Revista de Ciências Sociais - Política & Trabalho

Programa de Pós-Graduação em Sociologia

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Universidade Federal da Paraíba

Publicação semestral do PPGS/UFPB

51 - Julho/Dezembro de 2019

ISSN 1517-5901 (online)

CONSELHO EDITORIAL

César Barreira (Brasil), Christian Azais (França), Cynthia Lins Hamlin (Brasil), Edgard Afonso Malagodi (Brasil), Emília Araújo (Portugal), Howard Caygill (Reino Unido), Frédéric Vandenberghe (Brasil), Jacob Carlos Lima (Brasil), Joanildo A. Burity (Brasil), José Arlindo Soares (Brasil), Julie Antoinette Cavignac (Brasil), Lee Jonathan Pegler (Holanda), Marie-France Garcia-Parpet (França), Paulo Henrique Martins (Brasil), Regina Novais (Brasil), Rubens Pinto Lyra (Brasil), Sandra J. Stoll (Brasil), Theophilos Rifiotis (Brasil), Vera da Silva Telles (Brasil), Zhou Zhiwei (China).

EDITORIA

Roberto Véras de Oliveira, UFPB, Brasil

Miqueli Michetti, UFPB, Brasil

COMITÊ EDITORIAL

Roberto Véras de Oliveira, UFPB, Brasil

Miqueli Michetti, UFPB, Brasil

Assessoria Editorial

Ana Carolina Costa Porto (Bolsista PNPD)

REVISORA

Ana Carolina Costa Porto (Bolsista PNPD)

DESIGN GRÁFICO

Fotografia de capa: Mirella Brito

Projeto gráfico de capa: Helton Nóbrega

Diagramação: Brunos Gomes

A apresentação de colaborações e os pedidos de permuta e/ou compra devem ser encaminhados ao PPGS/UFPB:

Universidade Federal da Paraíba – Programa de Pós-Graduação em Sociologia

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – Bloco V – Campus I – Cidade Universitária CEP 58.051-970 – João Pessoa – Paraíba – Brasil – Telefax (83) 3216 7204 - E-mail: politicaetrabalho@gmail.com

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais

Publicação do Programa de Pós-Graduação em Sociologia

da Universidade Federal da Paraíba

(Campus I - João Pessoa)

Ano XXXVI

Número 51

Julho/Dezembro de 2019

ISSN 1517-5901 (online)

Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFPB

indexação

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Biblioteca Central - Campus I - Universidade Federal da Paraíba

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

Diretora: Mônica Nóbrega

Vice-Diretor: Rodrigo Freire

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA

Coordenadora: Simone Magalhães Brito

Vice-Coordenador: Rogério de Souza Medeiros

Revista de Ciências Sociais - Política & Trabalho está licenciada

com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional.

Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte PPGS/UFPB.

R449 Revista Política e Trabalho / Programa de Pós-Graduação em

Sociologia – Vol. 1, Ano 36, n. 51 (jul./dez. 2019). João Pessoa, 2019.

205p.

1517-5901 (online)-1. Ciências Sociais. 2. Política. 3. Trabalho.

UFPB/BC CDU: 32

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

Reitora: Margareth Diniz

Vice-Reitor: Eduardo Rabenhorst

Pró-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa: Isaac Almeida de Medeiros

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SUMÁRIO

Editorial

DOSSIÊ
PRÁTICAS DA CULTURA ESCRITA:
SUPORTES, TEXTUALIDADES, IMAGINÁRIOS

AS MÚLTIPLAS FACES DO LIVRO E DA CULTURA ESCRITA | Maria Celeste Mira, Andréa Borges Leão

MUDANÇAS NO UNIVERSO DOS QUADRINHOS: textos, materialidades e práticas culturais | Marco Antonio de Almeida

O LIVRO E SUAS REPRESENTAÇÕES NOS CONTEXTOS ARTÍSTICOS CONTEMPORÂNEOS | Giulia Crippa

“ENTRE O QUE DESEJO SER E OS OUTROS ME FIZERAM”: textualidades literárias e cultura material na Casa Fernando Pessoa, Lisboa, Portugal |Clovis Carvalho Britto

A NEGAÇÃO DO IMAGINÁRIO: notas sobre algumas traduções do Livro das Mil e uma Noites | Mariza Martins Furquim Werneck

ARTIGOS

AS STARTUPS NA PERSPECTIVA DAS CADEIAS GLOBAIS DE VALOR: financeirização dos trabalhos de inovação e a reinvenção do salário por peça | Simone Wolff

TRABALHO PRECÁRIO: precariado, vidas precárias e processos de resistências | Kelen Christina Leite

JUVENTUDE, TRABALHO INFORMAL E SAÚDE MENTAL | Marina Batista Chaves Azevedo de Souza, Isabela Aparecida de Oliveira Lussi

O “TRABALHO FORMAL”/NEGÓCIOS ENTRE OS CIGANOS – encontros e desencontros | Maria Patrícia Lopes Goldfarb, José Aclecio Dantas

OS PARÂMETROS ESTRUTURAIS E OS DESEQUILÍBRIOS DE PODER QUE RECHAÇAM AS PRESCRIÇÕES DE DESENVOLVIMENTO HUMANO DAS NAÇÕES UNIDAS: uma crítica baseada em Celso Furtado | Maria José de Rezende

RELAÇÃO FAMÍLIAESCOLA: experiência de uma extensão universitária com famílias de baixa renda em escolas da rede pública do município de Mamanguape/PB | Osicleide Lima Bezerra, Ana Paula Taigy Amaral

RESENHA

UMA REVOLUÇÃO EM PERSPECTIVA: uma análise de “Cuba en Revolución: miradas en torno a su sesenta aniversario” | Marcos Antonio da Silva, Gabriel Dourado Rocha

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CONTENTS

Editorial

DOSSIER
IMAGINARIES, TEXTUALITIES AND SUPPORTS OF WRITTEN CULTURE

THE MULTIPLE FACES OF THE BOOK AND THE WRITTEN CULTURE | Maria Celeste Mira, Andréa Borges Leão

CHANGES IN THE COMICS’ UNIVERSE: texts, materialities and cultural practices | Marco Antonio de Almeida

THE BOOK AND ITS REPRESENTATIONS IN CONTEMPORARY ARTISTIC CONTEXTS | Giulia Crippa

“BETWEEN WHAT I WANT TO BE AND OTHERS HAVE DONE TO ME”: literary textualities and material culture in Casa Fernando Pessoa, Lisbon, Portugal | Clovis Carvalho Britto

THE IMAGINARY DENIAL: notes on some translations of One Thousand and One Nights | Mariza Martins Furquim Werneck

ARTICLES

STARTUPS FROM A GLOBAL VALUE CHAINS PERSPECTIVE: financialization of innovation work and the reinvention of piecework wage | Simone Wolff

PRECARIOUS WORK: precarious, precarious lives and resistance processes | Kelen Christina Leite

YOUTH, INFORMAL WORK AND MENTAL HEALTH | Marina Batista Chaves Azevedo de Souza, Isabela Aparecida de Oliveira Lussi

THE “FORMAL JOB”/BUSINESS BETWEEN GYPIES – encounters and mismatches | Maria Patrícia Lopes Goldfarb, José Aclecio Dantas

STRUCTURAL PARAMETERS AND POWER IMBALANCES THAT REJECT THE UNITED NATIONS HUMAN DEVELOPMENT PRESCRIPTIONS: a critique based on Celso Furtado | Maria José de Rezende

FAMILYSCHOOL RELATIONSHIP: experience of a university extension with low income families in public schools in Mamanguape / PB | Osicleide Lima Bezerra, Ana Paula Taigy Amaral

REVIEW

A REVOLUTION IN PERSPECTIVE: an analysis of “Cuba en Revolución: miradas en torno a su sesenta aniversario” | Marcos Antonio da Silva, Gabriel Dourado Rocha

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EDITORIAL

A Revista Política & Trabalho, no seu número 51, tem a satisfação de tornar disponível ao público leitor o dossiê PRÁTICAS DA CULTURA ESCRITA: SUPORTES, TEXTUALIDADES, IMAGINÁRIOS, organizado pelas Professoras Doutoras Maria Celeste Mira, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e Andréa Borges Leão, da Universidade Federal do Ceará (UFC), sendo composto por 5 artigos.

O referido dossiê se dedica à reflexão sobre as transformações contemporâneas na cultura escrita, especialmente com a emergência de novas práticas de leitura e escrita propiciadas pela incorporação de moderníssimos recursos digitais no cotidiano de milhões de pessoas, tais como ebooks, blogs, redes sociais, entre muitos outros. Os artigos que o integram, ao mesmo tempo que se reportam a tal constatação, apontam com ênfases diversas para práticas de leitura e escrita em que o recurso aos antigos meios impressos (que sob uma larga base histórica persiste) convivem, de forma plural – tensa, ambígua, não necessariamente hierarquizada, “fértil” –, com o crescente uso dos novos meios eletrônicos e digitais, nos quais a escrita interage com a imagem sob possibilidades muito mais amplas. Busca-se, com os estudos aqui apresentados, realizados por pesquisadores de várias universidades do país, realçar os nexos teóricos e metodológicos entre as várias possibilidades assumidas pela cultura escrita, tendo como lastro os processos históricos que a envolvem, mas com foco na atualidade. Para uma visão mais sistemática e fundamentada desses estudos, ver apresentação das autoras, escrita sob a forma de artigo, As múltiplas faces do livro e da cultura escrita.

Este número compreende mais 6 artigos resultantes das submissões em fluxo contínuo, acrescido de uma resenha. O primeiro deles, de autoria de Simone Wolff, As startups na perspectiva das cadeias globais de valor: financeirização dos trabalhos de inovação e a reinvenção do salário por peça, trata das novas formas de externalização das atividades produtivas pelas empresas transnacionais, em um contexto de financeirização da economia e de proeminência das Cadeias Globais de Valor (CGV). A atenção se volta sobretudo para os modos de inserção das microempresas inovadoras, em especial as startups de base tecnológica, as quais são tomadas como um novo tipo de assalariamento por peça. O recurso a Editais de Inovação, fundados em parcerias público-privadas e no discurso da governança e empreendedorismo, são um meio recorrente para mediar a conexão entre grandes corporações e trabalhadores autônomos, sob o comando do capital financeiro, sendo essa uma eficaz estratégia de terceirização de força de trabalho qualificada.

Na sequência, em Trabalho precário: precariado, vidas precárias e processos de resistências, Kelen Christina Leite tem como tema central o estudo, com base em levantamento bibliográfico, dos processos de produção de trabalhos e vidas precárias, em um ambiente de predomínio de políticas e racionalidade neoliberais. O artigo também dedica atenção às formas de reação ensaiadas pelos trabalhadores precarizados, no contexto europeu, com maior evidência para os casos portugueses, espanhol e italiano.

Por meio de estudo também de natureza bibliográfica, Marina Batista Chaves Azevedo de Souza e Isabela Aparecida de Oliveira Lussi, em Juventude, trabalho informal e saúde mental, buscaram identificar abordagens que relacionam as adversas condições de inserção dos jovens no mercado de trabalho, o que os conduz, em muitos casos, ao trabalho informal e, por essa via, a lidar com situações que no limite os levam a um quadro de doenças mentais. Em um primeiro momento, foi usado o modelo de Arksey e O’Malley para identificar e filtrar artigos, teses e dissertações, sobre os quais recaiu a análise, que explorou prioritariamente os nexos entre as três categorias.

O quarto artigo do fluxo contínuo se manteve no tema do trabalho. Em O “Trabalho formal”/negócios entre os ciganos – encontros e desencontros, de autoria de Maria Patrícia Lopes Goldfarb e José Aclecio Dantas, analisa-se como grupos de ciganos (com destaque para a etnia Calon) se inserem no mercado de trabalho “formal”, especialmente buscando apreender em um corpus formado por dissertações e teses, como tais grupos distinguem as noções de trabalho e negócio.

Em seguida, com o artigo Os parâmetros estruturais e os desequilíbrios de poder que rechaçam as prescrições de desenvolvimento humano das Nações Unidas: uma crítica baseada em Celso Furtado, Maria José de Rezende analisa as semelhanças (e dessemelhanças) entre duas abordagens sobre o tema do desenvolvimento humano: a dos Relatórios do Desenvolvimento Humano (RDHs) do PNUD/ONU e a do renomado economista brasileiro Celso Furtado. Busca evidenciar, especialmente a partir dos últimos escritos de Celso Furtado, como os referidos relatórios (com destaque para os publicados em 1992, 1994 e 1996) não conseguem ir além de um plano genérico nem consideram devidamente o tema dos desequilíbrios de poder.

O último artigo do fluxo contínuo, de autoria de Ana Paula Taigy Amaral e Osicleide Lima Bezerra, intitulado Relação famíliaescola: experiência de uma extensão universitária com famílias de baixa renda em escolas da rede pública do município de Mamanguape/PB, discute a participação familiar no acompanhamento da aprendizagem de crianças e adolescentes matriculados no II ciclo do ensino fundamental de escolas da rede pública de ensino do município de Mamanguape/PB. O estudo teve como tema central as dificuldades encontradas pelas escolas estudadas na tentativa de aproximação com as famílias dos estudantes de baixa renda, assim como as mudanças de postura por parte dessas instituições de ensino e da Secretaria de Educação.

Ao final de tudo, contempla-se a resenha Uma revolução em perspectiva: uma análise de “Cuba en Revolución: miradas en torno a su sesenta aniversario” sobre o livro publicado pelo Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais, em 2019.

Boa leitura!

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 51, Julho/dezembro de 2019, p. 9-10

Dossiê

Práticas da cultura escrita:

suportes, textualidades, imaginários

AS MÚLTIPLAS FACES DO LIVRO E DA CULTURA ESCRITA

THE MULTIPLE FACES OF THE BOOK AND THE WRITTEN CULTURE

__________________________________

Maria Celeste Mira (PUC-SP)*1

Andréa Borges Leão (UFC)**

O mercado editorial brasileiro na atualidade

Um dos lamentos mais correntes e consensuais da geração de intelectuais que conheceu tardiamente o computador e a internet diz respeito ao fim das livrarias. Obviamente, as queixas se dirigem ao fechamento de várias livrarias físicas, nas quais se folheiam e adquirem livros e outros materiais impressos, CDs, DVDs (para mencionar apenas as mídias mais recentes); onde, vez por outra, encontra-se amigos e toma-se um café. Alguns costumam levar seu notebook ou tablet para trabalhar ou ler um pouco no local. A lástima é compreensível. Trata-se da suposta extinção de um dos principais elementos que compõe seu ecossistema.

No entanto o clamor dos frequentadores de livrarias não é mera fantasia. A partir de 2018, o mercado editorial do país evidencia mais uma de suas crises, especialmente em relação às livrarias. Neste ano, as redes Cultura e Saraiva, então responsáveis pela venda no varejo de 40% dos livros, segundo a imprensa, “entraram em processo de recuperação judicial, fechando lojas em dezenas de cidades, demitindo em massa e dando um calote de mais de R$ 300 milhões nas editoras” (TRIGO, 2018). O ano de 2018 também assistiu à falência da Laselva e da Bookpartners, uma das mais relevantes distribuidoras do país (PUBLISHNEWS, 2018). Em consequência, editoras importantes do mercado nacional foram profundamente impactadas.

Com a crise da Saraiva e da Cultura, as editoras enxugaram os lançamentos de 2018 e 2019, diminuíram as tiragens, demitiram. Por causa da recuperação judicial das duas, a Companhia das Letras começa o ano com menos R$ 26 milhões na conta. A Record, com menos R$ 22 milhões e a Sextante, com menos R$ 18 milhões (RODRIGUES, 2018).


1* É livre-docente em Antropologia e Sociologia da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Possui doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas e mestrado e bacharelado em Ciências Sociais pela PUC-SP. É professora do Departamento de Antropologia e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC/SP. E-mail: celestemira@gmail.com.

** Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo; mestre e bacharel em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará. Realizou estágio pós-doutoral em História Cultural no CRBC, da École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris. É professora do Departamento de Ciências Sociais e do PPGS da Universidade Federal do Ceará. E-mail: aborgesleao@gmail.com

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 50, Julho/Dezembro de 2019, p. 12-23

Algumas livrarias, porém, demonstraram bons resultados mesmo em meio à crise do mercado. Por exemplo, a Martins Fontes Paulista registrou, até a véspera do Natal de 2018, “crescimento de 56% no faturamento em relação ao mesmo período de 2017” (RODRIGUES, 2018). Vale ressaltar que os negócios da Martins Fontes são focados especificamente em livros, diferentemente da Livraria Cultura ou da Saraiva.

Seguindo a tendência mundial de concentração e internacionalização e, sobretudo, como tentativa de fortalecimento do mercado editorial brasileiro, as aquisições e fusões se destacaram:

A Kroton, gigante do segmento de educação superior, comprou a Somos, igualmente gigante na educação básica, o que elevou a Kroton a maior grupo de educação privada do país. O outro momento importante (...) foi quando a Penguin Random House assumiu o controle da Companhia das Letras (PUBLISHNEWS, 2018).

Outro fator importante para a explicação deste quadro é a paulatina mudança nas formas de aquisição dos livros. As vendas de livros pela internet (e-commerce) e a consolidação da Amazon no país certamente geraram mudanças importantes no mercado editorial brasileiro. Em relação ao e-commerce, como mostrou a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil 4, (FAILLA, 2016), dentre aqueles que já haviam comprado livros em 2015, 44% afirmaram tê-los adquirido em livrarias físicas e 15% online.

A compra de livros pela rede mundial até 2016 se mostrava expressiva. Embora representasse apenas 4% do faturamento das empresas de e-commerce, a categoria “livros, assinaturas e apostilas” ocupou a primeira posição em relação ao volume de pedidos realizados na Internet no 1º semestre de 2016, de acordo com a 34ª edição do relatório WebShoppers1 (EBIT, 2016, p. 21; RIELO, 2017).

