MEDIAÇÃO DA LEITURA E ALTERIDADE NA EDUCAÇÃO LITERÁRIA
MEDIATION OF READING AND ALTERITY IN LITERARY EDUCATION
Lidia Eugenia Cavalcante1
RESUMO
Discute a mediação da leitura na perspectiva da educação literária a partir da compreensão do conceito de alteridade. Toma como referência conceitual os estudos filosóficos de Emmanuel Lévinas e Paul Ricoeur acerca da alteridade. Apresenta como questão de pesquisa: qual o lugar da alteridade na mediação da leitura na educação literária contemporânea, nesses tempos difíceis de individualismo, isolamento, silenciamento e de subtração de direitos? Discute as implicações da mediação da leitura levando-se em consideração as subjetividades do leitor em relação ao texto e às linguagens. Busca compreender como a ação pedagógica na educação literária pode contribuir no que concerne à dialogicidade das experiências de cada ser humano. Conclui que o ato de ler pode contribuir para o desenvolvimento de saberes reflexivos e críticos que alicerçam a construção do conhecimento, gerando modos de resistência às visões totalitárias, centralizadoras e assimétricas que teimam em reduzir os direitos humanos e a autonomia dos sujeitos. A leitura, portanto, pode propor outro caminho por meio da linguagem e da cultura, não subordinada às formas de dominação.
Palavras-chave: Educação literária. Mediação de leitura. Alteridade.
ABSTRACT
It discusses the mediation of reading from the perspective of literary education starting from the understanding of the concept of alterity. It takes as a conceptual reference the philosophical studies of Emmanuel Lévinas and Paul Ricoeur on alterity. It presents itself as a research question: what is the place of alterity in the mediation of reading in contemporary literary education, in these difficult times of individualism, isolation, silence and the subtraction of rights? It discusses the implications of reading mediation by taking into account the reader’s subjectivities in relation to text and languages. This seeks to understand how the educational action in literary education can contribute to the dialogicity of knowledge of each human being. It concludes that the act of reading can contribute to the development of reflective and critical knowledge that underpins the construction of knowledge. This generates modes of resistance to totalitarian, centralizing and asymmetric views, which insist on the reduction of human rights. Reading can therefore offer another route through language and culture, not subordinated to forms of domination.
Keywords: Literary education. Mediation of reading. Alterity.
Artigo submetido em 14/11/2020 e aceito para publicação em 02/12/2020
1 INTRODUÇÃO
Esta pesquisa se propõe a refletir sobre mediação da leitura a partir do conceito de alteridade, aplicando-o na educação literária. Para isso, busca compreender os meandros da alteridade no mundo contemporâneo, nas singularidades dos sujeitos, nas diferenças e nas subjetividades presentes nas relações entre o Eu e o Outro.
Muitas são as iniciativas brasileiras que visam à formação do leitor por meio da mediação da leitura. Há pesquisas, de diversas naturezas e campos, projetos de extensão acadêmica e, ainda, inúmeras atividades de práticas de leitura que se proliferam nas ações cotidianas de bibliotecas, outras ambiências culturais e nas redes sociais. Citamos, por exemplo, os clubes de leitura virtuais e os perfis que se destinam às narrativas e indicação de obras literárias. Decorrente dessas iniciativas, vislumbramos múltiplas possibilidades e modos de compreender a leitura, bem como a sua presença entre diversos atores sociais e em espaços marcados pela dialogicidade.
A mediação da leitura se tornou um tema instigante para a Ciência da Informação, o que pode ser observado na produção cientifica da área que aborda essa temática. Nos referimos, por exemplo, às teses, dissertações e artigos publicados, cujo foco se volta para esse campo de estudo. Há clara concordância dos pesquisadores dessa vertente de pesquisa acerca da importância da leitura como experiência estética e campo de saber indispensável ao exercício do pensamento crítico e autônomo dos sujeitos. Entretanto, quando atentamos à mediação da leitura literária, mesmo que a sua importância seja notadamente enfatizada, percebemos que há, ainda, longo caminho a percorrer para que essa abordagem receba olhar mais expressivo da área no que concerne à pesquisa científica para além das práticas.
