado, é a ênfase que será colocada no ensino médio, e as suas razões. Ela está presente no texto da Constituição outorgada de 1937, no seu artigo 129, que diz: “O ensino pré-vocacional e profissional destinado às classes menos favorecidas é, em matéria de educação, o primeiro dever do Estado”, ou na Lei Orgânica do Ensino Secundário, de 1942, que dizia na sua exposição de motivos: “O ensino secundário se destina à preparação das individualidades condutoras, isto é, dos homens que deverão animar as responsabilidades maiores da sociedade e da nação, dos homens portadores das concepções e atitudes espirituais que é preciso infundir nas massas, que é preciso tornar habituais entre o povo.” (CUNHA, 1975, p. 237).

Dessa forma fica demonstrada, na política educacional do Estado Novo [1937-1945] a visão da educação escolar como instrumento de “estamentalização das situações de classe” institucionalizada “por um sistema educacional dual onde havia um segmento destinado aos jovens das ‘classes menos favorecidas’ e outro segmento destinado à classe formada pelas ‘individualidades condutoras’, ambos destinados a reproduzir as situações preexistentes.” (CUNHA, 1975, p. 237).

No início de 1940, o governo, através do seu Ministério da Educação e Cultura, prepara uma reforma de ensino secundário que viria a resultar na Lei Orgânica de 1942, anteriormente citada, na qual estariam expressos os princípios gerais da concepção educacional, vistos do ângulo do Estado.

O sistema educacional deveria corresponder à divisão econômico-social do trabalho. A educação deveria servir ao desenvolvimento de habilidades e mentalidades de acordo com os diversos papeis atribuídos às diversas classes ou categorias sociais. Teríamos, assim, a educação superior, a educação secundária, a educação primária, a educação profissional e a educação feminina; uma educação destinada à elite da elite, outra educação para a elite urbana, uma outra para os jovens que comporiam o grande ‘exército de trabalhadores necessários à utilização da riqueza potencial da nação’ e outra ainda para as mulheres. A educação deveria estar, antes de tudo, a serviço da nação, ‘realidade moral, política e econômica’ a ser constituída’ (SCHWARTZMAN, 1984, p. 189).

Fazia-se, então, uma acentuada distinção entre o ensino secundário e outras formas de ensino médio. Todo o ensino médio deveria voltar-se para um conteúdo humanístico e estaria sujeito a procedimentos bastante rígidos de controle de qualidade. Ele era, ainda, o único que dava acesso às universidades. Aos alunos que não conseguissem passar pelos exames de admissão ao ensino secundário, restaria a possiblidade de ingressar no ensino industrial, agrícola ou comercial, que deveria prepará-los para a vida do trabalho.

A consciência humanística a ser alimentada nos jovens “condutores das massas”, juntamente com a formação de uma consciência patriótica “[...] pareciam os instrumentos perfeitos para a tarefa difícil de organizar o Estado e suas instituições, moldando-lhes a forma e o caráter, atribuindo-lhes uma identidade – extensiva à nação – e preparando as novas gerações para aceitar e perpetuar a ordem que se criava.” (SCHWARTZMAN, 1984, p. 192).

Dessa forma, a cultura a ser estimulada e disseminada pela escola estaria alicerçada no cultivo das humanidades e na identificação de cultura escolar com as premissas básicas da cultura do Ocidente civilizado, de forma a apaziguar os conflitos, nivelar as consciências dos líderes e das massas, a fim de preparar a nação para o diálogo com as grandes nações e o seu projeto de Modernidade.

No encontro planejado e executado entre cultura e educação no país, a escola secundária, tendo como padrão controlador e inspirador o Colégio Pedro II, foi o nível escolhido para a formação de novas mentalidades, para criar uma cultura nacional comum e disciplinar as gerações para a continuidade da pátria. Através dela esperava-se também produzir uma nova elite para o país, à qual caberia a condução das massas e à qual estaria reservado o acesso ao ápice da pirâmide educacional.

5 CULTURA, EDUCAÇÃO E DESENVOVIMENTO NACIONAL

Criando e recriando, integrando-

se às condições do seu contexto,

respondendo a seus desafios,

transcendendo, lança-se o homem num

domínio que lhe é exclusivo - o da

História e o da cultura

(Paulo Freire)

O entendimento de cultura brasileira se orientava, desde a década de 1930, para a construção e organização de uma sociedade moderna, interlocutora de outras grandes nações. Tentava-se implantar, por via estatal, uma atmosfera pragmática e racional na sociedade diversificada culturalmente. A educação, em seus diferentes níveis, surgia então como instrumento capaz de elevar as massas às condições exigidas pelo processo de modernização. Ao mesmo tempo se expande e fortalece, sobretudo em meio às camadas médias urbanas, uma visão da escola como meio de ascensão social, ou de encontrar um papel e um lugar, na sociedade desigual.

