OS ARQUIVOS DO SISTEMA NACIONAL DE INFORMAÇÃO E CONTRA-INFORMAÇÃO (SISNI) E O PAPEL DOS MANUAIS NA RECUPERAÇÃO DE INFORMAÇÕES SENSÍVEIS
THE INFORMATION AND COUNTER-INFORMATION NATIONAL SYSTEM (SISNI) ARCHIVES AND THE ROLE OF MANUALS IN THE RETRIEVAL OF SENSITIVE INFORMATION
Icléia Thiesen1
Maria Guiomar da Cunha Frota2
O Sistema Nacional de Informação e Contra-Informação (SISNI) foi criado para dar sustentação ao regime de exceção que vigorou no Brasil no período de 1964 a 1985, incorporando alguns arquivos existentes anteriormente e criando uma complexa estrutura institucional apoiada nas ações de espionagem, polícia política, repressão e propaganda. O volume extraordinário de documentos produzidos pelos órgãos integrantes desse Sistema no período reflete práticas intensivas de ações de vigilância. Este artigo tem por objetivo analisar estratégias de produção e organização dos documentos visando a efetiva recuperação de informações secretas nos arquivos do Serviço Nacional de Informação (SNI) e da Assessoria Especial de Segurança e Informações (AESI), posteriormente denominada Assessoria de Segurança e Informações (ASI) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), vinculada ao MEC. Visava sobretudo a tomada de decisões com vistas à repressão imediata contra aqueles considerados inimigos do regime. Além da análise de conteúdo dos respectivos manuais produzidos com vistas à facilitação da identificação de nomes, organizações, partidos políticos, entre outros, será necessário recontextualizar as condições de produção das engrenagens dessa fábrica de arquivos sensíveis. As relações entre arquivo, memória e história serão abordadas no sentido de evidenciar a materialidade do campo documentário na mediação das ações de informação.
Palavras-chave: SISNI; SNI; MEC/DSI/ASI/UFMG; arquivos sensíveis; recuperação de informações; manuais de descrição de arquivos.
The Information and Counter-Information National System (SISNI) Archives was created to give support to the exception regime that prevailed in Brazil from 1964 to 1985, incorporating some previously existing files and creating a complex institutional structure supported by espionage actions, political police, repression and propaganda. The extraordinary volume of documents produced by the parts making up this System in the period reflects intensive surveillance practices. This article aims to analyze strategies for the production and organization of documents aiming at the effective retrieval of secret information in the archives of the National Information Service (SNI) and the Special Security and Information Advisory (AESI), later called Security and Information Advisory (ASI) of the Federal University of Minas Gerais (UFMG), linked to the Ministry of Education and Culture (MEC). It was mainly aimed at making decisions with a view to immediate repression against those considered enemies of the regime. In addition to the content analysis of the respective manuals produced with a view to facilitate the identification of names, organizations, political parties, among others, it will be necessary to recontextualize the production conditions of the gears of this sensitive files factory. The relationship between archive, memory and history will be addressed in order to highlight the materiality of the documentary field in the mediation of information actions.
Keywords: SISNI; SNI; MEC/DSI/ASI/UFMG; sensitive archives; information retrieval; file description manuals.
Artigo submetido em 03/12/2020 e aceito para publicação em 17/12/2020
1 INTRODUÇÃO
O exame faz também a individualidade entrar no campo documentário. Seu
resultado é um arquivo inteiro com detalhes e minúcias que se constitui
no nível dos corpos e dos dias. O exame que coloca os indivíduos num campo
de vigilância os situa igualmente numa rede de anotações escritas; compromete-os
em toda uma quantidade de documentos que os captam e os fixam.
Os procedimentos de exame são acompanhados imediatamente de um
sistema de registro intenso e de acumulação documentária.
Michel Foucault
(Vigiar e punir, p. 185)
As discussões sobre as relações entre memória, história e arquivo vêm ganhando relevo nas últimas décadas, sobretudo nos estudos memorialísticos, históricos e, mais recentemente, no campo da Ciência da Informação e domínios conexos.
A problemática da mediação põe em destaque processos que nem sempre dialogaram com as fontes de pesquisa. Contudo, já não se ignora, desde as últimas décadas, a problematização necessária que se pergunta sobre as condições de produção dos documentos, sua intencionalidade, seus produtores e os respectivos circuitos de uso ao longo do tempo. Mais do que isso, verifica-se a inscrição dos indivíduos num campo de vigilância permanente, graças à materialidade que faz dos documentos muito mais do que meros portadores de informação. (FROHMANN, 2008). As instituições se encarregam de conservar arquivos, disseminar informações seletivamente, e assim perpetuar identidades, no ciclo da história e na rede de relações interinstitucionais.
Regimes de exceção se nutrem de extraordinária produção documentária, oriunda das atividades intensas e cotidianas de espionagem, vigilância e repressão minuciosamente documentadas. Para o manuseio de tantos documentos, necessário se faz criar mecanismos que permitam o uso eficaz de informações produzidas, coletadas e armazenadas em complexo sistema informacional integrado por instituições que funcionam em rede.