Diante dessa constatação, para discutir esta temática, nos debruçamos sobre um corpus teórico oriundo de campos disciplinares distintos, porém dialógicos, especialmente da Filosofia e da Educação, para uma possível contribuição à Ciência da Informação. Buscamos, ainda, outras referências singulares para refletir criticamente a apropriação do universo teórico da leitura e da educação literária, visando à compreensão crítica sobre o processo de formação e construção do leitor.
A abordagem para pensar a mediação da leitura na educação literária, ora apresentada neste texto, traça um percurso no qual se discute a liberdade e a autonomia dos sujeitos a partir do ato de ler, portanto um exercício de alteridade. É preciso compreender as relações que se estabelecem no universo dos leitores, por meio das inquietudes e conflitos gerados em cada indivíduo no momento de apropriação do que é lido. Esse ato de leitura, contextualizado pelas experiências e saberes presentes nas histórias de vida, é um exercício de humanização que pode levar à compreensão das questões dialéticas existentes nos entremeios dessa ação. Com isso, queremos afirmar que o processo que torna uma pessoa leitora vai muito além da habilidade e do domínio de saber ler e escrever. Em outras palavras, é necessário a integração de elementos de apropriação e usos sociais da leitura, em resposta às demandas da sociedade no campo da ética e da interação entre os sujeitos.
Os conceitos e as reflexões que dialogam neste estudo, a partir da recorrência a vários autores e abordagens, nos levaram a formular os seguintes questionamentos: Qual o papel da mediação da leitura na educação literária? Quais os significados da leitura que orbitam a existência dos indivíduos na sociedade em suas singularidades e diferenças? como a educação literária pode exercer papel de mudança social e libertária entre os indivíduos? Essas questões visam refletir sobre leitura, do ponto de vista da alteridade, isto é, atentando para as possibilidades de conexões do Eu com o Outro. Essa relação pode ser observada nas diferentes formas de ver o mundo para apreendê-lo de modo ético, crítico e humano, vislumbrando possibilidades de compreensão das relações propostas entre leitura, alteridade e educação. Assim, buscamos traçar alguns caminhos para pensar a mediação da leitura na educação literária para o processo de formação do leitor, principalmente no que tange à humanização dos sujeitos.
2 A ALTERIDADE E O CONTEMPORÂNEO NO QUE É DADO A LER
Compreender o conceito de alteridade pressupõe o estudo de vários autores de áreas distintas do conhecimento. Há múltiplas visões epistemológicas para dar conta desse conceito, assim como abrangência e complexidades do seu conteúdo semântico, que podem ser entendidas, por exemplo, pelo viés da antropologia e da psicologia, tema este de elevada importância nesses dois campos. Há abordagens diversas e, ao mesmo tempo, dialógicas que reafirmam o fato de que não precisamos ter o mesmo pensamento para refletir de forma polifônica. Na filosofia, por exemplo, o conceito de alteridade apresenta discussões críticas essenciais para a compreensão desse fenômeno de dimensões socioculturais e políticas importantes para se pensar a sociedade na contemporaneidade.
Refletir sobre alteridade nunca foi tão necessário, tendo em vista os grandes desafios vivenciados pela humanidade na história do tempo presente. Se pensarmos no século XX, por exemplo, podemos citar duas grandes guerras mundiais, guerra fria, longos cenários de crise, era de catástrofes, colapsos políticos e religiosos etc., como destaca Hobsbawn (1995). Esse autor, ao escrever a historiografia do que ele considera o “breve século XX”, discute questões que impactaram a forma de vida de países e populações, tanto ocidentais quanto do lado oriental, quando ele próprio acompanhou, a maior parte, na condição de historiador e de testemunha da história.