Além do crescimento do e-commerce e do advento do e-book, a queda no faturamento do mercado editorial, a dependência das editoras das vendas para o governo e a crise econômica que vive o país foram fatores que contribuíram para criar o atual cenário tão desfavorável às livrarias físicas, mesmo as chamadas megastores, como a Saraiva e a Cultura que, além de livros, oferecem também CDs, DVDs, eletrônicos e até material de papelaria. Pela variedade de produtos que oferecem, elas podem também ter sido afetadas pelas novas tecnologias de streaming de música e vídeo, como o Spotify e o Netflix, de maneira que a compra de CDs e DVDs tenha sido substituída por esse tipo de assinatura. Outras tecnologias começaram igualmente a ganhar algum destaque no mercado editorial, como os audiolivros. Em 2018, a Feira do Livro de Frankfurt criou uma programação especial para eles. No mesmo ano, “duas plataformas internacionais anunciaram o seu desembarque no Brasil (...) Google com serviço a la carte e em parceria com Ubook e Tocalivros e, mais recentemente, a sueca Storytel” (PUBLISHNEWS, 2018).

Não obstante as pequenas livrarias também sofrem com o atual estado do mercado editorial. Bernardo Gurbanov, presidente da Associação Nacional de Livrarias, afirmou:

“A atual crise não é só das grandes. Trata-se de um processo iniciado nos anos 1980 que conjuga a tendência econômica à hiperconcentração com o advento das novas tecnologias e as modalidades de consumo delas decorrentes” (RODRIGUES, 2018).

Afetando sobretudo a cultura dos intelectuais acadêmicos, ou seja, a cultura letrada, que atinge seu auge no século XIX europeu, o livro impresso e as formas de leitura estão passando por mais um momento de transformação histórica, no qual se mesclam rupturas e permanências. O objetivo deste artigo/apresentação, e dos demais textos publicados neste dossiê, é lançar luz sobre o cenário contemporâneo a partir de diferentes espaços, temporalidades, objetos e pontos de vista.

A cultura impressa, a educação, os meios eletrônicos e o Estado-Nação

O atual estado do mercado editorial brasileiro é resultado de processo de mais longo prazo. Antes da atual crise, ele havia crescido. De acordo com pesquisa da Câmara Brasileira do Livro (2017a), entre 2006 e 2013, o setor livreiro cresceu 50,66% no país, saltando de 318,56 milhões para 479,95 milhões de exemplares, somadas as aquisições do governo e do mercado. Após esse período, que corresponde, aproximadamente, ao segundo governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva e ao primeiro mandato de Dilma Rousseff, as vendas começaram a cair, chegando a 385,09 milhões de exemplares em 2016, o que representava, então, uma redução de 19,77% em apenas três anos. As vendas diretamente ao mercado, o que inclui as livrarias, já haviam entrado em queda dois anos antes, desde 2011, sofrendo a redução de 283,98 milhões para 226,92 milhões de exemplares vendidos em 2016. O número de vendas para o governo apresentou a mesma tendência: aumentou significativamente entre 2006 e 2013, ano em que atinge o seu ápice, com 200,31 milhões de exemplares.

Após este período que, não por acaso, corresponde exatamente à gestão de Fernando Haddad no Ministério da Educação, ou seja, de 2005 a 2012, as aquisições de livros por parte do governo declinam até atingirem, em 2016, o número de 158,47 milhões de exemplares. Embora não afete diretamente as livrarias, a retração dos investimentos governamentais influencia toda a cadeia produtiva do livro, contribuindo para o seu encolhimento. Ao final das contas, a queda do número de exemplares vendidos somada à diminuição de 34% no preço médio dos livros (2006-2018) fizeram com que o faturamento do setor editorial diminuísse 25% entre 2006 e 2018 (CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO et al., 2018) 2.

De fato, a ampliação do mercado editorial brasileiro entre 2006 e 2013 foi conjuntural, resultando, em grande parte, de um conjunto de políticas públicas do governo federal. Deve-se levar em conta que o país vivia um ciclo de crescimento econômico, de políticas de inclusão social e educacional, responsáveis pela mobilidade social das classes de mais baixa renda e pela ampliação do acesso ao ensino superior. Embora sem dados precisos, a então presidenta da Câmara Brasileira do Livro, Karine Pansa, apontava como prováveis explicações para o crescimento das vendas de livros a diminuição do seu preço aliada ao aumento do poder aquisitivo da classe C, na qual se situava 50% do público leitor brasileiro. Isto porque, os dados de pesquisa mostravam que as condições favoráveis não haviam ampliado o público leitor, mas levado apenas ao incremento da leitura por parte dos brasileiros que já tinham o hábito de ler livros impressos. A pesquisa do Instituto Pró-Livro, Retratos da Leitura no Brasil de 2012, revelava que, mesmo em números absolutos, o público leitor diminuíra de 95,6 milhões em 2007 para 88,5 milhões em 2011 (CHARÃO; COSTA, 2013). Prova disto é que o subsetor de obras gerais, onde se situa o leitor de livros impressos “por excelência”, mesmo no momento de crescimento, entre 2006 e 2014, considerando-se as vendas diretas ao mercado, acumulou queda de 25%. (CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO et al., 2018).

Como se sabe, do ponto de vista da “cultura letrada”, à qual o livro, mais do que outros impressos de linguagem também imagética, está estreitamente vinculado, não se formam leitores em pouco tempo. Por mais que métodos inovadores possam abreviar o caminho ao conhecimento ilustrado, ele demanda tempo. Esse tempo, na modernidade clássica, tal como ocorreu na Europa, durou todo o século XIX, ao longo do qual se processa uma verdadeira revolução nas práticas de leitura provocada pelo boom dos meios impressos. Esse momento, que pode ser entendido como o berço da cultura popular de massa, é fruto da convergência de uma série de fatores de ordem técnica, como a introdução da prensa rotativa na produção dos periódicos (ORTIZ, 1991), de novas formas de financiamento (a publicidade); de distribuição (o trem que trouxe os quiosques de livros nas estações) para chegar até o leitor. E esse leitor está presente em número cada vez em maior e em lugares mais distantes à medida que a implantação do sistema de ensino público universal e gratuito avança por cada país, implantando uma única língua e uma única cultura nacional. Os casos mais exemplares são os da Inglaterra, sobre o qual Raymond Williams escreveu o livro The long revolution (1984), referindo-se à difusão e popularização da imprensa britânica; e o da França, onde jornais, revistas e livros conheceram a glória. Basta mencionar o título escolhido por dois autores importantes para definir o século XIX na França a respeito do livro, o meio de mais difícil difusão e popularização: A revolução do livro (ESCARPIT, 1976) e O triunfo do livro (LYONS, 1987).

Nesta dinâmica – central na constituição da modernidade capitalista – o ponto-chave é a educação, na expressão de Gellner (1993) o maior patrimônio que o homem moderno pode ter. A educação, na Europa Ocidental, frente às necessidades da Revolução Industrial e da Revolução Francesa, deixa de ser função da família e da comunidade no mundo tradicional, tornando-se encargo do sistema escolar. O Estado-Nação assume a educação universal como parte de seu próprio projeto. Além de produzir as novas classes sociais, era preciso, como já observaram vários historiadores, constituir, no espírito de cada habitante do território abrangido politicamente pelo Estado, o sentimento de nacionalidade. A ideia é sintetizada perfeitamente por Eugène Weber (apud LYONS,1987, p. 26): para produzir a integração nacional, a escola deveria “transformar os camponeses em franceses”. O sistema educacional, portanto, surge como algo indissociável do Estado-Nação e do pacto da cidadania. Em contrapartida, o Estado-Nação oferece ao cidadão uma série de direitos e garantias quanto à sua liberdade, segurança, dignidade etc.

Não há dúvida de que todos os países do mundo são modernos. Se concordarmos com a ideia defendida por Renato Ortiz (1994) de que “mundialização da cultura” é expressão equivalente à “modernidade-mundo”, é forçoso concluir que todas as formas de vida social foram integradas, de forma diversa e desigual, à modernidade ocidental, ou seja, ao capitalismo global. Porém os modos como se constituiu o modo de vida moderno em continentes e países, regiões e locais, em tempos e configurações históricas diferentes das do século XIX europeu é o que faz toda a diferença. Embora a dicotomia entre o “tradicional” e o “moderno” seja teoricamente superada, a comparação entre a “modernidade clássica” da Europa do século XIX e a “modernidade tardia”, na falta de termo melhor, da América Latina, nos ajuda a entender certas questões insistentemente debatidas a respeito da cultura escrita ou do fato de o Brasil ser ou não um país de leitores – referindo-nos aqui à leitura de livros impressos.

Deste ponto de vista, é esclarecedor percebermos como se deu o projeto de construção do Estado-Nação no Brasil, em específico, em relação à internalização do sentimento de brasilidade, no qual, obviamente, os aspectos políticos e econômicos estão sempre envolvidos. Como se sabe, a construção da ideia de Brasil tem dois momentos fortes: a Era Vargas e o período da Ditadura Civil-Militar. Embora a “modernidade clássica” europeia tenha aparência democrática, sua “violência simbólica” (BOURDIEU, 2003) não foi menor que a exercida nesses dois períodos históricos autoritários no Brasil. De acordo com Anderson (1989), no processo de formação dos Estados-Nação na Europa, o número de línguas faladas caiu aproximadamente de 800 para 80, o que levou ao extermínio de culturas ou modos de vida inteiros. No Brasil, Getúlio Vargas também proibiu outras línguas que não o português, em particular, o alemão, falado nas colônias de imigrantes do sul do país. Na Era Vargas, teve início o primeiro grande esforço de difusão do ensino fundamental no Brasil, com a criação do Ministério da Educação e Saúde e a Reforma Campos. O ensino fundamental, como analisou Antonio Candido (1984), chegou, quando muito, aos estratos médios da população, o que, para o índice de analfabetismo da época pode ser considerado um progresso. O mercado editorial, por sua vez, adquire bases mais sólidas, com a criação do INL, Instituto Nacional do Livro; com o estabelecimento do editor José Olympio no Rio de Janeiro; a inauguração da Biblioteca Mário de Andrade em São Paulo; com a publicação dos grandes romances e ensaios que se tornaram clássicos para os leitores brasileiros (PAIXÃO, 1995).

A partir da Ditadura Civil-Militar de 1964, apesar de programas paliativos como o Mobral, que logrou melhorar os índices de analfabetismo, a educação pública foi cada vez menos considerada no orçamento do Estado em todos os níveis, de modo que o Brasil manteve, ao longo do século XX, altos índices de analfabetismo. Mesmo assim, o momento foi muito favorável ao crescimento do mercado editorial. No período militar, não apenas os meios de comunicação, mas todos os setores da produção cultural cresceram de modo extraordinário. De acordo com Hallewell (1985), devido ao crescimento do ensino superior no país, o número de livros publicados no Brasil saltou de 43,6 milhões em 1966 para 245,4 milhões de exemplares em 1982. Como demonstrou Renato Ortiz (1988), todo o mercado editorial brasileiro se expandiu, tendo como melhor exemplo a Editora Abril. Apoiada no mercado de revistas e histórias em quadrinhos, que quintuplicou entre 1960 e 1985, passando de 104 para 500 milhões de exemplares em circulação (ORTIZ, 1988), a Abril foi também um grande caso de difusão do livro no período pós-64. A empresa criou um novo braço editorial para explorar a venda em bancas de fascículos e coleções que cobriram as áreas de literatura, teatro, filosofia, artes plásticas, música e outros clássicos. Muito dessa literatura se dirigia a uma classe média em ascensão que via no livro um símbolo de status e, por meio dele, poderia formar uma bela coleção encadernada para ornamentar a sala de visitas (HALLEWELL, 1985).

Por outro lado, a maioria dos brasileiros adquiria grande familiaridade com os meios eletrônicos, uma vez que a construção da nacionalidade de boa parte dos Estados latino-americanos se dava através dos meios de comunicação. Martín-Barbero (1987) mostrou que estes foram os casos da Argentina, do Brasil, da Colômbia, do México, entre outros, países nos quais os indivíduos passaram a reconhecer sua nacionalidade nos filmes cinematográficos, nas novelas do rádio ou da televisão, nas músicas gravadas e tocadas nos meios eletrônicos, nas ruas, nos parques ou outros espaços de entretenimento. Se observarmos o caso brasileiro, veremos que, nos dois momentos em que o sentimento de nacionalidade foi exaltado e incentivado pelo Estado, os meios de comunicação ocuparam lugar central: o rádio, nos anos 1930/40, e a televisão, no pós-64. Com ou sem investimento na educação escolar, a constituição da brasilidade, nos dois momentos, não teria ocorrido sem os meios eletrônicos. Basta lembrar da encampação da Rádio Nacional pelo Estado Novo e a importância que teve a difusão de sua programação, devidamente censurada pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), em quase todo o enorme território do país. Basta, para completar, recordar o papel desempenhado pela implantação do sistema nacional de televisão em todo o país, o qual, graças aos investimentos do governo federal, operava via satélite desde 1969, atingindo, no final dos anos 1970, cerca de 2/3 dos domicílios brasileiros. “Eu vi um Brasil na tevê” dizia um verso da música de Chico Buarque, “Bye, bye, Brasil”, dando adeus a um país que se modernizava rapidamente, passando, em grande parte, direto da cultura oral para a cultura audiovisual.

Livros e práticas de leitura na era das tecnologias digitais: uma nova mutação?

Robert Escarpit (1976) sugere que o livro tenha passado por quatro mutações até o século XIX, advindas, cada uma delas, de uma inovação técnica aliada a um contexto histórico propício. Estas quatro fases teriam sido: a do volumem, a do códex, a do livro impresso e a da impressão mecânica. Embora cada uma dessas formas tenha uma longa história, pode-se dizer, de modo sintético, que o volumem era formado por um rolo de folhas de papiro, tendo sido utilizado em Atenas e depois em Roma até o século IV; então, um pergaminho cortado em folhas e costurado como um caderno dá origem ao códex, cuja circulação dura aproximadamente mil anos; na segunda metade do século XV, a técnica de impressão, que entrou para a história ligada ao nome de Gutenberg, marca, para vários autores, dentre os quais Lucien Febvre (1958), “o aparecimento do livro”, ou seja, o surgimento do livro impresso a partir de caracteres móveis; para outros estudiosos de sua história, dentre os quais, como vimos, o próprio Escarpit, a quarta mutação viria com a impressão mecânica, ocasionando a “revolução do livro”. Embora o códex tivesse um formato mais prático do que o volumem, ambos são livros manuscritos; a tipografia se impõe à caligrafia, possibilitando tiragens próximas de mil exemplares no século XVI e de dois a três mil no século XVIII. No entanto a imprensa de Gutemberg evoluiu lentamente durante os três séculos seguintes. Embora, por meio dela, o livro não fosse mais manuscrito, sua produção ainda envolvia muito trabalho manual. Esta situação muda radicalmente com a introdução da prensa rotativa. Enquanto a prensa manual alcançou a capacidade máxima de três mil folhas por dia, a prensa rotativa eleva esse número para dez mil por hora, em 1850 (ORTIZ, 1991).

A cada uma dessas mutações, correspondem novos leitores e novas práticas de leitura. Na Grécia e na Roma antiga, o volumem transmitia os conhecimentos da época ao círculo reduzido de letrados. Na Alta Idade Média, o códex, contendo os textos sagrados, os códigos jurídicos e a cultura erudita, era cuidadosamente preservado pelos clérigos, nos mosteiros e abadias, à distância do povo e da própria nobreza, revestindo-se de uma aura sagrada e profunda respeitabilidade. A partir do século XIII, de acordo com Jacques Le Goff (1984, p. 90), o surgimento do ofício de intelectual em torno das universidades faz com que o livro adquira uma nova dimensão: “deixa de ser objeto de luxo para passar a ser um instrumento”. Os estudantes universitários têm necessidade de transportar e manusear os textos eruditos, utilizando, para tanto, a peça (pecia), um caderno de quatro folhas em pele de carneiro, cujo conjunto forma o exemplar. Contendo o texto oficial, o exemplar passa para a oficina dos copistas que reproduzem cada peça separadamente, acelerando o ritmo de trabalho. Escrito com pena de ave, em letra cursiva e num pergaminho mais branco e menos espesso, o livro diminui de tamanho, decrescendo também a importância das ilustrações, cujo espaço, muitas vezes, é deixado em branco para posterior preenchimento, se o leitor assim o desejar3.

O livro impresso, por sua vez, foi contemporâneo do Renascimento e da Reforma, representando para esses movimentos, nas palavras de Lucien Febvre (1958), o papel de “fermento na massa”. Contribuindo para fixar as línguas e desenvolver as literaturas nacionais, o livro tem seu formato reduzido mais uma vez, tornando-se mais portátil. Como assinala Febvre (1958, p. 126-7), “deixa de aparecer como um objeto precioso que se consulta numa biblioteca: deseja-se cada vez mais trazê-lo consigo e transportá-lo facilmente a fim de consultá-lo e lê-lo em todo lugar e à toda hora”. Aos clérigos e intelectuais vêm se juntar os nobres e burgueses enriquecidos. O livro impresso se propaga também através da leitura em voz alta para os que não sabem ler, com as inúmeras edições da Bíblia e outros livros religiosos, dos almanaques e dos próprios clássicos antigos e medievais.

Já a introdução da impressão mecânica é considerada revolucionária por ter propiciado a popularização dos meios impressos. A partir do século XIX, a vendagem de jornais aumenta de forma explosiva, desta vez, por meio de formatos e gêneros populares, cujos exemplos mais notáveis são o folhetim e os faits divers. O livro encontra mais dificuldade na sua difusão devido ao preço mais elevado e às disputas entre autores e editores. Porém, na segunda metade do século, descobre vários caminhos, chegando aos leitores em fascículos e outros formatos menos dispendiosos; por meio de entregas domiciliares, de vendas em quiosques, nas ruas ou nas estações de trem, entre outros. Tanto os jornais quanto os livros se expandem apoiados numa miscelânea típica da literatura popular, ou seja, contos, baladas, almanaques, aventuras para jovens, histórias de assassinatos, dramas e execuções, sendo que a lista está longe de ser exaustiva.

