AS AÇÕES DE INFORMAÇÃO E SEUS CONTEXTOS: aportes da pragmática ao campo investigativo da Ciência da Informação1

INFORMATION ACTIONS AND THEIR CONTEXTS: pragmatic approaches in the investigative field of Information Science

Maria Nélida González de Gómez2

RESUMO

Estudos anteriores indicam que existem elos, implícitos e explícitos, entre as micro regras das ações informacionais, singulares, situadas, e as macro regras da economia, da administração, da política. Hoje, a expansão dos dispositivos e ambientes digitais, gera novas questões sobre as relações que se estabelecem entre ações locais e situadas, e ações informacionais de outra ordem e extensão, implementadas nos ambientes digitais. Neste trabalho, procura-se melhor entender o que constitui o contexto das ações de informação, e como ele se modifica (ou não), conforme se modificam as condições culturais e tecnológicas em que estão ancoradas. Recorremos para isso aos quadros conceituais das abordagens pragmáticas, e a estudos socioantropológicos que ilustram as mudanças na função, efeitos e relevância dos contextos das ações de informação.

Palavras-chave: Ações de informação. Contextos. Situações sintéticas.

ABSTRACT

Previous studies have indicated that there are ties, implicit and explicit, between the micro-rules of informational actions, singular, situated, and the macro-rules of the economy, administration, politics. Today, the expansion of digital devices and environments, generates new questions about the relationships that are established between local and situated actions, and informational actions of another order and extension, implemented in digital environments. In this work, to better understand what constitutes the context of information actions, and how it changes (or not), as the cultural and technological conditions in which they are anchored change. For that, we used the conceptual frameworks of pragmatic approaches, and socio-anthropological studies that illustrate the changes in function, effects and relevance of the contexts of information actions.

Keywords: Information actions. Contexts. Synthetic situations.

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Artigo submetido em 06/12/2020 e aceito para publicação em 16/12/2020

1 INTRODUÇÃO

Conforme certos princípios metodológicos, os estudos sociais ditos micro e macro deveriam manter-se separados, com teorias, conceitos e metodologias específicas. Para outros, o certo são narrativas híbridas, tal como sugerem as premissas dos estudos de redes, sem categorizações a priori ou universais, tendo como agentes da ação agregados heterogêneos de atuantes humanos e não humanos, em configurações sintagmáticas e paradigmáticas de sequências relacionais associativas (TEIL; LATOUR, 1995).

Não adotamos, em qualquer caso, critérios excludentes. Existem temas e problemas que requerem mais de uma abordagem disciplinar e mais de uma modalidade dos conhecimentos, assim como as pesquisas, com frequência, demandam mais de uma estratégia metodológica. Retomamos os conceitos de ações e regimes de informação, para problematizar as dimensões contextuais de sua constituição, sendo que, ao menos nas sociedades contemporâneas, seria praticamente impossível separar um microplano de questões e objetos investigativos, situados e locais, que não demandaram sua contextualização em outros planos ou marcos referenciais, mais extensos ou complexos, preservando ao mesmo tempo, de maneira diferencial, as relações cruzadas mantidas entre esses planos. Trata-se, justamente, de entender melhor como funcionam essas bifurcações e cruzamentos de planos locais e globais nos regimes das ações de informação, mantendo a diferenciação de perspectivas culturais e tecnológicas, reconstruindo sua modalização em regimes de políticas (GONZALEZ DE GOMEZ, 2019).

Sandra Braman (2020) lembra Star e Ruhleder (1996), afirmando que uma infraestrutura (expressão que remete a fenômenos e processos de certa complexidade e extensão) 3 só passa a existir em suas manifestações locais (BRAMAN, ٢٠٢٠). Recordemos esse texto:

Uma infraestrutura ocorre quando é resolvida a tensão entre o local e o global. Ou seja, uma infraestrutura ocorre quando as práticas locais são possibilitadas por uma tecnologia de maior escala, que pode então ser usada de uma forma natural e pronta para usar. Torna-se transparente à medida que as variações locais são incorporadas às mudanças organizacionais e se torna sem equívocos a casa de alguém. Este não é um local físico nem permanente, mas uma relação de trabalho, uma vez que nenhuma moradia é universal. (STAR; RUHLEDER, 1996, p. 114)

Algumas das pesquisas sobre ações distribuídas em ambientes locais e trans locais ou globais nos chegam dos estudos sociais e antropológicos do mundo das finanças (SANTOS; SILVA, 2013; CALLON; MUNIESA, 2005; KNORR CETINA, 2009). Destacam-se, nessas configurações heterogêneas “A materialidade dos mercados, nomeadamente, o papel das estruturas técnicas na criação e configuração do espaço informativo, calculador e negocial que designamos por mercado” (SANTOS; SILVA, 2013, p 10.).

Acontece que. hoje, tanto pelo crescimento exponencial da Internet e dos ambientes digitais, quanto por condições históricas excepcionais, como a pandemia, são cada vez mais frequentes ações virtuais, trans locais, distribuídas entre múltiplos agentes fisicamente localizados, e que passam a compor, nas esferas eletrônicas e online, multi-agências ou interagentes coletivos (uma Conferência da Sociedade Brasileira de Física, uma reunião internacional da Organização Mundial da Saúde (OMS), ou uma reunião de executivos de uma grande empresa, como poderia ser a Zoom Video Communications).

Nossa hipótese é que, nestes casos, erramos quando tratamos somente e de maneira dissociada, agentes locais em ações singulares, para analisar as condições ou efeitos de suas relações estabelecidas na composição de interagências, numa mesma ordem de ações coletivas, sem considerar o plano em que outros agentes, com outros marcos referencias, desenham, implementam, sustentam e administram dispositivos informacionais e composições infraestruturais que facilitam e condicionam a constituição daquelas ações distribuídas entre o local e o global, tendo um alcance operacional que pode envolver, em suas condições (meta)acionais, de poucas à centenas ou milhões de ações de informação e comunicação.

