DEMOCRACIA DOCUMENTÁRIA E A TEORIA DA
NÃO-CONCEITUALIDADE: filosofia e práxis

DOCUMENTARY DEMOCRACY AND NON-CONCEPTUALITY THEORY: philosophy and praxis

Gustavo Saldanha1

RESUMO

O objetivo desta pesquisa é discutir a construção das possibilidades de problematizar a teoria da não-conceitualidade na Ciência da Informação no âmbito da organização do conhecimento, com vistas a desenvolver uma abordagem político-crítica da democracia documentária. Por meio da abordagem metodológica da filosofia da linguagem ordinária, a pesquisa integra a logologia de Bárbara Cassin, a teoria política de Maria Nélida González de Gómez e a teoria do conceito de Emanuele Tesauro. Os resultados colocam em diálogo a organização ordinária dos saberes socialmente oprimidos e a Constituição brasileira, estabelecendo a práxis documental como forma de luta e resistência na sociedade democrática.

Palavras-chave: Democracia documentária. Teoria da não conceitualidade. Organização ordinária dos saberes socialmente oprimidos. Teoria do conceit. Logologia.

ABSTRACT

The purpose of this research is to discuss the construction of the possibilities for problematizing the non-conceptuality theory in Information Science within the scope of knowledge organization, with a view to developing a critical-political approach to documentary democracy. Through the methodological approach of the philosophy of ordinary language, the research integrates the Bárbara Cassin’s logology, the Maria Nélida González de Gómez’s political theory and the Emanuele Tesauro’ theory of the concept. The results put into dialogue the ordinary organization of socially oppressed knowledges and the Brazilian Constitution, establishing documentary praxis as a form of struggle and resistance in democratic society.

Keywords: Documentary democracy. Theory of non-conceptuality. Ordinary organization of socially oppressed knowledge. Concept theory. Logology.

Artigo submetido em 27/11/2020 e aceito para publicação em 12/12/2020

1 INTRODUÇÃO

Não há dúvida de que o conceito constitui um produto da razão,

se não é exatamente o seu triunfo (BLUMENBERG, 2013, p. 43)

A proposta dessa pesquisa é discutir a construção das possibilidades de intervenção teórico-empírica da teoria da não-conceitualidade em Ciência da Informação no âmbito da organização do conhecimento, tendo em vista o desenvolvimento de uma teoria crítico-política da democracia documentária, compreendida como logologia metalinguística, práxis na cidade transgramaticalmente tecida.

A pesquisa se justifica, centralmente, diante da força de uma teoria da conceitualidade – para além de uma teoria do conceito – como demarcação de uma forma de pensar e, logo, de agir, dentro da construção não só da organização do conhecimento, mas da própria concepção de Ciência da Informação. Em outros termos, o peso silogístico esconde o espectro cultural da construção das possibilidades de intervenção política da organização do conhecimento desde a obra de Emanuele Tesauro (1670). Logo, uma teoria da não-conceitualidade se apresenta como fundamento para a dialética epistemológica aqui discutida.

Encontraremos nesse devir da teoria da conceitualidade tanto o positivismo como o neopositivismo, tanto o mecanicismo como o cognitivismo, correntes epistemológicas unidas pela força da crença na fé do espelho do conceito, capaz de dizer o real como reflexo belo e irresoluto da margem representada.

A inovação da proposta está na força de compartilhar, junto de outras pesquisas, o desenvolvimento de estudos avançados em sociedade e cultura no escopo da organização do conhecimento, com foco no aprofundamento da teoria simbólica da subárea e na teoria crítica que permite, pela via dialética, dentro do espectro metafórico da não-conceitualidade, rever seus dilemas sociais e posicionar a materialidade histórica de sua práxis.

2 DENTRO DA MÁQUINA LOGOLÓGICA

[...] a aletheia não existe mais do que a physis: lógica ou física, elas só podem aparecer como um vácuo, uma escapada ou uma escapatória [...].

(CASSIN, 2005, p. 73)

É-nos fundamental territorializar a construção epistemológica da não-conceitualidade no espectro do decurso filosófico da logologia. Assim encontramos dois caminhos centrais, a construção do Trivium, de um lado, e toda a estrutura logológica, de outra.

Um elemento epistemológico-histórico pontual está no Trivium. Conforme Joseph (2008), as artes liberais da linguagem, a saber, a lógica, a gramática e a retórica, que compõem o Trivium, constituem-se como elementos de formação da Antiguidade e, centralmente, da Cristandade. A lógica é compreendida como a arte de falar a verdade, a gramática como a arte de comunicar a verdade através dos símbolos e a retórica como a arte de argumentação-convencimento da verdade. Essa estrutura está na base de qualquer princípio utópico democrático, pois assim, como veremos com Cassin (2005), se constitui a esfera pública urbana.

Outra condicionante está no espírito da logologia. Podemos, a partir da filósofa Bárbara Cassin (2005), mergulhar na compreensão da construção da realidade pelo espírito logológico. É no “milagre grego” do século V, ou seja, na democracia grega que se instaura o paradigma da logologia: a construção da cidade como movimento do discurso. Uma fenomenologia ali se coloca, da “dialética” sofistas versus filósofos. A cidade, coletivo dos animais políticos no sentido aristotélico, o é porque fala – o logos palavra-razão é a marca central de construção do mundo urbano.