O século XX nos trouxe o alcance de grandes benesses e bem-estar social para a sociedade, assim como o triunfo da globalização, da informação e das comunicações, especialmente pelos avanços científicos e o desenvolvimento tecnológico que se seguem no contexto de início do novo milênio. Além disso, a luta pelos direitos humanos se tornou intensa e, ao mesmo tempo, contraditoriamente, há significativa violação desses direitos e aumento das disparidades sociais e econômicas, em meio à grande geração de riquezas. Nessas questões repousam discussões sobre a dualidade entre individualismo x alteridade. Como destaca Candido (1995), vivemos uma época com o máximo de civilização e de grande barbárie. Os primeiros anos do século XXI também têm se mostrado como era de múltiplos desafios e impactos para a humanidade. Se pensarmos sobre a condição humana e a manifestação de forte individualismo, o ano de 2020 representa intenso laboratório para essas reflexões. Nos deparamos, por exemplo, com o isolamento social e as medidas de distanciamentos impostas pelo mundo inteiro durante boa parte do ano, devido à pandemia de COVID-19. Estamos, dessa forma, vivendo uma era de grandes complexidades, globalização e de extremos, como salienta Hobsbawn (1995).
Nessa perspectiva, refletimos sobre qual o lugar da leitura e da educação literária nesses tempos difíceis de isolamento, silenciamento e de subtração de direitos? Como perceber o Outro e a diferente forma de pensar e ver o mundo? Nossa reflexão vai ao encontro do pensamento de Petit (2009, p.10) ao afirmar que,
Hoje, é possível dizer que o mundo inteiro é um “espaço em crise”. Uma crise se estabelece de fato quando transformações de caráter brutal – mesmo se preparadas há tempos –, ou ainda uma violência permanente e generalizada, tornam extensamente inoperantes os modos de regulamentação, sociais e psíquicos, que até então estavam sendo praticados. Ora, a aceleração das transformações, o crescimento das desigualdades, das disparidades, a extensão das migrações, alteram ou fizeram desaparecer os parâmetros nos quais a vida se desenvolvia, vulnerabilizando homens, mulheres e crianças, de maneira obviamente bastante distinta, de acordo com os recursos materiais, culturais, afetivos de que dispõem e segundo o lugar onde vivem.
Diante dessas reflexões, cabe-nos questionar: qual o lugar da leitura no entendimento da sociedade contemporânea em meio a tantas complexidades? Não se trata de ver na leitura uma saída mágica ou imediata para os problemas sociais, culturais, políticos e econômicos que a humanidade tem enfrentado, em maior ou em menor grau, dadas as condições sociais de cada população. O ato de ler, porém, pode contribuir para o desenvolvimento de saberes reflexivos e críticos que alicerçam a construção do conhecimento. Há, dessa forma, a possibilidade geradora de modos de resistência às visões totalitárias e centralizadoras que teimam em reduzir o direito de ser de cada indivíduo, isto sem perder de vista os direitos humanos e a justiça social. A leitura, portanto, pode propor caminhos por meio da linguagem e da cultura, não subordinada às formas de dominação.
Para dialogar com o tema ora proposto, ou seja, a alteridade e sua relação com a mediação da leitura para a educação literária, buscamos aporte teórico nas ideias dos filósofos Paul Ricouer e Emmanuel Lévinas, dois autores que se debruçaram sobre esse estudo no século XX, e cujas ideias se estendem de forma atualizadas para se pensar o século XXI.
O filósofo Emmanuel Lévinas nasceu em família judaica na Lituânia em 1906 e faleceu em 1995 na França, onde morou durante a sua vida adulta, tendo se naturalizado francês e adotado essa cidadania. Ele sofreu os horrores das guerras no século XX. Durante a Segunda Guerra foi feito prisioneiro pelo exército alemão, além de ter seus pais executados pelos nazistas. Com o fim da guerra, Lévinas retomou a carreira e, na década de 1970, assumiu a cátedra de Filosofia em Sorbonne, além de ter atuado como professor em outras universidades.