Trata-se da configuração de um regime de verdade, noção elaborada por Michel Foucault em diferentes textos, mas sobretudo em A verdade e as formas jurídicas, noção posteriormente apropriada pelo campo de estudos da Ciência da Informação enquanto regime de informação. Bernd Frohmann e Maria Nélida Gonzalez de Gómez são leitores de Foucault e contribuíram, em suas pesquisas, para as primeiras discussões em torno dos efeitos específicos de discursos ditos verdadeiros, “os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir uns dos outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade”. (FOUCAULT, 1993, p.13). Para o filósofo, o dispositivo tem uma função estratégica dominante. Ao ressignificar o conceito à luz dos estudos de informação, González de Gómez assim se expressa:
Um regime de informação é o modo de produção informacional dominante em uma formação social, o qual define quem são os sujeitos, as organizações, as regras e as autoridades informacionais e quais os meios e recursos preferenciais de informação, os padrões de excelência e os modelos de sua organização, interação e distribuição vigentes em certo tempo, lugar e circunstância. (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2003, p.61)
Ao buscarmos identificar e analisar as condições de existência de um discurso e os campos práticos onde se desdobram, é imprescindível fazer uma arqueologia, ou melhor, “a descrição do arquivo”. (FOUCAULT, 1972, p.66)
A noção de dispositivo, originária do saber jurídico, “designa o enunciado final que contém a decisão do tribunal”, conforme o Dicionário histórico Le Robert, na linguagem militar constitui “o conjunto de meios dispostos conforme um plano” – enquanto dispositivo de defesa (REY, 2012, p. 1047). Em seus aspectos tecnológicos, designa “a maneira pela qual estão dispostas as peças de uma máquina ou de um mecanismo, e por extensão, o mecanismo em si” (AGAMBEN, 2007, p.19). Ademais, o autor entende que os dispositivos, para Foucault, “são precisamente chamados a tomar o lugar de figuras universais, como o Estado, a Lei, entre outras”, vale dizer, as instituições. (AGAMBEN, 2007, p.15)
Há, contudo, outras significações que podem explicar o deslocamento de sentido de um campo a outro. O pensamento de Michel Foucault e seus comentadores, assim como o de pesquisadores da Ciência da Informação podem esclarecer as nuances que se encontram nas fronteiras da filosofia, da história e da Ciência da Informação: “O arquivo é antes de tudo a lei daquilo que pode ser dito, o sistema que rege a aparição dos enunciados como acontecimentos singulares”. (FOUCAULT: 1987, p.170). Na sua construção conceitual, Yves Jeanneret assinala que “esta noção de arquivo, como a compreendo [...] traz desafios [que] parecem vizinhos ao que denomino trivialidade”. Sobre esse conceito, o autor explica que se trata de uma “propriedade que caracteriza todos os fenômenos de troca cultural, mesmo que ela se manifeste particularmente em certas esferas”. (JEANNERET, 2008, p.58).
Face à crescente produção de registros informacionais, dispositivos de recuperação de informações são criados com vistas a encurtar os caminhos da comunicação, pois as noções de informação-comunicação “se cruzam em permanência” (COUZINET, 2009, p.26). Por essa razão, são denominados dispositivos infocomunicacionais. Essa noção de dispositivo passa então dos campos do Direito e da Filosofia para o dos estudos informacionais. Na sua independência solidária, explica Couzinet, “há a intercessão de dois objetos, ou seja, a informação e a comunicação”, sendo a informação o conteúdo cognitivo da comunicação. Nesse sentido, o estudo dos dispositivos pressupõe considerá-los como objetos materiais mediadores, analisar seu contexto de produção e suas estratégias dominantes.
A distinção entre tais dispositivos primários e secundários é assim definida. O primeiro constitui “um dispositivo cognitivo portador de informações latentes transformáveis em conhecimento, ou seja, capazes de contribuir para a modificação de uma ação”. Já os dispositivos secundários constituem facilitadores para a obtenção de informação e “se efetuam extraindo informação do suporte fornecido por um sistema primário e tratando-a por ela mesma, representando-a de forma simbólica”. (COUZINET, 2009, p.25)
Para acessar a informação primária será, portanto, obrigatório a fabricação de instrumentos secundários, dispositivos que nos permitirão recuperar a informação primária e dar-lhe visibilidade. (COUZINET, 2009; THIESEN, 2017, p.355). Aqui se insere o ponto central deste artigo, cujo campo de análise constitui os manuais produzidos em regimes de exceção, enquanto instrumentos de organização e recuperação de informações, facilitadores da identificação e captura dos chamados “subversivos”, “inimigos internos”, “comunistas”, “terroristas” e outras denominações cujo peso semântico tem o propósito de atingir o imaginário social e conquistá-lo nas ações de combate à oposição durante a vigência do regime militar no Brasil.
Serão analisados os manuais do SNI e do MEC/AESI/ASI/UFMG, considerando-se não apenas sua relevância para a compreensão do funcionamento do regime e sua atuação nas universidades, mas também o seu acesso público3. Contudo, para a realização dos objetivos traçados no presente artigo, é preciso conhecer o Sistema que integrou diversas instituições que interagiam nas atividades de vigilância e repressão – o SISNI.
