ISSN 1517-5901 (online) POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 59, Julho/Dezembro de 2023, p. 103-12 7

ESTUDANTES INDÍGENAS NA UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA: reflexões sobre a interculturalidade e a decolonialidade

INDIGENOUS STUDENTS AT THE FEDERAL UNIVERSITY OF PARAÍBA: reflections on interculturality and decoloniality

___________________________________

Cíntia Cinara Morais Borges 

Alícia Ferreira Gonçalves 

Maria Elena Martinez-Torres 

Maristela Oliveira de Andrade 

Resumo

Este artigo analisa o significado da presença de estudantes indígenas na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e como essa presença tem sido capaz de promover o processo de interculturalidade no espaço acadêmico. O processo de inclusão social dos povos indígenas no ensino superior representa um desafio, pois envolve a discussão sobre o conceito de interculturalidade, que exige rompimento de paradigmas (decolonização), desconstrução do repasse unilateral de saberes e práticas hegemônicas colonialistas eurocêntricas nas universidades. O presente artigo divulga dados parciais de pesquisa descritiva quanti-qualitativa, obtidos através do Sistema Integrado de Gestão de Atividades Acadêmicas (SIGAA) e fornecidos pela Superintendência de Tecnologia da Informação (STI) da UFPB, bem como das narrativas de 11 estudantes indígenas egressos dessa instituição entre o período de 2013 a 2022, que responderam a um questionário por meio digital. Esta pesquisa contribui com os estudos sobre inclusão dos povos indígenas no ensino superior, considerando sua identi dade cultural, para além da condição de estudante, com abordagem de temas que envolvem o reconhecimento do pertencimento étnico dos estudantes indígenas pela comunidade acadêmica não indígena. A política de Ações Afirmativas (Lei de Cotas), o Programa Bolsa Permanência e algumas ações desenvolvidas na UFPB representam avanços no processo de inclusão social dos povos indígenas no ensino superior. Contudo, a invisibilidade cultural da comunidade discente indígena, relatada pelos estudantes nas narrativas desta pesquisa

coloca-se como um desafio a ser superado na construção da interculturalidade na (pluri)universidade. Palavras-chave: Estudantes indígenas. Interculturalidade. Decolonialidade. Ensino superior.

Abstract

This article analyzes the meaning of the presence of indigenous students at the Federal University of Paraíba (UFPB) and how this presence has been able to promote the process of interculturality in the academic space. The process of social inclusion of indigenous peoples in higher education represents a challenge, as it involves discussion about the concept of interculturality, which requires breaking paradigms (decolonization),

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 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Paraíba. E- mail:

cintia.cinara@hotmail.com

 Professora da Universidade Federal da Paraíba. Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de

Campinas (Unicamp). E-mail: aliciafg1@hotmail.com

 Professora do CIESAS-Sureste, no México. Doutora em Étude Latino- Americaine/ Anthropossociologie des Religions, Institut de Hautes Études de l’Amérique Latine (IHEAL), Université de Paris III. E- mail:

desal@laneta.apc.org

 Professora titular aposentada da Universidade Federal da Paraíba. Doutora em Étude Latino- Americaine/

Anthropossociologie des Religions (IHEAL), Université de Paris III. E-mail: andrademaristela@hotmail.com


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deconstructing the unilateral transfer of knowledge and Eurocentric colonialist hegemonic practices in universities. It disseminates partial quantitative-qualitative descriptive research data, obtained through the

Integrated Academic Activities Management System (SIGAA) and provided by the Superintendency of Information Technology (STI)/UFPB, as well as the narratives of 11 indigenous students who graduated from

UFPB among the period from 2013 to 2022, who responded to a questionnaire digitally. It contributes to studies on the inclusion of indigenous peoples in higher education, considering their cultural identity, beyond their status

as a student, with an approach to topics that involve the recognition of the ethnic belonging of indigenous students by the non-indigenous academic community. The Affirmative Action policy (Quota Law), the

Permanence Grant Program and some actions developed at UFPB represent advances in the process of social inclusion of indigenous peoples in higher education. However, the cultural invisibility of the indigenous student community, reported by students in the narratives of this research, presents itself as a challenge to be overcome in the construction of interculturality in the (pluri)university.

Keywords: Indigenous students. Interculturality. Decoloniality. Higher education.

Introdução

Este artigo1 apresenta os dados iniciais de uma pesquisa em curso realizada pela primeira autora com estudantes indígenas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), considerando a forma de ingresso (ampla concorrência ou Política de Cotas), egressos e beneficiários do Programa Bolsa Permanência (PBP). Buscamos avaliar os efeitos da democratização do acesso ao ensino superior pelos povos indígenas, concretizada nas universidades federais pela Política de Cotas e pelo Programa Bolsa Permanência, sobre a ótica da interculturalidade e alteridade (Peirano, 1999). A pesquisa documental forneceu dados quantitativos, relacionados à permanência e conclusão do curso pelos estudantes bolsistas do programa. Quanto à parte qualitativa, foi realizada a aplicação de questionários por meio digital, direcionada a estudantes indígenas ex-bolsistas e egressos da UFPB, que permitiu uma visão sobre as trajetórias dos estudantes indígenas potiguara na instituição, com relatos sobre limites e possibilidades na construção de um espaço acadêmico intercultural. Segundo dados do censo da educação superior do INEP (2021), o quantitativo de estudantes indígenas que ingressaram no ensino superior em 2021 foi 11.028, dos quais 2.218 da região Nordeste e 423 da Paraíba. A UFPB possui 556 estudantes autodeclarados indígenas com matrícula ativa nos cursos de graduação e pós-graduação2. Esses dados ratificam a importância dos estudos e sistematização de dados sobre a presença dos povos indígenas no ensino superior, contribuindo com a divulgação de dados que subsidiem (re)formulação de políticas de acesso e permanência de estudantes indígenas na universidade, pautadas no respeito à diversidade, que promovam experiências interculturais e decoloniais. Nesta

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1 Trata-se de uma pesquisa de doutorado em curso no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPB.

2 Dados fornecidos pela Superintendência de Tecnologia da Informação (STI)/UFPB em 07.08.2023.


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perspectiva, as problematizações centrais do artigo são: Qual o significado da presença dos estudantes indígenas nas Instituições Federais de Ensino Superior (IFES)? De que forma a universidade acolhe os povos indígenas e convive com os diversos saberes, valores comunitários, cosmologias, visões de mundo e seus modos de ser, viver e de estar no mundo (Harguindeguy, 2016)?

A interculturalidade é uma via para a permanência dos estudantes indígenas no ensino superior, pois envolve a produção do conhecimento a partir da decolonização dos saberes.

[...] o conceito de interculturalidade é um conceito extremamente complexo, mesmo porque ele vai revelar para a gente que essa produção, essa construção de um saber a partir de uma troca parece que é sempre pensada de forma muito unilateral, e, portanto, os estudantes indígenas, quilombolas e negros, de modo geral, acabam participando muito pouco dessa produção. E da possibilidade de se repensar, inclusive, o que é produzido e transmitido nas universidades (Sousa, 2019, p. 137).