Depois da 2a Guerra Mundial uma visão modernizadora orienta explicitamente o discurso e a ação estatal, disposta a acertar o passo com o progresso industrial e o modo de vida do mundo desenvolvido, sobretudo norte-americano: Essa visão corresponde ao modelo desenvolvimentista implantado mais sistematicamente depois da II Guerra, e vigente, em larga escala, até hoje, como fato, no interior da burguesia, como projeto a curto prazo no interior das classes médias, e como aspiração ou sonho junto às classes pobres (BOSI, 1985, p. 136).

Nesse modelo encontram-se duas vertentes que iriam nortear o discurso, o planejamento e a ação em cultura e educação no país. A primeira delas, a “nacionalista e populista de linguagem democratizante”, a qual orientou a política estatal de 1945 a 1964 no encaminhamento da questão nacional ligada ao desenvolvimento, isto é, à modernização econômica, social e cultural como forma de sair da condição de subdesenvolvimento. A segunda delas, de teor tecnocrático, baseada no conhecimento do especialista, e que passou a orientar a questão nacional a partir de 1964.

A década de 1950 tinha se caracterizado por um movimento discursivo em torno da questão cultural matizado pelos projetos do reformismo nacionalista, e mais uma vez envolvendo grupos de intelectuais que na sua maior parte, e guardando diferentes linhas teóricas e ideológicas (nacionalismo, marxismo ortodoxo, desenvolvimentismo, populismo) voltavam-se para uma análise científica da realidade social e preconizavam um posicionamento político do intelectual frente aos problemas culturais e sociais do país. Pela primeira vez tornava-se nítida e declarada a missão política do intelectual e o seu papel como ideólogo da questão nacional, admitindo-se a convivência entre ciência – como conhecimento racional e “neutro” da realidade – e a ideologia do desenvolvimento, na medida em que tanto uma quanto outra estariam voltadas para o conhecimento e a defesa dos interesses nacionais (TOLEDO, 1986).

O que faz os intelectuais alinhados com o projeto desenvolvimentista do país acreditarem no funcionamento benéfico da ciência e da ideologia reformista é o fato de já se verificarem, naquela época, transformações nas estruturas materiais do país (industrialização, urbanização etc.), uma vez rompido o complexo semicolonial, que propiciavam a elaboração de uma ideologia que sustentasse e incentivasse o desenvolvimento incipiente (TOLEDO, 1986).

Se a questão cultural no Brasil passou a constituir um problema político e científico, este se formulou como uma marcha rumo ao desenvolvimento, o qual só poderia ser alcançado pela revisão dos padrões culturais tradicionais, ou seja, pelo projeto de uma sociedade moderna, adaptada à era da ciência e da técnica. O rosto da nação brasileira será então moldado procurando-se não a sua essência (a brasilidade), mas determinando-se a sua função - a modernização.

Nesse sentido, os anos 1950 provocaram uma reviravolta no tratamento da questão cultural no país, porque algo de novo se associava ao seu tratamento discursivo. Tratava- se agora não apenas de constatar ou diagnosticar a imitação do mundo desenvolvido, ou a falta de conteúdo da expressão simbólica brasileira intelectualizada ou não, pois

A necessidade de criação cultural não se esgotava com a constituição de uma visão de mundo que fosse especificamente brasileira. Ela se queria antes de mais nada como um fundamento e um apoio para a ação [...] Uma ‘cultura brasileira’ devia resultar de uma ação política, devendo desembocar numa nova ação política, sem a qual não teria nem função, nem justificativa (QUEIROZ, 1980, p. 61).

Neste quadro marcado pela ideologia do desenvolvimento nacional, intelectuais e militantes nacionalistas da direita passam a integrar frentes esquerdizantes, abrindo assim espaços para uma nova visão da cultura.

No novo contexto, ao se colocar a necessidade de criação de mercados internos para o desenvolvimento econômico, de reforma agrária para a superação do “Brasil arcaico”, e de mobilização popular para as reformas de base, esbarrou-se com novos estratos sociais até então estudados à distância pela intelectualidade: os estratos populares, fruto da nova fase cultural – a da cultura popular (MOTA, 1990, p. 265).

Apesar dos impasses e dilemas políticos e ideológicos que cercaram a intelectualidade brasileira neste período de reformismo desenvolvimentista, o que vale ressaltar é que o posicionamento político dos intelectuais de então frente à questão cultural possibilitou a recriação do cultural pelo elemento político e, pela primeira vez, a cultura não é unicamente motivo de reflexão especulativa em revistas literárias. Ela passará a ser, daqui para frente, um tema central das ciências sociais e da ação política, na sua relação com a modernização e com o poder.