2 O SISNI E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DO COMBATE À RESISTÊNCIA
Os tentáculos do regime militar podem ser conhecidos através de uma complexa rede de instituições abrigadas em sua estrutura. O SISNI compreendia um conjunto de 16 órgãos que foram se institucionalizando, ora incorporando instituições já existentes, ora se transformando, ora criando outras. À medida que o regime ganhava força, o Sistema se enraizava em todas as demais instituições, inclusive as de natureza civil, como as universidades. O SNI era a “cabeça” desse grande Sistema. Havia muitos outros órgãos:
As segundas seções do EMFA (Estado Maior das Forças Armadas), as F2; do Exército, as E2; da Marinha, as M2; da Aeronáutica, as A2; dos três ministérios militares, as S2; o CIE (Centro de Informações do Exército); o CISA (Centro de Informações da Aeronáutica); os Serviços Secretos da Polícia Federal; as DOPS e os Serviços Secretos das Polícias Militares (P2), e os CODI-DOIS (Centro de Operações de Defesa Interna - Destacamento de Operações Internas), também faziam parte da malha da Comunidade de Informações do país na ditadura militar. (FAJARDO, 1993)
Sinara Fajardo explica que as DSIs (Divisões de Segurança e Informação) e as ASIs (Assessorias de Segurança e Informação) eram as ramificações que produziam informações dentro dos ministérios civis e dos organismos e empresas federais. (FAJARDO, 1993). Criadas em 1967, “em cada ministério civil e seus órgãos deveria ser organizada uma DSI, vinculada ao gabinete do ministro, com o objetivo de ser uma estrutura setorial de informação” (ISHAQ, 2012, p.132). Em 1970 as DSIs passaram a se subordinar ao SNI. “Competia às DSIs coletar dados que colaborassem com a segurança nacional, fornecendo ao ministro responsável e ao SNI, assim como coordenar e supervisionar as atividades de contrainformação no âmbito do ministério” (ISHAQ, 2012, p.132)
A produção documentária dos arquivos da ditadura, no entanto, teve início antes do golpe de 1964. Análises da documentação abundante realizadas por pesquisadores, sobretudo historiadores, comprova que houve espionagem sistemática tendo como alvos os presumidos “comunistas”, fantasmas que assombravam as elites incluindo as forças armadas, a classe média, as empresas, a mídia, os banqueiros, a Ordem dos Advogados do Brasil, setores expressivos da igreja, como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. (THIESEN, 2016, p.26).
Duas instituições desempenharam papel fundamental na construção do golpe de Estado de 1964 - o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), criado em 1961 e sustentado por capital privado, e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), de 1959, amparado financeiramente pelos Estados Unidos, conforme comprovado pelas pesquisas empreendidas pela Comissão Nacional da Verdade, em seu Relatório final. (CNV, p.319). Sabe-se que o IBAD representava a CIA no Brasil e financiou diversas campanhas eleitorais de candidatos que representavam seus interesses. Denunciado pelo esquema ilegal de transferência de recursos do governo americano através de uma complexa rede de instituições nacionais e estrangeiras, o IBAD foi objeto de uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Condenado, cessou suas atividades no Brasil, por decisão do então presidente João Goulart.4 Já o IPES é considerado o centro conspirador e formulador das reformas posteriormente implantadas pelo primeiro presidente militar, o general Castelo Branco.
Os documentos do IPES integrantes dos arquivos do SFICI (Serviço Federal de Informação e Contra-Informação) foram dele retirados logo após o golpe de 1964, ocasião em que foi criado o Serviço Nacional de Informação, que absorveu os referidos documentos (FIGUEIREDO, 2005). O SFICI, criado em 1946 pelo presidente Eurico Gaspar Dutra e extinto em 1964, é a célula inicial do SNI5. Ambos os serviços secretos tiveram em seus quadros um personagem central – Golbery do Couto e Silva, que desenvolveu também larga experiência estratégica enquanto funcionário do IPES. Participou dos cursos da escola do Fort Leavenworth, no Kansas (EUA), tendo posteriormente cursado a Escola Superior de Guerra (ESG), criada em grande medida com o savoir-faire, o apoio e a permanência de militares americanos em seus quadros.
A estrutura do SNI, enquanto órgão central do SISNI, previa que todos os demais órgãos se reportassem a ele, o que explica a identificação de inúmeros documentos oriundos de outras unidades do organograma do Estado nos seus arquivos, permitindo o acesso a documentos produzidos originalmente em outras unidades e que jamais foram recolhidos ao Arquivo Nacional. A recuperação de informações precisas nessa massa documental dependia necessariamente de instrumentos de organização do conhecimento adequados e eficazes - os manuais. É o que veremos a seguir.
3 OS MANUAIS DOS ARQUIVOS DO SNI E DO MEC/DSI - DA PRODUÇÃO À RECUPERAÇÃO DE INFORMAÇÕES SENSÍVEIS
Nos primórdios das práticas arquivísticas os manuais desempenharam papel fundamental. O “Manual de Arranjo e Descrição de Arquivos”, publicado na Holanda em 1898, seria “a pedra fundamental da Arquivística enquanto campo científico”. (SANTOS, 2011, p.8) Autores diversos consideram que a referida publicação constitui marco referencial de sistematização de práticas e de uma teoria arquivística, amplamente aceita enquanto tal na literatura do campo, “marcando a tradição manualística da área [...] e favorecendo o império da norma” (FONSECA, 2005, p.33).
Manuais são também produzidos há décadas pelas instituições militares, encarregadas de padronizar e fazer reproduzir ações e comportamentos em toda a estrutura hierárquica das forças armadas. Lucas Figueiredo, jornalista que vem investigando diversos episódios ocorridos durante a ditadura de 1964, no Brasil, sobretudo no que se refere à espionagem e à história do serviço secreto no Brasil (2005), aos arquivos produzidos pelo projeto Brasil Nunca Mais (2009) e aos mistérios que envolvem o desaparecimento de documentos (2015) revela a existência de diversos manuais de procedimentos institucionais encontrados nos arquivos do SNI6.