O ingresso e a permanência dos indígenas no espaço universitário e urbano (no caso daqueles que passam a residir nas cidades) tornam-se desafiadores para esses sujeitos, que precisam aprender, vivenciar e intercambiar diferentes perspectivas, concepções e experiências, provocando e sendo por elas provocados a refletir sobre sua identidade étnica. As reflexões acerca da presença indígena na universidade possibilitam pensar sobre o exercício que toda a comunidade acadêmica é convidada a fazer, questionando as formas de ser e estar na universidade, o respeito à diversidade e a prática da interculturalidade, ou seja, do diálogo simétrico e recíproco entre saberes e culturas, inclusive nos componentes curriculares. Reflete no esforço dos estudantes indígenas em permanecer na universidade, suas possibilidades e estratégias em manter o duplo pertencimento, como estudante universitário e como indígena.

Ao incluir os indígenas nas universidades há que se repensar as carreiras universitárias, as disciplinas, abrir novas (e inovadoras) áreas de pesquisa, selecionar e repensar os conteúdos curriculares que têm sido ministrados, e testar o quanto estruturas, que acabaram se tornando tão burocratizadas e centralizadoras, podem suportar se colocar ao serviço de coletividades vivas, histórica e culturalmente diferenciadas. As universidades devem estar prontas para se indagarem sobre o quanto podem beneficiar-se da presença indígena, vivificando-se e ampliando-se na construção de um mundo de tolerância e riqueza simbólica em que não bastará mais a repetição ampliada dos paradigmas do horizonte capitalista contemporâneo e da reprodução de um saber único, eurocêntrico.


BORGES, C.C.M; GONÇALVES, A.F.; TORRES, M.E.M; ANDRADE, M.O. Interculturalidade e diversidade nas universidades

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O debate sobre interculturalidade reverbera em diversos aspectos da vida societária, representando uma categoria teórica que incide, juntamente com o conceito de diversidade, numa agenda reivindicatória dos movimentos sociais. Embasam o discurso governamental como fundamento de políticas públicas, ainda que, por vezes, não ultrapasse esse nível (do discurso). Historicamente, alguns modelos foram utilizados para conceituar as formas de pensar e lidar com a questão da diversidade. O quadro 1 apresenta quatro modelos para refletirmos sobre a interculturalidade.

Quadro 1 – Modelos de Políticas para lidar com a diversidade

Modelo

Países de Referência

Período

Característica

Assimilacionista

Austrália, Nova Zelândia e

EUA

Final séc. XIX e início do séc.

XX

●Ações voltadas para os grupos ou segmentos sociais.

●Imposição para que adotassem os valores nacionais.

● Perda das especificidades culturais.

Integracionista

França

Século XX

●Ações voltadas para os indivíduos.

●Imposição para que integrassem a cultura nacional.

●Participação “tutelada”.

Multicultural

EUA

Décadas de 1960 e 1970 (pós-lutas do movimento negro)

●“Tolerância” à diversidade, sem preocupação com as questões de justiça, igualdade e inclusão sociais.

●Diversidade foi “aceita”, mas não havia troca ou relação entre as culturas.

Intercultural

América Latina

Segunda metade do século XX

●Tratamento igualitário da diversidade, sem sobreposição da cultura dominante.

●Diferença é vista como fator enriquecedor. ●Educação “intercultural” é tida como instrumento de “empoderamento” para os grupos sociais.

Fonte: Elaborado pelas autoras (2023)

No Brasil, os fundamentos dos modelos assimilacionista e integracionista, pautados na tutela e assimilação cultural dos povos indígenas, foram reconfigurados legalmente a partir da Constituição de 1988, “[...]que inaugurou o paradigma multicultural de reconhecimento da diversidade cultural, reconhecendo aos indígenas sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições” (Munhós; Urquiza, 2021, p. 69). No entanto, Walsh ressalta que

O reconhecimento da tolerância para com os outros que o paradigma multicultural promete não só mantém a desigualdade social como deixa intacta a estrutura social e institucional que constrói, reproduz e mantém essas desigualdades. O problema,


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Cosmovisões e territórios: Abya Yala como Território Epistêmico

então, não se concentra simplesmente nas políticas do multiculturalismo como um novo paradigma dominante na região e no globo, mas também nos meios de que

cada política se vale para ofuscar tanto a subordinação colonial quanto as consequências da diferença colonial, incluindo o que Mignolo designou como

"racismo epistêmico da modernidade" (Walsh, 2019, p. 24).

O conceito de interculturalidade (séc. XX), apesar de representar um avanço em

relação aos demais modelos postos sobre a diversidade e estar associado ao de diversidade cultural como um valor a ser globalmente respeitado, deve ser entendido a partir da concepção de que há um saber hegemônico, resultante de uma colonização epistêmica passível de questionamento. Walsh (2002a) acredita ser preciso “descolonizar o saber”, isto é, elaborar uma nova ideologia capaz de subverter as formas de pensar e agir que o Estado colonizador impõe e que a ciência positiva adotou e difundiu.

A crítica ao multiculturalismo está ancorada na ideia de que esse modelo subsidia u ma diferença epistêmica, quando não rompe com o saber hegemônico; promove uma inclusão no sentido de respeito, vazia de “lugar político”. Desconsidera os sujeitos como protagonistas de um projeto com crítica epistêmica, política e cultural.

[...]el concepto de "interculturalidad" revele y ponga en juego la diferencia colonial, lo cual queda un tanto escondido en el concepto de "multiculturalidad". Por eso, cuando la palabra "interculturalidad" la emplea el Estado, en el discurso oficial el sentido es equivalente a "multiculturalidad." [...] Pero, en todo caso, es importante reconocer las reformas que se pueden realizar a través de la política del Estado. En cambio el proyecto "intercultural" en el discurso de los movimientos indígenas está diciendo toda otra cosa, está proponiendo una transformación. No están pidiendo el reconocimiento y la "inclusión" en un Estado que reproduce la ideología neoliberal y el colonialismo interno, sino que están reclamando la necesidad de que el Estado reconozca la diferencia colonial (ética, política y epistémica) (Walsh, 2002b, p. 26).

Até que ponto a interculturalidade, compreendida apenas como o diálogo entre conhecimentos, favorece a ruptura do modelo de conhecimento da modernidade ocidental, trazendo para a discussão a temática do poder? O entendimento é de que há um processo de construção de um “outro” conhecimento, “outra” prática política e poder social, uma forma de pensar oposta à modernidade. Assim, “[...]a educação intercultural não deve ser simplesmente apontar para o diálogo entre conhecimentos, mas para uma ruptura com o modelo de conhecimento da modernidade ocidental, assim como trazer à discussão a temática do poder que muitas vezes é desconsiderada” (Paladino; Almeida, 2012, p. 17).

Lima (2016, p. 21-22) ressalta que a diversidade “[...] tornou-se uma panaceia, ou seja, tanto serve para a reprodução quanto para a contestação do poder global e hegemônico [...]