Na cidade, no lugar da bivalência (fechada) do que é verdadeiro e do que é falso – estrutura lógica fundada em Zenão de Eleia -, aponta Cassin (2005), funda-se a tópica (a problemática) do que é valor, para aquém e além da divisão bem e mal como única estrutura do real. Estamos diante de uma pluralidade inerente ao que é comparativo, útil para, ou seja, o mundo das verossimilhanças. Esse é, pois, o território dos pragmata, das coisas como ação, do estado das coisas – e não (unicamente) dos onta, ou seja, as coisas na condição pura de coisa, os entes eles próprios.

Esse espaço-tempo em movimento – a polis – coloca em questão as regras do jogo público, sempre, tais regras, mediatizadas pelo olhar de outrem. Assim, o mito é afastado em prol de uma ética do político. Eis, pois, o motivo pela qual a política é, por excelência, o próprio logos. (CASSIN, 2005)

Por essa razão, o logos é o produtor contínuo da cidade, seu artesão. Nesse locus dos pragmata substitui-se o “físico” pelo “político”. A noção de política, nesse plano logológico, atenta-nos Cassin (2005), é nada mais do que a “partilha” – politizar é compartilhar o bem comum - filia. Pode-se, igualmente, segundo a filósofa, compreender a partilha como acordo, um acordo discursivo.

Compreende-se, com isso, toda a força sofística do modelo de retórica judiciária que são as Tetralogias [obra de Antifonte, século V a.C.], essas séries de quatro discursos: uma acusação, uma defesa, uma nova acusação que leva em conta a primeira defesa, em seguida uma última defesa, cada uma delas propondo sua narrativa e sua versão de uma mesma ação segundo as exigências instantâneas da tática. A identidade dos indivíduos e das condutas se encontra assim difratada, perfeita encenação do fato de que a “verdade” sempre é segunda. Assim como o papiro desdobra a imediatidade insuperável do nômico, face à qual a natureza é mais do que secundariamente primeira, também as Tetralogias nos imergem no eikos, bem como o nomos, são pura e simplesmente – quer dizer, magistralmente – o produto de um discurso que consegue obter o consentimento para aquilo que ele apresenta, construindo, assim, o espaço público. Por outro lado, a aletheia não existe mais do que a physis: lógica ou física, elas só podem aparecer como um vácuo, uma escapada ou uma escapatória, um secreto, do qual, por definição, nenhuma prova pública jamais será dada definitivamente. (CASSIN, 2005, p. 73)

Assim, no mundo do discurso, aponta Cassin (2005), a Política de Aristóteles constitui uma dada reabilitação antiplatônica das condicionantes da sofística. Por exemplo, faz-se importante distinguir o econômico do político, o privado do público, a pluralidade dos cidadãos e sua diversidade. Seria, pois, a democracia, o único regime que receberá o nome de “constituição” – poiesis, criação. Com uma dada virtude de logologia crítica e doxástica, diz-nos Cassin (2005), chamada prudência, núcleo do ethos de Nicômaco, em Aristóteles, forma-se, na ágora, a escola dos que estudam e analisam o discurso.

É aí que a distância em relação à aurora heideggeriana adquire todo o seu impacto: na Grécia filosofante da aletheia, a invenção da cidade é não-política, porque o político na condição de político não tem nada de político, mas é sempre subordinado ao Ser, ao Verdadeiro, ao Bem. Mas, em uma Grécia filosofistizante em que a ontologia é, de saída, revestida em logologia, mantém-se, como o logos, a imanência mesma do político como sua condição de possibilidade, em uma percepção necessariamente mais aristotélico-arendtiana do que platônico-heideggeriana. [...] Sob a égide da primeira constatação – politeuetai tis, “cidadaniza-se” – formulada por Antifonte, a fabricação do legal, a consistência lógico-retórica do liame social e autonomia do político doravante passam a se imbricar. (CASSIN, 2005, p. 75)

Está, pois, no território dos pragmata, o conjunto de possibilidades de construir a cidade. É na trama da linguagem que se estabelece, em movimento, a democracia ou suas possibilidades. Das linguagens e dos registros da linguagem, da tecnologia logológica da linguagem, vemos nascer o conjunto de metalinguagens. Aqui estamos no coração das práticas documentárias. E na direção do seu devir político.

3 O DEVIR POLÍTICO DAS PRÁTICAS DOCUMENTÁRIAS: A NECESSIDADE DA DEMOCRACIA DOCUMENTÁRIA

[...] a informação informa acerca daquilo que ela não é, age como um mecanismo de “caixa chinesa”, onde se multiplicam os planos de inscrição de fatos e atividades, não na forma do espelho ou da cópia, mas como efeito de diferença.

(GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 1996a, p. 63)

A construção política da organização do conhecimento é pontualmente esclarecida na obra de Maria Nélida González de Gómez (1993, 1996a, 1996b, 2002). A pesquisa da filósofa, em sua trajetória teórica, na verdade, nos convida justamente, entre 1980 e 2020, para um diálogo entre epistemologia e política, categorias que se co-fundem para construção de uma teoria do conhecimento social e crítica, atenta às transformações sociais pela via da representação do conhecimento. Conforme a autora,

As relações entre informação-informação e informação-conhecimento, constituídas no plano metainformacional, são assim condicionantes e reguladoras da geração e distribuição social dos conhecimentos. Ao mesmo tempo, essa relação é especificada pelas ações e relações sociais que lhe dão ancoragem espaço-temporal, a partir das quais as estratégias informacionais realizam suas próprias operações de construção de um tempo e um espaço informacional. (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 1996a, p. 59)

A posição de González de Gómez (1996a) nos leva à interpretação da metainformação – caracterizada por nós, sob as lentes de nossa epistemologia, como fruto dos processos logológicos de metalinguagem da organização do conhecimento – como estrutura estruturante da esfera política. Desta maneira, os “operadores metanfirmacionais” estão presentes em todo o sistema de comunicação da informação, tendo papel ao mesmo tempo, segundo a filósofa, seletivo e regulador, estabelecendo e constituindo dispositivos institucionais e tecnológicos, pedagógicos e midiáticos, que são cooptados pelos mercados de informação e pela indústria cultural. Nesse sentido, González de Gómez (1996a) define

[...] organização do conhecimento como o modo pelo qual os conhecimentos se relacionam e diferenciam, nas práticas de sua produção e uso. Entendemos por metaconhecimento, em primeiro lugar, o conhecimento que indivíduos, grupos, atores coletivos e instituições possuem acerca de seu próprio conhecimento e organização, sobre outros conhecimentos, de outros agentes, e sobre suas formas de disponibilidade e acesso através da comunicação. (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 1996, p. 59)

O metaconhecimento, por sua vez, é gerado pela informação sobre a informação, uma infraestrutura que “desenha mapas através do espaço” e “acompanha trajetórias de inovação ou estagnação ao longo do tempo”. (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 1996a, p. 63) Funda-se, assim, via uma teia bibliográfica, dispositivos autorreferentes, no âmbito dos quais cada parte, cada momento ou cada ação remete a outras partes, outros momentos e outras ações no próprio jogo informacional.

[...] noutra face, enquanto a informação informa acerca daquilo que ela não é, age como um mecanismo de “caixa chinesa”, onde se multiplicam os planos de inscrição de fatos e atividades, não na forma do espelho ou da cópia, mas como efeito de diferença. Por isso, a metainformação serve para o diagnóstico ou monitoramento do próprio dispositivo de informação e, também, para o diagnóstico e monitoramento de algo que, não sendo informação, o informar e o informar-se selecionam, representam e registram num modo da informação (ou seja, os referenciais construídos pelos discursos da Física, da Energia, da Biotecnologia, entre outros). (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 1996a, p. 63)

O “jogo” aqui citado está constituído, em suas regras, via os pragmata. Essa aproximação é clara, em González de Gómez (1996b), no diálogo com a teoria pragmática e seu papel na construção do campo informacional. O devir político da organização do conhecimento é sempre dado dentro de uma contextualidade, assim como preconiza a pragmática. De acordo com González de Gómez (1996a), contextos sociais e situações de geração e de uso da informação recondicionam as metainformações. Por isso, regras e estratégias informacionais constituídas via mediações institucionais, econômicas e tecnológicas vão se diferenciando conforme cada grupo de atores sociais envolvidos objetiva e intencionalidade nas esferas comunicacionais.

A obra nelidiana é, pois, clara, na prefiguração de um plano cartográfico aberto, pela via pragmática – a via da comensurabilidade -, as relações entre organização dos saberes e políticas de informação. O conhecimento é fruto de uma epistemologia que não está fora da representação. E, por sua vez, a representação é a única possibilidade do conhecimento, no sentido político – donde parte o imperativo logológico da epistemologia -, é sua (meta)representação, que se converte, pois, no sentido wittgensteiniano – a pragmática do segundo Wittgenstein (1979) – em aprensentabilidade. Em outros termos, a organização do conhecimento não apenas opera, como impera na demarcação dos gestos sociais, das escolhas e das exclusões na cidade.

Dadas as condições mencionadas, a democracia documentária não se estabelece como projeto utópico exilado da realidade, mas como único projeto democrático. Como pensar uma ideia de representação no plano do Estado sem a concepção – a poeisis – de uma infraestrutura metalinguística de justiça social permanente e atenta, baseada na carta constitucional, uma trama de aprensentabilidade das diferenças da cidade?

Como lembra González de Gómez (2002, p. 27), o nexo da informação com a política estaria fundado na inclusão da primeira na intervenção da segunda, ou seja, no Estado. Essa “interferência” se dá, assim, para muito além da racionalidade administrativa. Tornam-se, a informação e a metainformação (a informação que fala sobre a informação, nada mais logológico possível), fatores estratégicos para o desenvolvimento do que se diz político no plano científico e tecnológico.

Assim chegamos ao artigo primeiro da Constituição brasileira (BRASIL, 1988): a discussão sobre soberania. Não se trata mais de pensar separadamente práticas info-administrativas sem o poder informacional para (muito) além do Estado.