Ao receber os arquivos do SNI, por força do Decreto-Lei n. 5.584, de 18 de novembro de 2005, e após o seu recolhimento à Coordenação Regional do Arquivo Nacional (COREG), em Brasília, dada a sua magnitude, o grupo de trabalho dedicado a sua organização com vistas a dar respostas urgentes a requerimentos de certidões e posterior acesso público, percebeu que deveria necessariamente haver bases de dados e sobretudo um manual, razão pela qual solicitou à ABIN – órgão que sucedeu o SNI em 1990 - o seu envio à COREG. Trata-se do Manual Sistema de Arquivamento e Recuperação de Documentos para Informação7. No próximo subitem abordaremos os principais pontos que ressaltam desse dispositivo infocomunicacional e que nos permitem conhecer não apenas as técnicas de recuperação de informações sensíveis, mas também a história de uma época marcada por perseguições políticas.
3.1 Manual SARDI
O Manual SARDI constitui um documento de suma importância, pois nos permite conhecer o funcionamento do regime por dentro e sobretudo do SNI. Prevê em sua estrutura refletida no sumário e nas instruções seguintes todos os passos para o registro, arquivamento e recuperação de “documentos para informação”, para acesso e uso escalonado de seu corpo de funcionários. O exemplar a que tivemos acesso é o de número 101, e data de 1º de outubro de 19848. Dá-se por finalidade “transmitir as informações necessárias ao correto funcionamento do Sistema de Arquivamento e Recuperação de Documentos para Informação (SARDI), estabelecido pela Instrução Normativa no 01/01/AC/82, de 18 Out 82” (SARDI, p.4) e tem caráter confidencial. Estruturado em três partes – Instruções administrativas e técnicas; Formulários; Glossário - é constituído por dois bancos de dados, denominados BD, sendo o D (-), “com documentos implantados até 04 DEZ 78 e o D (+) com documentos implantados posteriormente a esta data; o D (+) engloba 15 Bancos (Bases) e o D (-) engloba 4 Bancos (Bases), cada um com os seus registros...”.
Em seu sumário (denominado de Índice Geral) descreve cada etapa do processo de arquivamento e os diversos formulários a serem utilizados. Os procedimentos de acesso aos Bancos de Dados são minuciosamente descritos por categoria de usuários, controlados por senhas e segundo um sistema hierárquico e de segurança característico da estrutura burocrática das instituições militares: “A fim de assegurar a confidencialidade das informações, as bases de dados foram organizadas obedecendo ao princípio da compartimentação entre os diferentes usuários”. (SARDI, p.91) A circulação das informações se estabelecia entre as instituições do SISNI, com acesso restrito aos altos escalões da hierarquia militar. (THIESEN, 2018, p.243)
Entretanto, havia informações disponíveis a todos os órgãos do SNI, em nível nacional9. Um desses documentos era o Cadastro Nacional (CADA), sem o qual não seria possível identificar pessoas físicas ou jurídicas sob investigação, atividade principal do SNI. Trata-se de um conjunto de dados disponíveis apenas nas telas dos terminais de vídeo dos usuários. Cumpria ao Departamento de Informática da Escola Nacional de Informação (EsNI), criada em 1971, a abertura do cadastro com a finalidade de receber dados de identificação para distinguir a pessoa inscrita, das demais, inclusive homônimos. Essas informações eram cruzadas com dados biográficos produzidos sobre pessoas objeto de um Levantamento de Dados Biográficos (LDB), de um Boletim de Levantamento de Dados Biográficos (BLDB) ou de um Prontuário (PRT).
O arquivo do SNI, recolhido ao Arquivo Nacional em 2005, por força do Decreto n.5.584, conforme esclarece Vivien Ishaq, “contém dados sobre 308.000 pessoas e instituições [...] constituído por 250.000 microfichas, totalizando cerca de 9 milhões de páginas de textos”. Toda essa documentação constante dos prontuários dos investigados subsidiava os processos instaurados pelo Conselho de Segurança Nacional e pela Comissão Geral de Investigação. (ISHAQ, 2012, p. 18, 22, 27).
Na realidade, o SARDI aperfeiçoou um sistema existente desde 1969, controlado por cartões perfurados (MORENO, 2016). O novo sistema teve início em 1978, com a criação do Departamento de Informática, oficializado em 1982. Não por acaso, ao final do ano de 1978, em 4 de dezembro, o Manual assinala um corte cronológico dos documentos incluídos no BD D (-). O marco temporal que separa os dois Bancos de Dados indica mudanças não apenas técnicas na sua estrutura e operacionalização, mas sobretudo políticas. Essa hipótese tem por base uma informação contida no sumário, no item denominado “Guia de remessa de microfichas de ACE [Arquivo Cronológico de Entrada] para destruição (GRD)”. Ora, a iniciativa de fazer um “expurgo” nos arquivos do SNI, em todas as suas agências, no contexto dos processos de luta pela Anistia, é emblemático. O processo de “abertura” estava em curso e seria preciso que fios e rastros fossem seletivamente apagados.