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Afinal, reconhece-se a importância da diversidade cultural, ao mesmo tempo em que se afirma a unidade da humanidade e a necessidade das trocas interculturais”. Descreve o interculturalismo como expressão intencional de projetos sociais em prol de maior equanimidade e respeito na vivência da realidade multicultural.

Para Candau (2020), a ideia de interculturalidade pode abrir caminhos para o reconhecimento e reposição dos sujeitos colonizados, subalternizados, subjugados, silenciados, dominados e alijados de suas autonomias societárias e cosmológicas a uma posição de diálogo, de interação, de coexistência e conveniência dialética. No entanto, pode ser percebida como promessa de diálogo discursivo, ideológico e ainda colonizador. A presença de estudantes universitários pertencentes a grupos sociais historicamente excluídos do espaço acadêmico (por pertencimento étnico racial e/ou identidade social) provoca a discussão sobre a construção de uma universidade mais intercultural, menos branca e eurocêntrica, que necessita de diálogo entre as diferentes epistemologias, culturas e formas de pensar e produzir conhecimentos. Desse modo, escreve Walsh:

[...] a interculturalidade representa uma lógica, não simplesmente um discurso, construída a partir da particularidade da diferença[...] consequência da passada e presente subordinação de povos, linguagens e conhecimentos[...]Essa lógica, ao mesmo tempo em que parte da diferença colonial[...] trabalha para transgredir as fronteiras do que é hegemônico, interior e subalternizado (WALSH, 2019, p. 15).

Castro (2018) entende a interculturalidade a partir de três dimensões: epistemológica , quando sustenta que existe uma multiplicidade de tipos de saberes e que nenhum deles é superior ao outro; ética, pois intervém contra as formas totalizadoras da vida social e linguística, no reconhecimento de que a língua é o fundamento de construção identitária de um povo. Essas dimensões estão presentes e atuantes nas práticas e vivências acadêmicas, repercutindo direta ou indiretamente na trajetória dos estudantes indígenas universitários. Baniwa (2019) pontua que a forma de ingresso (processo seletivo) e a permanência

dos estudantes indígenas na universidade desconsideram as diferenças linguísticas dos povos indígenas, que possuem inclusive amparo legal para estudar em escolas específicas e diferenciadas (bilíngue, intercultural e com currículo diferenciado). Porém, submetem-se aos processos seletivos e aulas baseadas unicamente na língua portuguesa. “Esses fatos demonstram incoerência e contradição na política, quando, ao tempo que reconhecem o direito específico e diferenciado aos povos indígenas, limita ou impede o acesso a outras políticas públicas de seu interesse” (Baniwa, 2019, p. 69).


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Estudantes indígenas no ensino superior

Cosmovisões e territórios: Abya Yala como Território Epistêmico

“[...]indígena é visto na universidade através de três prismas: o do privilégio (está sendo beneficiado, então tem que fazer por merecer), o da invisibilidade (simplesmente não é visto, sendo submetido a padrões já consolidados) e, em menor grau, o do preconceito (as infelizes imagens que se têm dos índios: preguiçoso, festeiro, silvícola...)” (Marcos Moreira Paulino, 2008)

A presença dos acadêmicos indígenas nas universidades públicas constitui-se como um fenômeno no Brasil, decorrente da progressiva ampliação da escolarização de crianças, jovens e adultos em terras indígenas. Apresenta-se contextualizado mediante o reconhecimento da educação escolar indígena na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996, no Plano Nacional de Educação de 2001 e nas Diretrizes Nacionais da Educação Escolar Indígena no Brasil, bem como associado às discussões e experiências de implantação das cotas para estudantes negros, indígenas e quilombolas oriundos de escolas públicas nas universidades públicas.

A democratização do ensino superior passa por duas vias igualmente essenciais, o acesso e a permanência, que envolve tanto a perspectiva da participação da comunidade indígena, suas lutas e movimentos sociais, quanto a intervenção estatal, na elaboração e implementação de políticas públicas que corroboram a inclusão dos estudantes indígenas no ensino superior, em cursos de graduação e pós-graduação. Quanto ao acesso dos estudantes indígenas no ensino superior, a partir da Lei nº 12.711/2012 (Lei de Cotas), testemunhamos mudanças no perfil da comunidade discente nas Instituições Federais de Ensino Superior. Grupos sociais historicamente excluídos do acesso à educação superior passam a transitar nas universidades. Indígenas, quilombolas, negros, pessoas com deficiência podem ocupar vagas nos cursos superiores de forma diferenciada, pelo Sistema de Cotas. Essa inserção dos povos indígenas no ensino superior repercute na comunidade acadêmica não indígena, quando provoca debate sobre a (de)colonização dos saberes e processos de troca entre culturas diferentes (interculturalidade).

Segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), mais de um milhão de estudantes cotistas ingressaram em Instituições Federais de Ensino (IFES), no período de 2012 a 2021, atendidos pela Lei de Cotas, conforme quadro 2.


BORGES, C.C.M; GONÇALVES, A.F.; TORRES, M.E.M; ANDRADE, M.O.

Quadro 2 – Quantitativo de ingressos de cotistas nas IFES por ano

ANO QUANTITATIVO 2012 40.954 2013 56.954 2014 85.294 2015 105.873 2016 128.127 2017 139.821 2018 130.320 2019 137.621 2020 131.000 2021 124.895 TOTAL 1.080.566 Elaborado pelas autoras (2023)

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O aumento gradual no quantitativo de ingressantes pelo sistema de Cotas nas IFES traz a reflexão sobre uma universidade mais diversa, com a presença de estudantes de classes pobres, oriundos de grupos étnico-raciais diferentes (pretos, pardos, indígenas), rompendo com a tendência histórica da universidade elitista, predominantemente constituída por estudantes brancos e procedentes de escolas particulares.

Esse cenário reverberou no ingresso de estudantes indígenas nos cursos de graduação da UFPB, de acordo com dados disponíveis no site da instituição3, traduzidos no quadro 3.

Quadro 3 – Quantitativo de ingressos de indígenas na UFPB por ano

ANO QUANTITATIVO

2012 49

2013 31

2014 33

2015 37

2016 48

2017 63

2018 51

2019 50

2020 54

2021 70

TOTAL 486


Elaborado pelas autoras (2023)

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3 Dados divulgados no site https://metabase.ufpb.br/public/dashboard/fb949a9e-8cfe-4a20-bdf1- dec01acfad7d


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Cosmovisões e territórios: Abya Yala como Território Epistêmico

A trajetória dos povos indígenas na universidade se reflete no debate acerca da

(in)visibilidade das suas identidades culturais no espaço universitário e afeta diretamente a instituição em todas as suas dimensões (ensino, pesquisa e extensão), suscitando i ndagações no sentido de perceber qual o significado da presença indígena. A diversidade sociocultural tem sido reconhecida pela comunidade acadêmica? Como está se dando o processo de interculturalidade no ensino superior: quais os desafios e receptividade aos conhecimentos originários?