A análise das ações de informação não poderia deixar de problematizar esse novo cenário em duas direções iniciais: a) visando entender os novos papéis dos sujeitos agentes/pacientes de ações de informação; b) reformulando as leituras dos contextos das ações de informação, com a inclusão dos novos jogos da informação, estabelecidos por essa dupla relação entre ações informacionais com competências para predefinir condições em que serão realizadas outras ações de informação, que de algum modo se convertem em seu objeto (ainda que essa relação não seja entendida como causal).

Neste texto, recorremos aos aportes da abordagem pragmática sobre a mutabilidade dos contextos das ações sociais e informacionais, que ajudam a entender e problematizar as novas perspectivas, revalorizando as dimensões espaço-temporais e materiais de sua constituição, assim como os estúdios de novas mediações tecnológicas que modelizam os contextos acionais, ao mesmo tempo facilitando e controlando novas formas de sociabilidade.

2 ARTICULAÇÃO DO CAMPO DA PRAGMÁTICA COM OS ESTUDOS DA INFORMAÇÃO

Conforme a definição de Charles Morris (1938), a semiótica estaria composta de Sintaxes, Semântica e Pragmática, sendo que as duas primeiras são as que tem estado mais presente em diferentes cenários das ciências e tecnologias da informação e da computação.

Desde o século passado, num uso quase metafórico, o termo informação tem facilitado uma leitura integradora de diversos gêneros de inscrições documentárias e suas mediações tecnológicas, cujas concepções se bifurcam em torno da semiose: colocando-se a ênfases na sintaxe (como na busca da Sintaxe Absoluta, de Ranganathan, ou como na teoria matemática da transmissão de informação); na semântica clássica ou formal (CARNAP; BAR HILLEL, 1952); nas relações da esfera digital com o significado, numa hermenêutica digital (CAPURRO, 2003).

Podemos elencar, nesse primeiro mapeamento, uma definição abrangente do escopo e abrangência da pragmática: “A Pragmática aborda a linguagem como fenômeno simultaneamente discursivo, comunicativo e social” (JACQUES, citado por AMENGAUD, 2006, p. 11). Se algumas das principais premissas de abordagens pragmáticas, remetem aos usos da linguagem, elas também transbordam suas fronteiras semióticas, com remissivas a suas ancoragens contextuais, espaciais, temporais, existências.

Desde o ponto de vista de suas configurações em campos disciplinares, um dos pontos de partida seria situar os estudos da pragmática no marco referencial dos estudos da semiótica (WOUTERS, 2016; KNEANE, 2003, entre outros). Conforme Wouters (2016), a Semiótica, entendida de modo geral como “análise acadêmica sistemática dos sistemas de signos”, tem sido desenvolvida em duas correntes principais: uma, da linguística estruturalista, da qual Ferdinand de Saussure seria sua melhor expressão, e outra, a semiótica, de orientação pragmatista, da qual Charles Sanders Peirce seria o precursor. As duas linhas de pensamento partem de diversas premissas ontológicas:

O pensamento de Saussure está firmemente assentado no domínio do simbólico e concentra-se em motivos estruturais e posições intertextuais diferenciais. Sua análise se limita às relações entre significantes e significados e, como os significados são de natureza conceitual, eles também fazem parte do sistema linguístico. São significados, não objetos de referência reais (Keane, 2003, p. 412). Peirce está interessado no vínculo entre signos e objetos do mundo real, tendo como base sua filosofia pragmatista. Consequentemente, ambos definem o conceito de “signo” de maneira bem diferente. Para De Saussure, a separação radical da palavra e do mundo é fundamental (Irvine, 1989). Peirce, pelo contrário, coloca como central as ligações entre veículos de sinalização e objetos do mundo real. (WOUTERS, 2016, p. 72)

Não pretendemos, nestas referências panorâmicas, construir um mapa conceitual e histórico das manifestações das orientações pragmáticas ao longo da história da filosofia e das ciências humanas e sociais, mas destacar algumas possíveis e significativas relações com nossa área de interesse.

Cometi (2005) lembra a busca de interlocução entre representantes da filosofia analítica e das filosofias continentais (hermenêuticas, sociais), assim como certo hibridismo das teorias da linguagem e premissas naturalistas, experiências investigativas onde teriam um papel muito importante a dita Escola de Chicago4. Sendo que autores como Dewey e Peirce têm sido mais requisitados nos estudos sociais da informação, George Mead mantem interlocuções produtivas com a filosofia contemporânea (HABERMAS, 1984; HONNETH, 2009, entre outros). Para Cometi (2005), uma das principais realizações de Mead teria sido reunir duas dimensões que, ainda quando presentes, não foram articuladas na abordagem de Peirce: uma teoria dos signos e uma teoria do comportamento, o que seria uma contribuição decisiva.

[...] para depreender um conceito de racionalidade fundamentado sobre a interação cuja dimensão normativa sustenta à teoria da linguagem.... O mérito de Mead, nesta problemática, terá sido aprofundar a teoria da linguagem de Peirce na perspectiva naturalista de Dewey, dando a questão da subjetividade uma nova roupagem. (COMETI, 2005, p. 63)

Charles Morris, que já fora lembrado por formalizar uma taxonomia da Semiótica, teve participação nas relações do pensamento analítico com a tradição pragmatista norte-americana, estabelecendo elos entre Rudolph Carnap, uma das principais expressões do positivismo lógico e a Escola de Chicago. A história epistemológica da pragmática manterá essa dupla orientação, reunindo perspectivas lógicas e formais e abordagens socioantropológicas.