Em uma perspectiva de longa duração, como a descrita acima, não se pode perder de vista que as mudanças técnicas na produção do livro não implicam o desaparecimento de práticas de leitura anteriores. Modos de apropriação passados e contemporâneos podem coexistir reciprocamente. Hoje, a leitura na tela do computador convive com a leitura do impresso, assim como a leitura silenciosa não se impôs totalmente a ponto de suprimir a leitura oral. O importante é que quando as técnicas mudam, lembra Roger Chartier (2001), mudam as atribuições, competências e relações entre os protagonistas do livro − o escritor, editor, livreiro, programador visual, o leitor, entre outros mediadores. Suas funções são deslocadas e substituídas na medida em que transformam as condições de produção e comércio. O livro é objeto material que enseja representações e dá lugar a práticas. Por isso, os atores que dão vida aos processos de sua publicação são responsáveis diretos pela construção dos sentidos dos textos que portam. Donald F. McKenzie (1991) chama a atenção para a importância das diferenças materiais entre textos e livros. Para o bibliógrafo inglês, os livros são um entre outros meios nos quais se inscrevem os textos manuscritos ou digitalizados, de modo que escritores não escrevem livros e, muito menos, são os únicos responsáveis pela construção da significação das obras. O leitor, com sua liberdade sempre controlada pelas convenções sócio-históricas (CHARTIER, 2002), tem aí um papel decisivo, ressignificando conteúdos ou imprimindo novos.

O mundo do livro diz muito sobre os níveis de escolarização, o acesso à cultura, ao conhecimento e à diversão. As possibilidades abertas pelas novas tecnologias da informação ampliam o debate sobre as mutações na cultura escrita. Os efeitos econômicos e simbólicos ocasionados pela civilização da tela, cujas novas estrelas são os e-books, tablets, smartphones, também estão na base da discussão sobre a crise do mercado do livro impresso. Hoje, o mercado editorial brasileiro é confrontado com as lógicas da concentração (aquisições e fusões) e da mundialização e, em consequência, a situação apresenta tendência inversa à da década de 1970. A crise do mercado livreiro é apontada como uma inabilidade ainda marcante em lidar com os novos suportes da cultura escrita. Mas há posicionamentos divergentes e em disputa quanto ao diagnóstico e às saídas para a crise. Editoras tradicionais imediatamente laçam mão das novas tecnologias como modelos de negócio, a exemplo do comércio online de livros físicos e da leitura digital, o que não deixa de impactar negativamente o consumo direto nas livrarias, sobretudo nas pequenas. Ora, livrarias são locais de encontro, sociabilidade e difusão da cultura em geral. Mas a introdução das tecnologias digitais no processo de produção da cultura escrita impõe uma mutação nas práticas de aquisição de conhecimento e lazer.

Não há respostas conclusivas. Não há consenso sobre a extensão das mutações entre as culturas nacionais. Há pistas que apontam para o convívio ou prolongamento, ainda que difícil pelo uso intensivo da internet, entre os suportes impressos e digitais. Tomemos como ilustração a oferta do e-book no Brasil. Embora o Sindicato Nacional de Editores de Livros (SNEL) não apresente dados de conjunto sobre o desenvolvimento desse produto com relação ao livro tradicional, os resultados da pesquisa “Retratos da leitura no Brasil” nos permitem inferir que há uma discreta participação dos e-books no mercado editorial brasileiro, decepcionando os apocalípticos do livro impresso. Segundo a pesquisa, “o faturamento total com conteúdo digital em 2016 foi de R$ 42.543.916,96, o equivalente a 1,09% do mercado editorial brasileiro, excluindo-se as vendas ao setor governamental” (CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO et al., 2017b, p. 2). Note-se que a produção e comercialização de conteúdo digital está concentrada especialmente no subsetor de obras gerais, cujo faturamento total em 2016 foi de R$24.971.699,38, número que equivale a apenas 2,38% do faturamento do subsetor de obras gerais no mesmo ano4.

De fato, a mesma pesquisa aponta que apenas 41% dos entrevistados “já ouviram falar” de livros digitais” e, dentre eles, somente 26% chegaram a ler um livro digital (FAILLA, 2016, p. 261). A penetração de dispositivos de leitura específicos para e-books também é muito baixa. Dentre aqueles que já leram um livro digital, apenas 4% o fizeram em um Kindle, Kobo ou Lev, sendo utilizado, por 56%, o smartphone e, por 49%, o computador (FAILLA, 2016). Além disso, na maioria dos casos, o acesso ao livro digital não é feito por meio de compra. Até 2015, 88% dos leitores declararam ter baixado o conteúdo gratuitamente pela internet (FAILLA, 2016).

As práticas de leitura no meio digital não se restringem aos e-books. Das quatro principais práticas realizadas pelos usuários da internet, detectadas pela mesma pesquisa, três envolvem, de alguma forma, leitura e escrita, a saber: a) as trocas de mensagens (por meio dos aplicativos Whatsapp e Snapchat); b) a troca de e-mails; c) o acesso a redes sociais, blogs e fóruns de discussão; d) escutar música (FAILLA, 2016). A pesquisa também fornece dados sobre atividades na internet especificamente ligadas à leitura. A leitura de notícias e informações em geral é a principal delas, com 52% de indicações. Dentre as 11 atividades elencadas na pesquisa, a leitura de livros ocupa apenas o 6º lugar (15%), perdendo para os estudos e pesquisas para trabalhos escolares (35%), o aprofundamento sobre temas de interesse (32%), o compartilhamento em blogs, fóruns ou redes sociais sobre literatura, temas de livros, autores etc. (19%), e a leitura de jornais, com 16% das respostas (FAILLA, 2016). Nota-se, finalmente, que a leitura digital tem porcentagem relativamente baixa em quase todas as faixas etárias. Destaca-se, apenas, entre aqueles com 18 a 24 anos – 21% usam a internet para leitura de livros. Nessa faixa etária, 16% utilizam a internet para buscar informações sobre “literatura, temas de livros, autores, trechos de livros, editoras, lançamentos” (FAILLA, 2016, p. 259-60).

Os dados consolidados indicam a convivência fértil, mas também conflituosa, entre os meios impressos, eletrônicos e digitais. Neste sentido, o conjunto de artigos que compõem este dossiê aborda a cultura escrita sem, contudo, hierarquizar os suportes ou gêneros analisados em alta, média ou baixa cultura. O propósito é evidenciar um fio condutor que identifique teórica e metodologicamente, na variedade temática aqui reunida, as diferentes formas que a cultura escrita pode assumir, representar e tensionar, ao longo de sua história e na atualidade.

Ao longo do século XX, as histórias em quadrinhos se difundiram entre leitores de todas as classes sociais, criando um dos mais representativos fenômenos de clubes de fãs, com seus fanzines, encontros e uma série de outras atividades. Veiculadas pelos meios impressos (jornais e revistas), as HQs dialogaram com o cinema e a televisão, tornando-se cada vez mais próximas do cotidiano de seus aficionados, o que se evidencia nas convenções dos seguidores de seus diversos mundos imaginários e nas práticas de cosplay. Marco Antonio de Almeida analisa a questão da cultura escrita a partir da história das HQs, tendo como objetivo central a discussão sobre o momento atual, no qual, as tecnologias digitais alteram profundamente o cenário sociocultural. No que diz respeito às HQs, o autor percebe a emergência de novas formas de expressão ligadas à representação identitária, inviáveis no universo dos quadrinhos impressos, dominado pelas grandes editoras.

Giulia Crippa nos convida a pensar a cultura escrita para além do livro. Partindo da proximidade do livro com a narração, a autora extrapola a dimensão da escrita textual, conduzindo-nos a apreciar suas representações artísticas. Em suas palavras, “o intuito é configurar as representações do imaginário acerca do livro e da leitura em um momento em que, diante das novas tecnologias de informação e comunicação, se discutem seu futuro e o das novas relações de leitura proporcionadas por essas tecnologias”. Para tanto, a autora traz à discussão a questão das relações entre ilustração e texto escrito, bem como a apropriação artística de determinados títulos literários, transformados em quadros, instalações etc. Trabalhando na esteira da História Cultural ligada à “antropologia visual”, a autora acaba por nuançar os debates contemporâneos sobre o livro e as tecnologias, desestabilizando a dicotomia entre escritura e imagem, ou seja, mostrando livros que são para ser vistos.

Clóvis Brito problematiza o entendimento da cultura escrita a partir de uma prática que, na sociedade contemporânea, tem se expandido de maneira inédita: a musealização. Propõe – como já indica o título do artigo – que o trabalho de musealização é um dos mecanismos que produzem e mantêm determinada leitura e interpretação do objeto musealizado, no caso, a poesia e o poeta Fernando Pessoa. O artigo passeia pela Casa-Museu Fernando Pessoa, em Lisboa, procurando mostrar que a exposição museológica é um texto, uma escritura feita de objetos que cercaram a vida do homenageado. Por outro lado, argumenta que a literatura também é dotada de materialidade, vale dizer, que a literatura de Fernando Pessoa é constituída pelos seus textos e pelo que a Casa Fernando Pessoa, agora potencializada com novas tecnologias, faz com que ela seja.

O artigo de Mariza Werneck sobre o Livro das Mil e Uma Noites aborda as relações entre a cultura escrita, a literatura e o imaginário. Por meio de pesquisa minuciosa, a autora nos dá conta da incansável batalha instaurada entre os diversos tradutores do Livro das Noites para as diversas línguas europeias, desde o século XVIII. As disputas tinham como foco a autenticidade de cada versão, motivo pelo qual, sempre era necessário contestar a tradução anterior, o que era alimentado pela suposta existência de um manuscrito desaparecido que, afinal, havia sido encontrado pelo novo tradutor. A autora nos convida a refletir sobre a tênue fronteira entre o real e o imaginário (o mito, a literatura, a escrita poética), limiar no qual oscila o Livro das Mil e Uma Noites. Condenado a ser eternamente reescrito, o livro, situado entre o oral e o escrito, parece ser o melhor exemplo da perenidade da cultura escrita. “Metáfora da literatura”, poderia, como ela, ser definido como a “eterna tentativa de recuperar esse texto original”.

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Recebido em: 04/03/2020

Aceito em: 05/03/2020


1 “Realizado pela Ebit desde 2001, o Webshoppers é o relatório de maior credibilidade sobre o comércio eletrônico brasileiro e considerado a principal referência para os profissionais do segmento” (EBIT, 2016).

2 Foram consideradas as vendas das editoras tanto para o mercado como para o governo.

3 As ilustrações e iluminuras que adornavam os livros manuscritos são uma história à parte. Trata-se de uma verdadeira arte da Idade Média já estudada por diversos autores.

4 Referimo-nos aqui ao faturamento total do subsetor de obras gerais, que engloba as vendas de livros físicos e digitais.

MUDANÇAS NO UNIVERSO DOS QUADRINHOS:

textos, materialidades e práticas culturais

CHANGES IN THE COMICS’ UNIVERSE:

texts, materialities and cultural practices

____________________________________

Marco Antonio de Almeida*1

Resumo

As mudanças nas tecnologias de informação e comunicação modificaram drasticamente as formas pelas quais se relacionam os textos, seus suportes materiais e as formas de leitura socialmente estabelecidas. Isso implica em refletir acerca das maneiras pelas quais se poderia estabelecer uma “sociologia dos textos” – ou seja, uma reflexão voltada à análise histórica dos processos sociais de produção, circulação e recepção dos textos. Abordaremos essas questões num contexto marcado tanto pela presença cada vez maior das tecnologias de comunicação e informação no cotidiano dos indivíduos, grupos e instituições como pela multiplicação exponencial de textos nos mais diversos suportes, proporcionada pelos processos de digitalização. Uma reflexão que se torna ainda mais complexa quando nos interrogamos acerca dos textos que transcendem o suporte material do livro, socialmente legitimado. Nosso foco abarca o universo das histórias em quadrinhos (HQs), que servirão para ancorar empiricamente as reflexões propostas. Adotamos uma perspectiva que considera que o universo das HQs funciona simultaneamente como uma forma de consumo e de expressão cultural, que se realiza, por meio de diversas modalidades de interação que vão além do puro consumo/leitura dos álbuns e revistas. Essas modalidades podem compreender desde formas de viabilizar a produção artística (plataformas de crowdfunding e crowdsourcing), práticas “piratas”, produção e manutenção de sites e blogs autorais de veiculação das obras literárias e HQs produzidas, participação em fóruns de debates e de críticas da produção de HQ, sites de vendas e organização de eventos, uso do youtube, entre outros.

Palavras-Chave: Práticas Culturais. Histórias em Quadrinhos. Tecnologias de Informação e Comunicação. Cultura da Convergência.

Abstract

Changes in information and communication technologies have drastically changed the ways in which texts, their material supports and socially established forms of reading are related. This implies reflecting on the ways in which a “sociology of texts” could be established - that is, a reflection on the historical analysis of the social processes of production, circulation and reception of texts. We will address these issues in a context marked by the increasing presence of communication and information technologies in the daily lives of individuals, groups and institutions, as well as by the exponential multiplication of texts in the most diverse media, provided by the digitization processes. A reflection that becomes even more complex when we ask ourselves about the texts that transcend the material support of the book, socially legitimized. Our focus is on the universe of comics (HQs), which will serve to anchor the proposed reflections empirically. We adopt a perspective that considers that the universe of comics works simultaneously as a form of consumption and cultural expression, which takes place, through various modes of interaction that go beyond the pure consumption / reading of albums and magazines. These modalities may include ways of making artistic production feasible (crowdfunding and crowdsourcing platforms), “pirate” practices, production and maintenance of websites and blogs, and the publishing of literary works and comics produced, participation in forums for debate and criticism of production of HQ, sales sites and organization of events, use of youtube, among others.

Keywords: Cultural Practices. Comics. Information and Communication Technologies. Culture of Convergence.


1* Professor/pesquisador do Departamento de Educação, Informação e Comunicação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP); membro do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP), Líder do grupo de pesquisa Práticas Culturais e Tecnologias de Informação e Comunicação (Practict). E-mail: marcoaa@ffclrp.usp.br.

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 51, Julho/Dezembro de 2019, p. 24-42

Introdução

O mundo contemporâneo é resultado, entre outros fatores, da aceleração das mudanças tecnológicas de final do século XIX e decorrer do século XX, marcadas pela multiplicação de suportes da informação: fotografias, microfilmes, cassetes de áudio, rolos de filmes, fitas VHS, CDs, DVDs, até chegarmos aos suportes/repositórios digitais, e às concepções de biblioteca digital. Todos esses processos influenciaram a constituição e a mudança no âmbito da produção, da circulação e da apropriação das formas culturais e do conhecimento (BURKE, 2012; HALL, 1997). Considerando-se esse processo histórico e o contexto social mais contemporâneo, nosso interesse direciona-se para o estudo das relações entre práticas culturais e a maneira pela qual elas são influenciadas pela apropriação da informação e das tecnologias. Nosso ponto de partida é a ideia de uma “cultura da convergência”, cunhada por Henry Jenkins (2009) para problematizar questões relevantes em relação às mudanças culturais e sociais, especialmente na maneira pela qual indivíduos e grupos se relacionam com os conteúdos culturais na atual sociedade em rede. Interessam-nos, particularmente, as conexões entre os processos que caracterizam a cultura da convergência e os processos de apropriação cultural e social da informação e dos bens culturais. Esses processos implicam diferentes assimetrias sociais (na distribuição do poder político, do poder econômico e do poder simbólico) e no estabelecimento de diversas táticas e estratégias na utilização das tecnologias.

Mesmo que a ideia de uma cultura da convergência possibilite a descrição de um processo cultural global que implica a apropriação cultural mediada pelas tecnologias, vale lembrar que características e condições decorrentes das especificidades locais influenciam essa dinâmica. Os conteúdos e formatos muito diversos disponibilizados nas redes agregam-se às facilidades proporcionadas pelo formato digital, e “possibilitam a hibridização e a recriação cultural por parte dos indivíduos e grupos, gerando distintas possibilidades de apropriação cultural no âmbito de uma cultura da convergência” (ALMEIDA, 2018, p. 233). Nesse sentido é que Jenkins introduz a figura do prosumer (neologismo oriundo da combinação das palavras produtor e consumidor), partindo da constatação de que os indivíduos na sociedade em rede, com as ferramentas disponíveis, convertem-se também em potenciais produtores de conteúdo. Desse modo, seria estabelecido um ciclo contínuo entre os papéis de emissores e de receptores de mensagens, embaralhando consideravelmente o que tradicionalmente compreendemos como os papéis de usuários e consumidores. Esse novo perfil, potencializado pelas mídias sociais, contribuiria para ampliar a tendência descrita por Chris Anderson (2006) como “cauda longa”. Para Anderson, as pessoas passariam a encontrar mais ofertas culturais minoritárias afins aos seus interesses, que em geral não eram satisfeitas pela indústria cultural mainstream. Esse processo alavancaria e sustentaria, em muitos casos, a emergência de efetivas culturas de nicho.

Para abordar estas questões, propomos explorar o universo cultural das Histórias em Quadrinhos (HQs), bem como a comunidade geek (termo que descreve indivíduos interessados nas HQs e produtos derivados, como filmes, séries, videogames etc.) que nele se estrutura. Entendemos o universo das HQs como um objeto estratégico do ponto de vista heurístico, ao permitir analisar e problematizar questões tanto de cunho prático como teórico (JENKINS, 2009; ALMEIDA, 2018).

Circulação da informação nas HQs, os fãs e seus nichos

As Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) marcam presença nas HQs desde seu período clássico, reproduzindo e ao mesmo tempo colaborando para construir o imaginário social a seu respeito. Basta lembrar a origem de clássicos do gênero, na década de 1930, com raízes no imaginário da ficção científica, como Buck Rogers, Flash Gordon e Brick Bradford, ou mesmo personagens de outros gêneros que ostentavam gadgets tecnológicos – o relógio-comunicador de Dick Tracy, a batcaverna de Batman, etc. Isso permitiu aos leitores vislumbrar novas possibilidades de lidar com as informações e também refletir acerca de outros padrões possíveis de sociabilidade, constituindo comunidades de fãs e gerando redes de compartilhamento de informações, opiniões e outras formas de expressão em torno desse universo, a partir dos recursos disponíveis na época. A explosão da internet e a emergência da “sociedade da informação” e de uma “cultura da convergência”, com a presença cada vez maior das diversas tecnologias no cotidiano das pessoas, só reforçaram esse fenômeno.