As políticas de inclusão e permanência devem promover acesso com equidade e permanência com dignidade, favorecendo uma escuta efetiva e afetiva dos saberes e conhecimentos. Neste sentido, as licenciaturas indígenas representam um projeto político pedagógico que contempla o acolhimento da cultura indígena no âmbito do ensino superior, considerando suas especificidades culturais.

Se considerarmos os editais do ingresso regular nas universidades pode-se perceber que, a rigor, não há necessariamente um projeto político que pretenda quebrar paradigmas epistemológicos científicos a partir da concepção intercultural dos campos do saber. Preocupações desse tipo estarão mais presentes nos projetos de

criação de cursos diferenciados com estrutura curricular e pedagógica

específicas, como as licenciaturas interculturais ou indígenas, ou nos debates e projetos em torno das universidades indígenas, em que haverá maior preocupação com a inserção indiferenciada e a não assimilação, incorporando em seus projetos termos (como diálogo, articulação, intercâmbio) que deem conta desse esforço de produzir interculturalidade com esta inserção e de produzir relação entre diferentes ordens epistemológicas de conhecimentos científicos e de conhecimentos indígenas ou tradicionais. Nos projetos para implementação de cursos de licenciatura indígena propostos em torno do princípio da interculturalidade tais conceitos estarão mais presentes, geralmente subtendendo -

se trocas de saberes científicos e tradicionais nos projetos político- pedagógicos, tendo a valorização dos saberes indígenas como um importante bandeira, sem excluir o interesse pelo aprendizado dos saberes científicos (Souza, 2019, p. 85).

Ações, projetos e programas são desenvolvidos nas Instituições Federais de Ensino Superior, direcionados à permanência dos estudantes indígenas nos cursos de graduação das universidades federais. Repercutem essencialmente nas questões de ordem material da permanência, através da concessão de auxílios e bolsas, sem uma preocupação formal com as questões imateriais, de promoção da interculturalidade e decolonialidade de saberes.

Programa Bolsa Permanência (PBP)

Com foco na permanência dos estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica, foram criados, pelo governo federal, o Programa Bolsa Permanência (PBP) e


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o Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES). O Programa Bolsa Permanência, regulamentado pela portaria nº 389, de 9 de maio de 2013, “[...]tem por finalidade minimizar as desigualdades sociais, étnico-raciais e viabilizar a permanência, no curso de graduação, de estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica, em especial os indígenas e quilombolas” (Brasil, 2013), através da concessão de auxílio financeiro.

Em 2013, quando do lançamento do Programa Bolsa Permanência, o estudante de engenharia florestal, Poran Potiguara, da Universidade de Brasília (UnB) celebrou sua inclusão no programa como o milésimo indígena a conseguir a bolsa e afirmou: “Depois que me formar, quero dar aula aos jovens do meu povo.” Procedente da Paraíba, o estudante é da etnia potiguara e destacou que os estudantes indígenas sentem as diferenças da vida na a ldeia e nas cidades.

Poran reforçou a importância do programa lançado como uma continuação das conquistas dos indígenas pela educação superior. As primeiras foram as ações de ampliação do acesso como as cotas e os convênios. Para ele, “O mais difícil é a permanência, com o modelo que temos hoje, nós temos gastos com livros, alimentação, moradia e transporte. Essa bolsa vem nos auxiliar porque algumas vezes você não vem para as aulas porque tem que escolher entre o transporte ou o que comer”, afirmou o estudante. Em matéria disponível no site do MEC4, Poran ressaltou que a primeira dificuldade é a adaptação, a universidade tem um modelo elitista e você se sente desprotegido fora de sua origem. A segunda dificuldade é a do conhecimento, pois, segundo o estudante, “não que o indígena não tenha capacidade, mas sofremos o mesmo que todos os estudantes de escolas públicas”.

FOTO 1 - Estudantes indígenas no lançamento do Programa Bolsa Permanência/2013


____________ Fonte: Site do MEC, 2023


4 Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=12498&Itemid=820


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Cosmovisões e territórios: Abya Yala como Território Epistêmico

O programa é gerido (seleção e acompanhamento dos beneficiados) pelas Instituições

Federais de Ensino, no entanto não há repasse de verba para o órgão. A execução do programa é realizada nas universidades federais, que são supervisionadas pela Secretaria de Educação Superior (SESu) e, nos institutos federais, supervisionados pela Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (SETEC) do Ministério da Educação. O recurso é repassado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) diretamente aos estudantes de graduação por meio de um cartão de benefício, no valor de R$ 1.400,00 para estudantes indígenas e quilombolas. Contribui para cobrir as despesas de manutenção e dos estudos nas universidades federais de estudantes que, na maioria das vezes, estão muito distantes das comunidades indígenas. A presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana, assinala que:

O Bolsa Permanência é uma conquista importante dos povos indígenas. É fruto de

um esforço coletivo e da luta dos povos indígenas que constantemente vêm colocando na mesa suas demandas por formação de profissionais indígenas em todas

as áreas do conhecimento nas nossas universidades (Funai, 2023).

Segundo dados do MEC, em 2019 foram alocados R$ 139,5 milhões para execução das ações do programa, sendo 22.017 estudantes atendidos pelo programa nesse ano, dos quais 8.474 indígenas, 6.385 quilombolas e 7.158 em situação de vulnerabilidade socioeconômica; 188.413 bolsas concedidas e 4.000 novas vagas abertas no programa no ano referido. Na UFPB, 255 estudantes indígenas são beneficiados com a Bolsa Permanência5. No período de 2013 a 2021, o percentual de estudantes indígenas bolsistas do PBP que concluíram o curso foi de 73%, o que revela o quão fundamental é o programa citado para a permanência dos estudantes indígenas na graduação. A intenção do programa volta-se para as condições materiais da permanência dos estudantes, não havendo preocupação em dar visibilidade à cultura indígena no espaço acadêmico.

Ingresso e permanência de estudantes indígenas na UFPB

Na Universidade Federal da Paraíba, segundo dados fornecidos pela Superintendência de Tecnologia da Informática (STI), de 2013 a 2020, houve o ingresso de 149 estudantes que se autodeclaram indígenas. Neste aspecto, a Lei de Cotas (Lei n° 12.711/2012) repr esentou um marco na democratização do ensino superior para grupos sociais historicamente excluídos

____________

5 Segundo dados fornecidos pela PRAPE, em 19 de setembro de 2023.


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do direito à educação superior no Brasil; entre eles, os povos indígenas. Os dados constantes no Plano de Desenvolvimento Institucional (2019-2023) indicam que a UFPB mantém o percentual de cotistas em 50% em conformidade com a legislação em vigor (Lei de Cotas). Em 2022, das 7.625 vagas disponibilizadas no Sisu pela UFPB, 3.818 foram destinadas aos cotistas, sendo 2.347 dessas reservadas aos estudantes pretos, pardos ou indígenas, consideradas as demais condições para cada grupo (renda per capita e pessoa com deficiência).