Numa outra direção, seria na Investigações Filosóficas de Ludwig Wittgenstein (1953), onde encontraríamos uma passagem dos estudos filosóficos da linguagem e da pragmática aos estudos sociais da informação.

A releitura wittgensteana da dita “virada linguística”, com o deslocamento do interesse investigativo da formatação lógica de uma linguagem ideal das ciência para o estudo das linguagens cotidianas, nos teria permitido ancorar nossos quadros referenciais em alguns conceitos-chaves, tal como entender que um signo tem significado não por sua relação a um objeto, mas por ter um uso estabelecido por regras, e designando ‘jogos de linguagem’, a junção indissociável dos usos da linguagem em ações sociais, situadas e modalizadas por atividades e valorações, no contexto de uma formas de vida. Um passo decisivo na concepção wittgensteana, seria substituir pelo conceito de ‘regra’ aquilo que o comportamentalismo e outras concepções que naturalizam o social concebiam como “regularidades empíricas” e como “leis”.

Na última década, aconteceria um certo ressurgimento das abordagens pragmáticas, em novos horizontes de problematização, associadas agora às inovações tecnológicas, como a Web Semântica e as aplicações de machine learning. Mareike Schoop, Aldo de Moor, e Jan L.G, assinam, em 2006, The Pragmatic Web: A Manifesto, onde advogam sobre a incorporação das perspectivas pragmáticas, como extensão da Web Semântica, com efeitos esperados de agregação de valor.

As novas remissivas à pragmática acontecem num cenário complexo. Para muitos, um dos principais objetivos seria otimizar a utilização do capital semântico disponível na Web, de maneira tal que fosse possível reusar os dados em diferentes e plurais aplicações, com independência e sua constituição originária. Floridi (2011), reformulando a semântica clássica nas molduras da dataficação, em algum de seus trabalhos, apresenta argumentos acerca da independência do dado de todo suporte, de todo autor e de todo contexto.

Singh (2002), a sua vez, coloca suas dúvidas acerca dessa expectativa de alcançar uma absoluta disponibilidade do dado: “Se houver uma lição a ser aprendida com a longa história das bases de dados, é que é praticamente impossível descrever os dados o suficientemente bem, tal que possam serem usados em aplicações arbitrárias” (SINGH, 2002, p. 82)

Para Schoop et al. (2006), a Web Semântica, cujo principal componente seriam as ontologias, não daria conta hoje dessa funcionalidade, ainda que o contexto não estiver totalmente ausente de suas representações. Conforme os autores,

Para habilitar o uso da Web tal que possa comunicar, concordar, e modificar cooperativamente as ontologias, o suporte fornecido pela Web Semântica é insuficiente. Uma ontologia é um acordo sobre uma especificação conceitual usada para estabelecer compromissos ontológicos. A questão crucial é: como os agentes humanos agentes comprometem e renegociam seus compromissos de significado? E que tipo de infraestrutura socio técnica é necessária para alavancar essas conversas? (SCHOOP et al., 2006, p. 76)

Como meta-teoria ou como provisão de recursos conceituais ou procedimentais, as abordagens pragmáticas propiciariam a explicitação dos contextos, assunto de suas principais proposições epistêmicas e metodológicas, visariam ao desenvolvimento de modelos de negociação de compromissos enunciativos, e incentivariam a concepção de modelos de colaboração.

A visão da Web pragmática é, portanto, aumentar efetivamente a colaboração humana por meio de tecnologias apropriadas, como sistemas para negociações de ontologias, interações comerciais baseadas em ontologias e empenho pragmático para construção de ontologias em comunidades de prática. Nessa percepção, a Web pragmática complementa Web Semântica, melhorando a qualidade e legitimidade de discursos colaborativos orientados a objetivos. (SCHOOP et al., 2006, p. 76)

Trata-se, de fato, de uma ampliação do campo teórico e investigativo das abordagens pragmáticas, nos estudos da informação, por suas referências aos ambientes e dispositivos tecnológicos e digitais. Trata-se de um delicado território, onde ainda não está muito claro qual é o lócus transdisciplinar onde seja possível estudar encontros eventuais das ciências humanas e sociais com as ciências computacionais, as engenharias e as tecnologias de informação.

Neste trabalho, nos limitamos à reconstrução crítica da presença e uso da categoria de contexto, primeiro, em duas tradições da sociologia pragmática, num aporte significativo para a Ciência da Informação, de Hamid Ekbia (2001; 2009, em trabalhos em coautorias). Em segundo lugar, recuperamos outras leituras dos contextos e marcos referenciais das ações de informação, considerando efeitos da modelagem tecnológica dos ambientes virtuais. Recorremos para isso aos estudos socioantropológicos de Knorr-Cetina sobre os fluxos informacionais dos mercados financeiros, com ênfases nas modalidades de trabalho dos operadores das bolsas de ações, reformulado pelas tecnologias eletrônicas e digitais A autora, procede a uma “destruição construtiva” das premissas do interacionismo de Goffman, que enfatizava o elemento físico inevitável da interação, de modo que a unidade de análise micro sociológica seria uma situação entendida “qualquer área física em qualquer lugar dentro da qual duas ou mais pessoas se encontrem no alcance visual e auditivo uma da outra” (KNORR CETINA, 2009, p 63). Em contraposição, Knorr Cetina apresenta e justifica a proposição do conceito de “situação sintética” trans local ou global.

Apresentaremos primeiros a reconstrução de Hamid Ekbia das orientações pragmáticas, da Escola de Chicago, exemplificada pela filosofia de John Dewey (1931, 1991), e os aportes da nova sociologia francesa (BOLTANSKI; THEVENOT, 2006; THEVENOT, 2016), numa aplicação crítica aos estudos da informação.