Dentro da indústria cultural, o universo das histórias em quadrinhos, com o avanço dos meios técnicos e dos meios de comunicação através do ciberespaço, vem desenvolvendo produtos e experiências transmídias, que entrelaçam diferentes formas de consumir, participar e produzir produtos, que possuem, entretanto, derivações e características da mídia original. Marcas que representam o mainstream das HQs de super-heróis, como a Marvel e DC reúnem hoje milhões de fãs que se organizam em diferentes tipos de comunidades, ao longo do mundo e do ciberespaço, fãs esses que desenvolvem e empregam diferentes tipos de atividades para desempenhar suas performances, desde a participação e a organização de eventos, cosplays1, participação em fóruns ou grupos de redes sociais com os temas que lhe são de interesse, até a produção de novos produtos culturais como fanzines2 e filmes que, em muitas vezes, se apropriam dos materiais e informações dos produtos culturais produzidos por essas grandes marcas.

A cultura dos fãs ou Fandom para Jenkins (2009, p. 426) é “um termo utilizado para se referir à subcultura dos fãs em geral, caracterizado por um sentimento de camaradagem e solidariedade com outros que compartilham os mesmos interesses”. Por meio de uma cultura participativa, esses fandoms remodelam a forma de consumo das mídias através de suas performances (BECKO, 2017), se apropriando dos materiais e criando novos significados. Vergueiro (2005), por exemplo, define cinco tipos de consumidores de histórias em quadrinhos: eventuais, exaustivos, seletivos, fanáticos e estudiosos. Essas definições não são excludentes, e um mesmo consumidor pode se encontrar em mais de uma dessas definições dependendo do material consumido. Jenkins (1992) propõe a concepção de “fãs seguidores”, a qual distingue dos “fãs participativos”: esses últimos, antes mesmo do surgimento de uma cultura da convergência, já empregavam suas performances exercendo seu papel de fã e se conectando com outros participantes de um mesmo fandom e também de famdoms diferentes, exibindo um comportamento “nômade”, se apropriando de novos materiais e significados (BECKO, 2017). Matt Hills e Clarice Greco, por sua vez, refletem acerca das distinções entre fãs, expectadores e audiência para analisar como o consumo regula o investimento emocional nas narrativas culturais – o que seria uma rotina habitual ligada, de alguma forma, aos processos de formação identitária (HILLS; GRECO, 2015). Nesse sentido que acreditamos que as TICs potencializam o acesso a esses conteúdos, tanto para os fãs strictu sensu, como também para os seguidores habituais, eventuais e mesmo esporádicos – poderíamos considerar os fãs como um caso extremo desse gradiente de consumo cultural.

Antes mesmo da disseminação do ciberespaço e do acesso aos meios técnicos necessários para sua utilização, podemos mapear movimentos e práticas que também contribuíram para a validação cultural do campo das histórias em quadrinhos. Na década de 1960, intelectuais e artistas europeus contribuíram para dar um respaldo artístico-cultural às HQs, atribuindo-lhes um novo status simbólico (MAZZUR; DANNER, 2014). Artistas como Alan Renais, Pablo Picasso, Jean Luc-Godard, Federico Fellini e acadêmicos como Marshall McLuhan, Francis Lacassin, Umberto Eco, Edgar Morin, entre outros, assumiram-se como fãs e admiradores dos quadrinhos, além de estudiosos, quebrando parte do elitismo cultural da época que negava a cultura pop, proporcionando ao universo das HQs ocupar outros espaços, como a academia e os jornais, facilitando que artistas do meio conseguissem publicar histórias mais sérias e densas, diferente do que era produzido até então.

Nessa época, no âmbito norte-americano, ocorria a emergência do movimento underground que, ao contrário do cenário europeu onde as HQs eram defendidas por intelectuais e artistas, organizou-se principalmente contra o controle do Comics Code Authority (CCA), que censurava as histórias em quadrinhos publicadas pelas grandes editoras, limitando certos assuntos como sexo, drogas e questões sociais. Em reação ao CCA, alguns artistas de São Francisco começaram a produzir quadrinhos de forma independente, abordando esses temas e sendo também influenciados por músicos e outros artistas da contracultura que surgiam na época. O movimento underground norte-americano lutava a favor da liberdade dos autores e contra a passividade da indústria perante a censura do CCA e, nesse período, vários artistas se destacaram e ficaram conhecidos no meio, como Robert Crumb, Gilbert Shelton, Rick Griffin, Spain Rodriguez, S. Clay Wilson, entre outros. Embora tenha proporcionado uma revolução no formato, na temática, na produção e na maneira de consumir quadrinhos, seu impacto foi localizado, na medida em que seu “mercado” era tipicamente de nicho, circunscrito às universidades e ao circuito artístico underground (MAZZUR; DANNER, 2014).

No Brasil, um caso que vale destaque é o da Circo Editorial, que foi um contraponto às editoras e às HQs que dominavam o mercado, fugindo do padrão super-heróis/histórias para o público infanto juvenil. Fundada por Toninho Mendes e Chico Caruso, em 1984, foi responsável por algumas das principais publicações em quadrinhos da década de 1980. Sua primeira publicação foi o livro do quadrinista Angeli Chiclete com Banana, Bob Cuspe e Outros Inúteis, seguida de outras revistas como a Circo, Piratas do Tietê, Geraldão e Níquel Náusea, envolvendo contribuições de artistas como Laerte, Glauco, Luiz Gê, Fernando Gonzales, entre outros. Influenciados pelo movimento underground americano e por artistas como Ziraldo, Millôr Fernandes e Henfil que publicaram no jornal Pasquim, as revistas publicadas pela Circo funcionaram como espaço para a republicação de tiras já veiculadas em jornais e outros periódicos na forma de coletâneas, além de permitir aos artistas explorarem novos potencialidades, linguagens e formatos. As dificuldades econômicas decorrentes das reviravoltas do mercado, entretanto, acabaram encerrando as atividades da Circo (SANTOS, 2013).

O mercado ou os mercados? Novas possibilidades para fãs e produtores culturais

Embora a indústria e as mídias tradicionais ainda hoje representem um grande espaço no oceano informacional que está disponível na rede, o ciberespaço também ofereceu lugar para o nascimento de novas mídias independentes, que remodelaram a lógica do mercado tradicional, forçando a indústria das mídias tradicionais a repensar suas estratégias. Esses aspectos condicionaram o surgimento de novas organizações sociais com a intenção de compartilhar conhecimento dentro do ciberespaço – os fóruns on-line, listas de discussão e blogs, sites e plataformas de financiamento de projetos são frutos desse movimento. O ciberespaço e a convergência das mídias disponibilizaram novas ferramentas para que essas comunidades introduzissem modelos diferentes dos paradigmas da mídia tradicional de massa que viveu estável durante quase todo o século XX, abrindo possibilidades para a emergência de novas práticas que configuraram um mercado informacional relativamente independente, em que essas comunidades de fãs puderam ocupar um espaço que a mídia tradicional não ofertava.

Essa disseminação do ciberespaço, no qual novas e antigas mídias colidem, alterando suas relações recíprocas de consumo e produção, que Jenkins (2009) descreve como cultura da convergência, processo que também vem redefinindo a forma como se configuram as práticas culturais e a busca e produção de informação na rede. Comunidades participativas, como no caso das comunidades de fãs, podem recombinar novas e velhas práticas de produção de conteúdo, se apropriando de materiais produzidos por outras mídias e/ou produzindo novos materiais originais, através dos meios técnicos proporcionados pelo ciberespaço e pelas mudanças nos protocolos sociais e na relação com a cultura popular:

A hipertextualidade, um dos paradigmas da cultura pós-moderna, a ligação das diversas informações e referências, tende a se fortalecer cada vez mais com a libertação dos conteúdos e formatos de seus suportes materiais oferecidos pelas tecnologias digitais. Desenha-se assim um cenário potencialmente libertário, no qual a redistribuição do poder cultural – tanto no plano simbólico como no âmbito da produção – se apresentaria de maneira mais favorável ao pólo popular da esfera cultural (ALMEIDA, 2016, p. 145).

Neste cenário, a cultura de nicho encontrou os meios necessários para se fazer representada dentro do cenário informacional, já que na mídia tradicional havia pouco ou nenhum espaço para alguns desses nichos. Dentro de um contexto de comunicação de massa, de mídias tradicionais como a TV, o rádio e o jornal, o controle da informação era feito em grande parte pelos conglomerados de comunicação como a Time Warner, o grupo Bertelsmann, News Corporation, entre outros, que eram responsáveis pelo fluxo de informação global entre as redes de comunicação territoriais (THOMPSON, 1998). Assim, ficava a seu cargo mediar as informações globais transmitidas, junto com outras informações de acordo com os contextos locais. No ciberespaço e na convergência das mídias, esse tipo de controle global da informação deixa de depender exclusivamente desses grandes conglomerados: hoje, com um smartphone, qualquer pessoa potencialmente pode produzir e compartilhar uma informação e publicar em rede social. Dependendo do conteúdo e do engajamento das pessoas e grupos envolvidos com esse material, ele pode atingir alcance global, inclusive sendo reproduzido por veículos da mídia tradicional, ainda que haja alguns dispositivos de mediação dentro da rede, como “filtros invisíveis” dos sites de buscas e as “bolhas filtros” que são construídos com base nos perfis dos usuários (PARISER, 2012; ALMEIDA, 2018).

A abordagem do universo das HQs aqui proposta retoma Almeida (2018), a partir de duas vertentes. A primeira vertente apoia-se na concepção de representação social, particularmente na forma como é empregada por Stuart Hall (2016) para descrever o processo pelo qual os membros de uma cultura utilizam-se da linguagem para produzir sentido e conhecimento. Trata-se de uma abordagem construtivista, que segundo Hall, baseia-se tanto na perspectiva semiótica/semiológica (influenciada por Saussure e Barthes), focada na maneira pela qual os signos produzem sentidos, como na perspectiva discursiva (Foucault), concentrada na maneira pela qual o discurso e as práticas discursivas produzem conhecimentos. A segunda vertente é o já mencionado conceito de “cultura da convergência”, com foco nas conexões com os processos de apropriação social da cultura e da informação. Embora formuladas no âmbito do universo das HQs, são questões que incidem nos debates mais amplos acerca das identidades sociais e culturais e suas representações no território dos meios de comunicação (HALL, 1997, 2016; ALMEIDA, 2018). Nesse sentido, ao considerarmos o universo das HQs, estaremos buscando compreender os processos simultâneos de consumo e de expressão cultural que o mesmo articula, por meio de diversas modalidades de interação. Modalidades que podem abarcar tanto formas de viabilizar a produção artística (plataformas de crowdfunding e crowdsourcing) como sites e blogs autorais de veiculação das HQs produzidas e de opinião do público acerca delas, participação em fóruns de debates e críticas da produção de HQ, sites de vendas e organização de eventos etc.

Sempre é difícil falar de mercado de HQs no Brasil pela falta de dados consolidados e/ou abrangentes. A maioria das pesquisas e levantamentos é parcial, cobrindo setores e períodos específicos3. Entretanto algumas considerações costumam ser comuns, entre elas as relativas às dificuldades estruturais desse mercado. Um dos grandes gargalos no Brasil diz respeito à distribuição, praticamente monopolizada hoje pela Distribuidora Total, empresa do grupo Abril que há poucos anos incorporou o único concorrente de peso, a Distribuidora Fernando Chinaglia. Com a decadência e possível falência do grupo Abril, somada à diminuição da quantidade de bancas de jornal em todo o território nacional, o circuito tradicional de distribuição e circulação de HQs restringiu-se muito. Por outro lado, a presença das HQs em livrarias e lojas especializadas cresceu bastante no período. Mas aqui o fenômeno da concentração voltou a se repetir, com a FNAC e a Livraria Cultura compartilhando a maior fatia do bolo. Essas grandes livrarias representavam mais de 50% do faturamento das pequenas e médias editoras. Com a quebra da FNAC, e a absorção de suas dívidas e estoques pela Livraria Cultura – que posteriormente também teve sérios problemas de gestão de dívidas – a situação tornou-se bastante grave. Desse modo, a maior parte das pequenas e médias editoras é hoje refém da Amazon ou tenta encontrar formas alternativas de se viabilizar. Há uma tentativa de estimular a compra de produtos diretamente dos sites das editoras, com descontos, e também articular formas mistas de produção, envolvendo financiamento direto do público com parcerias com plataformas de financiamento como a Catarse.

Apesar dos problemas anteriormente citados, vale considerar uma série de mudanças que ocorreram no mundo das HQs que contribuíram para aumentar sua “legitimidade”: a incorporação de conteúdos e linguagens mais “adultas” e sofisticadas; mudanças nos formatos dos suportes (graphic novels e encadernados de luxo com capa dura), aproximando-os do padrão dos livros; a consolidação de circuitos de crítica e premiação. Isso levou a mudanças no status simbólico e na circulação das HQs, que se estendeu das bancas de jornal para as livrarias e lojas especializadas. Houve um boom de publicações, editoras, feiras e encontros com artistas. O nicho ganhou um fôlego extra com o respaldo de eventos enormes, como a FIQ! (Festival Internacional de Quadrinhos!) e a CCXP (Comic Con Experience), que em 2017 teve público recorde de 227 mil pessoas em São Paulo. Numa vertente ainda mais “alternativa”, vale citar a Comic-Con da Favela, como a chamaram seus organizadores, evento que aconteceu na Fábrica de Cultura do Capão Redondo, extremo sul da cidade de São Paulo, com mais de 4 mil participantes que rodaram pelos sete andares do prédio nas nove horas de programação, feita com artistas fora do padrão branco e elitizado que normalmente circulam no espaço nerd – por exemplo, Load Comics e Wagner Loud, dupla que criou e deu vida ao “Rap em quadrinhos”, que ilustrou grandes nomes do movimento hip hop (como Negra Li, Eduardo, KL Jay, Emicida, Criolo, Mano Brown, Drik Barbosa, entre outros).

Enquanto o mercado mainstream é pautado principalmente por mangás e HQs de aventuras ou infanto juvenis, o mercado independente possui uma quantidade maior de narrativas denominadas graphic novels, geralmente mais densas e intimistas, muitas delas com contornos autobiográficos (uma das tendências fortes no gênero). Esse perfil não é recente, mas ganhou maior força nos últimos tempos. De um modo geral, o meio digital ainda é mais uma plataforma para conhecer novos autores do que para sustentar a leitura. Além disso, o meio mostrou-se estratégico para alavancar a produção dos autores, caso da plataforma Catarse, responsável por tornar viável boa parte da produção que circula no nicho “independente”.

Esse cenário nos convida a formular a hipótese de que o mercado das HQs – apesar de todas as dificuldades relacionadas à publicação física e ao custo elevado de criar um trabalho artístico moldando-se, em larga medida, às práticas culturais de seu público – tem buscado novas saídas. A reconfiguração das relações entre produtores/consumidores de produtos e informações culturais ligadas às HQs, passando por novas estratégias e táticas de apropriação e consumo, tem um forte apoio no uso das tecnologias digitais, bem como das possibilidades abertas pelas redes sociais (ALMEIDA, 2018)

Na realidade, táticas de consumo e produção marginal que configuravam subculturas próprias já existiam no mundo analógico das HQs – fã-clubes e esquemas de trocas de revistas entre os fãs, convenções, produção de fanzines, entre outras – que constituíam experiências de consumo e produção que definiam um repertório de práticas reunidas por seus praticantes sob o rótulo de fandom (JENKINS, 2009). Esse contexto cultural, que vinculava os fãs entre si e com a indústria cultural, não foi abandonado na transição para o universo digital, sendo remodelado e adaptado às novas possibilidades abertas pelas tecnologias. Vale destacar que esse universo das HQs, de seus produtores e consumidores, também aprendeu com os processos de transformação pelos quais passavam outros universos – em particular, o audiovisual e o musical, com a explosão do MP3 e de aplicativos como o Napster e outros. A indústria das HQs, ao contrário de outros setores da indústria cultural, adotou uma postura relativamente distanciada da atividade dos fãs que digitalizavam, nos mais diversos formatos, coleções inteiras de revistas, restringindo-se a enfrentar um ou outro excesso. Essa “cultura do scan” paulatinamente constituiu um formato próprio, ancorada na divulgação de ferramentas como o CDisplay e de formatos como Comic Book Archive File. Esse processo permitiu consolidar novos padrões de interação e colaboração que influenciariam a própria indústria cultural originária (SILVA; SILVA JÚNIOR, ٢٠١٢).

O conjunto de práticas hipermediadas de participação e uso colaborativo de ferramentas digitais, por parte das subculturas do meio, modificou o entorno comunicacional do universo das HQs. Indo além do que se definiu como “pirataria”, a “cultura do scan” consolidou-se como um conjunto de práticas que envolvia um repertório de processos capaz de influenciar as escolhas dos públicos no que dizia respeito ao acesso, seleção, leitura e aquisição comercial das produções. Esse último caso, a aquisição comercial, pode parecer deslocado em relação aos demais, mas ilustra as relações ambíguas entre fãs e indústria cultural: trata-se de um conjunto de práticas que se desenvolveu tanto em oposição como em “colaboração”. O mote “gostou? compre!”, veiculado em muitos scans indicava a vinculação através do consumo, ao mesmo tempo que reconhecia indiretamente uma contrapartida implícita de sua expressão periférica à matriz da indústria cultural (SILVA; SILVA JÚNIOR, 2012).

Escapando do controle dos fluxos de informação, algumas comunidades de fãs encontraram no ciberespaço um terreno fértil para que eles pudessem atender às demandas por informações que não eram ofertadas pela mídia de comunicação de massa. Um exemplo dessas mudanças no Brasil no campo dos quadrinhos foi o caso da revista Wizard Brasil, publicada pela primeira vez entre 1996 e 1997 pela editora Globo, editada por Leandro Luigi Del Manto, sendo cancelada em sua 15º edição. Após o cancelamento da revista, Del Manto, junto com Sérgio Codespoti, Maurício Muniz e Edson Diogo criaram o site Área-51, para produzir informações sobre quadrinhos e cultura pop. A Wizard Brasil teve mais uma edição publicada em 2001 pela editora Hangar 18, também editada por Del Manto, até ser publicada pela editora Panini entre 2003 e 2006 quando, por motivo de um processo judicial com a empresa de idiomas homônima Wizard, a revista teve de alterar seu nome para Wizmania, mantendo-se até 2009, quando foi cancelada no número 11 de segunda série de tiragens.