Consideramos que a reconstrução da forma moderna de soberania não se esgotaria, porém, nessa figura de um “logos” estadocêntrico “pairando” sobre a construção das nações modernas. Implicaria igualmente, de modo paradoxal, princípios de integração social que têm como garantia as expectativas e os dispositivos jurídicos de um regime de Direito. Uma “constituição comunicacional” implícita seria o pré-requisito de todos os contratos sociais, cujas premissas tácitas deveriam incluir a vinculação comunicacional e a circulação de informações entre todos os atores sociais, seja como condição de constituição dos “coletivos das pessoas privadas” que deverão assumir papéis programados nos planos institucionais de ação, seja pela demanda de publicidade dos atos de governo, como responsabilidade dos representantes diante dos representados. (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2002, p. 27-28)

A democracia documentária (cartografia dialética metainformacional do povo, de sua terra e de seus gestos) é a condição de representação estrutural necessária à cidadania dos representados (ali, nas redes documentárias, “apresentados”), ao mesmo tempo em que se estabelece como única forma de soberania do Estado – a comunhão do povo legitimamente representado – perante as guerras (meta)informacionais internacionais.

Como demonstrado por González de Gómez (2002), no contexto brasileiro, essa instância está claramente demarcada nos anos 1950, especificamente com as políticas de ciência e tecnologia que fundam o Instituto Brasileiro de Bibliografia e Documentação (IBBD), em 1954, casa logológica, casa metainformacional, por excelência.

A convicção no papel causal da informação na modernização e desenvolvimento não se mostraria igualmente eficaz para consolidar, para a informação científico-tecnológica, estruturas institucionais, duradouras e progressivas na formulação de seus parâmetros organizacionais e tecnológicos. Nos fatos, os sistemas nacionais de informação científico-tecnológica não encontram expressão em um domínio estável e transparente de agentes, instituições, espaços e agendas de formulação de políticas públicas, seja porque a informação é objeto de políticas indiretas e tácitas, seja porque o escopo e abrangência das políticas de informação recortadas sobre o grande mapa das políticas públicas são deslocados freqüentemente, de acordo com definições de prioridades conjunturais e em constante mudança. (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2002, p. 28)

Dos anos 1950 ao século XXI, porém, fez-se e faz-se necessária uma outra construção da ideia da representabilidade no plano democrático brasileiro e transnacional. A cada ano, nas décadas que se seguiram, a escancarada marca da desigualdade social é espelhada nos dilemas sociais, como a fome, a miséria, a ausência de moradia, o desemprego, as condições desumanas de trabalho, o racismo, a misoginia, o contínuo massacre indígena, a concentração de renda e de patrimônio, principalmente do patrimônio nacional da terra.

A construção da democracia documentária, estampada na Constituição de 1988, se interroga, assim, na passagem da organização do conhecimento para a organização ordinária dos saberes socialmente oprimidos – não como anulação de uma teoria da verdade no seio da epistemologia informacional, isto é, negação dos onta, entretanto como reconstituição da opressão da pseudoverdade estabelecida por apenas um ângulo da máquina do Trivium que concebe o real, a saber, a lógica pura.

Também nisso, Maria Nélida González de Gómez (2002) observara um aspecto nevrálgico, ou seja, a passagem das políticas públicas às micropolíticas no plano metainformacional. A democracia documentária que aqui enunciamos, pois, luta contra os oligopólios ou monopólios metainformacionais tecidos na privatização das classificações, constituindo barreiras para a cidadania metainformacional. A internet, como observara a filósofa, ao contrário de ampliar os potenciais desta cidadania, multiplicou a concentração e a desigualdade.

Os sujeitos informacionais e os contextos institucionais de ação, articulados por ontologias classificatórias comuns, ofereciam um horizonte antropológico constante que permitia traçar linhas de continuidade entre as micropolíticas inscritas nos dispositivos de informação e as macropolíticas que – direta ou indiretamente – exprimiam conflitos e interesses em figuras hegemônicas organizadas pelo Estado. (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2002, p. 34)

Assim, a organização ordinária dos saberes socialmente oprimidos é um ato político, orientado para a luta pela democracia documentária. Porém, esse exercício, no plano epistemológico, e na infraestrutura do Trivium, carece, para além da lógica – sem elimina-la – de sua face gramático-retórica. E assim passamos de uma perspectiva (aristotélica) puramente silogística, para a amplitude de uma máquina logológica que problematiza a alteridade, problema fundamental de todo processo de cidadania dentro de uma construção simbólica. Esse problema faz nascer a Necessidade, no sentido de uma filosofia da Ciência da Informação, da democracia documentária. Esse caminho nos é dado pela teoria da não-conceitualidade.

4 A NÃO-CONCEITUALIDADE: NO LABIRINTO DE HANS BLUMENBERG

O conceito se originou da actio per distans, do agir

em vista da distância espaciale temporal.

(BLUMENBERG, 2013, p. 43)

O foco da compreensão do conceito como o ápice da racionalidade, presente na abertura da obra fundamental de Blumenberg (2013), A teoria da não-conceitualidade, pode ser visto tanto como uma comprobatória reflexão de história da ciência ou de fundamentalidade filosófica, como uma provocação logológica, de ordem cassiniana. Trata-se, aqui, da afirmação a busca pela totalidade.

Na abertura do segundo parágrafo da obra, Blumenberg (2013, p. 43), afirma, categoricamente: “Não há identidade alguma entre razão e conceito.” Essa condição abre, em nossa interpretação, a tessitura crítica da teoria da não-conceitualidade ao discurso da pretensa vitória do conceito no Ocidente. Na explicação blumenbergiana, o conceito se relaciona, substancialmente, com a ausência do objeto, ou seja, com a falta de representação do próprio objeto. Assim, a própria construção de nossa razão está relacionada com a “encarnação” de “operações à distância” (BLUMENBERG, 2013, p. 44). Muito mais está o conceito ancorado, pois, na teoria da não-conceitualidade, ao processo de intencionalidade da razão em buscar sua própria âncora – ou seja, da razão tentar se afirmar racional. Em outros e diretos termos, “Com efeito, o conceito não é sucedâneo, mas, para frustação das expectativas filosóficas nele postas, não é o cumprimento das intenções da razão senão que apenas seu ponto de passagem, aquilo que sua direção indica.” (BLUMENBERG, 2013, p. 44).