3 REGIMES DE INFORMAÇÃO E CONTEXTOS DE RELEVÂNCIA

Kbia e Maguitman (2001) encontram na “visão pragmática” de John Dewey, o caminho que permite superar duas formas de reducionismo: (a) concepções que consideram o real e o conhecimento compostos de unidades discretas e independentes (radicalização do empiricismo), (b) concepções que sustentam uma interelação tal entre conhecimento e realidade que constituiriam um único todo. Dewey, num “criticismo das críticas”, e no viés de “naturalizar a cultura” manteve sua posição contra os dualismos, tal como metafísica/epistemologia, natureza/cultura, razão/emoção, sujeito/objeto. Um dos principais recursos para superar os reducionismo consistiria em incorporar, numa perspectiva pragmática, a noção contexto.

O contexto, horizonte inconcluso e omnipresente em toda ação e pensamento, possui duas dimensões, a temporal e a espacial, as quais variam e se concretizam em realizações singulares, locais, e sujetivadas. Soma-se, as dimensões espaciais e temporais, um princípio seletivo, interesse ou critério de relevância, O “pano de fundo” não pode ser objeto de exame exaustivo; uma parte dele permence indeterminada, sendo que essa instabilidade o faz sempre objeto de descoberta e de explicitação. A dimensão temporal do contexto seria tanto intelectual como existencial.

O pano de fundo intelectual é social e cultural, e pode manifestar-se no coletivo ou individual, ou como um corpus teórico. Assim, a física aristotélica ou as teorias eistenianas, teriam sido o pano de fundo do pensamento sobre as dimensões e relações espaciais, por exemplo, em épocas determinadas. O pano de fundo existencial, envolve considerações materiais, substantivas, onde os agentes devem realizar ações selectivas, conforme julgamento subjetivo de relevância, mantendo o julgamento de sua efetividade e validade conforme um repositório de saber comúm, em torno de todo o que seja assunto de preocupação, em situações problemáticas. À função positiva do papel da subjetividade na fase investigativa do pensamento, ficaria associada uma fase de contextualização da ação em marcos de referência intersubjetivos e normativos.

Naquelas abordagens, existia o risco de um outro bias epistemológico, consistente em estabelecer uma relação causal entre o contexto e a ação, ou entre o individual e o coletivo (ou as instituições), considerando o contexto como um “container”, com potencial explicativo do acontecido no decurso da ação. A “virada pragmática”, na sociologia contemporânea, em especial a francesa, trabalharia agora na superação das tendências à naturalização do contexto, assentadas em versões durkhenianas da ação (THEVENOT, 2007; EKBIA e EVANS, 2009).

Ekbia & Evans (2009), num estudo de caso sobre a mudança na cobertura da terra num sistema de reflorestamento do centro-sul de Indiana, nos Etados Unidos, tem como objetivo entender os processos de tomada de decisão sobre manejo/gestão e cobertura da terra, considerando a função que a informação teria nesses processos.

Acreditamos que os autores testavam, ao mesmo tempo, a premissa da informação completa ou da perfeita informação, como condição do equilíbrio dos mercados, sustentada em teorias liberais clássicas dos mercados. Seria possível oferecer evidências que, de fato, em situações complexas, as decisões dos agentes não segue necessariamente o cálculo racional esperado, conforme as lógicas da ação econômica idealizadas nas teorias clássicas dos mercados. Os autores analisados recorrem, para isso, às abordagens pragmáticas dos contextos, e a suas versões mais robustas, elaboradas pela sociologia econômica de Boltanski e Thevenot (2006), e as abordagens de cunho antropológico de Thevenot (2016).

Boltanski e Thevenot (2006), desenvolvem uma nova abordagem do que seriam os “contextos de relevância”, entendidos agora como plurais e mutáveis “regimes de valor” (regimes of worth), com tantas bifurcações quantas estruturações diferenciais entrelaçam as perspectivas dos participantes e as situações que possibilitam ou restringem a realização de suas ações. Tais seriam os “mundos” de Boltanski e Thevenot (2006).

A cada um dos “mundos” vigentes e seus regimes de valor, corresponderia certa “modalidade de conhecimento” e “formas de evidência” apropriadas aos mesmos. Optando, como ponto de partida, pela concepção de plurais, mutáveis e transitórios mundos de vida, Ekbia e Evans (2009), propõem o conceito de “regimes de informação” como o correspondente informacional das modalidades de conhecimento dos “regimes de valor”, e a objetivação de seus requerimentos evidenciários. Boltanski e Thevenot visam a preservar as referências existenciais dos julgamentos de relevância, junto aos critérios de validação e justificação que modalizam os diferentes regimes de valor (regimes of worth).

A nova abordagem pragmática, ofereceria uma lente mais adequada para analisar o funcionamento das informações no marco referencial da cultura econômica que, num projeto de reflorestamento no sul de Indiana, teria efeitos evidenciários para a tomada de decisão dos proprietarios de terra, sobre o manejo da produção de madeira.

Este grau de diversidade e incerteza gera comportamentos que não podem ser economicamente explicados em termos de escolha racional ou qualquer variação dela. Nem pode ser explicado, com base em um modelo institucional, em termos de participação dos tomadores de decisão em grupos sociais específicos - como “gestores de terras”, “agricultores” ou “ambientalistas”, por exemplo. Dois proprietários distintos com propriedades de características biofísicas semelhantes podem colocam suas terras em usos diferentes, apesar de interesses, fontes de informação e ligações sociais aparentemente semelhantes. Por outro lado, dois proprietários com propriedades de características diferentes podem tomar decisões idênticas de uso da terra. Como podemos entender e explicar melhor esses comportamentos, como espaciais, mas também sociais e informacionais, na tomada de decisão sobre o uso da terra? E como os formuladores de políticas podem efetivamente desenvolver instrumentos para enfrentar os desafios dos recursos quando a natureza da gestão do uso da terra é tão complexa? (EKBIA & EVANS, 2009, p 327)

Mireille Lamont (2013) nos lembra que, nos últimos anos, cientistas sociais interessados no estudo de processos sociais básico incluem neles a avaliação: “Valoração e avaliação estão certamente entre estes processos básicos, juntos com a demarcação de campos de conhecimento, estandardização, comensuração, diferenciação, fechamento e exploração.” (LAMONT, 2013, p. 9). Sendo que processos de valoração não são exclussivos de certas instituições, atividades, autoridades, crenças, tais estudos destacam ao mesmo tempo os efeitos inclusivos do reconhecimento de heterarquias e plurarquias, denunciando a insustentabilidade histórica ou natural dos resíduos estruturais de toda forma de discriminação.