Considerado o filósofo da alteridade, Lévinas desenvolve seus estudos a partir da fenomenologia de Husserl. Depois, dedica-se ao estudo crítico das teorias de Heidegger. Dessas pesquisas e vivências em períodos de guerras vêm a sua concepção de ética e o reconhecimento do Outro com pensamento amparado na subjetividade e na alteridade. Segundo Lévinas (1993, p.82), “A crise do humanismo em nossa época tem sem dúvida, sua fonte na experiência da ineficácia humana posta em acusação pela própria abundância de nossos meios de agir e pela extensão de nossas ambições.” Ele considera que há uma forma totalizante de ver o Outro quando o que parece interessar é tão somente as concepções individuais que reduzem a existência ao Eu e aos interesses particulares e visões de mundo individualistas, do não-humano, isto é, uma forma de ver o mundo a partir de si e para si.
É a partir do Outro, do Eu pôr-se a escuta pelo seu chamado, pela capacidade do Eu voltar-se completamente para e pelo Outro, que surge propriamente o Eu enquanto consciência. E esta relação é já a decorrência da responsabilidade como fundamento ético primeiro. Pode-se entender, num primeiro momento, a categoria de alteridade como uma relação responsável e ética, pois contém e revela a possibilidade do que está para além do ser e da identidade do mesmo como um transcender para o outro dentro de uma relação responsável. (RODRIGUES, 2007)
Nas reflexões de Lévinas acerca da alteridade, há a forte presença do rosto de cada um como marca da resistência e da necessidade de ser em suas singularidades, porém compreendendo a pluralidade e as subjetividades do Outro pela ética e o direito de ser e viver.
No universo da leitura, há que se considerar a presença do Outro, seja o autor, o mediador, o interlocutor ou o próprio leitor. Essa relação mediacional ocorre em terreno desconhecido de ideias, até que elas se reconheçam e se encontrem na linguagem e nos saberes de cada sujeito. O pensamento do Outro é algo para mim desconhecido, diferente da minha compreensão absoluta. É o novo, o exterior, aquilo que vem de fora, algo que eu não possuía. Essa manifestação da presença de outra interpretação, que não é a minha, pode ocorrer por meio de palavras, ideias, memórias, saberes, vivências e experiências. Esse algo desconcerta, ou seja, tira da zona de conforto, daquilo que me é familiar. Nessa relação, a alteridade se dará por meio da escuta, da exterioridade e da forma como o Eu permite a presença do Outro, alguém que questiona, se insere e produz verdades.
A alteridade também é tema importante para outro pensador francês, Paul Ricoeur (1913-2005). Esse autor é considerado um dos maiores filósofos franceses do século XX, portanto da contemporaneidade. Autor de extensa produção filosófica, também estudioso da fenomenologia husserliana e de Heidegger, dialoga com Lévinas sobre formas diferentes de compreensão da alteridade. Dentre os seus estudos, dedicou-se especialmente à hermenêutica que, segundo ele, se dá por meio da mediação.
Ricoeur se refere à solicitude como a estima ao Outro e ressalta o poder da argumentação e da linguagem. Nesse diálogo, destaca que há mais de uma forma de se interpretar um texto, que as interpretações não são iguais, e que nenhuma resposta é final ou conclusiva, há sempre a possibilidade da argumentação pelo uso da palavra. Para ele, a escrita opera transformações na relação entre a linguagem e o mundo, bem como na relação entre a linguagem e as diversas subjetividades envolvidas, a do autor e a do leitor (RICOEUR, 1989). Essa dinâmica pode ser percebida na contínua dialética da existência humana e nas formas de compreensão da nossa própria historicidade e das relações entre sujeitos.
Morin (2013, p.109) salienta que,
Existe uma ética da compreensão que nos convida, antes de mais nada, a compreender a incompreensão, que tem numerosas origens: o erro, a indiferença ao próximo, a incompreensão entre culturas, a possessão por deuses, por mitos, por ideias, o egocentrismo, a abstração, a cegueira, o medo de compreender [...].