Para além da concessão da Bolsa Permanência, outras ações e iniciativas vem sendo executadas na UFPB, direcionadas aos estudantes indígenas, dentre as quais a execução do Programa de Educação Tutorial (PET) Indígena, com funcionamento no campus de Rio Tinto (Campus IV), no litoral norte do Estado.

Em 2022, o grupo PET Indígena foi convidado pela coordenação do Centro de Ciências Aplicadas e Educação (CCAE)6 para uma recepção aos servidores, que ocorreu no campus de Mamanguape. Em 2023, o grupo realizou a I Mostra PET Indígena, com apresentação de uma Retrospectiva das atividades realizadas, dentre elas a recepção aos feras no campus IV, projeto “Os potiguara pelos potiguara”, oficina “Confecção de cocar indígena Potiguara”, Seminários Temáticos , registros de convidados que se fizeram presentes nas reuniões do grupo, oficina de produção de beiju, acolhimento dos servidores, exposição dos registros do dia 19 de abril de 2023 na aldeia São Francisco, PET ENEM, incentivando o jovem indígena a ingressar na universidade e exposição dos projetos de pesquisa desenvolvidos pelo grupo.

FOTO 2 – Dança do Toré na I Mostra PET Indígena/UFPB


____________ Fonte: Autora (2023)


6 O Centro de Ciências Aplicadas e Educação, único que existe no Campus IV, subdivide-se em duas unidades, localizadas nos municípios de Rio Tinto e Mamanguape, e oferece onze cursos de graduação, três mestrados acadêmicos (sendo um profissional) e duas esp ecializações.


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Cosmovisões e territórios: Abya Yala como Território Epistêmico

FOTO 3 – Exposição de artesanato Potiguara na I Mostra PET Indígena/UFPB


Fonte: Autora (2023)

PET Indígena

Criado pela Lei nº 11.180, de 23 de setembro de 2005, e regulamentado pelas Portarias nº 3.385/2005, nº 1.632/2006 e nº 1.046/2007, o Programa Educação Tutorial (PET) destina - se a fomentar grupos de aprendizagem tutorial mediante a concessão de bolsas de iniciação científica a estudantes de graduação e bolsas de tutoria a professores-tutores de grupos do PET. É da competência da Diretoria de Políticas e Programas de Educação Superior, no âmbito da Coordenação Geral de Relações Estudantis (Dippes/CGRE). Visa à melhoria do ensino, formação acadêmica, atuação coletiva e planejamento de atividades, além de preparar os alunos para o exercício profissional de forma crítica e ética.

É desenvolvido por grupos de estudantes, com tutoria de um docente, organizado a partir de formações em nível de graduação nas Instituições de Ensino Superior do país e orientado pelo princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão e da educação tutorial. O grupo PET, uma vez criado, mantém suas atividades por tempo indeterminado. No entanto, os seus membros possuem um tempo máximo de vínculo: ao bolsista de graduação é permitida a permanência até a conclusão da sua graduação e, ao tutor, por um período de, no máximo, seis anos, desde que obedecidas as normas do Programa. Atualmente o PET conta com 842 grupos distribuídos entre 121 Instituições de Ensino Superior (Brasil, 2023)

Na UFPB, foi instituído pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes), no ano de 1979, com a denominação “Programa Especial de Treinamento”. Posteriormente, no final de 1999, o programa teve sua gestão repassada ao Ministério da


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Educação e Cultura (MEC), passando a ser identificado como Programa de Educação Tutorial no ano de 2004. O PET Indígena funciona desde 2010 na UFPB, sob a tutoria de um professor e conta com a participação de 14 estudantes indígenas (12 bolsistas e 2 volu ntários). Denomina-se PET Indígena Potiguara – o Acesso e a Permanência do Universitário Indígena na Academia.

Encontro Unificado da UFPB

Em 2023, o grupo PET Indígena e alguns estudantes indígenas egressos da UFPB estiveram presentes na XXIV edição do Encontro de Iniciação à Docência (ENID) da instituição, que ocorreu no campus de Rio Tinto. Foi a primeira participação do grupo nesse evento, que ocorre anualmente. “Sentimos falta dos indígenas que deveriam estar aqui”, ressaltou uma estudante indígena, presente no evento, revelando a preocupação com uma luta coletiva do movimento estudantil indígena na universidade. É preciso “colocar a UFPB na aldeia”, alerta outra estudante indígena do curso de letras, expressando a importância de retornarem para suas aldeias com os conhecimentos adquiridos na academia.

Minicurso sobre Tupi

Em 2022, aconteceu o minicurso “Língua, história e cultura do Tupi Antigo”, que foi ministrado pelo professor Nathan Tuxaua, Alto do Tambá, na Baía da Traição, Litoral No rte paraibano. O público-alvo foi a comunidade acadêmica da UFPB e o curso aconteceu de forma remota, finalizando com 15 participantes. Para celebrar o término do curso, o cacique Nathan convidou a turma para visitar a sua aldeia, Alto do Tambá, localizada no município de Baía da Traição, litoral norte da Paraíba.

Estudantes indígenas na UFPB

Como divulgação parcial dos dados desta pesquisa, serão apresentados relatos de onze participantes, estudantes indígenas egressos da UFPB, que foram previamente cons ultados sobre a disponibilidade em participar da pesquisa. À medida que os estudantes indicavam interesse em contribuir com a pesquisa, era enviado um formulário com perguntas abertas pela plataforma do Google Forms, de onde foi possível obter os relatos contidos neste trabalho. Foi inserido um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido no formulário, de


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modo que os estudantes que responderam ao questionário tiveram acesso ao TCLE e concordaram antes de prosseguir no questionário.

Os estudantes que participaram desta pesquisa concluíram os seguintes cursos: Ciências Contábeis (2), Secretariado Executivo Bilíngue (2), Agronomia (1), Antropologia (1), Ecologia (1) Fonoaudiologia (1), Letras (1), Odontologia (1) e Pedagogia (1). Quanto à conclusão do curso, os participantes da pesquisa ingressaram na UFPB entre os anos de 2011 e 2016, tendo concluído o curso em 2016 (3), 2019 (3), 2020 (1), 2021 (3) e 2022 (1).

Dos onze participantes, oito ingressaram na UFPB pelo Sistema de Cotas e três pela Ampla Concorrência, tendo sido na sua totalidade beneficiários do Programa Bolsa Permanência. São estudantes da etnia Potiguara, povo indígena que ocupa o litoral norte do estado da Paraíba, distribuídos em 32 aldeias localizadas nos municípios de Baía da Traição, Marcação e Rio Tinto. Com relação à experiência com o Programa Bolsa Permanência, os participantes avaliaram de forma positiva o recebimento da bolsa, ressaltando a importância do programa para a permanência na universidade.

Nos relatos estão presentes aspectos da trajetória acadêmica relevantes para a discussão sobre a presença dos estudantes indígenas no ensino superior e serão divididos em duas categorias: avaliação sobre o Programa Bolsa Permanência e experiências como estudante indígena na UFPB, essas contendo os relatos sobre a convivência com docentes e discentes não indígenas. Desta forma, busca-se uma análise sobre a permanência dos estudantes indígenas quanto à questão material (bolsa permanência) e imaterial (relação com a comunidade acadêmica).