No estudo de caso abordado por Ekbia e Evans, a tomada de decisão na gestão de terras seria influenciada por plurais fatores, culturais, sociais, biofisicos, geográficos. Para exercê-la, os proprietários recorrem a diferentes recursos de informação : “[…] (i) várias fontes de informação, sendo percebida sua qualidade, confiabilidade e acessibilidade; (ii) redes sociais com sua história, apelo e autoridade pertinentes; e (iii) interesses individuais, recursos e experiências anteriores” (EKBIA; EVANS, 2009, p. 328). E o principal critério de aceitação das informações seria a confiabilidade das fonte.

Conforme a teoria dos “Mundos”, de Boltanski e Thevenot (2006), a confiança adquire significados diferentes em “mundos” diferentes: na esfera doméstica e da vida cotidiana, as fontes confiáveis podem ser familiares, amigos, vizinhos; no caso da produção e mercado de madeiras, poderiam ser fontes confiáveis agentes comercais ou profissionais e extensionistas especializados em silvicultura. Os critérios contextuais de valoração, de validação e de confiabilidade, atuariam na tomada de decisão, por vezes com mais de um critério disputando a função evidenciaria, na tomada de decisão.

Cabe considerar que as categorias e taxonomias que substantivam os “mundos” de Boltanski e Thevenot (2006), não poderiam por princípio apresentar-se como universais: são hipotéticas, e sujeitas a interpretações mais precisas, conforme os protocolos de investigação. Seria justamente por essa ancoragem em parâmetros espaço temporais e culturais que a sociologia e antropologia pragmática trazem importantes contribuições para a Ciência da Informação, não somente no modo de gerir e instrumentalizar a pesquisa, como também no modo de elaborar as perguntas.

Com essa percepção crítica, Ekbia e Evans (2009), justificam sua escolha dos “regimes de valor” (ou de grandeza), como indutores dos “regimes de informação”:

Introduzimos a noção de regimes de informação para dar conta dos diferentes modos com que objetos e práticas vão diagramando a avaliação das pessoas sobre os vários caminhos de informação, de modo tal que eles se cancelam, acumulam ou reforçam uns aos outros. (EKBIA; EVANS, 2009, p. 339)

Com tais pontos de partida, não teria sentido falar de “plena informação” numa economia de mercado (o que fora uma premissa sustentada pela Economia Clássica) mas, conforme os autores, seria igualmente improprio falar de “informação/dados independente de contexto”, em ambientes de dados, lógicas algorítmicas e modelos de Inteligência artificial.

4 CONTINENTES, MEDIAÇÕES OU PARTICIPANTES?

Proveniente da tradição interacionista, onde a situação local e singular constitui o objeto e domínio privilegiado de investigação, Knorr Cetina (2009, 2014), elabora o conceito de situação sintética, como uma situação constituída por projeções baseadas em computador. Tem como ponto de partida processos contemporâneos de trabalho em ambientes híbridos, locais e virtuais, tal como o trabalho dos operadores dos pregões da bolsa, ao deixarem de estar fisicamente co-localizado, para serem distribuídos em plurais locais, tendo que interagir por meio de dispositivos eletrônicos, usando telas que projetam os eventos dos mercados. Parmiggiani, Monteiro e Osterlie (2016) oferecem uma leitura clara e enxuta do conceito de Knorr Cetina:

O conceito de situação sintética, portanto, sublinha como as representações na tela (números, gráficos, tabelas) são elementos constitutivos da situação dos operadores financeiros, funcionando como um “sistema de escopo”, ou seja, “um arranjo de hardware, software, e retroalimentação humana que juntos funcionam como um escopo” para observar, projetar e aumentar uma dada realidade (KNORR CETINA, 2009, p. 64). Eles são tão “reais” quanto as circunstâncias físicas e sociais, mas permitem que os operadores financeiros vão além do ambiente físico e, ao fazê-lo, constituem uma realidade ao costurar todos os aspectos que podem ser relevantes para a interação. (PARMIGGIANI; MONTEIRO; ØSTERLIE, 2016, p. 4).

Para entender as novas construções sociotécnicas dos mercados financeiros (e outros casos similares), Knorr Cetina teve que descontruir as pressuposições ontológico-metodológicas do interacionismo de Goffman, em alguma medida compartilhadas pela etnometodologia, que só legitimariam, como unidade de análise, interações que acontecem num ambiente espaço-temporal determinado, com a “co-presença física dos participantes” (relações cara a cara), a ordem da interação se estabelece no espaço, sendo subvalorizadas às sequências temporais. Uma das consequências dessa perspectiva, seria sustentar uma separação radical entre a microanálise e o estudo de fenômenos “macrossociais” (KNORR CETINA, 2009).

Para Knorr Cettina, definir uma situação sintética implica compor uma rede semântica que tem como um de seus principais componentes o conceito de forma global, entendida como “domínio de práticas que se estende por todos os fusos horários, e não implica -de maneira necessária- uma expansão adicional de complexidade institucional” (KNORR CETINA, 1914, p 40). Esse domínio trans local, ao mesmo tempo que aceita releituras relacionais dos macro e micro domínios, demandaria ao mesmo tempo uma reconstrução qualitativa, como “micro estrutura” (KORR CETINA, 2009, p 83). Pode ser de interesse observar que essa demanda de uma microsciologia do global, não a exime de compartilhar seu objeto de investigação com uma análise institucional.