Com a teoria da não-conceitualidade se propõe uma compreensão antropológica e genética do conceito como demanda urgente para revisão de nossa percepção de mundo. O conceito, antes de uma construção grega ocidental maturada, está dado no movimento de sociedades nômades-caçadoras e se consolida como pressuposto do sedentarismo, ou seja, como aponta Blumenberg (2013), a prática de elaboração de conceitos está dada no mundo das cidades, da divisão do trabalho.

A linguagem filosófica seria, no mundo grego, o estágio final ideal desse processo histórico de delimitação do conceito.

[...] observado do ponto de vista antropológico-genético, o ideal de precisão do conceito, o de sua relação com a elasticidade do campo de ação, em que um modo de ser concreto percebido ou representado ainda pode ser admitido, é prefigurado, preparado, fornecido pela experiência sob a forma de adaptações e precauções. (BLUMENBERG, 2013, p. 47)

O ideal de perfeição, o ideal de clareza, explica Blumenberg (2013), é, no entanto, sempre espacial, remoto, distanciado. A ação de distância é fundamental, no geneticismo blumenbergiano, para compreender o conceito. É na dada actions per distans, na ação humana de lançar algo em direção a um ponto, que podemos compreender o modo como o conceito foi constituído. Para o filósofo, não é senão por isso que a história das práticas humanas é marcada pelas máquinas de arremesso e de tiro.

A partir da experiência genética da actions per distans do aparecimento do conceito, o filósofo compreende a construção de um ideal da ótica junto do ideal de clareza. Estabelece-se essa relação via uma dada “armadilha”, a construção da ausência do predador diante da presença de seu artefato. O caçador em questão – sujeito dito racional – prepara uma forma de, remotamente, conter a presa. Assim se dá, para Blumenberg (2013), a vitória do conceito. Como uma rede de pesca, o conceito se converte em um instrumento de comportamento ordenado, forma de socialização.

Entrando, na crítica à conceitualidade, o filósofo aponta que ele, o conceito, o aclamado ser cristalino, armadilha pretensa, é tão provisório como qualquer exercício de socialização localizado em diferentes sociedades e seus sistemas. A passagem da subjetividade à objetividade permitida pelo exercício conceitual não é, no fundo, uma meta, de fato, do próprio conceito. Estamos sobre o solo da intersubjetividade da socialização – o conceito não está em uma esfera do “fora”. Em termos diretos, segundo Blumenberg (2013, p. 50-51), “A construção de uma armadilha exige a comunidade de representações do que de ser aqui aprisionado. A objetividade não é a dissociação definitiva do homem quanto animal”.

A inferência pode ser comparada, em nossa realidade atual, à produção dos algoritmos como neutralidades, dada sua condição lógica. Na teoria da não-conceitualidade, por exemplo, está explícita a certeza dialética de que não existe a menor possibilidade de um algoritmo não ser racista. Logo, só poderíamos pensar na construção de uma “cidadania digital” partindo, aqui, da produção de algoritmos não-racistas (os pragmata não-racistas em atuação contra os onta cristalinos do racismo de uma dada sociedade).

Blumenberg (2013) recorre ao uma importante alegoria humanista fundamental para a teorização do sujeito racional.

A velha antropologia teleológica dos gregos e romanos concordava em que o andar ereto e a mobilidade da cabeça do homem se mostravam como o último propósito da natureza de convertê-lo em contemplador do céu. O que quer dizer; olhar não se fixa no horizonte espacial e temporal para aguardar e agir sobre o que vem, senão que, com o olhar erguido a noventa graus em relação à terra, se eleva ainda noventa graus e se dirige ao céu estrelado. (BLUMENBERG, 2013, p. 51, grifo da autoria)

Nesta medida, se concebe a possibilidade de que a teoria ideal é a teoria do céu (do ser), da observação do firmamento distante, impossível ao próprio olhar que o admira. Não é senão esta a alegoria contida na vivência do “primeiro filósofo”, Tales de Mileto. O mesmo caminhava a observar as estrelas quando caíra em uma cisterna. A anedota, aponta Blumenberg (2013), explica muito de dois mil anos de filosofia e a busca pela teoria pura, a luta pela totalidade do cosmos contra a alienação do mundo prático.

Recai sobre e sob essa construção, por exemplo, não apenas o positivismo comteano. Aqui está, na visão blumenbergiana, todos os positivismos, incluindo aqueles travestidos de exercício antropológico (no fundo, sua constituição e seu devir). O positivismo é, pois, “uma teoria da economia teórica e prática” (BLUMENBERG, 2013, p. 57). Esse exercício teórico-metodológico pode ser encontrado, primorosamente, por exemplo, em Guilherme de Ockham e o princípio da navalha – a economia dos universais diante da realidade.