Avaliação sobre o Programa Bolsa Permanência

Os relatos expressam a importância do Programa Bolsa Permanência no subsídio de despesas com transporte, alimentação, dentre outras pertinentes direta ou indiretamente à condição de estudante. Ressaltamos que os estudantes indígenas são potiguara, sendo a maioria residente nas aldeias dos municípios de Baía da Traição, Rio Tinto e Mamanguape, tendo cursado a graduação no campus IV da UFPB (Rio Tinto e Mamanguape). No entanto, alguns cursaram a graduação no campus I da UFPB, no município de João Pessoa e Santa Rita, distante cerca de 100 km do litoral norte (Baía da Traição).

Quanto ao processo de cadastramento e acesso ao Programa Bolsa Permanência, há divergências nas avaliações dos estudantes. Alguns classificam com um processo


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burocrático7, moroso, fazendo referência às exigências documentais para cadastro no Sistema de Gestão da Bolsa Permanência (SISBP).

“[...] Apesar da burocracia das exigências de documentação, ela foi fundamental para minha trajetória acadêmica” (Participante 1).

“Atendeu sim, só que para conseguir foi extremamente burocrático” (Participante 2).

“Foi difícil o processo pra conseguir muita burocracia, tive que gastar o que não tinha pra ir pra João Pessoa” (Participante 3).

“Processo de muita luta, e dificultoso acesso. Foi preciso muita mobilização para poder ter acesso a bolsa. Quando comecei estudava ciência da computação, porém estava com CRA baixo, por vários motivos, um deles era falta de recurso. Faltei muitas aulas porque não tinha como pagar passagens o mês inteiro ou se alimentar, nessa época, não existia RU [restaurante universitário], e nem um auxílio no campus IV, só tive acesso a partir do terceiro período. Aí por está muito atrasado nas

disciplinas, preferi mudar de curso, fiz o Enem e passei para pedagogia em Mamanguape. Recebi a bolsa permanência até metade do tempo na pedagogia, porque somava com o tempo que já tinha recebido nos últimos período que fiquei em computação. E o resto do curso, estudei sem a bolsa, pois tinha sido cortada” (Participante 4).

O corte da bolsa a que se refere o interlocutor 3 deu-se em virtude da legislação específica do PBP (Portaria MEC nº 389/2013) que define o tempo máximo de permanência no curso para concessão da bolsa permanência. É condição para recebimento do benefício que o estudante não ultrapasse dois semestres do tempo regulamentar do curso de graduação em que está matriculado para se diplomar.

Outros estudantes tiveram experiência mais positivas quanto ao processo de acesso ao programa.

“Fui beneficiário da bolsa. Processo de cadastramento seguiu o rito normal, sem

complicações, logo após cadastro esperar homologação e liberação do valor a receber, me ajudou muito durante o período acadêmico, pois como tinha que me

deslocar até a capital os gastos eram grandes, me ajudou em todos os sentidos, seja na compra de alimentação, no transporte, no aluguel, na compra de materiais e livros

pra estudo entre outros” (Participante 5).

“A bolsa permanência foi de extrema importância para mim. Me possibilitou

concluir o curso sem atrasos por motivos de trabalhos extras para auferir renda. O processo de cadastramento foi sem burocracia, apenas comprovando a condição de

indígena” (Participante 6).

“A bolsa foi de grande importância pra o término da minha graduação. Logo, não precisei trabalhar e me dedicar apenas a graduação” (Participante 7).

Fase posterior dessa pesquisa aprofundará as razões das divergências encontradas nos relatos quanto ao cadastro e acesso ao Programa Bolsa Permanência pelos estudantes. Em

____________

7 Em fase posterior desta pesquisa, será realizada uma análise sobre a categoria “burocracia”, a fim de

compreender qual é o seu significado para os estudantes indígenas da UFPB.


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diálogo com estudantes bolsistas do PET Indígena (alguns bolsistas do Bolsa Permanência), há queixas quanto à comunicação com a PRAPE (responsável pela gestão do programa na UFPB), divulgação dos dados relativos ao processo seletivo, esclarecimentos de dúvidas surgidas no processo de inscrição na seleção e cadastro no SISPB, particularmente no tocante à documentação exigida.

Experiências como estudante indígena na UFPB

“[...] ocupar o espaço acadêmico e tantos outros para quebrar esse estereótipo do indígena de 1500, é nos apresentar como somos dentro de nossas realidades contadas e apresentadas por nós mesmos [...] nos leva a uma outra dimensão, nos proporciona aprender coisas novas e nos capacita para estar no mercado de trabalho[...] tendo sempre a responsabilidade de não esquecer das nossas origens. De onde viemos, quem somos e o que podemos fazer para ajudar o nosso Povo” (Participante 4).

A percepção, neste caso, não é na direção de um discurso integracionista ou multicultural, mas sim de ações voltadas à interculturalidade; visão de respeito à diversidade, concessão de um espaço afirmativo da cultura dos povos tradicionais no meio acadêmic o. Conforme Paulo Freire (1987) “não há saber mais, nem saber menos, há saberes diferentes”, de acordo com a realidade de cada sociedade, considerando as questões temporais, espaciais e culturais.

A dimensão da cultura, da identidade e das tradições estão presentes nos relatos dos estudantes, expressas na necessidade de, ao entrar no mundo acadêmico, ter de levar sua história enquanto indígena, levar a aldeia para a universidade:

“[...]nos apresentar como somos dentro de nossas realidades contadas e apresentadas por nós mesmos” (Participante 1).

“[...]temos que estar em todos os lugares nos afirmando como somos” (Participante 7).

Essas falas expressam a posição dos estudantes indígenas para levar e reafirmar sua cultura, identidades, visões e cosmovisões. O estudante Bruno Rodrigues da Silva, egresso do curso de ecologia (2022) e diretor do Departamento de Gestão Ambiente, Territorial e Promoção ao Bem Viver Indígena, da Secretaria de Gestão Ambiental e Territorial Indígena no Ministério dos Povos Indígenas, compreende o espaço acadêmico como local de protagonizar uma história.

[...] o conhecimento, na academia, ele é apenas sintetizado. Você traz na base, você traz as comunidades. O conhecimento é feito a partir das comunidades, muitas vezes


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a partir de um conhecimento empírico que é relacionado com o estudante. Então, pra nós é ocupar o espaço. Esse é o ponto positivo. Porque você começa a ingressar nas

universidades, você começa a ocupar os espaços e é isso que incomoda a elite. A universidade foi pensada para a elite. Meu trabalho não é um trabalho para ser feito

para a academia, o trabalho tem que ser voltado para as comunidades. Reivindicam também o protagonismo, desejam contar a sua própria história. Têm a consciência

histórica do papel central que ocupam dentro das aldeias e da sociedade[...] eu acho que já tá no momento desses avanços todos que a gente tem entrado nas

universidades, de a gente começar a reescrever nossa própria história. A história sempre foi escrita na ótica de um branco, de alguém que é colonizador, que chegou e

que escreve à sua maneira”

Considerar, a partir de uma perspectiva decolonial, o espaço acadêmico como local de lutas e disputas epistêmicas faz compreender que existem outros saberes não científicos, silenciados pela invisibilidade da diversidade cultural étnico-racial existente na universidade.