Neste caso, o que vale registrar é a nova reorientação dada aos discursos sobre a cultura no país, pela elaboração de um contradiscurso ideológico nascido da teorização e da ação da intelectualidade, membros da Igreja, operariado, estudantes que passaram a estar reunidos no início dos anos 1960 em movimentos culturais e educacionais junto às camadas populares urbanas e rurais, no sentido de “[...] criar experiências políticas de expressão cultural com o propósito de obter transformações sociais e simbólicas que gerassem reorganização e mobilização de grupos populares e o fortalecimento de seu poder de classe.” (BRANDÃO, 1985, p. 16).

Cresce então o interesse pelas culturas populares e pelo papel do intelectual no processo de conscientização das camadas populares e na reformulação das suas condições materiais e culturais de vida. Essa mobilização da população por meio de um trabalho de democratização da cultura seria, de acordo com os idealizadores desses movimentos, também um trabalho de educação, ou da cultura levando à educação. Por outro lado, eles não surgem como atitude ou ideia nova ou de vanguarda, que caracterizaram a atitude intelectual em décadas anteriores. Mas como uma proposta de ação coletiva, que apesar das divergências teóricas e práticas entre seus diferentes grupos, reuniam-se em torno de uma ideia unitária que era a da urgência de um trabalho político de conscientização das massas através de um recém-descoberto poder da cultura.

Os principais movimentos de cultura e educação popular se organizaram no início dos anos 1960. Os mais significativos foram a “Ação Popular”, originado em parte por iniciativa de cristãos militantes da Ação Católica. O “Centro Popular de Cultura”, criado pela União Nacional dos Estudantes (UNE). Os “Movimentos de Cultura Popular” envolviam grande número de estudantes, artistas e intelectuais. Tinham uma dimensão municipal ou estadual. Dentre esses o mais atuante foi o de Recife (PE), do qual participou Paulo Freire e sua equipe pioneira em experiências de alfabetização, ligados ao Serviço de Extensão Universitária da Universidade do Recife. O único movimento que conseguiu atravessar os acontecimentos políticos a partir de 1964 foi o “Movimento de Educação de Base”, criado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a campanha “De pé no chão também se aprende a ler”, desenvolvida em Natal (RN) (PAIVA, 1984).

Mota (1990), lembrando os impasses a que foram levados os discursos e ações em torno de uma crítica da cultura a partir do golpe militar de 1964 recupera, entre outras, a seguinte passagem escrita por Otávio Ianni no nº 18 (março-abril de 1968) da Revista Civilização Brasileira, que seria fechada neste mesmo ano, a respeito da nova frente de investigação que se abriu para as ciências sociais no país:

Esse interesse novo do pensamento brasileiro pelo homem comum nasceu e desenvolveu-se amplamente durante a vigência da democracia populista (1945-64). Nesses anos, a cultura nacional floresceu e multiplicou os seus centros de interesse. As artes e as ciências sociais passaram a preocupar-se mais direta e profundamente com os problemas básicos da sociedade. Pela primeira vez, de modo sistemático, o homem comum foi encarado em toda a sua integridade. Abandonou-se a visão externa, episódica e anedótica dos seus problemas (IANNI apud MOTA, 1990, p. 223).

De um perguntar-se sobre o porquê da “consciência ingênua” presente nas camadas inferiores e marginalizadas da sociedade brasileira, o que levou muitas vezes os intelectuais a falarem para ou por uma “cultura do povo” como os únicos e verdadeiros criadores para o povo, de uma cultura válida, passou-se, com a revisão do papel do intelectual junto às classes populares e dos antigos paradigmas da ação cultural, juntamente com o amadurecimento crítico do discurso das ciências sociais, a uma nova orientação que tenta captar:

[...] a totalidade e a particularidade das manifestações culturais, de forma dialética no interior de uma sociedade global, através do tempo, sem nenhuma preocupação com o que seria ‘positivo ou negativo’, ‘autêntico’ ou ‘falso’. Os pesquisadores perdem também sua função de ‘criadores’ da cultura, ou de ‘conscientizadores’ e únicos detentores da capacidade crítica; reconhecendo que a função de pensar existe em todas as camadas sociais, procura-se agora pelo diálogo igualitário e franco o entendimento com ‘pensadores’ de outra formação e de outra origem. Desfaz-se assim a noção de cultura como privilégio ou ‘apanágio’, para se admitir sua generalização através de todas as classes sociais, pela sua existência em todos os grupos, nos quais são encontrados indivíduos que constituem seus legítimos porta-vozes (QUEIROZ, 1980, p. 64-65).