Essa dinâmica da compreensão na sociedade contemporânea enfrenta dificuldades e incertezas que marcam a condição humana e os modos como concretizamos as formas de relacionamentos entre os sujeitos. Isso pode ser observado no enfrentamento dos problemas sociais, culturais, políticos, econômicos e religiosos.
Nessa dinâmica, leitura e educação possuem forte poder de humanização, e podem apresentar-se como veículos promotores de mudanças da realidade e para o enfrentamento e superação das crises e desafios vivenciados pela humanidade.
3 A MEDIAÇÃO DA LEITURA E A ALTERIDADE NA EDUCAÇÃO LITERÁRIA
Em “A função da arte/1”, Eduardo Galeano apresenta, no “Livro dos Abraços”, o memorável texto,
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: — Me ajuda a olhar! (GALEANO, 2002, [s.p.])
Essa percepção da importância do Outro na construção da experiência fenomenológica humana é bem retratada no texto de Galeano pelo uso da metáfora “Me ajuda a olhar!”. Na forma como o autor representa a necessidade de ver o que é estranho e desconhecido com a ajuda dos sentidos do pai e da experiência sensível, com a mediação do Outro, representada pela figura paterna. A leitura do mar é, portanto, uma construção metafórica e narrativa a partir da compreensão hermenêutica pela “via longa” (RICOUER, 2000) das diferentes possibilidades de ver e interpretar uma imagem para encarar as incertezas nos processos de aprendizagem.
Há, dessa forma, uma imagem que pode ser vislumbrada pelo que se revela na percepção do Outro que pode conter vestígios de si mesmo (LEVINAS, 1993). Seria possível ver com olhos que não são nossos de forma transcendente? Claro que o autor faz uso de metáfora, portanto representatividade do desejo da busca de sentido para aquilo que sentimos necessidade de mediação (RICOEUR, 2000). A alteridade parece compor uma trama não solitária e sim solidária que se dá com o apelo ao olhar do Outro de forma ética, como propõe Lévinas (1993).
Segundo Ricoeur (1990), a relação entre as pessoas deve ser de reciprocidade e não de superioridade (assimetria), pois justiça é criar reciprocidade onde não há. Nesse pensamento há, portanto, a presença da ética e das identificações que permeiam as relações entre os sujeitos e as referências do Eu e do Outro, na compreensão da justiça social e dos direitos humanos.
A mediação da leitura é, portanto, uma trilha de experiências que aproxima os sujeitos. Ser do mundo e estar no mundo faz com que as diferentes formas de ver o mundo se encontrem nas narrativas de cada um, com diálogo e respeito para a construção interativa das trocas de saberes, onde todas as intervenções são importantes, desde que se pautem na ética. Dessa forma, promove-se a ética da alteridade por meio da humanização das relações, gerando escuta sensível das experiências, das singularidades, do pertencimento, das memórias e histórias de vida de cada indivíduo, porém com espaços que permitam o Outro ser ele mesmo e se manifestar. O processo formativo passa pelas relações de convivência e respeito às singularidades e diferenças. (HABOWSKI, CONTE; PUGENS, 2017).
Essa mesma forma de compreender a mediação literária pode ser percebida nas reflexões do escritor Bartolomeu Campos de Queiroz, ao argumentar que “A beleza é tudo aquilo que você não dá conta de ver sozinho [...] A beleza não cabe em você.” (QUEIROZ, 2012). Para aprimorar o olhar reflexivo que constrói saberes, é necessário o diálogo, ou seja, precisamos do olhar mediador para compreensão da pluralidade existente nas linguagens e na construção do conhecimento humano.