[...]são sujeitos coletivos, fortemente vinculados às suas comunidades de origem e ao mesmo tempo passam a fazer parte do sistema acadêmico, fortemente homogeneizador, competitivo, monocultural, monoepistêmico e monolíngue. No ambiente acadêmico, suas ontologias, seus conhecimentos e suas línguas não são sequer imaginados, pois para a maioria dos docentes dos cursos de graduação e pós - graduação essas dimensões no trato com os estudantes indígenas não são consideradas (Herbetta; Nazareno, 2020, p. 72)

.

A formação de universidades interculturais e cursos de formação superior para indígenas em universidades convencionais representa uma via de reconhecimento e valorização da cultura indígena. Porém, ainda é um grande desafio para a dinâmica universitária, pautada no academicismo e na reprodução monocultural da razão científica, fundamentada na organização, produção e reprodução de um saber único, individualista e, geralmente, a serviço do mercado. Baniwa pontua que:

Estes povos desejam formação superior em seus termos, ou seja, para atender a suas demandas, realidades, projetos e filosofias de vida [...] O desafio é como esta instituição superior formadora pode possibilitar a coexistência lado a lado e a circulação, interação, aplicação e reconhecimento mútuo entre distintos saberes, pautados em distintas bases cosmológicas, filosóficas e epistemológicas (Baniwa, 2019, p. 67).

A fala de Baniwa nos remete aos desafios da interculturalidade no âmbito das instituições de ensino superior. Em termos conceituais e práticos significa “entre culturas” num sentido amplo do termo, que é o de convivência, influência e intercâmbio em condições de igualdade, não apenas coexistência. Precisa interromper a ideia de “cultura dominante” e “cultura subordinada”, de modo que o “outro não só tenha reconhecimento, mas protagonismo”. Nesse sentido, a interculturalidade é uma tarefa política, gerada em uma


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instituição educacional engajada, livre do racismo epistêmico e estrutural, perpassada pela decolonialidade.

[...]a interculturalidade aponta e representa processos de construção de um conhecimento outro, de uma prática política outra, de um poder social (e estatal) outro e de uma sociedade outra; uma outra forma de pensamento relacionada com e contra a modernidade/colonialidade, e um paradigma outro, que é pensado por meio da práxis política (Walsh, 2019, p. 9).

Walsh (2019), Mignolo (2017) e Muyolema (2001) argumentam que a interculturalidade representa uma configuração conceitual com ruptura epistêmica, baseada em experiências de dominação, exploração e marginalização, construídas como consequência da modernidade/colonialidade, que constrói resposta social, política, ética e epistêmica a partir de um lugar de enunciação indígena, um “lugar político”. Compreende o sujeito da enunciação e um projeto político, cultual e epistêmico possível num processo de decolonização do poder e saber epistêmico. Walsh considera importante perceber o movimento entre os conceitos de interculturalidade e colonialidade, em que há afetação mútua.

O que é importante destacar aqui não é somente o que o conceito de diferença colonial oferece para a interculturalidade, mas o que a prática da interculturalidade acrescenta aos conceitos de “diferença colonial” e “colonialidade do poder”. Em suma, a interculturalidade é um paradigma

“outro”, que questiona e modifica a colonialidade do poder, enquanto, ao mesmo tempo, torna visível a diferença colonial. Ao agregar uma dimensão epistemológica “outra” a esse conceito – uma dimensão concebida na relação com e através de verdadeiras experiências de subordinação promulgadas pela colonialidade – a interculturalidade oferece um caminho para se pensar a partir

da diferença e através da descolonização e da construção e constituição de uma sociedade radicalmente distinta. O fato de que esse pensamento não transcenda simplesmente a diferença colonial, mas que a visibilize e rearticule em novas políticas da subjetividade e de uma diferença lógica, torna-o crítico, pois modifica o presente da colonialidade do poder e do sistema- mundo moderno/colonial (Walsh, 2019, p. 27).

Esse debate reverbera na análise da presença dos estudantes indígenas na universidade, no compartilhamento de suas culturas, (cosmo)visões, formas de ser da e pertencer à academia. Uma visão de universidade como uma pluriversidade a coloca (estrutura e organização) num lugar de dialogar com “outras” (ou todas as) culturas. Segundo a visão de Mignolo (2003), o caráter “pluritópico e dialógico” contrasta com um agir “monotópico e inclusivo” encontrado no espaço acadêmico e revelado pelas narrativas dos estudantes. O enfoque está na inclusão dos estudantes indígenas, porém sem um diálogo permanente com seus saberes e culturas. Para Mignolo (2000, p. 69), “essa reformulação do conhecimento, em


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diálogo com outros conhecimentos, abre uma nova perspectiva de uma ordem geopolítica de produção do conh ecimento”.

Decolonizar envolve prática, um fazer decolonial (Mignolo, 2008). Ballestrin (2013, p. 105) considera a decolonialidade como um “movimento de resistência teórico e prático, político e epistemológico, à lógica da modernidade/colonialidade”. Walsh defende a decoloniliade como uma forma de vida, em que viver o decolonial é refletir na prática cotidiana a busca de novas formas de (re)existências, fazer diferente entre gretas e fissuras na sociedade.

Convivência com d ocentes

A maior parte dos relatos dos estudantes aponta para uma postura de respeito por parte dos docentes quanto à presença dos estudantes indígenas no espaço universitário. No entanto, a postura de respeito não é suficiente para fazer do espaço universitário um local de vivências interculturais, com relação de trocas de saberes e culturas, rompendo com a dominação de um saber hegemônico.

“Tive um ótimo relacionamento com todos os professores, até os que não eram muito de dar abertura pra conversar sobre minha história, sempre respeitou quem eu era lá dentro” (Participante 4).

“Foi normal ele(docente) não se importava com minha etnia” (Participante 7).

O entendimento de que sua cultura (indígena) “não importa”, expressa no depoimento do participante 7, revela o lugar que a outra cultura (que não seja a do branco) deve ocupar no espaço universitário. Provoca uma reflexão sobre a necessidade de avançar no processo de decolonização. Segundo Mignolo (2008, p. 97):

[...]num contexto decolonial é necessário aprender a desaprender, para reaprender a

pensar a conectar com o mundo, o que não significa abandonar conhecimentos construídos ou formar „novos resumos universais‟, mas aprender a pensar fora da

estrutura na qual fomos treinados[...] Pensar a formação de professores num diálogo com as discussões decoloniais pode trazer possibilidades para uma educação plural que reconheça outras formas de ser e pensar, assim, possibilitar a ressignificação de experiências, combater as desigualdades e contribuir para a formação de uma sociedade humanizada.