Na perspectiva deste trabalho, a rede semântica da situação sintética agrega o conceito de “sistema escópico” ou “regime escópico” (KNORR CETINA, 2009), e de “agentes sintético”, a saber “os algoritmos e robôs de software que cada vez mais cumprem funções humanas e são a contrapartida das interações na tela” (KNORR CETINA, 2014, p 40).

A construção teórica do esquema conceitual de uma “situação sintética”, e do uso de novos recursos de linguagem para sua descrição, antecipava o cenário contemporâneo, já que a transformação das formas da sociabilidade, se antes era perceptível, teve sua implementação acelerada por imprevistas e históricas circunstâncias, muito além das formas globais que inspiraram sua enunciação.

O dispositivo que permite a constituição de uma situação sintética será denominado sistema escópico (KNORR CETINA, 2009), ou regime escópico (JAY, 1988; METZ, 1975, MAUREER, 2016). Metz (1982), teórico de cinema, usa o conceito para diferenciar o caráter presencial da ficção teatral, e a ausência do objeto visualizado no cinema. Numa das definições mais interessantes para este estudo, um regime escópico designaria a constituição de um sistema visual de caráter cultural e tecnológico, que pode constituir-se num regime dominante para uma dada cultura num momento dado. Poderia falar-se, por exemplo, de um regime escópico cartesiano, resultante da combinação das noções renascentistas de perspectiva associadas a um sujeito solicipsta cartesiano, que organizaria o campo visual do ponto de vista predominante da singularidade de seu olhar.

Na definição de Knorr Cetina, um escopo (derivado do âmbito grego, “ver”) compõe a designação de um instrumento para ver e observar, como um periscópio. No contexto de uma situação sintética global, como a própria dos mercados financeiros,

[...] é um arranjo de hardware, software e retroalimentação humana que, juntos, funcionam como um escopo: como um mecanismo de observação e projeção, que coleta, aumenta e transmite a realidade dos mercados, seus ambientes internos e contexto externo. No domínio, o mecanismo é reflexivo: o sistema reflete um mundo ao qual os participantes enfrentam como uma realidade externa, ao mesmo tempo que fazem parte dele e contribuem para sua constituição por meio de suas publicações e transações”. (KNORR CETINA, 2009, p. 64)

Diferenciando as funções e efeitos dos regimes escópicos daqueles atribuídos às redes, Knorr Cetina (2009, 2014) enumera algumas de suas características:

- apresenta e projeta visualmente eventos, fenômenos, atores, que de outro modo estariam separados pela distância e não teriam visibilidade num único ponto de vista... Ao permitir a percepção conjunta de coisas remotas e separadas entre sim, sistema escópico expande e aumenta a situação local...

- ...temporaliza a situação, no sentido de apresentar os conteúdos num modo sequencial de transmissão(streaming) ...Isso requer um regime de atenção contínua à projeções, em sincronia com os eventos e os demais atores-observadores...

- Um sistema escópico muda as fronteiras entre uma situação ou sistemas e seus ambientes, e entra as escalas micro e macro...

(KNORR CETINA, 2014, p 43).

Os sistemas escópicos geram assim um ambiente aumentado e temporalizado, e podem ser desenvolvidos com ou sem apoio da Internet, em sistemas eletrônico especializados, com conexões por satélite e transoceânicas. Assim como as plataformas estão sendo estudiadas por seu funcionamento e efeitos nas áreas econômicas e políticas, os sistemas escópicos geram efeitos sbre as modalidades da sociabilidade, e agregam uma dimensão sensorial que, se bem não é o assunto específico de Knorr Cetina (2009), tem despertado interesses dos estudiosos dos sensores que habilitariam sistemas interativos de inteligência artificial (PARMIGGIANI; MONTEIRO; ØSTERLIE, 2016).

Por seu valor ilustrativo, sem analisar o ensaio taxonomico de tipos de situações sintéticas, nos limitamos à alguns de seus casos exemplares, (KNORR CETINA, 2009).

O primeiro caso exemplar remete a uma de suas pesquisas mais significativas, sobre os mercados financeiros, e o trabalho dos operadores do pregão das bolsas e suas transações fianceiras. Nesse cenário, um “arranjo inclusivo face-tela, absorve quase todas as interaões dentro do sistema de distriuição das operações financeiras. Requer uma “atenção sensorial que é institucionamente exigida e organizada”, mantendo relações híbridas com o corpo do operador trabalhando num lugar específico. Ese seria um caso de “regime escópico total”.

Num outro exemplo, existem componentes escópicos, mas a interação se realizaria em ambientes fisicos mais amplos: seria o caso de um médico que realiza uma operação a distância, mas segue por diferentes recursos, monitorando o estado físico geral do paciente, alem do foco da intervenção cirúrgica.

O terceiro exemplo, seria o da videoconferência, tendo que considerar que desde a escritura do texto de Knorr Cetina aos dias de hoje, temos recursos apurados e uma pluralidade e diversidade de encontros de telepresença -não só videoconferencias, simpósios visrtuais, o EAD e o ensino remoto emergencial.

As características atribuídas às situações sintéticas, seriam de maior relevância para o trabalho atual: elas são inteiramente informacionais, ontologicamente fluidas e atuam como um outro participante da interação. Para Knorr Cetina, na tradição interacionista, a situação nua, não intermediada, teria duas dimensões, a saber, a) a definição da situação e b) a interação nela mesma, com sua negociação do resultado. “Na situação sintética seria preciso agregar uma terceira dimensão, já que não é uma situação nua, mas escopicamente articulada e aumentada” (KNORR CETINA, 2009, p. 69).