De toda forma, foi no bojo desses movimentos de cultura e educação popular que se formularam os primeiros esboços de uma crítica da cultura no Brasil, os quais foram se tornando mais nítidos e elaborados e cujos traços encontram-se interligados “[...] pela desconfiança de que a cultura pode negar como história vivida o que dela se afirmar enquanto princípio pensado e pode constituir relações sociais, estruturas de trocas, valores, códigos e conhecimentos de negação da liberdade do homem.” (BRANDÃO, 1985, p. 24).

6 PLANEJAMENTO DA CULTURA E DA EDUCAÇÃO

O modelo modernizador de cultura e educação, agora tratadas no âmbito das políticas sociais implantadas pelo Estado, estará baseado no conhecimento dos especialistas junto aos órgãos da administração, às empresas e à cúpula do sistema decisório governamental demandando, portanto, um novo tipo de participação dos intelectuais. Por outro lado, vai se caracterizar por um tratamento planejador e compartimentalizado do social, sendo que cada grupo de especialistas se ocupará de um setor determinado da sociedade, de maneira a propor soluções para o seu funcionamento satisfatório.

Se no plano ideológico a definição da cultura brasileira já estava assegurada historicamente como manifestação diversificada da unidade nacional, cabia ao Estado autoritário administrar essa identidade definida pela história. Nesse sentido, a cultura significa “segurança e defesa” dos bens que integram o patrimônio histórico do país (ORTIZ, [1985?]).

A cultura, assim, não estará mais na linha de frente do tratamento discursivo da questão nacional. Ela será ora um elemento complementar ao processo de desenvolvimento econômico para os tecnocratas ocupados com a produção, distribuição e consumo dos bens culturais, ora uma forma de salvaguardar a memória da nação, frente à massificação e à invasão cultural promovidas pelos produtos culturais estrangeiros.

A administração do cultural como uma esfera da sociedade tendia para a conciliação entre essas duas orientações: a memória nacional a ser defendida e resguardada, e a democratização da cultura na forma de produtos a serem amplamente difundidos pela sociedade, através dos incentivos governamentais garantidos aos meios de comunicação de massa. Tratava-se de um conflito peculiar ao processo de modernização, que se configura como um embate entre o velho e o novo, a cultura e a técnica, arbitrado pelo Estado autoritário em posição de suposta neutralidade frente aos rumos da cultura no país.

O golpe militar de 1964, com o que concorda a maioria dos analistas da historiografia brasileira mais recente, marcou a integração do país no capitalismo monopolista e o encerramento de uma fase na qual ainda se acreditava no seu desenvolvimento autônomo: “A reorganização da economia no quadro de um ‘desenvolvimento associado’, a reestruturação do aparelho de Estado e a redistribuição do poder processados a partir do golpe de Estado vão [...] redefinir o lugar ocupado pela instituição escolar e designar-lhe novos objetivos.” (SANTOS, 1981, p. 64).

No contexto da modernização, o discurso e a ação estatais se orientam por uma ênfase na educação como maneira de acelerar e consolidar o ritmo da produção e do desenvolvimento econômico. A partir de 1966, já se preparava uma ampla reforma educacional que iria delinear os novos rumos da escola de ١º e ٢º graus e da universidade, de maneira a acomodar um contingente maior de alunos. Tratava-se, na verdade, de reorganizar o sistema educacional no que diz respeito à oferta de escolarização, de maneira a torná-lo mais adequado às exigências do mercado de trabalho, como também de atender as expectativas de um número cada vez maior de jovens para os quais não existiam vagas nas universidades.

A Lei 5.692/71 é importante de ser mencionada porque é a partir dela que se desencadeou uma ampla reforma de ensino de 1º e 2º graus. Essa lei viria a completar o ciclo de reformas educacionais (a reforma do ensino superior já estava em curso, com a Lei 5.540/68) destinadas a ajustar a educação brasileira à ruptura política perpetrada pelo golpe militar de 1964, e que constituía uma exigência para a continuidade da ordem socioeconômica. Com o seu implemento, fundam-se os princípios da “escola única diferenciada”, aquela que abrange quantitativamente todos os indivíduos, por suas qualidades e competências inatas, e não por critérios de origem ou classe social. A diferenciação será realizada no interior da escola, de acordo com critérios de competência e aptidão para determinados ramos produtivos demandados pelo mercado.

Das mudanças operadas a partir da referida Lei, interessa reter dois pontos: 1º) a profissionalização do ensino, sobretudo do 2º grau, de maneira a integrar os jovens mais rapidamente no mercado de trabalho e conter a sua aspiração aos estudos universitários, que seriam reservados a uma elite; 2º) o aumento do período de escolarização obrigatória e gratuita estendendo-a, além do primário, ao antigo ginásio, agora unificados como ensino de 1º grau. A Lei 5.692/71 é claramente tecnicista, por exemplo, em relação à sua antecessora, a Lei de Diretrizes e Bases de 1961 (Lei 4.024).