Tudo indica que os documentos já vinham sendo microfilmados bem antes10. Para garantir a recuperação eficaz de documentos com vistas a produzir informação sobre os investigados tudo foi previsto no Manual. Regras para preparação de resumos, relatórios, boletins, dossiês, atribuição de termos, palavras-chave e códigos eram ensinadas no Manual a que os usuários da instituição tinham acesso. Recomendações eram feitas para garantir uma recuperação eficaz. Foram elaboradas guias para a padronização de assuntos: “O Arquivo geral da agência central do SNI acaba de elaborar uma norma para padronização de assuntos nos documentos de informação [...] visando facilitar os procedimentos de acesso e recuperação...”. O Manual revela a utilização da lógica booleana e de estratégias de busca.
Quais eram os profissionais encarregados dessas tarefas? São chamados de documentalistas, termo característico das décadas de 1960 e 1970. Os funcionários da Seção de Pesquisa e Arquivo da Agência Central tinham a atribuição de preencher o Boletim de Processamento para os ACE (Arquivo Cronológico de Entrada) relativos ao BD (-). Já a “Seção de Análise de Documentação da Divisão de Documentação do Departamento de Informática da Escola Nacional [tinha por incumbência] o preenchimento do BP para os ACE pertencentes ao acervo D (+).” (SARDI, p.170)
Além dos documentos produzidos pelos órgãos de informação do SISNI e enviados ao SNI, havia os anexos, não passíveis de microfilmagem, como livros, discos, mapas, pinturas murais, revistas e jornais, entre outros. Trata-se de documentos subtraídos das residências e dos aparelhos no momento das prisões dos suspeitos. O Manual recomenda que “tanto quanto possível, as agências deveriam tentar microfilmar partes dessas peças e criar fichários específicos para guardá-las – páginas ou resumos de livros, revistas e jornais”.
Essas informações eram analisadas e depuradas, com o propósito de orientar os agentes durante os interrogatórios dos prisioneiros, antecipar as ações daqueles considerados inimigos do regime e destruir as organizações armadas, além de constituírem provas dos alegados crimes. Toda essa documentação primária produzida em papel, após ser microfilmada, teria sido destruída. (ISHAQ, 2012, p.22).
Vimos que o Manual SARDI apresenta uma divisão dos Bancos de Dados em antes e depois de 1978 – D (-) e D (+). É fácil supor que havia uma preparação para um balanço dos arquivos, melhor dizendo, uma seleção, pois já estava em curso a elaboração de legislação que viria a permitir a destruição dos documentos, publicada em 6 de janeiro de 1979. Trata-se do Decreto n. 79.099, que aprova o Regulamento para Salvaguarda de Assuntos Sigilosos. O declínio do regime era evidente. O SNI destruiu “86.275 dossiês, entre 6 de dezembro de 1976 e 4 de agosto de 1982” (ISHAQ, 2012, p.30), alegando nos Termos de Eliminação a inutilidade das informações. Cerca de dois milhões de páginas foram destruídas. A compreensão do que efetivamente ocorreu com essa documentação demandaria a identificação de novas fontes – sobretudo as versões anteriores do Manual SARDI.
3.2 Manual de Segurança e Informações do Ministério da Educação e Cultura
Há uma importante lacuna na documentação do SNI relativa às (DSI) e às (ASI) – computadas em duzentas e cinquenta - que existiam nos ministérios civis, autarquias e empresas públicas. Um dos casos mais emblemáticos se refere à DSI do MEC, conforme relata Vivien Ishaq, que, pelo “alcance geográfico e quantidade de pessoas atingidas pela repressão” (ISHAQ, 2012, p.30), representa prejuízo incalculável aos atingidos por perseguições políticas – estudantes, professores e funcionários de universidades que não puderam recorrer aos seus direitos na esteira da redemocratização.
Os arquivos da ASI/UFMG e da UnB são os raros conjuntos documentais preservados após o final do regime (MOTTA, 2014), tendo sido ainda recolhidos os acervos da Universidade Federal de Sergipe e o da Universidade Federal do Pará11, conforme ISHAQ (2012, p.16, nota 17).
A Assessoria de Segurança e Informação (AESI/UFMG), foi criada em 1971 e, conforme Araújo e Ferreira (2012), tinha como objetivos: “produzir informações necessárias às decisões dos reitores, produzir informações para atender ao Plano Setorial de Informações e encaminhar à Divisão de Segurança e Informação (DSI/MEC) as informações por ela requisitadas” (2012, p.68). O Arquivo contendo toda a documentação original está sob a guarda da Biblioteca Central da UFMG e é composto por 39 caixas, separadas por ano, contendo 1.393 maços de documentos, produzidos entre 1964 a 1982. (ARAÚJO; FERREIRA,2012, p.74). A documentação é composta sobretudo por numerosos ofícios internos resultantes de comissões de sindicância para investigar atos considerados suspeitos praticados por membros da comunidade universitária, fichas com informações sobre estudantes, professores e funcionários, listas de livros proibidos, recortes de jornais, panfletos produzidos pelo movimento estudantil e documentação intercambiada com órgãos do sistema repressivo, sobretudo os Destacamentos de Operações de Informação/Centro de Operações de Defesa Interna (DOI/CODI).
Os documentos da ASI / UFMG são reveladores das ações de vigilância e espionagem que se disseminaram por todas as universidades federais, no âmbito das quais ocorreu intensa repressão às ações cotidianas de seu corpo de funcionários. O Manual de Segurança e Informações é o dispositivo infocomunicacional que elucida os caminhos para a compreensão do modus operandi estabelecido para a caça aos inimigos do regime.