O caso da Wizard Brasil demonstra como um grupo de fãs, como o próprio Del Manto e seus colaboradores, percebe que a mídia tradicional não atende à demanda informacional de seus interesses, e que no ciberespaço eles podem construir seu próprio espaço e compartilhar informações e materiais com outros membros da comunidade de fãs e aficionados. Este caso também demonstra o comportamento nômade descrito por Jenkins (2009), já que, quando houve uma oportunidade da indústria para que Del Mano voltasse a produzir a revista, ele retomou suas atividades em outra editora.

Desde então o mercado informacional de quadrinhos na rede só tem crescido, distribuído por diferentes meios de comunicação como texto (blogs, sites, fóruns), áudio (podcasts) e vídeos (Youtube, Twitch). A razão para o crescimento do mercado informacional de quadrinhos no ciberespaço está na própria busca dos integrantes das comunidades de fãs por informações de seu interesse4. De um modo geral, essas produções (especialmente os vídeos do Youtube) compreendem informações e comentários sobre futuros lançamentos do mercado editorial de quadrinhos, cobertura de eventos especializados, entrevistas com profissionais da área, discussões sobre as HQs e temas relacionados (por exemplo, séries/filmes baseados em HQs), resenhas e indicações sobre materiais já publicados. Alguns desses canais, assim como aqueles dedicados à literatura de modo mais amplo, passaram a receber materiais lançados pelo mercado, “ocupando em boa parte nesse sentido o papel de mediação cultural que cabia às redações do jornalismo tradicional, destacando-se ainda por conseguirem estabelecer apoios e até parcerias comerciais para a manutenção dos custos que acabam tendo” (SILVA; OLIVEIRA, 2018, p. 2). Com o crescimento desse mercado, novas demandas informacionais foram se desenvolvendo dentro dessas comunidades de fãs, assim como a própria mídia das histórias em quadrinhos – que possui uma variedade de temas e gêneros diferenciados, podendo ser identificados com diferentes grupos e com diferentes interesses em relação à própria mídia, apresentando diversas representações sociais dentro desse meio.

No que diz respeito às modalidades de viabilização do consumo de HQs e da produção artística por meio das tecnologias digitais, podemos considerar que esse mercado ainda está em desenvolvimento no Brasil. Surgiram plataformas como a Social Comics e a Catarse, voltadas a propiciar suporte para os quadrinhistas desenvolverem seus trabalhos através de alguma forma de financiamento em troca de benefícios para os que ajudam os projetos lá cadastrados. A Social Comics é uma plataforma semelhante ao Netflix, mas voltada para as HQs digitais, na qual os usuários pagam uma taxa de assinatura para ter à sua disposição um acervo de quadrinhos bem variados. Na perspectiva do quadrinista, a vantagem está em inscrever-se como alimentador do acervo sem nenhuma taxa. O incentivo financeiro retorna de acordo com a performance do trabalho do artista no aplicativo: cada vez que uma página é lida por um assinante, é contabilizada para o seu autor no âmbito da plataforma e, assim, monetizada. Apenas as obras ativas no catálogo são passiveis de monetização e computadas, permitindo ao autor saber exatamente quantas pessoas leram sua história, se ela foi lida na íntegra ou parcialmente, permitindo-lhe definir estratégias relacionadas ao seu público e ao seu produto. A Catarse, por sua vez, é uma plataforma de crowdfounding, ou financiamento coletivo, que serve para diversos tipos de projetos e oferece contrapartidas ao público que colabora, com um foco maior na produção de HQs impressas. No início de seu funcionamento, a plataforma possuía um mecanismo de avaliação dos projetos, contemplando sugestões para os proponentes, mas que foi deixado de lado com o crescimento do site. Como “compensação”, alguns dos artistas acabam compartilhando suas experiências via internet com dicas e sugestões para os novatos (ALMEIDA, 2018).

Ao serem apropriadas a partir de outras perspectivas, essas plataformas trouxeram alguns benefícios indiretos, já que alguns artistas embutem nos custos do produto despesas com a própria manutenção e outros gastos, gerando uma remuneração própria no período de realização do projeto. Editoras menores, alternativas ou independentes, aproveitaram a oportunidade para associar-se aos artistas e se utilizaram da Catarse para cobrir parte dos custos do processo, como a distribuição, por exemplo, concentrando-se em outros aspectos, como a editoração e a impressão. A Catarse, em alguma medida, acabou por gerar um público cativo de apoiadores, que consideram apoiar os artistas “independentes” como um valor em si, investindo nos projetos apresentados no site, por gosto ou “ideologia” (ALMEIDA, 2018).

De qualquer modo, os artistas e produtores dos projetos acabam tornando-se reféns dos algoritmos, que refletem quem é mais visto e quem possui mais chances de ser “visualizado”, aspecto acentuado quando os projetos estão vinculados às redes sociais (particularmente, o Facebook) para sua divulgação. Percebe-se, nesse caso, o efeito apontado por Pariser (2012) de “bolha de filtros”, a série de mediações que filtra as informações que chegam aos consumidores/usuários, baseadas em suas preferências e interações e controladas pelos algoritmos. Essas “escolhas” dos algoritmos passam a influenciar o alcance da divulgação dos projetos. Tal tendência ao encapsulamento seria previsível numa “cultura de nicho”, retomando Anderson (2006), mas hoje é ainda mais acentuada. As próprias empresas que gerem essas redes sociais reforçam essa situação, como, por exemplo, a política de pagamento para impulsionar postagens, promovida pelo próprio Facebook.

A questão da representatividade e a sociabilidade mediada pelas HQs

Conforme o mercado informacional de histórias em quadrinhos foi se expandindo, questões como a da representatividade de grupos sociais dentro desse universo foram surgindo à tona. Em um primeiro momento, essas questões foram levantadas em relação às próprias publicações da indústria de quadrinhos, principalmente no mercado americano de super-heróis, e como algumas “minorias” não eram ou eram pouco representadas nas histórias publicadas. Num segundo momento, essas questões foram levantadas no âmbito da indústria, de como há pouco espaço para as minorias na produção e nas premiações dos eventos da área de quadrinhos. No caso brasileiro, um breve olhar sobre as plataformas de financiamento coletivo permite perceber que há um número significativo de produções que possuem uma temática relacionada ao universo feminino e/ou às questões étnicas presentes nessas duas plataformas. Nesse sentido, uma hipótese que podemos considerar é a de que as facilidades proporcionadas pelos usos das TICs, em especial nas redes sociais, abriram perspectivas para uma maior representatividade do público em geral, quebrando o modelo hegemônico do tradicional tipo de leitor de HQ – homem branco, jovem e heterossexual – introduzindo temas como o feminismo, o racismo, a homossexualidade e a transsexualidade, entre outros, que passaram a “incomodar” uma parcela desses leitores tradicionais e geraram um conjunto de debates e polêmicas em fóruns, chats, comentários de sites e páginas da internet, que movimentaram esse ambiente cultural.

Para demonstrar a importância que as questões de representatividade assumiram no campo dos quadrinhos, e como as mídias no ciberespaço se tornaram peças fundamentais na disseminação da informação, vale relatar o caso exemplar do Comicsgate. Em julho de 2017, várias mulheres que trabalham com a Marvel se reuniram para homenagear Flo Steinberg, icônica editora da indústria de HQs, com importante participação na própria Marvel, e que falecera recentemente. Heather Antos, uma das editoras da Marvel na época, publicou uma foto bebendo milkshake junto com a equipe na rede social Twitter. O que seria uma simples selfie de um momento de celebração se tornou o estopim do que viria a ser o Comicsgate. Após a postagem, algumas pessoas atacaram Antos, argumentando que a foto postada simbolizava tudo aquilo que estava de “errado” na Marvel. No entanto alguns fãs também saíram em defesa dela, levantando a hashtag #MakeMineMilkshake. Mais tarde, nesse mesmo ano, o grupo responsável pelo ataque assumiu o nome de Comicsgate, para boicotar a diversidade nos quadrinhos, e começou a circular no Twitter uma “lista negra”, com nomes de artistas cujas obras deveriam parar de ser consumidas – em sua grande maioria, artistas mulheres, de diferentes etnias ou com posicionamento político de esquerda. A razão alegada para justificar esse boicote, segundo os seguidores do Comicsgate, é de que a diversidade nas HQs seria o motivo das baixas vendas da indústria.

Esse foi o primeiro dos desdobramentos que o caso Comicsgate gerou na indústria e nas comunidades de fãs de histórias em quadrinhos: outros casos de ataques e assédios ocorreriam com artistas e outras pessoas envolvidas no meio, provocando também reações, como os casos de figuras importantes que se posicionaram a favor da diversidade nos quadrinhos5. No Brasil, sites como Jamesons, Minas Nerds, Nebulla, entre outros, publicaram matérias cobrindo o caso e divulgando suas repercussões, demonstrando como as questões sobre representatividade e diversidade têm se tornado um dos principais temas de discussão no campo dos quadrinhos e, nesse cenário, a mídia independente de HQs voltada para essas questões está ganhando cada vez mais destaque.

Messias e Crippa (2017) citam o exemplo do site Lady’s Comics como uma iniciativa de mediação no Brasil, o site disponibiliza um banco de dados com registros de 62 quadrinistas mulheres, com espaço destinado a divulgar seus trabalhos e informações profissionais, o site também “(...) tem objetivos ligados à memória de trabalhos de mulheres que, historicamente, foram silenciados ou não adquiriram o mesmo status que as produções masculinas no mercado editorial” (MESSIAS; CRIPPA, 2017, p. 8). O Lady’s Comics também produzia matérias e especiais geralmente discutindo as questões voltadas à representatividade feminina nos quadrinhos, discussões que, com o crescimento do acesso ao site, saíram do ciberespaço e se materializaram em dois eventos, o 1º e 2º encontro Lady’s Comics, o primeiro em 2014 e o segundo em 2016, todos em Belo Horizonte. O site também possuía um canal no Youtube com vídeos de discussões e palestras alinhadas com o mesmo objetivo do site. Em janeiro de 2018, foi publicado post de despedida, segundo as autoras Mariamma e Samara, o projeto estava sendo encerrado por motivos pessoais e de trabalho das autoras por trás do site, mas seu acervo e conteúdo continuam disponíveis para acesso.

As redes sociais também se tornaram parte da extensão dos sites informacionais de quadrinhos. Almeida, Cruz e Oliveira (2018) apresentam a relação que os sites Lady’s Comics, Minas Nerds e Delirium Nerdm com suas redes sociais e como algumas polêmicas culturais repercutiram entre os seguidores das páginas citadas; os três sites têm como principal tema de discussão a representatividade feminina nos quadrinhos e outras questões envolvendo diversidade. Em um primeiro momento, foram mapeados os temas principais das polêmicas culturais publicadas, no qual três se destacaram: prêmios e eventos, problemas de representação da mulher e contribuição das mulheres para o mundo nerd.

No primeiro grupo temos uma mudança nas chamadas dos textos: o foco inicial, que era sobre a falta de mulheres, polêmica de grande repercussão constante em todos os blogs analisados, deslocou-se para os relatos sobre os boicotes aos prêmios sem indicações femininas, para enfim evidenciar o destaque que foi dado para as mulheres em alguns desses prêmios e eventos. Essa progressão já nos leva ao último grupo supracitado, uma vez que por meio da divulgação destas defasagens de representatividade foi possível uma mudança significativa no meio, da mesma forma podemos notar o aumento de quadrinhos feitos total ou parcialmente por mulheres nos últimos anos” (ALMEIDA; CRUZ; OLIVEIRA, 2018, p. 10).

Em um segundo momento, observou-se as reações dos seguidores em relação às polêmicas publicadas por esses sites em suas redes sociais. De acordo com os autores, existe um engajamento na discussão das polêmicas culturais por parte da comunidade que acompanha esses veículos, nos comentários de publicações feitos na rede social Facebook, os seguidores expressam suas opiniões e posicionamentos em relação aos temas apresentados. Alguns exemplos de temas que geraram estas respostas, são “Síndrome de Arlequina: o perigo por trás da identificação com a personagem!”, “7 dicas para não sexualizar uma heroína em HQs” e “Racebending, nerds e racismo”.

Assim como os sites citados, nos últimos anos outras iniciativas foram criadas para se discutir questões de representatividade e fornecer um espaço para que participantes da comunidade de fãs de quadrinhos encontrassem materiais desse campo vinculados com seus interesses representacionais e, da mesma forma que esses sites, essas iniciativas têm expandido seus alcances nos diferentes meios de comunicação dentro e fora do ciberespaço. Aqui é interessante levantar outra hipótese: a de que essas iniciativas de sites informacionais têm encontrado, nos diferentes meios de comunicação disponíveis no ciberespaço, uma maneira de ampliar seu alcance e de produzir novas iniciativas que colaborem para a visibilidade das questões representacionais nos quadrinhos.

Um bom exemplo nesse sentido, que constitui uma referência importante no Brasil, é o já referido coletivo MinasNerds (criado em 2015), que agrupa mais de mil mulheres, com uma organização empresarial e em pleno crescimento. O coletivo vinculou ou participou de diversas polêmicas relacionadas ao sexismo no meio HQ. Criado especialmente por e para mulheres, a fim de discutir seus hobbies, surgiu na cena geek como um grupo de Facebook voltado para HQs, cosplays, games, literatura, música, cinema e séries de TV. O crescimento do MinasNerd levou à criação de um site e possibilitou perceber a diversidade e riqueza do universo geek feminino. Por outro lado, ao mesmo tempo vieram à tona relatos de abusos, perseguições, misoginia, sofridos no dia a dia pelas mulheres, e de como eram deixadas à margem desse nicho de mercado e grupo de interesse, um reduto tradicionalmente masculino.

As polêmicas envolvendo a premiação dos Troféus HQMIX, no Brasil, em 2015, e a seleção dos indicados para o prêmio do Festival de Angoulême, na França, em 2016, estão entre as questões de gênero que mais foram assuntos das redes e blogs do segmento. Em relação ao HQMIX, foram feitas críticas à publicidade do evento, considerada machista, do mesmo modo como se questionou a representação feminina no prêmio: apenas 13% das publicações indicadas eram de autoria de mulheres e muitas categorias importantes nem mesmo possuíam alguma mulher indicada. A 43ª edição do Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême, um dos eventos mais importantes na área, reproduziu situação semelhante: a lista de 30 nomes indicados para o prêmio não incluía uma única mulher. Após polêmica e boicote de artistas, a direção do evento inicialmente divulgou que iria acrescentar mulheres à lista, posteriormente, novo comunicado mudou completamente os rumos da premiação: ninguém foi indicado. Artistas e membros da entidade (assim como todos que tiveram seus trabalhos publicados naquele ano na França) foram convidados a votar em quem desejassem indicar para o “Grand Prix” – o prêmio mais importante, que coroa, em retrospectiva, um artista e toda sua obra (ALMEIDA, 2018).

Abordagens étnicas também tiveram bastante presença nessas polêmicas, ganhando mais espaço, tanto na indústria mainstream como nos circuitos independentes e alternativos. Temas como os direitos dos negros, a herança da escravidão e as políticas de afirmação, destacando a construção de imagens de empoderamento e afirmação vinculadas às populações negras, foram contemplados nas discussões e nas produções dos artistas. O herói negro das HQs Marvel Comics, o Pantera Negra, foi roteirizado pelo escritor e ativista Ta-Nehisi Coates, sendo posteriormente adaptado para o cinema, com estrondoso sucesso. O caso de outro personagem da mesma editora, Miss Marvel, demonstra que outros grupos também obtiveram atenção do mainstream. Sob a identidade secreta de Kamala Kahn, uma adolescente muçulmana de ascendência paquistanesa, as principais dificuldades da heroína não surgem do confronto com supervilões, mas de lidar com as dificuldades sociais e culturais decorrentes de sua origem familiar e religiosa. Marcelo D’Salete e André Toral propõem releituras da escravidão e de outros episódios da história brasileira em seus trabalhos. Até o site de uma tradicional organização não governamental de ativismo no combate ao racismo e em prol dos direitos afirmativos da população negra, como o Geledés, contempla a presença de uma seção especificamente dedicada às informações e discussões sobre HQs, sinalizando a importância e a representatividade que essa produção cultural atingiu (ALMEIDA, 2018).

Considerações finais

Para analisar o conjunto de questões levantadas anteriormente em relação a esse universo das HQs, consideraremos a perspectiva de Hjarvard (2014), para o qual o mundo passa por uma midiatização intensa da cultura e da sociedade. Hjarvard compreende as mídias como estruturas que condicionam e permitem a ação humana reflexiva e propõe analisar seu papel em vários contextos sociais, ancorando a teoria da midiatização na teoria social geral. O seu entendimento da midiatização compartilha um território comum com a noção de “mediação”, ao deslocar o foco da mídia individual para o papel da mídia na interação social e na mudança cultural.

Podemos entender as indústrias culturais e seus sistemas de mídia como organizações que atuam na seleção, na formatação e na distribuição de bens informacionais, sejam eles músicas, textos, imagens, informações transformadas em notícias etc. Essas atividades implicam o controle do acesso aos bens imateriais e seus suportes e canais de exibição/transmissão. Em larga medida, podem ser descritas como indústrias da intermediação – o que não implica desconsiderar a importância do receptor e das mediações no processo comunicativo. Podemos conectar isso às observações de Jenkins (2009) e refletir como no atual contexto a midiatização e as mediações correlacionadas poderiam possibilitar o direito das pessoas comuns de contribuir ativamente com a sua cultura, ampliando as possibilidades de participação, ainda que com diferentes graus de influência e reconhecimento social.