Assim, como ressalta Yunes (1995, p. 185),
O ato de ler é um ato da sensibilidade da inteligência, da compreensão e de comunhão com o mundo; lendo, expandimos o estar no mundo, alcançamos esferas do conhecimento antes não experimentadas […]. Esta sensação da plenitude, iluminante, ainda que dolorosa e aguda tem sido a constante que o discurso artístico proporciona. Diante de um quadro, de uma música, de um texto, o mundo inteiro, que não cabe no relance do olhar, se condensa e aprofunda em nós um sentimento que abarca a totalidade, como se, pela parte que tocamos, pudéssemos entrever o não-visto e adivinhar o que, de fato, não experimentamos.
A leitura é, portanto, ação que não se limita a um único olhar ou linguagem. Há possibilidades polifônicas e de negociação de sentidos e de representação, como afirma Bakhtin (2003), pois se percebe um ressoar da voz de Um e do Outro que caracteriza o diálogo. No texto e na palavra, a compreensão resulta da mediação e da autonomia dos leitores, presentes de modo dialógico no ato de ler.
Nesse processo, como destacado por Santos e Leite (2017, p.55),
[...] é importante ressaltar o caráter dialógico e mediado que envolve a experiência leitora. Nessa perspectiva, compreendemos que a experiência leitora, no campo da recepção e da compreensão, é atravessada por camadas, por níveis que precisam ser acionados por um processo de “mediação”. Nesse sentido, a leitura é um ato que se constitui por meio da palavra do outro, podendo esse “outro” ser o texto e também o mediador. Por não ter a mesma experiência desse “outro - mediador” é que quando a mediação ocorre, o sujeito - leitor se abre para uma disponibilidade de acolhimento da palavra do outro, deixando-a assumir a base de constituição de sua entrada na cultura da leitura. (grifo dos autores).
Discorrer sobre mediação no contexto da educação literária suscita refletir sobre os conceitos que auxiliam a nortear essa relação, sobretudo no que concerne às práticas mediacionais.
Em direção a esse pensamento dialógico e de concepção mediada, buscamos, a concepção de leitura como um processo de construção de significados e atribuição de sentidos, possibilitando a inserção social do indivíduo no exercício pleno da sua cidadania. (SANTOS; LEITE, 2017, p.59)
As relações entre texto e leitor podem ocorrer por diferentes modos, porém a educação do leitor, perpassada pelas mediações de leitura, permite o diálogo e a evidência de outras práticas através da alteridade. O aprendizado se dá por meio do diálogo com a cultura em suas diferentes linguagens, sentidos e apropriações. Entretanto, é preciso que os sujeitos se reconheçam nas suas relações sociais, identificado com a sua dimensão histórica e humana.
A apropriação do texto pelo leitor implica a produção de sentido, onde se imprime a singularidade da leitura, baseada na experiência individual de cada leitor. Leitura é construção de sentido, de significados, como ressalta Dumont (2020, p. 21). A mediação da leitura pode ser compreendida como um exercício de alteridade, quando ela permite o diálogo entre as diferentes formas de pensamento ético. Isso ocorre a partir da condição humana e presença no mundo de cada sujeito, em um contexto sociocultural que é historicamente construído por ambos – “o Eu e o Outro”.
Quando ressaltamos a alteridade presente nessa relação receptiva que se estabelece, podemos compreender a presença de um ato de conciliação naquilo que é dado a ler e na forma como interpretamos e nos apropriamos da leitura. Isto é, mediante o diálogo gerado pelo olhar do mediador e do leitor sobre o que é lido. Como salienta Candido (2004, p.177), “Toda obra literária é antes de mais nada uma espécie de objeto, de objeto construído; e é grande o poder humanizador desta construção, enquanto construção”. (grifo do autor).
A literatura, enquanto forma de expressão humana, apresenta elementos de humanização que conferem aproximações entre as diferentes formas de pensamento dos sujeitos, mesmo respeitando suas distinções e idiossincrasias. Cada indivíduo carrega consigo saberes adquiridos em suas vivências, que o constituem como ser humano que vive em sociedade e interage com outros sujeitos. Ou seja, produz leituras de mundo que constroem as suas formas de perceber a cultura.