O Manual de Segurança e Informações (MEC/DSI)12, documento classificado como reservado (conforme determinava o Art. 62 do Decreto no. 60.417, Salvaguarda de Documentos Sigilosos), é composto por sete capítulos, além da introdução e dos anexos, nos quais são descritos detalhadamente: a comunidade setorial de informações do MEC; os princípios norteadores das buscas e produção das informações; o ciclo de informações incluindo os processos de busca, processamento e disseminação das informações; a classificação da informação segundo natureza e finalidade; os objetivos e medidas de contra informação; um glossário com os termos e a legislação de fundamentação do manual.
A Comunidade Setorial de informações do MEC era composta pela Divisão de Segurança e Informações do MEC (DSI/MEC); elementos empenhados em atividades de informação, conforme a portaria ministerial número 12 BSI (1971) e as Assessorias de Segurança e Informações (AESI). Os destinatários das informações da DSI/MEC, denominados CLIENTES, eram o MEC e o SNI.
A análise do Processo de Busca de Informes, descrito no Manual, é muito relevante para compreender como se conformava a produção de informações para subsidiar processos de controle e de vigilância dos membros da comunidade universitária. Processos esses que resultavam em distintas formas de punição dos membros dessa comunidade: suspensão, expulsão, perseguição, processos administrativos e processos penais, pois as informações eram encaminhadas e distribuídas para diferentes órgãos do aparato repressivo, como as Delegacias de Ordem Política e Social (DOPS).
A primeira etapa do CICLO DAS INFORMAÇÕES era o Planejamento de Busca de Informação (PBI), que consistia na elaboração de perguntas, denominadas Elementos Essenciais de Informação (EEI) e busca de respostas (denominadas INDÍCIOS). Conforme sistematização elaborada por Frota (2020), o processo de busca previa formas legais (OSTENSIVAS) e formas ilegais (CLANDESTINAS) de busca e de obtenção de informação, com o emprego de agentes oficiais e não oficiais. Nos termos descritos no Manual a busca OSTENSIVA incluía “a observação de atividades, a ligação com organizações oficiais e não-oficiais e a exploração de fontes diversas” (MEC/DSI, p.15). O Manual destacava que a ligação com organizações não-oficiais era muito importante para obter informações, mas que devia ser feita de forma sigilosa e pessoal, nunca entre organizações. A busca CLANDESTINA é prevista de modo explícito, embora com a ressalva de que só deveria ser adotada após terem se esgotado todos os recursos de busca ostensiva para não comprometer a imagem do serviço de informação. Esse tipo de busca era considerado uma operação muito arriscada devendo ser realizada por agentes experientes, por isso recomendava-se que apenas um número reduzido de agentes poderia conhecer os patrocinadores da operação, pois no caso de ser descoberta, esses patrocinadores conseguiriam negar de forma “plausível a sua participação no empreendimento” (MEC/DSI, p. 15). O processo de obtenção de informação (BUSCA DO INFORME), previa a utilização de sete diferentes INSTRUMENTOS, dentre os quais destacam-se três:
a) a entrevista descrita como o meio mais utilizado de obter informação na qual “o entrevistado, não obstante ter conhecimento de estar fornecendo informes, não tem conhecimento do fim a que se destinam” (MEC/DSI, p. 16).
b) o interrogatório que era uma forma de “obtenção de informes, de um ou mais indivíduos, num regime de exigência” descrito nos seguintes termos - “por mais democrático que seja, o Interrogatório será sempre um ato de coação psicológica visto que o interrogado encontra-se em situação de inferioridade em relação ao inquiridor” (MEC/DSI, p. 17).
c) a provocação que consistia em “ardil que pode ser usado pelos agentes ou contra eles e visa levar alguém a agir em prejuízo próprio” (MEC/DSI, p. 17).
Constata-se na análise dos três instrumentos anteriormente destacados que o Manual, de autoria do Ministério da Educação, prevê explicitamente o desconhecimento ou a manipulação dos entrevistados, que são membros da comunidade universitária, e mais - admite que o interrogatório é uma forma coação psicológica compulsória, considerada “democrática”.
Em relação aos agentes responsáveis pela busca de informações o Manual prevê o uso de agentes oficiais, não oficiais e de infiltrados. O infiltrado poderia ser alguém que estava no campo (CONFIDENTE) ou alguém “infiltrado com o auxílio ou beneplácito da organização, para a exploração imediata ou futura de uma fonte”. (MEC/DSI, p. 17).
Algumas universidades e seus dirigentes, professores e funcionários, foram coniventes tanto com as formas de manipulação e coação dos seus membros, colaborando efetivamente nos processos de busca, quanto com a presença de infiltrados. Diversos processos do arquivo AESI demonstram essa situação. Essa atitude de conivência é analisada por Motta. (2014). No entanto, ressalva-se que o autor também constatou a presença de atitudes de resistência à repressão, dentro dos limites impostos pela ditadura.