Se descrições das situações sintéticas de Knorr Cetina tem como referência inicial seus estudos dos operadores da bolsa em mercados financeiros, apresentam características que podem projetar-se em situações “informacionalizadas” de plurais formatos e extensão, enquanto envolvem ações e interações trans locais: teriam em comum acontecerem em ambientes digitais, onde as relações à distancia são agregadas e reconstruidas como co-presenças, com auxílio de plurais dispositivos “escopicos” (por exemplo, o Youtube, o Zoom). Pode tratar-se assim de grandes mercados financeiros, em cenários internacionais ou globais, ou de aulas da 5a. série num ensino remoto emergencial, onde um professor recria processos de ensino-aprendizagem, com quinze ou trinta alunos, de modo não antes planejado, nem com a disponibilidade de recursos digitais específicamente desenhados e experimentados para essa finalidade (o que, pelo contrario, seria o caso da EAD). As características principais apresentadas pela autora nos indicam por enquanto aspectos importantes a serem considerados na busca de entendimento de diferentes ações informacionais, que compartilham ao menos duas características: acontecem a distância, com participantes dispersos em diferentes locais, e são possibilitadas por outras ações sociotécnicas e (meta)informacionais, que providenciam a coleta, agregação, manutenção, visualização e monitoramento das ocorrências pontuais discursivas, visuais, emotivas-efímeras ou documentadas-, geradas pelos participantes e acolhidas conforme as estruturações escópicas e comunicacionais oferecidas pelo ambiente digital em que as duas ordens de ação, acontecem.

Em alguns casos poderiam analizar-se como plataformas, mas estão sendo “lidas” agora no ponto de vista da ocorrência de ações informacionais interativas, compondo finalmente multiagências e interagências. São situações em que estaria alterado o modelo dos discursos diretos, onde a emissão e aceitação de um enunciado co-responsabiliza o enunciador e seu(s) interlocutor(es). Acompanhando o modelo das plataformas, a situação sintética segue um script, possui pre-condições, pode pré-definir de papéis e funções, mais ou menos genérico ou específicos, conforme os dispositivos tecnológicos e as finalidades do uso.

Os estudos de Knorr Cetina, focalizando as situações sintéticas, contribuem ao esclarecimento de duas linhas de investigação a serem proseguidas pelos estudios das ações e regimes de informação: (a) a linha dos agentes das ações info-comunicacionais, e sua composição nos novos contextos virtuais e hipermidia, disponibilizados e pre-condicionados em ambientes digitais, online ou virtual (dos operadores dos pregões da Bolsa, dos milhões de crianças, jovens e adultos que vivenciaram as condições de ensino remoto emergencial); (b) a linha das ações que visam à produçao, implementação, distribuição e definição da acessibilidade dos novos dispositivos que, como as plataformas e os regimes escópicos, sobredeterminam ou traduzem os contextos e as formas prévias da sociabilidade.

A primeira característica que Knorr Cetina atribue à situação sintética, a informacional, coloca sobre os participantes a responsabilidade pela qualidade da informação. Knorr Cetina enfatiza a diferença entre vivenciar situações espaço-temporais, onde os mundos da vida são construções de longa duração, com casas, ruas, prédios comerciais, esquinas, que carregam memórias biográficas e culturais, e cujo “estar ahí” damos por garantidos. A situação sintética está composta por bits de informações que surgem de diferentes lugares e tem plurais modalidades de manifestação, mas que estariam sempre em “estado de agregação”: se esquecemos de abrir a imagem ou o som, tudo cai, as relações e interações se interrompem, tem que ser reinstalada nossa presença na tela.

Isso leva a uma segunda característica, a fluidez ontológica da situação sintética. Constituída por um sistema ou regime escópico, requer uma continua atualização; “a montagem e projeção de uma situação sintética é um projeto contínuo” (KNORRCETINA, 2009, p.70). Para ilustrar essa nova agregação de sequências visuais e auditivas, onde as diversas condições de emissão são aplanadas pela tela e o uso dos microfones, Knorr Cetina recorre como exemplo às pinturas impressionistas, ou a tapeceria artesanal, num tapete de largura indefinida onde seriam tecidas cenas sequenciais, quiçá desenhadas sem perspectiva.Não há porém um pano de fundo indeterminado, sobre o qual os temas da vida e do trabalho, desenham situações. Nos ambientes digitais, nada deveria ocorrer que não tenha sido deliberadamente colocado5. A terceira característica seria que, de conformidade com observações anteriores, os dispositivos digitais, tal como os regimes escópicos, que viabilizam a configuração de situações sintéticas globais (ou translocais), convertem-se, eles mesmos, em atuantes e participantes daquela situação.

Knorr Cetina chama nossa atenção para o fato de que tais situações sintéticas globais podem proporcionar encontros globais eficientes, enfim, experiências virtuais bem sucedidas. O que deve estar sempre presente em nossa análise, é que essas experiências bem sucedidas (ou não) acontecem a partir do estabelecimento de precondições. A autora destaca duas.

A primeira precondição seria estar sempre disponível para dar uma resposta de presença. O participante da situação sintética não precisa dar evidências físicas de sua presença, pode por exemplo ser representado por um ícone, como seu avatar, mas tem a responsabilidade de responder em tempo a qualquer demanda de interação. Requer uma atenção dedicada ao fluxo contínuo do que acontece no ambiente virtual, cada um deve adoptar práticas rotineiras de monitoramento, porque não poderia dar uma resposta adequada se não tem conhecimento do que está acontecendo: “aqui o conteúdo aprimorado da informação e a fluidez intrínseca da situação sintética tornam-se particularmente relevantes” (KONRR CETINA, 2009, p.74).