No Brasil como em outras sociedades, como mostram pensadores do sistema educacional no Ocidente (Antônio Gramsci e Pierre Bourdieu, por exemplo), essa diferenciação operada no interior do sistema tende a manter e perpetuar a divisão de destinos: “[...] escola tradicional para as carreiras altas, decisórias em cada setor, e escola profissionalizante para o resto da população; na prática, esta última pode significar, simplesmente: não-escola.” (BOSI, 1985, p. 137).

No entanto, além das mudanças ocorridas em função da consolidação legal dos interesses e políticas estatais, que marcam uma intervenção cada vez maior do Estado no sistema educacional, tanto no nível econômico quanto ideológico, também é importante levar em conta a formação de uma sociedade de massa no país, seus contornos específicos, e no que ela modifica o quadro discursivo de cultura e educação no brasil

7 CULTURA E SOCIEDADE DE MASSA

As ideias estão no lugar

[...] a “miséria brasileira” não deve

ser procurada no empobrecimento de uma

cultura importada e que aqui teria

perdido os vínculos com a realidade,

mas no modo mesmo como a produção

teórica se encontra internamente

ajustada à estrutura política e social do país

(Maria Sylvia de Carvalho Franco).

No campo da produção cultural é a partir dos anos 1960 que se consolida no Brasil um mercado de bens culturais, o qual se forma pelo aumento da produção de livros, revistas, jornais, cinema, rádio, televisão e do público consumidor, com o crescimento da classe média e a concentração da população em grandes centros urbanos.

O rápido crescimento da indústria cultural no país teve uma peculiaridade, qual seja, a de coincidir com um período de censura e autoritarismo, e se fez associado a um controle estrito das manifestações que se contrapunham ao Estado autoritário. Apesar deste período ser também o da internacionalização da economia brasileira e do desenvolvimento capitalista na sua forma mais avançada, a expansão do mercado de bens culturais não se dá da mesma forma que do mercado de bens materiais uma vez que, como observa Ortiz (1988), o produto simbólico carrega com ele um sentido ou elemento político que pode entrar em choque com os valores e disposições que o Estado está disposto a disseminar.

Neste caso, continua o autor, o Estado autoritário agia através da censura, a qual continha duas faces diferentes: uma repressiva, outra disciplinadora. “A primeira diz não, é puramente negativa; a outra é mais complexa, afirma e incentiva um determinado tipo de orientação.” (ORTIZ, 1988, p. 114). Ela é, portanto, seletiva, pois reprime determinadas obras e pensamentos, impedindo que se expressem para o grande público. Mas não existe censura para qualquer produção cultural, pois “o ato censor atinge a especificidade da obra, mas não a generalidade da sua produção”. Por essa razão o movimento cultural pós-1964 se caracterizava por esses dois aspectos, à primeira vista inconciliáveis: repressão ideológica e política, e uma expansão sem precedentes do mercado de bens culturais, o que se explica pelo fato do Estado autoritário ser o promotor do capitalismo na sua forma mais avançada (ORTIZ, 1988).

Os primeiros discursos sobre a cultura de massa no país, por outro lado, ainda expressavam os ecos da identidade nacional, da cultura especial que o país continha. Foram bem apropriados pelo Estado, nos anos do autoritarismo, os discursos sobre a invasão promovida pelos produtos culturais, agora norte-americanos. Assim, a rejeição aos novos meios de comunicação de massa se fez, na maior parte das vezes, mais no sentido de denunciar o seu caráter estrangeiro, do que propriamente de avaliar o seu teor alienante na sociedade, faltando a crítica(cultural) que havia marcado a reação teórica à indústria cultural nos países europeus, por exemplo. E, no entanto, o que caracteriza a existência de uma indústria cultural não é o fato de ela vir de fora ou de dentro, mas sim que “ela modifica o padrão de relacionamento com a cultura, uma vez que definitivamente ela passa a ser concebida como um investimento comercial.” (ORTIZ, 1988, p. 144).

Para melhor entender esse processo e avaliar de que maneira ele ocorre no Brasil, vale lembrar que a emergência de um mercado de bens culturais é uma característica das sociedades ocidentais do mundo desenvolvido, e é parte da crescente racionalização, tanto das estruturas decisórias e produtivas, quanto das novas formas de vida urbana e da formação de um público consumidor de produtos oriundos das atividades voltadas para a produção e circulação dos objetos culturais. Portanto, no lugar de ser um fenômeno isolado nas modernas sociedades de massa, é um desdobramento da própria maneira de construir a cultura nessas mesmas sociedades.