No caso das práticas culturais que se desenvolvem no âmbito das culturas de nicho, podemos intuir processos de consolidação de novas formas de habitus que se expressam em práticas culturais periféricas, táticas de apropriação relacionadas a formas de colaboração horizontal, que devem ser consideradas quando relacionadas à apropriação social das novas tecnologias. A disseminação ativa de conteúdos implica que suas funcionalidades já se alinham, em alguma medida, com um conjunto pré-definido, mas não necessariamente sistematizado, de normas linguísticas e culturais – um novo habitus em formação. O reconhecimento dessas conexões afirma os conhecimentos culturais em questão, reforçando as bases de apoio que sustentam as práticas e nas quais elas se assentam, formatando e legitimando os atos de recepção como atos de produção cultural, na perspectiva de constituição dos prosumers, segundo Jenkins (2009).

Ao considerarmos as práticas culturais disseminadas pelo mundo das HQs – formas alternativas de acesso, de viabilização de produções e de sua circulação, da introdução de novas temáticas e de novos protocolos de leitura para as antigas produções –, encontramos sintonia com as observações de Jenkins, quando ele assinala que uma das marcas da convergência das mídias tem sido o deslocamento dos conteúdos produzidos/disseminados por uma cultura midiática na direção de outros suportes e de novas perspectivas de acessibilidade mediante o estabelecimento de relações mais complexas entre as interfaces/produtos e a manifestação participativa de suas audiências. Ao refletir acerca da cultura do fandom, percebe-se a mudança da concepção de participação para um viés mais ativo, de interação e produção ativa no âmbito das mudanças provocadas pelas tecnologias, na passagem de:

uma subcultura particular para um modelo mais amplo que engloba muitos grupos que estão adquirindo maior capacidade de comunicação dentro de uma cultura em rede, e rumo a um contexto em que a produção cultural de nicho está cada vez mais influenciando o formato e a direção da mídia mainstream (JENKINS; GREEN; FORD, 2014, p. 64).

Ou seja, os papéis desempenhados pelos diversos atores estão cada vez mais complexamente entrelaçados, embaralhando inclusive as perspectivas sobre adesão ou resistência cultural. Ou, como observam os autores, “estamos passando da celebração do crescimento de oportunidades de participação para uma perspectiva ponderada pela atenção aos obstáculos que impedem muitas pessoas de exercer uma participação significativa” (JENKINS; GREEN; FORD, 2014, p. 65).

Podemos, finalizando, aventar a hipótese de que a apropriação das TICs pelos sujeitos reconfigura os territórios de convivência e potencializa os encontros. Aumentou significativamente nos últimos anos não só a presença geek/nerd na internet, mas em diversas situações de encontros presenciais: reuniões de fãs-clubes, convenções, feiras, eventos de cosplay. No universo das HQs, exemplar da cultura geek/nerd, objetos e produtos culturais são valorizados a partir de sua capacidade de comunicar. Essa vivência do consumo cultural fundamenta-se em relações de significação e representação, referindo-se ao mundo e nele marcando lugares de memória e identidade. Nesse sentido, valoriza profundamente a catalogação (curadoria) dos bens e produtos culturais, gerando uma necessidade contínua de informação sobre os mesmos. De um modo geral, o conjunto de textos e bens consumidos, bem como sua catalogação e hierarquização, assinalam sua importância na constituição de escolhas de identidade/identificação. São essas escolhas que inserem os indivíduos em grupos ou subgrupos dentro desse universo cultural, construindo lugares no mundo refletidos em estilos de vida e consumo cultural.

A existência e expansão desse tipo de cultura, com fortes traços juvenis, mas não só, fortemente dedicada ao consumo, catalogação e atribuição de sentido aos bens e textos da cultura da mídia, tornou-se possível principalmente graças à penetração das TICs no cotidiano. Há um impulso de compartilhar experiências entre os frequentadores desse universo, que não descarta, por outro lado, a exploração do potencial econômico desses eventos: as editoras de HQs, assim como outras indústrias culturais relacionadas, também têm investido fortemente nesse setor. De todo modo, a internet, em particular as redes sociais, são o epicentro organizacional e referencial que possibilita a realização desses encontros na atual escala, funcionando também como feedback para a avaliação, crítica e continuidade dessa prática cultural.

Acredito que as práticas observadas em relação ao universo das HQs encontram similaridades em outros territórios culturais. A apropriação dos recursos e interstícios proporcionados pela internet, no que tange à geração de formas, conteúdos e identidades, proporciona a emergência de repertórios culturais híbridos, que misturam práticas tradicionais e inovadoras, institucionalizadas e não institucionalizadas, legais e “marginais”. Por outro lado, as indústrias culturais e seus braços na internet também atentam para esses processos, procurando se aproveitar deles e, no limite, controlá-los. Tornou-se perceptível, para elas, a necessidade de serem capazes de criar novas necessidades a partir da percepção de como são os fluxos de interesse das pessoas que possuem cada vez mais opções disponíveis para seguir: “a captura das atenções é uma arte, mas uma arte tecnológica, baseada na análise dos comportamentos, na definição de padrões comportamentais dos segmentos e indivíduos em rede” (SILVEIRA, 2016, p. 18). Seguindo o raciocínio de Silveira, as plataformas de comunicação on-line tornaram-se as mediadoras das ofertas culturais na busca por seus consumidores, buscando modular o comportamento e as escolhas das pessoas por meio dos algoritmos. Nesse sentido, a internet hoje é talvez o front mais ativo da guerra cultural.

Referências

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Delirium Nerd. Disponível em: https://www.facebook.com/delirium.nerd

Geledés-HQ. Disponível em: https://www.geledes.org.br/tag/hq/#gs.LbFw8

Lady’s Comics. Disponível em: http://ladyscomics.com.br/

Minasnerds: Disponível em: http://minasnerds.com.br/

Social Comics. Disponível em: https://www.socialcomics.com.br

Recebido em: 04/07/2019

Aceito em: 11/09/2019


1 Cosplay é uma prática comum nas comunidades relacionadas com a cultura pop, em que os fãs se vestem com os trajes de um personagem que admiram, em alguns casos desempenhando performances de interpretação do personagem.

2 Fanzines: o termo “designa uma revista feitas por aficcionados do gênero, a maioria das vezes colecionadores ou artistas iniciantes. Nesse sentido, a própria palavra escolhida para definir essas publicações já define suas principais características, representando a junção de dois termos: fã e magazine” (VERGUEIRO, 2005, p. 7).

3 Um bom levantamento par a situação do mercado de HQs nas décadas de 1980 e 1990, chegando ao início dos anos 2000, pode ser encontrada em Saks (2015). Para um panorama mais atual, enfocando a internet, ainda que parcial ver Marino (2018).

4 Becko (2017), que investigou de que formas os fãs constroem suas performances e como elas contribuem para suas narrativas identitárias no campo das HQs, verificou que dos 876 que responderam à pesquisa, 72% afirmaram que acompanham “frequentemente” e “sempre” sites, fanpages, blogs, canais no Youtube, entre outros, que falam sobre temáticas relacionadas à cultura nerd, e 65% das respostas indicaram que acompanham três ou mais desses veículos de informação (BECKO, 2017, p. 6).

5 Um ano após o início dessa onda provocada pelo Comicsgate, alguns de seus seguidores assediaram Marsha Cook, viúva do quadrinista Darwin Cook que faleceu em 2016. Em resposta a um usuário que publicou um vídeo de Darwin no Twitter, sugerindo que se estivesse vivo ele apoiaria o Comicsgate, Marsha disse que podia garantir que Darwin pensaria que eram os “idiotas” desse movimento que estariam estragando os quadrinhos. Sua resposta gerou diversas respostas dos seguidores pró-Comicsgate, alguns duvidando que ela fosse a viúva de Darwin, outros criticando seu envolvimento com o assunto. Mas essas respostas também atraíram a atenção de artistas e profissionais da indústria de quadrinhos. Alguns dias após as postagens envolvendo Marsha e Darwin Cook, o escritor Tom Taylor, que escreve histórias tanto para a DC quanto para Marvel, postou uma mensagem em seu Twitter dizendo que os quadrinhos eram para todos, e que não havia espaço para assédio e para preconceitos. Seguindo seu exemplo, outros artistas da indústria também compartilharam suas mensagens em favor da diversidade, nomes como Magdalene Visaggio, Jody Houser, Kelly Thompson, Tim Seeley, Margaret Stohl, Tini Howard, Bill Sienkiewicz, Greg Pak, Fabian Nicieza, Benjamin Percy, Jeff Lemire, entre outros.

O LIVRO E SUAS REPRESENTAÇÕES

NOS CONTEXTOS ARTÍSTICOS CONTEMPORÂNEOS

THE BOOK AND ITS REPRESENTATIONS

IN CONTEMPORARY ARTISTIC CONTEXTS

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Giulia Crippa1

Resumo

Neste artigo, propomos o estudo de algumas representações visuais de livros e das leituras que artistas e gráficos convidam leitores e públicos a realizar. Para tanto, utilizamos uma metodologia oriunda da História Cultural, com a finalidade de desenhar uma topografia das interações entre o livro enquanto objeto e a ação da leitura no âmbito do imaginário social, através das permanências e das mudanças dessa interação nas representações selecionadas para o estudo. Nossa proposta visa, assim, descrever algumas imagens com base em uma proposta de paradigma conjectural como apresentado por Ginzburg (2004), questionando os exemplos enquanto Imagines Agentes de livros e leitores. O intuito é configurar as representações do imaginário acerca do livro e da leitura em um momento em que, diante das novas tecnologias de informação e comunicação, se discute seu futuro e o das novas relações de leitura proporcionadas por essas tecnologias. O prisma de observação das representações dos livros e da leitura oferece várias perspectivas: o livro como objeto físico ou como espaço mental; o livro evocado; o livro como guia de viagem, entre outros. Nosso estudo procura exemplificar e mapear alguns dos elementos que caracterizam essas representações, que as tornam objeto de interesse para oferecer elementos para uma história e uma sociologia do imaginário acerca dos livros e de seus leitores.

Palavras-chave: Livro. Representações. Imaginário. Arte.

Abstract

In this article we propose the study of some visual representations of books and of the reading artists and graphics invite readers and public to perform. To achieve that, we will apply a methodology rooted in Cultural History, aiming to design a topography of interactions between the book as an object e the act of reading present in social imaginary, through long lasting signs e changes in this interaction among representations selected for this study. This paper proposes a description of some representation based on the model of the so called conjectural paradigm, questioning the chosen examples because of their being Imagines Agentes of books and readers. The idea is to configurate the representations of social imaginary about books and reading in an era when, facing new technologies of information and communication, we debate their future and the future of the new relations we establish with reading, offered by these technologies. The prism through which we observed the representations of books and reading offers different perspectives: the book as a physical object or as a mental space; the evocated book; the book as a travel companion, among others. Our survey tries to exemplify and map some of the elements that turns these representations interesting, that made them object of interest, in order to offer elements for a history and a sociology of imaginary on books and readers.

Keywords: Book. Representation. Imaginary. Art.

Introdução

Propomos o estudo de algumas representações sociais do livro “imaginado”, aqui proposto como um índice de um percurso de temas e valores que são mantidos e/ou transformados no


1* Professora Associada do Dipartimento di Beni Culturali, Università di Bologna. Livre Docente em Ciência da Informação pela FFCLRP/USP. Doutora em História Social pela FFLCH/USP. Bacharel em Lettere Moderne pela Università di Bologna. E-mail: giulia.crippa2@unibo.it

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 51 Julho/Dezembro de 2019, p. 43-56

processo de secularização da Modernidade. O trabalho de Curtius (1996) abre as portas para o imaginário, a representação e o simbolismo do livro pela perspectiva da literatura, enquanto do ponto de vista iconográfico pode-se recorrer à perspectiva de Aby Warburg (2012) (e seus discípulos, entre os quais Panofsky, Gombrich, Saxl, Baxandall, Ginzburg). Para essa escola, o poder memorial das imagens é central e provoca uma renovação epistemológica no campo dos estudos iconográficos, que é reconfigurado como “antropologia da visão”, na qual se reconhece a autonomia da linguagem da arte (DIDI-HUBERMAN, 2013), tentando, no entanto, ver os componentes que permitem identificar modelos emblemáticos para os quais as razões de sua aparição são investigadas e suas funções são estudadas como meios de transmissão de valores socialmente construídos na esfera do imaginário.

As histórias começam nas páginas dos livros que ocupam as estantes das livrarias e das bibliotecas, cujas narrativas prosseguem, como veremos, na tradução de alguns artistas do passado e do presente. Grandes autores sempre tiveram uma influência notável no desenvolvimento das poéticas, tornando-se, ao longo do tempo, fontes de inspiração, não somente para outros escritores, mas também para os artistas, sejam eles do passado, bem como contemporâneos.

O Narrador é o título de um bem conhecido ensaio de Walter Benjamin (1962), que trata da prosa de Nikolai Leskov. As reflexões de Benjamin a respeito da qualidade e do poder dos grandes narradores são bastante relevantes no âmbito da teoria literária, mas se apresentam como valiosos também no campo da interpretação que os artistas elaboram da literatura. Mesmo Benjamin expressando sua preocupação sobre o fim da arte da grande narrativa, ele escreve, com grande visão: “Sugestões tecidas na fábrica da vida real são sabedoria. A arte da narração está chegando ao seu fim porque o lado épico da verdade, a sabedoria, está se esgotando” (BENJAMIN, 1962, p.182). Benjamin marca um ponto válido, em termos de narrativas orais, mas claramente a arte da narrativa escrita não estava se esgotando, assim como a arte da narrativa reelaborada pela arte aparenta, por outro lado, florescer. Benjamin descreve as qualidades inerentes à narrativa, enfatizando tanto o papel do narrador, bem como o do público, papéis que poderíamos estender aos do artista e do público da arte.

A narração é sempre a arte de repetir as histórias, e essa arte se perde quando as histórias não são mais lembradas. Se perde quando não há mais a tecelagem e o urdido em ação, enquanto são ouvidas. Quanto mais o público esquece de si, quanto mais profundamente aquilo que ouve se imprime em sua memória. Quando o ritmo do trabalho o cativa, escuta as histórias de maneira tal que o dom de contar de novo aparenta ser, para ele, sem esforço. Essa, portanto, é a natureza da rede em que o dom da narração se embala. É isso que hoje está se esgarçando, depois de ter sido tecido por milhares de anos, no ambiente da forma mais antiga de artesanato (BENJAMIN, 1962, p. 185).

As pinturas, instalações, esculturas, fotografias, desenhos que queremos apresentar e estudar não são interpretações miméticas das obras literárias, bem como não necessariamente as ilustram. Porém são profundamente inspiradas, de maneira clara, à literatura e à poesia, portanto à leitura. Como para todas as histórias, a narrativa é complexa e entrelaçada, rica em metáforas e simbolismos, compreendendo também viagens pessoais, ou, ainda, realizadas de maneira mais “teórica”. De qualquer maneira, todas as obras contam histórias a partir do fio condutor de histórias já existentes.

Trata-se, portanto, de artistas que se tornam eles mesmos narradores, com a habilidade de enredar as narrativas existentes pelos trilhos da arte, revelando a dívida com as palavras e, ao mesmo tempo, ilustrando texto e linguagem de maneira separada das mesmas.

Claro, o jogo entre texto e imagem não é novidade, mas as obras em análise, como veremos, revelam uma ligação bastante específica com a literatura: livros reais, livros imaginários, réplicas de livros, coleções de livros, páginas de livros, partes de livros, imagens de livros, instalações de livros, se tornam quase uma materialização do universo borgesiano.

Utilizaremos uma metodologia oriunda da História Cultural, com a finalidade de desenhar uma topografia das interações entre o livro enquanto objeto e a ação da leitura no âmbito do imaginário social, através das permanências e das mudanças dessa interação em obras produzidas pelas representações escolhidas. O intuito é configurar a representação do imaginário acerca do tema em um momento em que, diante das novas tecnologias de informação e comunicação, se discute seu futuro e o das novas relações de leitura proporcionadas por essas tecnologias, como mostram Chartier (1999), Murray (2003) e Santaella (2004), entre outros. Entre as representações processadas dentro de um universo mais amplo pesquisado, selecionamos algumas que permitem ser usadas como Imagines Agentes1.

O olhar de escolas históricas, voltadas para uma pesquisa indiciária, como propõe Carlo Ginzburg (2004), leva a perspectivas interessantes em suas abordagens inéditas de análise dos sistemas de representação de livros, leituras e leitores. Em relação à representação de livros e leitores na literatura, não faltam estudos e monografias. Na segunda metade do século XX, temáticas ligadas à produção e circulação de livros e suas representações como produtos da ordem do imaginário têm convergido as pesquisas de profissionais ligados às Ciências Humanas e Sociais de maneira consistente, reunindo capitais culturais diferentes na reflexão sobre o tema da representação do livro. Consequentemente, do imaginário e dos quadros sociais da leitura (CURTIUS, 1996) para uma compilação bibliográfica extensa sobre a simbologia do livro na literatura ocidental desde antiguidade até o século XIX; Cavallo e Chartier (2002) e Chartier (2001) abordam vários aspectos das práticas de leituras e de suas representações.

A representação de livros e de leituras, tanto em sua aparição iconográfica como no desenvolvimento textual, deveria “permitir reavaliar os discursos que objetivam regulamentá-la, dizer sua norma ou prescrevê-la, como aqueles que pretendem construir uma descrição objetiva, histórica ou sociológica, das práticas de leitura” (FRAISSE; POMPOUGNAC; POULAIN, 1997, p. 8).

O prisma de observação das representações dos livros e da leitura oferece várias perspectivas: o livro como objeto físico ou como espaço mental; o livro evocado; o livro como guia de viagem, entre outros. Nosso estudo pergunta quais são as características dessas representações, que as tornam objeto de interesse para integrar uma história do conhecimento e de seus atores.