A formação universitária é predominantemente alicerçada numa perspectiva presente nos processos sociais dos países colonizados pelos europeus, definida como eurocentrismo. Segundo Quijano (2005), o eurocentrismo é a racionalidade específica do poder mundial, baseado na dominação colonial, que tem como fundamento a classificação social da


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população de acordo com a ideia de raça. A ideia de raça coloca (motivada por razões biológicas) alguns em situação de inferioridade (conquistados/dominados) em relação a outros (conquistadores/ dominadores). “Essa ideia foi assumida pelos conquistadores como o principal elemento constitutivo, fundacional, das relações de dominação que a conquista exigia” (Quijano, 2005, p. 107). Relação de poder que gerou, nas Américas, identidades sociais novas como os indígenas, negros e mestiços:

[...] na medida em que as relações sociais que se estavam configurando eram relações de dominação, tais identidades foram associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais correspondentes, como constitutivas delas, e, consequentemente, ao padrão de dominação que se impunha[...] raça e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificação social básica da população

(Quijano, 2005, p. 107).

Na América, a ideia de raça foi uma maneira de outorgar legitimidade às relações de dominação imposta pela conquista. O lugar dos povos conquistados e dominados era o da inferioridade, inclusive de suas descobertas mentais e culturais, com definição de papéis na estrutura de poder da nova sociedade. “[...] como parte do novo padrão mundial, a Europa também concentrou sob sua hegemonia o controle de todas as formas de controle da subjetividade, da cultura e, em especial, do conhecimento, da produção do conhecimento” (Quijano, 2005, p. 110). Esse processo de dominação entre a Europa e demais regiões do mundo gerou novas identidades geoculturais, a partir de algumas operações, dentre as quais a repressão das formas de produção de conhecimento dos colonizados, seus padrões de sentidos, universo simbólico, padrões de expressão e de objetivação da subjetividade. Outra medida adotada foi a obrigação imposta aos colonizados de “[...] aprender parcialmente a cultura dos dominadores em tudo que fosse útil para a reprodução da dominação, seja no campo da atividade material, tecnológica, como da subjetiva, especialmente religiosa” (Quijano, 2005, p. 111).

Aplicada de maneira específica à experiência latino-americana, a perspectiva eurocêntrica de conhecimento opera como um espelho que distorce o que reflete. Quer dizer, a imagem que encontramos nesse espelho não é de todo quimérica, já que possuímos tantos e tão importantes traços históricos europeus em tantos aspectos, materiais e intersubjetivos. Mas, ao mesmo tempo, somos tão profundamente distintos. Daí que quando olhamos nosso espelho eurocêntrico, a imagem que vemos seja necessariamente parcial e distorcida (Quijano, 2005, p. 129).

Para o autor, “seguimos sendo o que não somos” (Quijano, 2005, p. 130), a partir do momento que essa imagem não é capaz de nos identificar coerentemente com o que somos e influencia nossa forma de ser e agir. O eurocentrismo opera numa lógica estruturante de poder


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que subalterniza um grupo em favor de outro (europeu). As consequências são resoluções de problemas sociais de forma parcial e distorcida, pois amparadas numa imagem que não reproduz os problemas inerentes a nossa sociedade, nem considera a identidade cultural do povo, particularmente o latino- americano.

Convivência com discentes não indígenas

Quando indagados sobre a convivência com estudantes não indígenas, as experiências se contrapõem às relações com os docentes. Revelam uma convivência difícil, com traços de preconceitos e discriminação, que impedem um diálogo simétrico, intercultural. A partir do entendimento de que a universidade é parte de uma sociedade pautada em princípios predominantemente racistas, que geram discriminação e violências (simbólicas ou não), as posturas dos estudantes não indígenas reproduzem essa dinâmica social, gestada numa forma de conceber o mundo a partir de uma única cultura, a do homem branco.

“No início foi bem difícil, os olhares de indiferença corroíam por dentro em ver o preconceito, o desconhecimento da nossa cultura, quando ia com as pinturas em meu

corpo e as pessoas me perguntavam „O que é isso‟ sempre tinha que estar relatando o significado para eles” (Participante 8).

Alguns estudantes indígenas relatam falas preconceituosas por parte dos estudantes não indígenas, que os consideravam “menos indígenas” pelo fato de não falarem uma língua indígena. Outros escutavam frases como: “Você anda pelado na sua tribo?” “Sua casa é normal”, “só conseguiu entrar no curso por causa das cotas” “Como faz pra ser índio e ganhar essa bolsa” “Mim não ser índio”, demonstrando ironia e falta de respeito pela cultura indígena.

Para Ribeiro e Escobar (2009 apud Beltrão, 2018, p. 276) o resultado da movimentação em busca da transformação pode ser a possibilidade de aceitar a diversidade epistêmica como um projeto de universidade, abarcando o que poderia ser chamado de diversalidade. O neologismo refletiria a tensão constitutiva de uma universalidade que contempla a diversidade e rejeita as amarras coloniais.

Considerações finais

A presença dos estudantes indígenas no ensino superior diz muito sobre um tempo de lutas e conquistas, desafios e possibilidades, resistência e resiliência. A comunidade


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acadêmica é convidada a repensar suas posturas ideológicas e práticas com relação aos grupos étnico-raciais em interação no espaço universitário. A diversidade cultural incide na (des)construção das consciências de todos os envolvidos no processo formativo e repercute na dinâmica da convivência dos estudantes para além da universidade, nas suas comunidades de origem e nos espaços a serem ocupados enquanto profissionais.

Ser estudante indígena universitário representa um avanço no processo de universalizar a universidade com diferentes saberes e culturas, ainda que sob o prisma de uma epistemologia dominante. Ocupar esse espaço diz muito à sociedade contemporânea sobre quebra de paradigmas, superação de preconceitos e alteridade, ainda que estar incluído não signifique necessariamente estar dentro dos processos que se estabelecem na universidade. Revela que o pertencimento étnico não é determinado por uma limitação territorial ou representação social; acompanha seu povo, ainda que permaneça silenciado pela voz e presença dominante da cultura hegemônica: a branca.

Olhar para a universidade hoje requer entender que é necessário não somente diversificar o perfil dos seus estudantes, mas envolver sua cultura num movimento de troca entre saberes construídos para além do espaço acadêmico. Romper com uma ideologia que favorece o preconceito, a discriminação e exclusão de outras culturas na universidade é tarefa de toda a comunidade acadêmica. O Programa Bolsa Permanência, o grupo PET Indígena, o minicurso sobre Tupi e a participação dos estudantes indígenas em eventos ocorridos na UFPB (XXIV ENID e recepção aos servidores e estudantes do campus IV) representam uma via de possibilidade e reconhecimento da presença indígena no ensino superior, seja subsidiando financeiramente os estudantes ou sinalizando para a construção de uma interculturalidade na universidade. Permanência com visibilidade e alteridade, com reconhecimento cultural e social, que provoca questionamentos sobre a reprodução unilateral da cultura branca num espaço agora diverso e plural.

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Recebido em: 06/04/2023 Aceito em: 27/09/2023