Horkheimer e Adorno (1982) ao empregarem a expressão “indústria cultural” no lugar de cultura de massa para designar o quadro cultural nas sociedades ocidentais, tencionavam justamente quebrar a dicotomia existente entre uma cultura superior e uma cultura popular ou de massa. Para eles, a indústria cultural é a maneira como toda a produção cultural ou artística é organizada no quadro das relações capitalistas de produção e circulada no mercado para ser consumida, seja ela na sua origem da ordem de uma cultura erudita ou popular. Portanto, é a forma especial que reveste toda a produção cultural, uma vez colocada num circuito comercial de trocas (HORKHEIMER; ADORNO, 1982).

É válido ainda lembrar que a crítica destes filósofos à indústria cultural foi precedida por uma fase de estudos e análises dos autores a respeito do positivismo e da racionalidade instrumental, os quais teriam instaurado no Ocidente uma forma objetivada e tecnicista de abordar as questões da natureza e do espírito, abandonando aos poucos o terreno da ética e dos valores morais, para adentrar cada vez mais o do tecnicismo e dos interesses políticos e econômicos (HORKHEIMER apud BENJAMIN, 1980). Portanto a indústria cultural, normalmente referida pelos autores às esferas da arte, literatura, cinema, teatro, música, televisão, corresponde à penetração da racionalidade técnica e instrumental e da mentalidade empresarial no mundo da liberdade, da criação e da consciência dos indivíduos. Ela corresponde, assim, à emergência de uma cultura de caráter instrumental, amplamente enraizada e disseminada não apenas nas esferas político- decisórias e da reprodução material, quanto das formas e expressões simbólicas, pela organização de um mercado de bens culturais.

É nesse quadro que a cultura adquire uma forma informacional, pela delimitação de grupos de produtores e receptores de bens culturais num mercado de bens simbólicos (BOURDIEU, 1982) e pela mediação dos dispositivos técnicos, ou tecnologias informacionais.

No Brasil, a implantação de uma indústria cultural tem suas especificidades, que é necessário considerar em termos mais abrangentes. Quando ainda se discutia a questão nacional, a dependência, o imperialismo, as mídias de comunicação emergentes pareciam corresponder a uma nova importação ou transplante cultural, e certamente esses novos veículos em muito contribuíram para esconder ou confirmar interesses internos e externos ao país.

No entanto, o que é mais importante de ser levado em conta, é o fato de que a consolidação de um mercado de bens culturais no país se deu em meio a grandes transformações políticas e econômicas, que também levaram ao reaparelhamento do sistema educacional e à consolidação do sistema de ciência e tecnologia. Pode-se então afirmar que no Brasil, diferentemente dos outros países ocidentais orientados pelo modelo tecnocrata de poder, o sistema de ciência e tecnologia organiza-se em paralelo a um mercado de bens culturais e um sistema educacional moderno e tecnicista, orientado pelas necessidades do desenvolvimento econômico.

Esses fatos, se não permitem tomar em toda a sua amplitude a expressão indústria cultural para indicar o que ocorre com a produção cultural brasileira a partir dos anos 1960, pelo menos indicam que é a partir daí que se desenha no país os contornos de uma cultura científica de cunho tecnicista e instrumental, tanto pelo papel que a educação passa a desempenhar como formadora de mão-de-obra para o mercado, e pela instalação de uma infraestrutura científico-tecnológica, quanto pela presença de um mercado de bens culturais. A este conjunto de fatos e processos Ortiz (1988) denominaria “a moderna tradição brasileira.” (ORTIZ, 1988, p. 182-206).

8 OS NOVOS DISCURSOS

A indústria cultural parecia se confirmar, nos discursos sobre a cultura daquele tempo, como um ponto de exaustão de um projeto de modernidade, calcado na razão, e que tivera o seu nascedouro no século XVIII, na Europa Ocidental. Alguns creditavam o fracasso do projeto iluminista da razão ao processo de industrialização da cultura, enxergando nele o ponto chave da vitória da consciência tecnocrática e um dos maiores obstáculos à instauração de uma racionalidade interativa, que trabalhe no sentido da emancipação humana.

Nesta vertente discursiva o projeto da modernidade estaria em curso, e a sua complementação a depender de uma liberação da comunicação, não mais comandada pelos ditames de uma racionalidade instrumental, mas num contexto racional interativo, mediado pela linguagem. Para outros, ao contrário, as verdades e os valores construídos pela Modernidade não encontrariam mais a sua razão de ser, uma vez que as instituições sociais porta-vozes de um sentido que unia historicamente os indivíduos (a política, os partidos, os sindicatos, o aparelho pedagógico) outorgando-lhes uma identidade social, não mais encontram espaço de expressão nas sociedades comandadas pela tecnociência e pelos dispositivos informacionais. Portanto não poderiam mais produzir sentido, história ou ideologias.