Fundados na premissa da escassez de energia – em confronto com Deus, entidade que energia alguma descarta -, os positivismos vão do controle ockhamiano dos universais no século XIV à economia política da acumulação do capital, na luta pela autoconservação. “Não há qualquer dúvida de que toda economia não admite privar do supérfluo? Uma resposta é: apenas quando o necessário ainda não seja bastante para satisfazer as necessidades.” (BLUMENBERG, 2013, p. 60)

No plano epistemológico, as análises kuhninanas, na observação de Blumenberg (2013), levar-nos-ão à mesma compreensão. A ciência normalizada e seus paradigmas servirão para uma consolidação, a formalização de uma escola, sua autoconfirmação, antes de sua conformação cristalina, seja dedutiva, seja indutiva. O movimento de compreensão das revoluções científicas das ditas epistemes modernas, ou seja, todas as filosofias práticas, e suas positividades, não nos afastaria do conceito. Ao contrário, colocar-nos-ia justamente perante sua forma potencial direta, a busca pela acuidade do espelho. Assim, a tese blumenbergiana é: “a renúncia da contemplação favorece o retorno da contemplação.” (BLUMENBERG, 2013, p. 66)

O conceito na Modernidade, afastado da contemplação do ser e da contemplação de Deus, reconfigura-se (“conceitualmente”) no Romantismo. Agora, instrumento de libertação, de representação não mais imposta do “fora”, consagra-se como o instrumento de aspiração do futuro, do novo presente.

O êxito do conceito é ao mesmo tempo o retorno à sua função: ele introduz o processo no qual um objeto que se tornara tremendo, desconhecido e fonte de pavor retorna como objeto de fruição. Já de um ponto de vista teórico, o conceito faz que a disponibilidade do objeto se ponha potencialmente ao alcance da mão, proposto ao uso. (BLUMENBERG, 2013, p. 66).

Chegamos, desta maneira, à metáfora. Aqui está sua condição estética fundamental. Ela está tanto na origem do conceito, como permanece continuamente no âmbito da insuficiência do próprio conceito, em seus limites operacionais, até seu pretenso fim (finalidade ou consecução). No entanto, a metaforologia não é uma disciplina estética no olhar blumenbergiano. Trata-se de um saber que opera entre o conceito e a metáfora, pela via genética e funcional. E é justamente por esse saber que compreendemos que (curiosa e inversamente) é a metáfora que, no plano literal, afeta a aparência e o real, promove a mudança dela, da aparência e, logo, do real.

Podemos observar essa constituição em uma fundamentação simbólica da Ciência da Informação, a partir de Ernst Cassirer (2001) e a crítica ao fonocentrismo da Gramatologia de Jacques Derrida (2004, 2008), ambas, acreditamos, ainda muito pouco exploradas no campo. Em nossa démarche teórico-metodológica, a condição política da organização do conhecimento e fundamentação não-conceitual de nossa empiria nos levam a dialéticas e experimentações, exercícios de luta democrático-documentária.

5 DA MATÉRIA METAFÓRICA E DAS EXPERIMENTAÇÕES: entre o barraco e a práxis

Mas que [...] outro não é o engenho que penetrar os objetivos

altamente ocultos sob diversas categorias; e de compará-los entre si; [...]

(TESAURO, 1670, p. 107, tradução de Silva, 2018).

A primeira grande questão que se coloca quando encaramos a teoria da não-conceitualidade no campo é o imediato contato com a fundamentação da teoria do conceito em Ingetraut Dahlberg (1993, 1978). Temos aqui uma abordagem estruturalmente aristotélica, fundada no silogismo, com potenciais aproximações à semiótica peirciana, mas ainda totalmente dependentes do espelhamento lógico. O caminho para uma tradução antropológica, aqui, estaria distante.

A abordagem antropológica no campo informacional, no entanto, não é uma novidade. Diferentes linhas teórico-metodológicas recentes nos colocam, por exemplo, no centro da teoria da não-conceitualdiade dentro da Ciência da Informação, a saber, a Antropologia da Informação, com Regina Marteleto (1995), e a Angelética capurriana (CAPURRO, 1992), esta última, pela via de uma hermenêutica antropológica, ou, ainda, a teoria tropológica de García Gutierrez (1996).

Entretanto, é justamente em uma potencial fundação do campo que identificamos a principal margem de contraposição à teoria do conceito dahlbergiana. Trata-se da proposta lógico-gramatical-retórica – grande aliança do trivium – da teoria barroca de Emanuele Tesauro no século XVII. A teoria do conceit (presunção), no escopo da Retórica, estabelece a possibilidade de reconstrução de linguagens e, principalmente, descoberta de novos conhecimentos pela via do Índice Categórico tesauriano.

Figura 1 – A luneta aristotélica – Página de Rosto

Fonte: Tesauro. 1670. Il cannocchiale Aristotélico. Ed. Verlag Gehlen, Zürich.

A obra de Emanuele Tesauro parte do pressuposto da metalinguagem da retórica, na relação entre o ensinar – discutir. Via obra aristotélica, desdobra-se esse binômio metodológico no caráter especulativo da apropriação e da atualização (descoberta-criação) de novas ideias. Conforme Carlos Moraes (2006, p. 1)

A obra permite, ainda, resgatar, com o elenco dos dados discutidos à luz de tão rica exemplaria, escrita, língua, retórica e poética antigas, leituras essenciais para a sua discussão. O seu caráter metalingüístico faz entrecruzar informações, conceitos, práticas, desveladas muitas vezes no comentário, na construção e não somente nas linhas da prescrição que constitui a sua essência. Aqui se insiste no conceito “prescrição”, cujo sentido indica como se deve escrever, falar, representar, questão que está por trás de todo o universo da escrita na Europa dos Seiscentos e que se resolve (ou se desenvolve) com o recurso aos grandes mestres gregos e romanos: Aristóteles, Cícero, Quintiliano, Júlio César, e outros tantos exemplos.