Morin (2001, p. 55), reflete sobre o fato de que “Todo desenvolvimento verdadeiramente humano significa o desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das participações comunitárias e do sentimento de pertencer à espécie humana.” Esse pertencimento expressa-se por meio das linguagens e das vivências cotidianas que constituem os repertórios culturais de cada um e se manifestam pelas mediações.
A mediação manifesta-se na emergência de uma linguagem, de um sistema de representações comum a toda uma comunidade, a toda uma cultura. E, ao mesmo tempo, esse sistema de representação gera um sistema social, coletivo, de pensamento, de relações, de vida, ou seja, uma sociabilidade, que corresponde a uma forma de identificação social e é equivalente, na lógica da pertença, à identificação simbólica ao outro na lógica da filiação e da subjetividade. Entenda-se por sociabilidade o conjunto de representações, de condutas e de práticas pelas quais uma pessoa é reconhecida como pertencendo a uma mesma sociedade. (MALHEIROS, 2010, p.3)
Para Candido (2004), a literatura corresponde a uma necessidade universal de dar forma aos sentimentos e visões de mundo, pois tanto liberta do caos como humaniza. No século XX, por exemplo, a literatura passou a se relacionar de forma mais consciente, politizada e crítica com os direitos humanos, a justiça social e suas causas. Também se tornou reconhecida como instrumento de inclusão e de luta por representatividade cultural, social e política. Essa constatação é observada nas obras literárias de autoras e autores cuja escrita tece narrativas, experiências e criações que destacam as subjetividades e a integridade que auxiliam na ruptura de padrões canônicos, apresentando realidades e condição social que antes eram pouco exploradas, por exemplo, obras literárias de mulheres negras, literatura marginal e aquelas que denunciam a discriminação em suas diferentes formas.
A escrita literária apresenta, na atualidade, um lugar social onde são criadas as condições de representatividade dos sujeitos com suas identidades e diferenças, mas sem perder de vista a alteridade necessária na convivência humana. A leitura traz a possibilidade de manifestação dos indivíduos por meio das linguagens bem como evidencia a presença da alteridade. Nela (leitura) podemos perceber a presença do humano em suas dimensões e realidades, desejos, expectativas, experiências e formas de pensar.
A mediação da leitura no contexto das práticas pedagógicas contemporâneas deve assumir o desafio de desenvolver ações de formação do leitor que permitam construir alteridade, de modo a desenvolver consciência leitora inclusiva na qual o leitor se reconheça, bem como reconheça a presença e o direito do outro em sua diversidade (FREIRE, 2006), fazendo interagir a leitura-mundo, a palavra-mundo, como salienta Freire (1989).
A educação literária ou letramento literário demanda, portanto, um fazer pedagógico para apropriação do que é dado a ler de forma crítica, que vai muito além das práticas de leitura, pois se trata de um processo de formação do leitor. Requer do leitor posicionamento diante da realidade, por meio da construção de sentidos que se estabelece a partir do texto literário e de suas linguagens e interpretações. Portanto, é uma ação ativa e dinâmica da educação em favor do desvelamento da leitura por meio do repertório de cada um, mas com a capacidade de interagir com o conhecimento e a leitura do Outro. A dialogicidade é, dessa forma, um ato solidário entre os sujeitos, que dá a um e a outro o direito à palavra, à voz, a uma relação de humanidade, de igualdade e de diferenças. O diálogo é ação educativa por excelência. (CAVALCANTE, 2016, p. 15).
Para falar sobre mediação de leitura e educação literária é importante fazer referência a Vigotsky (1984), tendo em vista que a perspectiva sócio-histórica está relacionada à aprendizagem e ao desenvolvimento, assim como a leitura. Além disso, as práticas pedagógicas que envolvem a leitura estão inteiramente relacionadas com as experiências culturais e sociais, vivenciadas pelos indivíduos em suas interações com o meio social onde as vivências ocorrem.