Outros discursos propunham o resgate do sentido e dos valores da modernidade, no seu plano material e simbólico, seu alcance revolucionário e portador de mudanças, prevalecentes no século XIX, e que foram perdidos pelo desdobramento da história política e econômica do século XX em diante. Nestes, caberia um espaço para uma reflexão peculiar em relação aos países periféricos, enquanto aqueles que, no quadro da modernidade ocidental, cultivam uma aspiração ao moderno como um projeto, ou sonho (BERMAN, 1987).

De fato, no processo de constituição dos paradigmas da cultura ocidental, às vezes a expressão simbólica nos países periféricos (como os da América Latina, por exemplo) seria então vista como capaz de dar novo encaminhamento à questão cultural no Ocidente. E isso porque neste canto do mundo a racionalidade e a sua expressão tecnocrática não lograriam alcançar a massificação, existindo uma pluralidade de manifestações simbólicas que situariam essas sociedades em novos patamares de reformulação do modelo ocidental de cultura (MORSE, 1988).

Por outro lado, no entrecruzamento dos novos paradigmas da cultura ocidental vigentes até as décadas finais do século XX uma verdade se tornaria evidência: a de que a cultura de massa cada vez mais esmaece a identidade enquanto nacionalidade. No contexto da mundialização da cultura e da globalização da economia a busca por uma cultura “genuína” parecia não mais encontrar a sua razão de ser. Nem mesmo de colocar a ênfase na falta de autonomia da cultura nacional em relação a uma fonte inspiradora e modeladora, a qual toma o fenômeno cultural como uma coisa “existente em si e por si, que pode estar num país sem ser dele e que pode ser de um país sem estar nele.”. Da mesma forma os elos entre cultura e política, interpretados muitas vezes como uma necessidade histórica e restrita a um período e situação determinados, pareciam dar lugar a uma visão de cultura e política como processos inseparáveis na sociedade de classes: “seja qual for a estrutura socioeconômica vigente, papeis e práticas culturais e políticas sempre caminharão juntas.” (QUEIROZ, 1981, p. 258).

Nesse sentido duas alternativas se apresentavam para compreender a cultura no país naquele momento. A primeira interrogava se seria possível, e até desejável para uma obra de cultura no Brasil, fundar e resgatar uma outra identidade diferente daquela projetada pela modernidade ocidental, buscando uma essência perdida e, assim, um rumo especial para a cultura. A segunda acreditava que a chamada “cultura brasileira” deveria se expressar por uma constante reformulação do seu aparelhamento reflexivo, político e científico que a torne uma expressão possível dentre outras, no quadro de uma cultura informacional mediada pelos dispositivos técnicos. Dentre essas duas vias, acreditava-se que a segunda seria aquela capaz de expressar aquilo que preenchia o discurso das ciências sociais no Brasil, e que remete a questão cultural, em primeiro lugar, ao fato de que na sociedade brasileira diferentes grupos regem-se por valores culturais semelhantes, muito embora existam grandes diferenças de participação na produção, circulação e consumo dos bens culturais, os quais resultam do esforço conjunto de toda a sociedade.

Numa terceira via, a questão será encaminhada para o ponto receptivo das informações como bens culturais e a sua “dispersão receptiva” (QUEIROZ, 1981, p. 263). Neste plano, a cultura produzida como unitária se fragmenta enquanto informação, não pelo seu teor de referencialidade (ou tradição), mas como abundância de significados. Estaria aí contida a dimensão de poder de toda cultura que alimenta o imaginário das diferentes classes sociais, não agora simplesmente como uma resposta vertical boa ou má, de cima para baixo. Porque o social, região das práticas informacionais:

Não se reduz somente ao plano da consciência, ele é também o plano da liberdade, das escolhas, do futuro e da esperança. Porque é nesse miolo entre a determinação natural - do mundo e da biologia – e o interesse do grupo que o social se realiza e pode, desse modo, promover e alimentar aquilo a que chamamos de “cultura”, estilo ou forma social (MATTA, 1983, p. 29).

Nesta perspectiva a informação, que no discurso racional concentra-se no sistema de poder, como uma resposta a ser dada pela própria sugestão antecipada da questão, encontra-se com o contexto narrativo das práticas sociais, transformando-se em práticas diferenciadas de negociação de significados ou de produção e reprodução do sentido, cujo resultado não pode quase nunca ser pré-determinado.