Num ambiente de streaming “ontologicamente fluido”, observar a situação e o desenrolar de suas sequências, deverá ser a atividade central do participante numa situação sintética, que exige dedicação em tempo integral. Nos estudos dos operadores do pregão, isso implica uma intensidade de cunho afetivo, levando em momentos cruciais a vivenciar momentos de ameaças de perdas econômicas, no vaivém dos mercados, como equivalentes a ameaças de agressões físicas radicais, como morte ou estupro (KNORR CETINA, 2009). Em outra dimensão e tom, hoje já se fala da “exaustão” ou “fatiga”, produzidas pelo ZOOM (MORRIS, 2020).

Uma segunda caraterística seria a preparação, que pode ser definida como prontidão, nos casos estudados, para responder de maneira rápida e reflexiva aos desafios de negociação (seja no estabelecimento de preços, seja na definição do que seria comum e compartilhado nessa situação, por exemplo).

Ao contrário da intensidade, que parece quase uma consequência automática da fluidez ontológica das telas, a preparação é um trabalho visível. Flui da intensidade da observação, por certo, mas também envolve comunicação e busca e troca deliberada de informações. (KNORR CETINA, 2009, p.75)

Para Knorr Cetina, cada modalidade de ação sintética, trans local ou global, reabriria as questões sobre a reciprocidade e simetria das relações informacionais e comunicativas, a responsabilidade das partes em ações distribuídas, as modalidades de governança por regras.

Como estudiosa do campo do interacionismo, aponta o desafio dos arranjos de telepresença, onde os participantes carecem da visibilidade e sincronia das pistas faciais.

A autora pressupõe a necessidade de levantar outras questões, acerca da responsabilidade e accountability dos atuantes ‒ nos decursos interacionais sob as condições da situação sintética. É preciso avançar, a nosso ver, na reconstrução de pré-condições anteriores ao desenvolvimento eventual da situação sintética, seguindo uma linha mestra de vinculação temporal. Seriam pré-condições desenhadas, formatadas e operacionalizadas, desde os regimes escópicos que definiriam de antemão, algumas possibilidades de distribuição de papéis (de usuário, professor, aluno, gestor, por exemplo), às estruturas organizacionais que definem investimentos, marketing, contratos de uso gratuito ou pago, políticas de comercialização em regiões geopolíticas, atividades, esferas públicas e privadas.

Tem começado a se reconstruir algumas funções e desafios trazidos pela relação entre o projeto aberto da Internet californiana, e a crescente proliferação das plataformas que demarcam espaços específicos enquanto movimentam-se expansivamente como infraestruturas. Temos um volume importante de estudos de plataformas que abordam os contextos normativos e legislativos de sua configuração, seus domínios de intervenção, e seus funcionamentos e efeitos sobre ações informacionais e comunicacionais da vida cotidiana, nas esferas institucionais, nas econômicas e produtivas, assim como os desafios na reformulação de esferas públicas.

Nos estudos das plataformas de mídias sociais, a apropriação meta-informacional de dados (tanto bibliográficos e científicos, como pessoais), que sujeitos a precondições de formatação e classificação, por plataformas e grandes bases de dados, não somente alteram o significado de suas manifestações de pontos de partida (uma indicação no Web of the Science não significa o mesmo que uma citação textual no conteúdo de um artigo científico, uma categorização de meu índice de glicemia não significa o mesmo que minha caracterização como possível usuários de insulina, no marketing digital de uma companhia farmacêutica). De fato, mudou o significado, a intencionalidade e a propriedade da inscrição que ganhou nova vida na formatação do dado. (WOUTERS, 2014; HILDEBRANDT et al., 2020; COHEN, J.E, 2017).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, quisemos dar destaque as questões da contextualização das ações de informação, reafirmando categorias dimensionais, não precisas, mas significativas, enfatizando a relação quase inevitável, nas complexas sociedades contemporâneas, entre ações informacionais situadas de modo local e temporal, e plausíveis de serem estudadas com procedimentos da microssociologia, pela aplicação de conceitos antropológicos ou por estudos de redes. Ao mesmo tempo, as ações informacionais contemporâneas contêm referências infraestruturais de diferente qualidade e condição: das disciplinares e metodológicas às tecnológicas e mediadas por diferentes “regimes escópicos”, ou sistemas de reconstrução digital da presença e das ordens da interação. Para Braman, “Quando falamos sobre método, estamos falando sobre quem somos” (BRAMAN, 2020, p.48).

Deixamos de discutir, neste texto, outros assuntos inter-relacionados: (a) o papel do plano, para muitos “meso” (BRAMAN, 2006), das instituições e formações organizacionais; (b) a relação entre o projeto ideacional de uma Internet aberta e a proliferação de plataformas, por vezes atuando como monopólios ou monopsônios. Temos analisado os agentes de ações e regimes de informação, de diferentes pontos de vista e abordagem, sendo que o próximo texto analisa as novas modalidades de fluxo e acesso à informação, do ponto de vista do acolhimento das funções político- epistêmicas da arguição e deliberação6.

Para Sandra Braman (2020, p. 48),

A ironia da pesquisa sobre governança da Internet é que, como definido de maneira mais ampla, a governança da Internet em si pode não existir em vários sentidos. As políticas que implementamos podem não ser eficazes. O que faz sentido tecnicamente pode não funcionar politicamente, socialmente ou legalmente e vice-versa. Está se tornando difícil separar a Internet como sujeito da governança das comunicações humanas de uma ampla variedade de outros tipos de processos e do próprio ambiente material.

Se é bom que toda pesquisa abra novos caminhos investigativos, achamos que os estudos destes últimos anos tem sido mais radicais em seus impactos: não se trata somente de buscar novas e melhores respostas, parece que se trata de ponderar quais serão as novas perguntas.

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