Com a abordagem metalinguística de Tesauro (1670) não só restauramos a retórica aristotélica no século XVII, mas reconfiguramos o método lógico sob outra via, diríamos, uma via complexa, não dualista (verdadeiro x falso). Ao mesmo tempo, as possibilidades atuam como uma “prescrição”, no sentido de explorar formas de escrever, falar e representar como algo deveria ser feito, uma fonte que existe para todos os grandes índices. A “síntese categórica” do Índice de Tesauro (١٩٧٠) pode ser observada na Figura ٢.

Figura 2 – Do Índice Categórico de Emanuele Tesauro à Síntese Categórica

Fonte: A autoria, 2020.

Com seu Índice Categórico, Emanuele tesauro integra Aristóteles lógico (analítico-conceitual) e o Aristóteles retórico (o discursivo) para indicar a dinâmica das palavras em relação às coisas, levando-nos, pela via dos pragmata da linguagem, a descobrir, representar e criar conhecimento. Assim,

Mas que [...] outro não é o engenho que penetrar os objetivos altamente ocultos sob diversas categorias; e de compará-los entre si; por essa razão, agradecimentos infinitos sejam dados ao nosso Autor, primeiro a abrir essa porta secreta a todas as Ciências. [...] (TESAURO, 1670, p. 107, tradução de Silva, 2018).

O movimento pragmático do conhecimento – entre descoberta, representação e criação – é fundamentalmente sustentado pela agudeza, conceito retórico aplicado à gramática e à lógica, dentro do maquinário do Trivium. A agudeza é uma doutrina seiscentista que opera metaforicamente no inesperado, na surpresa do sentido não previsto. Em outros termos, a agudeza é uma metáfora que resulta da faculdade intelectual do engenho (outro conceito tesauriano elementar), que produz o chamado “belo eficaz” ou o efeito da maravilha que surpreende. Dito em outros termos, a agudeza descobre correspondências inesperadas entre as coisas. (HANSEN, 2000)

Conforme Carlos Moraes (2006, p. 4)

O Cannocchiale, enquanto tratado, segue o modelo dos discursos, recorrendo, principalmente, ao uso de provas, exemplos, com os quais constrói o seu processo argumentativo. Enquanto a discussão progride nos eixos horizontal (que abrange o conhecimento de todos os aspectos da retórica trabalhados por Aristóteles) e vertical (que faz um apanhado histórico e cultural das ocorrências consagradas pelo autor), o caráter metalingüístico da obra consolida com o próprio modelo aristotélico a discussão a seu respeito.

A linguagem barroca de Tesauro escorre sobre forma e conteúdo, sobre texto e contexto. O que nos parece distante, inicialmente, reencontra nossa linha argumentativa no Trivium (gramática, retórica e lógica): o oculto a ser revelado (o conhecimento em sua dependência de movimentos anti-entrópicos, dependente dela, da organização) através de “Conceitos” (em maiúscula na visão de Tesauro). No entanto, a (prematura ou original, a inovadora ou apenas contextual, posto que assim o barroco pensava) posição do pensamento de Tesauro nos coloca perante, antes dos “Conceitos”, o papel das “Metáforas”, ou ainda “Infinitas Metáforas” que levam à criação, à reprodução e à multiplicação (esta, sim, finita) de “Conceitos”.

A estrutura da materialidade retórica é, pois, uma das bases da teoria do conceit, profundamente distante da fundamentação ontológica da teoria (lógica) do conceito. Conforme Saldanha e Crippa (2020, p. 395-396),

The concept theory leads us to a rigorous semantics capable of establishing an ontology that sustains being exactly by being itself, a classical conception that finds in Heiddeger its simulacrum in language, as well as in the so-called first Wittgenstein (1979). The theory of non-conceptuality lays the foundation – or logology perspective, according to the french philosopher Barbara Cassin (2005) - for a semiotic-semiological-pragmatic focus […] Aristoteles considers metaphors, mainly when they are subtle e not evident, as learning figures: «the obvious metaphor, the one that doesn’t shock at all, is rejected. When metaphor shows us things opposite to what we used to believe, it becomes clear that we learnt, and it looks like our mind is telling us: ‘it was like this, and I was wrong’” (Eco, 1984, p. 164). […] Metaphor is capable of “putting in front of the eyes” an unexpected relation between things, it «imposes a reorganization of our knowledge and opinions” (Eco, 2007: 70), becoming a productive tool of new ontologies” (Eco, 2007, p. 67), capable of leaving «a trace in our encyclopedia» (Eco, 2007, p. 72). Eco states that during the Middle Age, an idea of metaphor developed in which its sense shifted away from the Aristotelian definition, acquiring a purely ornamental function, with a very little knowledge. (Eco, 2007).