A força memorativa de determinadas imagens está no centro das pesquisas de Aby Warburg (2012), que provocou uma renovação epistemológica no campo da história da arte, que seguiu nos estudos realizados pelos discípulos Panofsky (1975), Gombrich (2003), Saxl (2005), Baxandall (2006) e Ginzburg (2004). A mudança de enfoque sobre os fenômenos artísticos se atrela a uma “antropologia da visão”, considerada por Warburg a faculdade primeira de apreensão da mente humana. A História Cultural fundamentada nesta antropologia da visão entende a autonomia da linguagem da arte, buscando, assim, caracterizar as partes dessa linguagem. Dessa forma, é possível identificar alguns aspectos que cabe ao pesquisador estudar, sempre lembrando que o ato da descrição parcialmente interpretativa “é menos uma representação do quadro, ou mesmo uma representação do que se vê no quadro, do que uma representação do que pensamos ter visto nele” (BAXANDALL, 2006). As representações de livros, leitores e leituras, constituem no tempo um conjunto de representações ainda a ser ordenado, para as quais buscamos as razões do aparecimento, de sua configuração e dos olhares aos quais se oferecem, propondo veredas pelas suas funções sociais na transmissão cultural.

A expressão de narrativas visuais, anteriores à escrita, existe desde o paleolítico (como no caso das grutas de Lascaux) e, até hoje, as imagens se sobrepõem e se substituem às palavras; por exemplo, para favorecer a compreensão de narrativas sobre feitos civis ou religiosos, como acontecia no Egito e em Roma, ou na Idade Média e Moderna, enquanto se observa que a fotografia não mudou essa função ideológica da narrativa visual, mas sim suas modalidades e efeitos sobre os públicos.

Na produção artística e gráfica, é interessante, para além da narração pessoal, observar aquilo que acontece quando as manifestações visuais criam obras baseadas em narrativas escritas de natureza poética ou ficcional já familiares ao público. Escreve Jacques Rancière (2007, n.p):

Os artistas, como os pesquisadores, constroem o palco onde a manifestação e o efeito de sua competência se torna dúvida, enquanto emolduram a história de uma nova aventura em um novo idioma. O efeito do idioma não pode ser antecipado. Congrega os espectadores ativos enquanto intérpretes, que procuram inventar sua própria tradução para se apropriar da história, construindo, assim, sua própria história. Uma comunidade emancipada é, de fato, uma comunidade de narradores e tradutores. Estou consciente do que isso possa aparecer: palavras, somente palavras. Mas não o considero um insulto.

Cada narrativa que conta novamente uma história constrói um palco no qual não somente repagina/emoldura a história em uma nova língua, mas recria e reencena histórias já contadas. Aos públicos, por outro lado, se pede para serem intérpretes ativos e novos narradores.

Algumas reflexões sobre “ilustrar” um livro

É lugar comum afirmar que um texto e sua ilustração, como forma de representação, são complementares. Se, de um lado, isso se aplica facilmente na leitura e observação de livros infantis, didáticos e a alguma representação de obras particularmente imagética, como é o caso das ilustrações de Gustave Doré para os três cantos da Divina Commedia, por outro, é necessário recorrer aos estudos semióticos para esclarecer essa relação. Michel Melot (1984) afirma que “a imagem não é mais um apêndice, decoração ou redundância do texto. É simplesmente uma técnica diferente de estruturar o conhecimento” (p. II). Mais à frente, alega que:

combinação de imagens e escrita [...] introduz no sistema de signos uma incoerência fortificante e frutífera, pois confronta o leitor com sua própria verdade. O signo pode ser mais ou menos próximo ou distante de seu significado, que pode ser natural ou arbitrário, sem por isso afetar sua natureza ou valor enquanto signo – tudo isso mostrando claramente que a relação do signo com seu conteúdo não é certificada na ordem das coisas em si (MELOT, 1984, p. 13).

O autor elabora, nesse rumo, a teoria dos signos de Foucault que escreve “o signo para de ser uma imagem do mundo, e para de ser vinculado ao que distingue através dos vínculos sólidos e secretos da semelhança ou da afinidade” (FOUCAULT, 1988, p. 73). A observação das ilustrações de textos revela uma função crítica dos ilustradores, enquanto intérpretes das narrativas, com o poder de destacá-las ou distorcê-las. As representações, por exemplo, podem enfatizar ou somar informações até ausentes no texto, a ponto de oferecer interpretações de certos aspectos da narrativa, revelando implicações das quais nem o autor do texto, às vezes, é consciente. Em certa medida, a ilustração se torna a leitura e interpretação do texto do ilustrador, somando elementos estéticos, sociais, históricos. As ilustrações dos textos, porém, mantém uma relação que força os leitores a cotejar as duas representações, mesmo mantendo sua independência. Um dos elementos que caracteriza as ilustrações é a seleção do momento/ação a ser representado. Melot afirma que o ilustrador deve possuir “a arte de escolher o momento crítico” (MELOT, 1984, p. 7, grifo do autor). Uma sequência de ilustrações, fragmentadas pelo texto, se revelam pausas significativas no continuum da narrativa.

Apesar de cada ilustração singularmente se apresentar como estática, sua sequência constitui também um fluxo narrativo, ou seja, o efeito cumulativo das ilustrações implica um movimento no tempo e no espaço. As escolhas individuais dos ilustradores sobre a composição, as personagens, as imagens, os símbolos, bem como a organização de sua seleção em relação ao texto e a escolha de manter determinados assuntos, determinam o desenvolvimento da narrativa visual em seu entrelaçamento com o texto. Melot questiona, porém, como o ilustrador é mais que um mero colaborador do autor, contribuindo de maneira independente para o texto:

Enquanto a ficção ganhava terreno [...] imagens baseadas nela cresceram independentemente. A ilustração alcançou um valor específico, pois somava ao texto algo que este não podia mostrar. Se concentrava em um ponto particular, sobre o qual se concentrava e ampliava. Seu poder de suspender a narrativa em um momento singular do enredo contribuía a fornecer um toque de maravilhoso. (MELOT, 1984 p. 110-111).

O ilustrador, nesse sentido, busca ampliar o texto através de sua perspectiva de artista intérprete e tradutor de outra narrativa. Na medida em que as escolhas dos ilustradores refletem suas orientações pessoais, bem como suas reações às mudanças na percepção das narrativas por parte da crítica literária, dos eventos políticos das convenções estéticas e culturais ao longo do tempo, as narrativas visuais mudam. Em todo caso, essas narrativas visuais providenciam subtextos para a interpretação dos leitores e dos públicos. Não trataremos, portanto, de livros de artistas strictu senso, pois em todos os casos as obras se espelham em narrativas já escritas, reformuladas em uma outra linguagem não textual.

É necessário destacar uma diferença fundamental entre a ilustração, que é parte integral de um texto escrito, e a pintura ou a escultura. Essas últimas podem se inspirar, traduzir ou construir uma nova narrativa, mas se colocam em um lugar e em um tempo de leitura diferente do livro, na medida em que interagem com um outro ambiente, que é o do museu, da galeria ou de um ambiente externo. O impacto com o espaço em que se encontra a representação artística pode reduzir ou até apagar a relação colocada entre a narrativa original e a obra de arte.

Assim, o diálogo estabelecido pela obra de arte autônoma pode se estabelecer com o espectador, mas não necessariamente o espectador dialoga também com a narrativa do texto escrito. Isso, porém, reforça nossa ideia da construção de uma nova versão que encena a multiplicidade de leituras possíveis. Exemplo disso pode ser encontrado na instalação “A onda do mar”, realizada entre 1991 e 1997, em que o autor, Cildo Meirelles, pede para que sejam colocados no chão dúzias de volumes impressos. Seguindo suas instruções, trata-se de livros que contêm unicamente fotografias de água para compor uma imagem poética do mar. Encontramos, aqui, o uso de livros enquanto configuração material de uma “intenção” visual do mar, na medida em que a palavra água é repetida, em línguas diferentes, por uma série de alto-falantes. Cada livro é aberto em uma determinada página, mas sua função para a leitura é negada, enquanto sua acumulação, como tijolos, forma uma imagem maior2.

Entre Melville, Borges e Joyce: as narrativas dos artistas

Conforme Schultz (1995), o primeiro pintor que se inspirou livremente no romance Moby Dick foi Karl Knaths em 1935, pintando “Moby Dick”. A escolha do artista é de representar uma cópia do próprio livro, colocando-o entre outros objetos, em uma espécie de natureza morta que compreende uma caixa com um navio, um busto em estilo cubista e um globo dourado. O enfoque de Knath nas formas (o livro, o navio, o busto) sugere um interesse compartilhado com Melville nos diferentes e, às vezes, conflitantes papéis do artista, do leitor, do autor e do observador na interpretação da narrativa. Na pintura, Moby Dick, o livro, é colocado de maneira quase metafísica, emblema de ideais de vida americanos e, ao mesmo tempo, desafio para qualquer tentativa de agarrar o livro materialmente, metáfora da impossibilidade de alcançar esses ideais. O artista realizou outras representações do livro, na tentativa de interpretar visualmente o texto. De 1966, é o óleo “Ishmael”, e de 1970, “Moby Dick, the Third Day”. Nessas obras, Knaths se volta para uma pintura mais tradicional, apresentando um retrato do narrador da história e a representação da cena do confronto final entre o Pequod e a baleia branca. Se a pintura de 1935 apresentava tonalidades pouco intensas, as obras mais recentes utilizam uma paleta de cores bem mais intensa, próxima das técnicas das histórias em quadrinhos. O rosto de Ismael é fragmentado, com tonalidades de verde, laranja, rosa e azul, sugerindo a complexidade da experiência vivida pelo narrador. Um olho se fixa no observador, enquanto o outro, na sombra, parece se voltar para dentro. O fundo é dividido entre verde e púrpura, reforçando essa proposta de leitura de um mundo dividido. Na última pintura, encontra-se, no canto direito embaixo, uma retomada do busto de 1935, em uma versão cubista, com um perfil masculino realizado com pinceladas de azul, púrpura e escarlate. Não se pode dizer se é a imagem de Achab ou de Ismael, mas seu destaque contra o fundo leva o espectador a testemunhar a devastação do Pequod ao lado dele e a adentrar a história com suas próprias reflexões.

Observamos uma instalação realizada por Ernesto Neto em 2010. Ernesto Neto é um importante artista multimídia carioca, nascido em 1964, que procura criar, em suas instalações, espaços de intercâmbio social, solicitando ao espectador a superação da experiência meramente visual, através da solicitação de outros sentidos. Entrar nessa obra de Ernesto Neto significa iniciar uma viagem pessoal da imaginação, seguindo as veredas do mundo filosófico e metafísico de Borges, representadas perlo conto As ruínas circulares. Trata-se da instalação “Círculo-Prototemplo3, narração visual do conto Borgesiano, composto por um enredo de camadas múltiplas em que a narrativa explora as relações entre a ficção e a experiência do real, que trata da viagem de um mago que adentra umas ruínas circulares com o objetivo de gerar um filho vivo, com um verdadeiro coração, através unicamente de seus sonhos e fantasias. Depois de quatorze noites dormindo, ele sonha, finalmente, com um coração perfeito e pulsante, que acredita tratar-se do primeiro passo para alcançar seu objetivo. A história centraliza o pensamento de Borges segundo o qual cada um percebe a realidade sem podê-la distinguir de uma ilusão, de uma criação, portanto, da imaginação. Através da história, estabelece-se uma linha sutil entre imaginação e realidade. Assim, no final, o mago percebe que o filho imaginado existe unicamente em seus sonhos. Pior ainda, descobre que ele também não passa de um fragmento de imaginação de outra pessoa.

O trecho do conto a partir do qual Ernesto Neto elabora sua narrativa visual (e sensorial) é o seguinte:

Sonhou que era quente, segredo, mais ou menos do tamanho de um punho fechado […]. Durante as catorze noites sonhou-o com meticuloso amor. Cada noite o percebia com maior clareza. Não encostou nele; permitiu-se unicamente de testemunhá-lo, de observá-lo e, ocasionalmente, de arrumá-lo com um olhar. O percebeu e o vivenciou de cada ângulo e distância. Na décima-quarta noite tocou de leve a artéria pulmonar com o dedo indicador, depois o coração inteiro, por dentro e por fora (BORGES, 1999, p. 25).

Ernesto Neto construiu uma estrutura vermelha com o formato de um coração que, com a colocação em seu interior de um tambor, bate conforme o ritmo fornecido pelo público através do tambor. A estrutura é lúdica e busca estimular a interação tanto dos adultos como das crianças. Podemos observar os pormenores da estrutura completa: nos detalhes das superfícies coloridas e brilhantes e do ambiente criado no interior desse coração se encontram a habilidade do artista-artesão na elaboração da narrativa através da aproximação sensorial dos materiais, ambientes e sons. São as interações dos indivíduos com a vontade de dar vida a esse coração que centralizam o interesse do artista, que procura estimular o ato criativo, da imaginação. A instalação oferece, assim, um espaço no interior do coração vermelho, onde o público pode sentar, conversar, tocar o tambor, isto é, torná-lo autônomo, com vida própria. A ideia de viagem individual está presente nas suas obras, e o público se torna participante ativo da instalação, adentrando seu interior e sentindo-se envolvido pelas cores, formas, cheiros e sons. A obra não é somente um convite à experiência sensorial, mas ao âmago do conto. Como em todos os trabalhos de Neto, a obra pode ser tocada, percorrida, atravessada. O espectador é estimulado a se concentrar em sua própria percepção da obra e interagir com ela e com o ambiente em volta. Retoma, então, a teoria de Rancière para o qual o público deve tornar-se intérprete ativo no exato momento em que entra em relação com a representação de maneira física, emocional e intelectual.

Marilá Dardot (1973) é uma artista para a qual a literatura é a fonte para as obras. Em 1999, a partir do conto O livro de areia4 de Borges, realiza um livro feito de espelhos, com o mesmo nome, condensando questões que permeiam sua produção, isto é, a literatura e a participação do espectador. O conceito de seu livro de espelhos é, justamente, sua relação com o livro paradoxal descrito por Borges, construído na base da ideia de um livro de páginas infinitas. Como é típico de Borges, o conto origina uma teia intricada de segredos, tesouros, charadas e sonhos entrelaçados na narrativa surreal. Mais do que criar uma interpretação direta do conto de Borges, Dardot oferece referências a Heráclito e à sua noção de panta rei, tudo passa e não pode voltar. Essa segunda referência diz respeito ao fato de que um leitor, em uma segunda leitura, nunca encontrará os mesmos significados em suas páginas, mesmo o livro sendo igual. No final, Dardot não somente cria uma obra de arte, mas um livro real que funciona como um infinito contínuo em que arte, literatura, quotidiano e filosofia se tornam inextricáveis.

Suas obras se apresentam mais como diálogo que como adaptação, colaboração. Para ela ambos, artista e autor, colaboram, na medida em que se estabelece o diálogo com aquela obra, narrada através da leitura que dela a artista elabora. Não apenas a literatura faz parte do seu trabalho, mas o livro como um objeto também está muito presente.

Livros comprados em sebo, que trazem a história do objeto, as marcas de leitura, inspiraram o trabalho “Sebo”, feito em parceira com o artista Fábio Morais. O livro aparece no seu trabalho também como um objeto escultórico, como em “Terceira margem” (2007) e “Volta ao dia em 80 mundos” (2013) e “O livro das mil e uma noites” (2014). Depois de uma viagem para a Eslováquia, que tem uma grande tradição de desenho de animação, percebeu que o design dos livros traduzia uma cultura e, a partir dessa pesquisa, produziu a série de representações “Minha Biblioteca” (2014-2018).

Elida Tessler (1961) realiza, em 2010, a instalação “Dubling”5 (2010), concebida a partir de 4311 gerúndios retirados do romance Ulisses de James Joyce, reunindo 4311 garrafas, 4311 rolhas com palavras impressas e 4311 cartões-postais. 
Trata-se de uma verdadeira homenagem bibliófila à obra principal de James Joyce. O relato da artista sobre a criação é anedótico, mas é parte da própria obra. Durante uma viagem para Dublin, Tessler visitou os lugares retratados no romance joyciano. Em seguida, durante outra viagem, dessa vez à França, enquanto sentava em um café, pediu uma garrafa de vinho, na rolha da qual havia impressa a palavra esperança. Enquanto o garçom abria a garrafa, citou Joyce: “homem e mulher, amor, o que é? Uma rolha em uma garrafa”. A artista afirma ter se inspirado nessa experiência incomum6 e, voltando ao Brasil, começou a ler, sentada em um café de Porto Alegre, todos os dias, o Ulisses em português e em inglês seis vezes, marcando todos os verbos que encontrava. Tornou todos os tempos verbais gerúndios, gravando-os em rolhas, que colocou nas 4311 garrafas vazias. Ao lado delas, colocou uma grande gaveta de madeira, parecida com um ficheiro, contendo 4311 postais com fotos do rio Liffey, que atravessa Dublin, acompanhadas pelos verbos no gerúndio.

Na obra “Palavras-chave” composta por nove claviculários em metal – fixados à parede e contendo chaves com palavras gravadas – todas as palavras são retiradas de obras literárias, selecionadas a partir de critérios pré-estabelecidos pela artista. Com esse trabalho, a artista materializa a expressão “palavras-chave”, condensando palavra, imagem e objeto. Os títulos de cada claviculário são inscritos em plaquinhas metálicas agregadas às caixas.

Seus trabalhos são sempre construídos com palavras, linguagens, literatura, livros, são inspirados pelos autores do cânone ocidental (Proust, Joyce, Eliot) e brasileiros (Guimarães Rosa), dos quais traduz, transcreve, escreve e reescreve as parole chave em objetos quotidianos, como chaves, lençóis,

Para concluir essa pequena galeria de artistas leitores que propõem leituras aos espectadores, gostaríamos de falar de dois artistas, Alfredo Jaar e Marisa Bonilla, ambos chilenos, que também se envolveram na produção de instalações ligadas a livros e leituras. Uma das instalações é uma sala nas cores preta e vermelha bastante ampla, onde se encontram centenas de livros para ler. Não se trata de uma livraria ou de uma biblioteca, mas da obra/instalação “Marx Lounge7, verdadeira intervenção física e teórica que requer uma participação ativa dos espectadores para apreciação da obra. Se trata de um work-in-progress, na medida que, conforme é exibida, a instalação muda para se adaptar ao lugar e ao público. O que se mantém são as paredes vermelho quente, a iluminação estudada para otimizar a leitura e a presença de sofás confortáveis. Aproximadamente, o espaço contém 1.500 tascáveis ordenadamente dispostos em cima de uma mesa, com uma seleção de assuntos amplamente relacionados com o pensamento marxista, incluindo assuntos de economia, filosofia, história, psicanálise e, principalmente, política. Um dos aspectos relevantes do trabalho é que, para ler tudo, demoraria vários anos: “Marx Lounge” se propõe, assim, como antídoto à velocidade da sociedade em que vivemos, onde, para muitas pessoas, aparenta ter pouco ou nenhum tempo para a leitura.