Após a produção dos informes, o manual prevê a ETAPA DE PROCESSAMENTO que incluía a avaliação, a análise, a integração e a interpretação dos informes pelos órgãos de informação. Por esse processo se transformava o “INFORME BRUTO em INFORMAÇÃO pronta para uso.” (MEC/DSI, p. 18). De modo sucinto as atividades de PROCESSAMENTO podem ser descritas do seguinte modo:
• REGISTRO- arquivamento dos informes nos quais se recomenda que, entre outras coisas, “os títulos devem corresponder, de maneira geral, as principais categorias de atividades inimigas.” (MEC/DSI, p. 18);
• AVALIAÇÃO – procedimento que inclui dois critérios- 1) confiança na fonte e 2) precisão do informante;
• CLASSIFICAÇÃO das informações considerando a IDONEIDADE DA FONTE, graduada em uma escala de A a F e a EXATIDÃO DO INFORME em uma escala de 1 a 6;
• VERACIDADE - o informe será considerado verdadeiro quando for confirmado por outro informe;
• ANÁLISE, INTEGRAÇÃO E A INTERPRETAÇÃO- as duas primeiras ações objetivam respectivamente confirmar os dados e integrá-los ao problema ao qual se referem e a última consiste na atribuição de qualidade ao informe.
A quarta etapa do Ciclo informacional é a preparação do material para sua posterior disseminação, definida como o ato de “transmitir a ação para as pessoas que devem tomar conhecimento da mesma para cumprir seus deveres profissionais” (MEC/DSI, p. 22). A transmissão da mensagem poderia ser feita de modo oral ou por escrito. Por fim o Manual ressalta que todos os informes disseminados devem ser submetidos ao crivo dos escalões superiores.
O Manual incluí ainda um capítulo detalhado sobre CONTRAINFORMAÇÃO, definido como “o conjunto de medidas destinadas a dificultar, neutralizar, impedir ou confundir, o sistema de informação do adversário presente ou futuro, além de oferecer também a indispensável segurança as nossas ações.” (MEC/DSI, p.27). A Contrainformação era ainda considerada um recurso ideológico, “propício a formação de um autêntico sentimento de brasilidade, favorável à Segurança Nacional” (MEC/DSI, p .27).
Cabe considerar que o Manual do MEC fundamentou a produção documental da AESI/UFMG e as ações de repressão na universidade realizadas com o apoio dos informes trocados entre dirigentes da universidade, o agente da AESI designado para essa função e outros órgãos do aparato repressivo.13
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os arquivos integrantes do SISNI, como vimos, revelam que há uma história (in)visível sobre os acontecimentos que explicam a produção desse legado da ditadura de 1964, elucidados décadas após muitos embates dos familiares de mortos e desaparecidos e da sociedade civil com seus acumuladores. Os documentos, materialidade da memória e da história, são também retratos de uma época de lutas e disputas políticas. Daí a necessidade incontornável de torná-los públicos e identificar suas condições de produção.
A Justiça de Transição no Brasil ainda não cumpriu as principais etapas previstas em suas linhas-mestras. Em meio aos projetos que vinham sendo desenvolvidos no âmbito do Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), instituído pelo Decreto 7.037, de 21 de dezembro de 2009, da Secretaria de Direitos Humanos da presidência da República e atualizado pelo Decreto 7.177, de 12 de dezembro de 2010, cujo Eixo Orientador VI trata, entre outros temas, do Direito à Memória e à Verdade, prevê-se a conservação dos arquivos de antigos regimes de exceção. O Brasil é o país que mais acumulou acervos sobre as atividades de espionagem, polícia política, censura e propaganda, no espírito das ditaduras do cone sul.
Apesar dos avanços na legislação de arquivos, regulamentando o acesso à informação, dos trabalhos realizados pela Comissão Nacional da Verdade e de suas congêneres estaduais, municipais e universitárias, há ainda um longo caminho a percorrer para que o país se equipare a seus vizinhos vítimas da Operação Condor – sobretudo Argentina e Chile. Não ter ajustado contas com seu passado constitui o grande entrave para a democracia golpeada diuturnamente.
Os arquivos que integram o acervo do extinto SISNI computam cerca de 16 milhões de páginas de documentos, constituindo apenas 20% do que foi efetivamente produzido no período, de acordo com o Centro de Referência das Lutas Políticas – Memórias Reveladas, o que nos permite avaliar a dimensão das lacunas dos referidos arquivos.
Os arquivos do SNI e da DSI/UFMG, objeto deste artigo, foram analisados com base na literatura publicada e sobretudo com a identificação dos manuais criados por seus produtores e utilizadores. Tais dispositivos infocomunicacionais, como vimos, tiveram o papel de recuperar informações de forma integrada, visando ações de repressão.
A Ciência da Informação surge no Brasil em 197014 e, em suas bases epistemológicas, trazia como principal problemática a recuperação efetiva e consistente de informações. Os primeiros profissionais a buscar o aperfeiçoamento de suas práticas foram os bibliotecários, dada a sua experiência com o universo dos livros, documentos e demais suportes de informação. Outros profissionais se seguiram a essa busca por melhor formação frente aos desafios da chamada sociedade de informação, como arquivistas e museólogos, mas não apenas. O prosseguimento das pesquisas do campo pode ainda revelar muitos aspectos nebulosos da pré-história da Ciência da Informação e os elos que tornaram possível a sua institucionalização nesse período.
De toda forma, a interdisciplinaridade que caracteriza os estudos do campo vem trazendo avanços importantes na produção do conhecimento histórico não apenas da formação dessa disciplina que tem a informação como seu objeto nuclear, mas também da reflexão incontornável sobre aspectos político-institucionais que explicam as relações entre informação, memória e história.
As análises aqui realizadas ressaltam, ainda, a relevância da utilização de objetos materiais mediadores – os manuais - enquanto fontes que nos permitem compreender não apenas seu contexto de produção, mas sobretudo suas estratégias dominantes.