Assim, a dimensão social implica compreender que a aprendizagem ocorre permeada por fatores que são constituídos pelas interações culturais, às quais os sujeitos interagem uns com os outros, em situações e contextos diversos do cotidiano. Como salienta Lévinas (1988), os seres humanos se manifestam também por meio da escrita e da leitura, portanto, das linguagens. Nesse movimento, percebemos a apropriação da leitura em diferentes situações de aprendizagem que se constituem a partir das histórias de vida de cada um.
Mesmo se o sujeito necessita se reconhecer em sua singularidade, o diálogo e as linguagens se concretizam nas relações com o Outro, ou seja, pela alteridade. A leitura pode e deve ser recurso essencial na reconstrução dos sujeitos nesse processo de humanização.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao afirmarmos que a sociedade vive, atualmente, uma crise social, de certa forma generalizada, podemos dizer que essa crise possui raízes no individualismo, nas desigualdades e na exclusão. São, portanto, situações geradoras de vulnerabilidade social e econômica que levam à exclusão e que possuem raízes históricas. Certamente que cada sociedade vivencia de forma e intensidade distintas essa crise. Porém, há elementos que são comuns para toda a humanidade, principalmente nos efeitos percebidos em relação às questões ambientais, climáticas, da água e sustentabilidade, por exemplo.
O século XX e o início de século XXI têm sido um grande desafio para os estudiosos que buscam compreender o crescimento civilizatório e o desenvolvimento das sociedades em suas diferentes dimensões. Neste texto, vislumbramos compreender esse desafio pelo olhar das ciências humanas e sociais e, mais especificamente, no âmbito da alteridade presente na mediação da leitura e na educação literária.
Sendo a leitura ponto crucial para o desenvolvimento das sociedades, entendemos que a sua ação humanizadora, em tempos de crises, se torna cada vez mias necessária. Nesse contexto, a educação literária tem papel estratégico, pois pela alteridade presente na mediação da leitura, temos a possibilidade de desenvolver ações dialógicas entre os sujeitos para que se ensinem questões que envolvam ética e respeito por meio da literatura e das linguagens, incorporadas aos saberes, experiências e à cultura.
Pensar a mediação da leitura para a educação literária na perspectiva da alteridade nos permite lançar olhar sensível, reflexivo e crítico sobre as representações do ato de ler visando a transformação social. Não se trata de por na leitura e na educação a responsabilidade em relação a essas mudanças. Por meio delas, porém, é possível vislumbrar uma trilha para repensar um processo de crescimento civilizatório, mais sensível à história de vida e às experiências de cada um, permitindo descortinar novos horizontes sociais e culturais.
Segundo Delors (1996, p.11), “a educação surge como um trunfo indispensável à humanidade na sua construção dos ideais da paz, da liberdade e da justiça social.” Isso quer dizer que é preciso que os processos formativos acompanhem o desenvolvimento da história da humanidade e possam refletir nas mudanças que são esperadas e necessárias para reconduzir ações que apresentem perspectivas solidárias, justas e de respeito às diferenças.
A humanidade dispõe de inegável crescimento e competência em ciência e tecnologia. Dessa forma, compreende-se que todo esse desenvolvimento, adquirido nas últimas décadas, se bem empregado, pode contribuir para ampliar a autonomia intelectual dos indivíduos para que saibam lidar com os desafios e os limites impostos pelo crescimento humano.
Todavia, é necessário que essas potencialidades estejam permeadas de valores éticos e humanos. Para isso, vemos na educação literária, importante aliada para desenvolver ações mediadoras da leitura que articulem os saberes e promovam a alteridade, respeitando as percepções do Outro e sua forma de ler e compreender o mundo.
REFERÊNCIAS
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1 Docente permanente no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação. Universidade Federal do Ceará, Brasil. ORCID https://orcid.org/0000-0002-3190-6900. E-mail: lidia_eugenia@yahoo.com.br
relato de pesquisa