A metáfora é uma forma avançada de aplicação da lógica, dentro do maquinário do Trivium. A obra de Tesauro (١٦٧٠) é, logo, desde o século XVII, um modo de aplicar o exercício barroco de abertura do mundo dos pragmata pela linguagem. Nesse plano metametodológico, retiramos um outro ponto de vista da epistemologia histórica da nossa formação. Trata-se de aplicar a verdade em potência – a virtualidade – tornando-a em ato, para além da pretensa neutralidade lógica.

A partir dessa atualização do real dialético, procuramos demonstrar diferentes experimentos na práxis transgramatical que nos conduz à democracia documentária. Dos trabalhos teóricos do círculo de estudos avançados tesaurianos, como em Saldanha, Silveira, Crippa e Almeida (2018), Almeida e Saldanha (2017), Saldanha e Souza (2017) e Saldanha e Silveira (2016), avançamos para a discussão metodológico-aplicada de práticas não-conceituais, como o estudo dos assassinatos discursivos de Marielle Franco e dos algoritmos racistas (SALDANHA, SILVA, LIMA, GARCES, 2018, 2019). Essas são construções, via do grupo de pesquisa “Ecce Liber: filosofia, linguagem e organização os saberes”, oriundas do TriviumLab, do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), que criou o observatório das teorias críticas em organização do conhecimento, ou Satélites em Organização Ordinária dos Saberes Socialmente Oprimidos (O²S²O.sat).

Figura 3 – Página principal – Satélites em Organização Ordinária dos Saberes socialmente Oprimidos - Observatório das teorias críticas em organização do conhecimento – ٢٠١٨.

Fonte: Ecce Liber – https://www.osoecceliber.org/ - 2020.

Essas experiências são fundadas em diferentes teorias, métodos e práticas em formato fórum, rede e teia, como o diálogo com o grupo Beiras d’Água, organização voltada para o mapeamento audiovisual de povos e comunidades tradicionais de toda a região da bacia hidrográfica do Rio São Francisco.

Figura 4 – Página povos tradicionais – Beiras d’Água

Fonte: http://beirasdagua.org.br/

A partir do diálogo entre Ecce Liber e Beiras d’Água, mediado pelo TrivumLab, estabelecemos experiências que se orientam para as práticas de cidadania. Voltamos, pois, à Constituição de 1988. Como podemos pensar, os princípios fundamentais de nossa Carta apontam inicialmente para a soberania, mas tal condição é dependente da cidadania, da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, assim como do pluralismo político. Em seu artigo segundo, por sua vez, o discurso constitucional brasileiro afirma que nossa República busca

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (CONSTITUIÇÃO, 1988)

Assim como, em seu artigo quarto, a Constituição estabelece como princípios da República em suas relações internacionais

I - independência nacional;

II - prevalência dos direitos humanos;

III - autodeterminação dos povos;

IV - não-intervenção;

V - igualdade entre os Estados;

VI - defesa da paz;

VII - solução pacífica dos conflitos;

VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;

IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;

X - concessão de asilo político. (CONSTITUIÇÃO, 1988)

A perspectiva crítica da democracia documentária se pergunta: a transgramatização da sociedade brasileira tem condições de sustentar a cidadania a partir dos preceitos de nossa Constituição? Em outros termos, existem hoje, 22 anos após a publicação de nossa Carta, classificações, vocabulários, glossários, tesauros, capazes de representar, fundamento democrático, as diferenças e a pluralidade do povo brasileiro? Essa é a procura – o método – da organização ordinária dos saberes socialmente oprimidos, como categoria-observatório, dentro da não-conceitualidade, lente de práxis e de denúncia da injustiça social negligenciada e-ou constituída pelas linguagens documentárias.

6 DEMOCRACIA DOCUMENTÁRIA: considerações dialéticas emergenciais

XLII – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível,

sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei. (BRASIL, 1988)

As inovações propostas nessa pesquisa se concentram no plano da filosofia da linguagem e da epistemologia histórica da Ciência da Informação, aplicada à teoria geral da organização do conhecimento pela via de uma teoria política. Esse movimento nos leva à organização ordinária dos saberes socialmente oprimidos e suas práticas. Destacamos, centralmente, nessa reflexão,

• o diálogo com a filósofa Bárbara Cassin e a construção da democracia documentária como um debate necessário dentro do desenvolvimento sobre a logologia, como parte de todo problema democrático;

• a relação com a filósofa Maria Nélida González de Gómez, demonstrando o longo papel estratégico das transgramáticas desde a constituição de uma perspectiva macropolítica a uma fundamentação micropolítica das práticas documentárias;

• a aproximação ao pensamento da teoria da não-conceitualidade em Hans Blumenberg como central para a compreensão de uma perspectiva não puramente logicista das práticas de organização do conhecimento.

Por fim, sublinhamos a construção do conceito de democracia documentária, como exercício central do papel inovador da proposta aqui apresentada. Trata-se, a partir do olhar teórico-político de leitura da Constituição brasileira, conceber a práxis documentária como processo de mudança social, inseparável de nossa existência democrática.

Financiamento

A pesquisa foi desenvolvida a partir do fomento do Conselho Nacional para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e da Fundação Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).

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1 Pesquisador titular do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, Brasil Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Bolsista de Produtividade CNPq. Bolsista Jovem Cientista do Estado FAPERJ. ORCID https://orcid.org/0000-0002-7679-8552. E-mail: gustavosaldanha@ibict.br

relato de pesquisa