9 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os anos 1980 iriam inaugurar uma nova perspectiva nas abordagens discursivas da cultura no país. Na sociedade fragmentada e desigual, o privilégio, em termos da análise científica, é colocado nos pequenos universos e nos nucleamentos coletivos e locais de formas de organização social. Não são as grandes teorias ou “grandes relatos” (LYOTARD, 1979) e nem os meta discursos que poderão interpretar a realidade complexa e multifacetada e orientar os seus rumos. No contexto da cultura mundializada, onde concorrem diferentes signos textuais ou imagéticos, os campos sociais de produção, reprodução, circulação e apropriação de informações passam a ser refletidos pelo ângulo do receptor cultural, onde é privilegiado o caráter indeterminado da subjetividade e a dispersão receptiva das informações.

Com o recuo temporal, um novo tipo de problemática passa a fazer parte do campo informacional. Trata-se de questionar a evolução das mídias e das práticas, as mutações de suas materialidades, as variedades culturais, as metamorfoses midiáticas. A proliferação de novos dispositivos de informação e comunicação faz com que os fenômenos afetos à cultura e à educação fiquem mais sensíveis, devido às aceleradas mudanças de suporte, composição e creditação, misturando os diversificados repertórios culturais. Nesse quadro há uma profunda mudança nos modos de produção, circulação e aquisição de conhecimentos, saberes e informações. Que discursos de cultura, educação e informação dariam conta dessas dinâmicas que transformam rapidamente a sociedade? Quais mediações simbólicas, técnicas e sociais se fazem presentes no cenário de uma cultura informacional? Para tanto, as noções de cultura, educação e informação, alvos desse artigo, devem ser abordadas em escalas mais vastas, tanto no espaço como no tempo.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, F. A transmissão da cultura. In: A cultura brasileira. São Paulo: Melhoramentos, 1976.

BENJAMIN, W. Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

BERMAN, M. Tudo que é solido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

BOSI, A. Cultura brasileira. In: MENDES, D. T. Filosofia da educação brasileira. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1985. p. 135-176.

BOURDIEU, P. O mercado de bens simbólicos. In: BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1982.

BRANDÃO, C. R. A educação como cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985.

CUNHA, L. A. Educação e desenvolvimento social no Brasil. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975.

DORIA, L. G. D. Memória histórica do Colégio Pedro II: 1837- 1937. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, 1997.

HORKHEIMER, M. Teoria Tradicional e Teoria Crítica. In. Textos Escolhidos / Max Horkheimer, Theodor Adorno. São Paulo: Nova Cultural, 1989

HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W. A indústria cultural: o Iluminismo como mistificação de massa. In: LIMA, L. C. Teoria da cultura de massa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p. 229-277.

JEANNERET, Y. Critique de la trivialité: les médiations de la communication, enjeu de pouvoir. Paris: Éditions Non Standart, 2014.

LEITE, D. M. O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.

LYOTARD, J. La condition postmoderne: rapport sur le savoir. Paris : Les Editions de Minuit, 1979.

MATTA, R. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.

MICELI, S. Intelectuais e classe dirigente no Brasil: (1920-1945). São Paulo: DIFEL, 1979.

MONARCHA, C. A reinvenção da cidade e da multidão: dimensões da modernidade brasileira: a escola nova. São Paulo: Cortez, 1989.

MORSE, R. O espelho de próspero: cultura e ideias nas Américas. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

MOTA, C. G. Ideologia da cultura brasileira: 1933-1974: pontos de partida para uma revisão histórica. São Paulo: Ática, 1990.

OLIVEIRA, L. L. Introdução. In: OLIVEIRA L. L. Elite intelectual e debate político nos anos 30: uma bibliografia comentada da revolução de 30. Rio de Janeiro: FGV, 1980. p. 31-59.

ORTIZ, R. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 1988.

ORTIZ, R. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, [1985?].

PAIVA, V. P. Perspectivas e dilemas da educação popular. Rio de Janeiro: Graal, 1984.

QUEIROZ, M. I. P. Cientistas sociais e o autoconhecimento da cultura brasileira através do tempo. Cadernos do CERU, São Paulo, n. 13, p. 57-69, set. 1980.

ROMERO, S. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1943.

SANTOS, L. G. Desregulagens: educação, planejamento e tecnologia como ferramenta social. São Paulo: Brasiliense, 1981.

SCHWARTZMAN, S. Tempos de Capanema. Rio de Janeiro: Paz e Terra; São Paulo: EDUSP, 1984.

SCHWARZ, R. As ideias fora do lugar. In: SCHWARZ, R. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas cidades, 1977. p. 13-27.

TOLEDO, C. N. Teoria e ideologia na perspectiva do ISEB. In: MORAES, R. Inteligência brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 224-256.


1 Docente permanente no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação. Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, Brasil. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. Bolsista de Produtividade CNPq. ORCID https://orcid.org/0000-0002-3439-0217. E-mail: regina.marteleto@gmail.com

memória científica original