O avanço das pesquisas poderia clarear questões políticas, sociais e epistemológicas. Apesar de serem documentos verdadeiros do ponto de vista diplomático, sabemos que não refletem a verdade dos acontecimentos. Produzidos em regime de exceção, os documentos sensíveis tornam-se objeto de conflitos sociais permanentes. Conforme assinalado por Pierre Nora, os arquivos pertencem de pleno direito a dois tipos de memória - à memória histórica e à memória vivida. (NORA, 2003, p.48). São também assim denominados porque os acontecimentos que lhes deram origem podem desvelar fatos, nomes, experiências e circunstâncias envolvendo personagens da vida pública e privada (THIESEN, 2016). “Produzidos pelos serviços de polícia, de informação e de vigilância, para os quais não existe distinção entre vida privada e vida profissional, trazem o carimbo de ‘secretos’ e se inscrevem na categoria de sensíveis” (COMBE, 2001, p.23).
Nesse sentido, questões epistemológicas são colocadas em pauta. Ao que parece, para além da memória histórica, somente a consciência histórica pode contribuir para superar os impasses que permanecem em sociedades que não ajustaram contas com seu passado.
REFERÊNCIAS
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1 Professora Titular da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Coordenadora do Laboratório de História Oral, Informação e Documentação. Bolsista de Produtividade do CNPq. ORCID: http://orcid.org/. E-mail:
2 Professora Associada da Escola de Ciência da Informação. Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Memórias da repressão. e da resistência e justiça transicional no Cone Sul. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5323-1879. E-mail: guiomar@eci.ufmg.br
3 Tudo leva a crer que grande parte dos arquivos produzidos pelo regime, sobretudo os do CENIMAR, CISA e CIE, órgãos federais de segurança e informação, tenham seus respectivos manuais guardados em alguma instituição arquivística ou em posse de seus antigos produtores que também eram os utilizadores das informações constantes dos documentos gerados nas atividades de repressão. Apesar da afirmação de que esses arquivos secretos do CIE e do CENIMAR foram destruídos por seus produtores ao final da Ditadura, sabe-se que ainda há muitas dúvidas sobre a veracidade dessas declarações. Parte dos arquivos do CISA foram entregues ao Arquivo Nacional em 2011, contendo cerca de 50.000 páginas de documentos, cuja análise indica “falta de organicidade, de cronologia, ausência de anexos e documentos incompletos”. Sobre esse assunto ver, entre outros, ISHAQ (2012, p.29); FIGUEIREDO (2015).
4 A Comissão Nacional da Verdade, em seu Relatório final, revela que vinte milhões de dólares americanos foram investidos nesse período através do IBAD. Para compreender as ações do “complexo IPES-IBAD”, ver: DREIFUSS (1981); Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da Verdade. Recurso eletrônico. Brasília: CNV, 2014; THIESEN, 2016.
5 As atividades investigativas que produziram os documentos do SFICI podem explicar como foi possível a prisão de cerca de 50.000 pessoas nos primeiros meses que sucederam o golpe de 1964. Os dados são de Maria Helena Moreira Alves (1984) citada por Janaína Teles (2013, p.9)
6 O autor menciona, por exemplo, o primeiro Manual da Escola Superior de Guerra, sobre informação estratégica, de 1950, que antecedeu a criação da ESG (p.57); Noções sobre operações clandestinas, surgido em 1960 e atualizado periodicamente (p.86), entre outros. Ver FIGUEIREDO, Lucas. Ministério do silêncio: a história do serviço secreto brasileiro de Washington Luís a Lula – 1927-2005. Rio de Janeiro: Record, 2005. Ver também FIGUEIREDO, Lucas. Olho por olho: os livros secretos da ditadura. Rio de Janeiro: Record, 2009. FIGUEIREDO, Lucas. Lugar nenhum: militares e civis na ocultação dos documentos da ditadura. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
7 Nossos sinceros agradecimentos aos funcionários da COREG e do Arquivo Nacional, respectivamente, Viven Ishaq e Sérgio Miranda de Lima, pelas informações e posterior acesso ao Manual SARDI.
8 O Manual do Usuário do SARDI foi aprovado pelo Gen. Div. Geraldo de Araújo Ferreira Braga, conforme capa do referido documento.
9 Havia uma Agência Central e doze agências regionais nas principais cidades do país.
10 Sabe-se, com base na documentação existente, que os órgãos federais de segurança e informação – CIE, CENIMAR e CISA – utilizaram também a microfilmagem como forma de armazenamento e preservação de documentos, conforme assinala Lucas Figueiredo (2015). Era uma prática comum aos órgãos do SISNI.
11 Considerando-se essa informação datada de 31 de maio de 2012, além desses acervos outros podem ter sido posteriormente recolhidos ao Arquivo Nacional.
12 Essa análise do Manual MEC/DSI é uma versão ampliada de FROTA, 2020.
13 A análise de casos que exemplificam essa produção e troca de informações e de contrainformação que nutria o processo repressivo pode ser encontrada em FROTA (2020).
14 O primeiro curso de pós-graduação em Ciência da Informação da América Latina e Caribe foi criado no Brasil, em 1970, no IBICT. No ano do seu Cinquentenário, este artigo constitui uma homenagem aos seus realizadores – professores, pesquisadores, alunos e ex-alunos - muitos dos quais ainda hoje empreendem esforços para a sua permanência e a manutenção de sua excelência.
relato de pesquisa