Uma das habilidades de Jaar consiste na capacidade de convergir mensagens políticas em trabalhos que são tanto visualmente cativantes como conceitualmente significativos. A gigantesca mesa central, cobertas de livros em formatos e cores diferentes, é uma instalação em si, enquanto as paredes vermelhas, as plantas nos vasos e as luzes contribuem para gerar um ambiente perfeito para a reflexão intelectual. Claramente, cada visitante escolherá livros diferentes, conforme seu interesse e perspectiva particular. Na verdade, a leitura dessa obra oferece muitas possibilidades, mas o que permanece é que não importa o que queremos entender da instalação, cada página daqueles livros é um lembrete do valor do conhecimento e do trabalho intelectual. “El Capital/Manuscrito Siniestro” (2008) foi realizada por Milena Bonilla inspirando-se diretamente em um dos livros da “Marx Lounge”, mais exatamente o Capital de Marx, em uma edição colombiana, mas, ainda assim, o livro de Bonilla é bastante diferente de qualquer livro presente na instalação de Jaar. De fato, Bonilla resolveu reescrever, com a mão esquerda, palavra por palavra, transformando o livro no “Manuscrito siniestro8 do título, com toda a ambiguidade presente no termo, que significa tanto escrito com a mão esquerda, bem como portador de um significado sinistro, na medida em que se torna ilegível.

Para realizar esse projeto, Bonilla criou duas versões do livro, sendo a segunda uma versão “pirata”. Ambas as versões apresentam elementos a serem destacados: o manuscrito, pelo absurdo de criar esse estranho objeto encadernado luxuosamente, enquanto a versão “pirata” apresenta qualidades de uma produção de massa, como um livro de bolso barato, acessível a todos. A ironia é que o texto, na grafia ilegível da artista, é incompreensível a todos. O trabalho não apresenta, portanto, uma homenagem ao livro de Marx, mas uma crítica às esquerdas e às suas contradições. Bonilla não somente reescreve um texto já existente, como também o desconstrói, tornando-o ilegível. Trabalhar com uma obra tão amplamente conhecida, pelo menos como título de referência, permite à artista a liberdade de transformar as palavras originais em algo incompreensível, pois o texto original está colocado como referência, através do título. Simbolicamente, a artista reescreveu com uma mão só Marx, isto é: reescreveu a história de maneira provocativa, desconstruindo vários mitos marxistas.

O exame das influências cruzadas entre objeto, imagem, texto e representação se apresentam como particularmente relevantes no manuscrito de “El Capital/Manuscrito Siniestro”, realizado por Milena Bonilla, que se torna uma crítica ao endeusamento de Marx enquanto religião política do livro. Além disso, sua obra contradiz a ideia de livro como meio de comunicação baseado e criado pela impressão.

Leituras recicladas

A Eloisa Cartonera é uma cooperativa criada por autores argentinos e formada por dez sócios que, desde 2003, produz livros artesanais. O miolo dos livros é realizado com uma impressora caseira na sede da editora, a poucos passos do estádio La Bombonera9, enquanto as capas são confeccionadas em papelão comprado diretamente dos “cartoneros” argentinos – “profissão” que surgiu com a explosão do desemprego na crise de 2001 e que equivale aos catadores de papel brasileiros.

Segundo o Movimento Nacional de Trabalhadores Cartoneros e Recicladores, em Buenos Aires e arredores cerca de 100 mil pessoas vivem recolhendo papel, sendo que 98% deles não fazem parte de nenhuma associação ou cooperativa. Na editora, eles recebem 0,25 centavos de peso por caixa (o mercado paga 0,45 centavos pelo quilo). Ao som de uma boa cumbia, essas caixas viram capas, desenhadas e pintadas com temperas coloridas por jovens, filhos dos cartoneros. Cada livro é único e vendido por 5 pesos na própria editora, em feiras e em livrarias. As edições não passam de mil unidades e, para algumas pessoas, já viraram peças de coleção.

O catálogo é de primeira qualidade e tem somente autores latino-americanos. Ricardo Piglia, Alan Pauls, Mario Bellatin e César Aira. O último conto de Tomás Eloy Martínezpode ser encontrado nessa edição. São quase 150 títulos, inclusive brasileiros (com a presença, no catálogo, de Haroldo de Campos, Manoel de Barros, Jorge Mautner, Glauco Mattoso e Wally Salomão).

A Eloisa Cartonera foi criada por Washington Cucurto (um dos heterônimos do escritor Santiago Veja) e pelo artista plástico Javier Barilaro (responsável pelos projetos gráficos), e a iniciativa deu tão certo que serviu de modelo para uma “rede cartonera”. A partir da Eloísa nasceram pelo menos 15 editoras-irmãs, entre elas Yerba Mala Cartonera (na Bolívia), Sarita Cartonera (Peru), Lupita Cartonera (México), Animita Cartonera (Chile) e Dulcinéia Catadora (Brasil).

Os traços em comum das editoras se encontram no fato delas estarem situadas em periferias, desenvolvendo uma economia informal de subsistência, através de um trabalho artesanal realizado de forma coletiva, imprimindo tiragens limitadas e buscando sempre novos autores e leitores.

Considerações finais

Nossa contribuição apresentou obras que utilizam uma estrutura narrativa e, ao mesmo tempo, discutem, desconstroem ou até subvertem as próprias convenções narrativas. Os artistas apresentados são portadores de poéticas diferentes, e seus trabalhos compreendem pinturas e instalações, destacando que, como elemento comum, centralizam o livro e suas leituras, através da elaboração de novos contos. Esses narram, de fato, histórias já existentes de maneira inesperada, discutindo os próprios mecanismos da narrativa.

Por sua vez, a narrativa, fortemente enraizada na história literária, no teatro e na arte, se transforma. Representar a “realidade” e contar histórias (que são duas das principais funções que atravessam a história das manifestações artísticas) se deslocam rumo a uma finalidade mais rica e tecnológica, tanto morfologicamente como metodologicamente. O termo “narrativa”, mutuado da teoria pós-estruturalista, é bastante utilizado como lugar-comum no âmbito da arte, referindo-se, porém, a determinados sentidos, valores e molduras ideológicos mais que as narrativas propriamente ditas como articuladoras das obras. A recusa contemporânea de narrar histórias na arte contemporânea decorre do cepticismo na possibilidade de comunicar a experiência diante da complexidade atual, em que a fratura entre arte, literatura e vida, bem como entre o “real” e o virtual, aumentou criticamente na época da artificialidade. Benjamin já anunciara isso no Narrador:

Em todo caso, o narrador é um homem que pode oferecer conselhos aos seus leitores. Mas se hoje “ter conselhos” começa a soar fora da moda, isso se deve ao fato de a comunicação da experiência ter se reduzido. Como consequência, não temos conselhos nem para nós mesmos, nem para os outros. Afinal, conselhos são menos uma resposta a uma pergunta do que uma proposta para continuarmos uma história que se desdobra [...] a arte da narração está chegando ao fim, porque o lado épico da verdade, a sabedoria, está ressecando. (BENJAMIN, 1962, p. 194).

Para Benjamin (1962), a sabedoria é constituída por “conselhos entrelaçados no tecido da vida real” (p. 194). Na sua visão, o primeiro sintoma do declínio da narrativa foi o nascimento do romance, no começo da Modernidade, com sua separação da vida: os romancistas se isolam, perdendo o contato direto e a comunicação viva com o público ouvinte que a literatura oral envolvia. A desconstrução da representação e das narrativas na arte contemporânea criou, por outro lado, novas abordagens que, paradoxalmente, nessa revisão incrementaram suas práticas. Nesse sentido, ponto crucial das novas narrativas tem sido seu caráter polissêmico, solo fértil para as pesquisas artísticas, como pode ser observado nas instalações de Marilia Dardot acerca dos textos literários.

Os artistas selecionados tratam de narrativa e literatura, mas também do livro. Como afirma Benjamin, “Aquilo que distingue o romance da história é sua dependência essencial do livro” (BENJAMIN, 1962, p. 197). Essa submissão ao livro como intermediário afastou-se da literatura oral coletiva, imediata, da comunicação ao vivo, entre o narrador e o público, beneficiando a distância, o consumo individual e a preservação de um único texto.

Nossos artistas refletem o livro como entidade, entrelaçando suas componentes materiais e intelectuais, de acordo ou dialeticamente com os usos costumeiros que dele fazemos. São artistas que lidam com o livro enquanto objeto e meio, com suas convenções, utilizando-o para construir suas obras, enquanto o colocam, ao mesmo tempo, em xeque.

O fato de muitos artistas focarem seus interesses no livro é um sintoma da força que esse continua tendo, mesmo na era digital, revelando-se elemento bastante enraizado em nossos hábitos, sensações, imaginário, e a própria palavra expandiu-se para compreender tanto o objeto como seu conteúdo. Sem considerar seus conteúdos, todos os textos impressos em um livro se compõem por uma narrativa prevalentemente linear, com um começo e um fim.

A linguagem escrita requer, por sua vez, um material para seu registro, que seja madeira, pedra, papiro, papel ou uma tela, unindo a comunicação a uma entidade física que rejeita o improviso, a mudança ou outros atos performativos, que pertencem à literatura oral e à comunicação ao vivo. O livro condiciona, como apontado por Benjamin, para o uso individualizado, distante nisso da experiência coletiva de uma narração oral. Através do livro, o contato entre autor e leitor acontece no espaço e no tempo, no sentido que todos os livros necessariamente já pertencem ao passado de quando foram escritos, preservando esse passado. Vale destacar também que o livro evita a contingenciada performance oral, em benefício de uma ordem controlada. Mesmo que os livros abram a mente, eles forçam seu conteúdo a acabar, a se fechar, a se deter no tempo: o livro é fixo.

Também do ponto de vista do formato, o livro condicionou as formas através das quais literatura e conhecimento foram concebidos e a maneira como circularam e foram preservados no tempo. Tal modelo tem sido desafiado, pela primeira vez, pela Internet, com seus hipertextos e sua capacidade de facilitar interações comunicativas à distância e em tempo real. São essas novas possibilidades que vêm transformando a abordagem anteriormente “fechada”, fixa, da escritura, da leitura, do estudo, da comunicação.

O desafio do livro à comunicação digital não passa somente pela sua persistência, mas também pela criação de suportes digitais que imitam o modelo do livro. Paradoxalmente, o mundo digital acaba imitando o livro. Os artistas selecionados, assim, narram em uma outra linguagem e criam livros que não são livros a partir de livros, no sentido que suas obras só existem, dependem de livros. Desconstruindo as narrativas e os livros que as contêm, os artistas avançam na discussão iniciada por Benjamin. Enquanto artistas, o foco deles não é unicamente o de analisar e reproduzir narrativas, mas torná-las materiais, traduzi-las em um artefato que pode ser visto como se lê um livro.

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Recebido em: 04/07/2019

Aceito em: 17/12/2019


1 O termo se enraíza na retórica. Por imagines agentes, entende-se figuras de linguagem capazes de trazer de volta à memória do orador todas as partes do discurso necessárias para a eficácia da oração.

2 Disponível em: http://artelatina2009.blogspot.com/2009/08/brasil-8_25.html Acesso em: 18 mar. 2020.

3 Disponível em: https://noticias.bol.uol.com.br/ultimas-noticias/entretenimento/2010/06/16/ernesto-neto-transforma-galeria-hayward-com-suas-instalacoes.htm Acesso em: 05 out. 2019.

4 Disponível em: https://mariladardot.com/artwork/o-livro-de-areia-the-book-of-sand/ Acesso em: 05 out. 2019.

5 Disponível em: http://elidatessler.com/dubling/IMG09.htm Acesso em: 05 out. 2019.

6 Disponível em: http://www.elidatessler.com/textos_pdf/textos_criticos_1/In%20Transition.pdf Acesso em: 20 jun. 2019.

7 Disponível em: https://www.biennial.com/2010/exhibition/artists/alfredo-jaar Acesso em: 05 out. 2019.

8 Disponível em: https://www.pinterest.it/pin/324188873155461870/ Acesso em: 05 out. 2019.

9 Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Elo%C3%ADsa_Cartonera#/media/File:Libros_de_Elo%C3%ADsa_Cartonera_2.jpg Acesso em: 05 out. 2019.

“ENTRE O QUE DESEJO SER E OS OUTROS ME FIZERAM”:

textualidades literárias e cultura material
na Casa Fernando Pessoa, Lisboa, Portugal

“BETWEEN WHAT I WANT TO BE AND OTHERS HAVE DONE TO ME”:
literary textualities and material culture
in Casa Fernando Pessoa, Lisbon, Portugal

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Clovis Carvalho Britto1

Resumo

O trabalho analisa as interfaces entre textualidades literárias e cultura material tendo como estudo de caso algumas experimentações museológicas na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa. A hipótese é que os itinerários entre a materialidade do texto e a textualidade do acervo do escritor português consistem em indício para a compreensão das reinvenções contemporâneas dos museus-casas de literatura, especialmente das estratégias de criação de criadores e produção da crença apontados pelo pensamento de Pierre Bourdieu. Problematiza a economia de símbolos em torno do acervo pessoal na fabricação do “espaço de ficção” construído por meio do texto literário, da trajetória de vida e da musealização de sua residência e objetos pessoais. Para tanto, elege três eixos de análise que evidenciam diferentes usos do texto literário na exposição museológica: o modo como os manuscritos, os livros e os excertos literários foram musealizados; a relação entre texto literário e cultura material, por meio da musealização de objetos pessoais do escritor e sua relação com as novas tecnologias; e a análise do catálogo de objetos comercializados no museu, transformando o acervo em texto e em suvenir, o que, por sua vez, contribui para a formação de novos acervos e produções poéticas. Demonstra, assim, como os múltiplos arquivamentos promovidos pelos diferentes suportes se tornam, nesse caso, marcadores tangíveis da experiência em torno da vida literária, testemunhos materiais imersos nos círculos de consagração no campo da literatura.

Palavras-chave: Literatura. Cultura material. Textualidades. Fernando Pessoa.

Abstract

The paper analyzes the interfaces between literary textualities and material culture having as a case study some museological experiments at Casa Fernando Pessoa, in Lisbon. The hypothesis is that the itineraries between the materiality of the text and the textuality of the Portuguese writer’s collection are an indication of the contemporary reinvention of museum-houses of literature, especially the strategies of creation of creators and production of belief pointed out by Pierre Bourdieu in his analysis of cultural production. He problematizes the economy of symbols around the personal collection in the fabrication of the “space of fiction” constructed through the literary text, the life trajectory and the musealization of his residence and personal objects. To do so, it selects three axes of analysis that show different uses of the literary text in the museological exposition: the way in which the manuscripts, the books and the literary excerpts were musealized; the relation between literary text and material culture, through the musealization of the writer’s personal objects and their relationship with the new technologies; and the analysis of the catalog of objects marketed in the museum, transforming the collection into text and souvenir which, in turn, contributes to the formation of new collections and poetic productions. It demonstrates, then, how the multiple archives promoted by the different supports become, in this case, tangible markers of the experience around the literary life, material testimonies immersed in the circles of consecration in the field of literature.

Keywords: Literature. Material culture. Textualities. Fernando Pessoa.


1* Doutor em Museologia pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Lisboa, e em Sociologia pela Universidade de Brasília. Professor do curso de Museologia e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade de Brasília e do Programa de Pós-Graduação em Museologia da Universidade Federal da Bahia. E-mail: clovisbritto@unb.br

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 51 Julho/Dezembro de 2019, p. 57-72

Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,

Ou metade desse intervalo, porque também há vida…

Sou isso, enfim…

Fernando Pessoa (1993, p. 124).

Os versos de Fernando Pessoa (1888-1935) em epígrafe, escritos sob o heterônimo Álvaro de Campos, são o ponto de partida para a compreensão das estratégias de produção da crença no nome do escritor no campo literário internacional. Entre sua agência e a do conjunto dos herdeiros simbólicos de seu legado, é constantemente mobilizada a energia social que garantiria a circulação do seu nome – garantindo, por sua vez, o renome – em meio a uma economia de símbolos promovida pelo campo literário (BOURDIEU, 2002).

Na verdade, é muito comum perceber essas relações a partir da autoria, das estratégias editorais e da recepção da obra do escritor português, reforçando seu espaço no cânone da literatura de língua portuguesa (LOURENÇO, 1985-1986; SPAREMBERGER, 2012). Movimento esse que pode ser analisado sociologicamente sob diferentes perspectivas, a exemplo do trabalho de Ana Lúcia Teixeira (2007), ao evidenciar as estratégias de construção discursiva de Álvaro de Campos na semiperiferia da cena moderna; e da pesquisa de Pedro Manuel Serrão (2014), ao investigar as tensões que contribuíram para a fabricação de um regime de singularidade de Pessoa na República das Letras.

É verdade que a análise da trajetória de Fernando Pessoa, das estratégias da difusão de sua obra no mercado editorial internacional e dos circuitos de criação e circulação que conferem legitimidade e criam “consumidores convertidos, dispostos a abordá-los como tais e pagar o preço, material ou simbólico, necessário para deles se apropriarem” (BOURDIEU, 2002, p. 169), consiste em um significativo recorte para visualizar as reelaborações contemporâneas de uma economia da vida literária que extrapolaria o mercado editorial stricto sensu, espraiando-se para uma economia simbólica em torno da assinatura do artista. A investigação do consumo de Fernando Pessoa no campo simbólico em geral permitiria a compreensão dos círculos de consagração em sua longa duração e das formas de produção de legados como fruto de um trabalho de invenção de um nome que não é apenas “um indício de uma posição na distribuição do capital específico, mas representa concretamente a parcela do lucro simbólico (e, correlativamente, material) que eles estão em condições de obter da produção do campo em seu conjunto” (BOURDIEU, 2002, p. 171).

Estabelecendo o diálogo com o verso em epígrafe, as fissuras entre o desejo do artista e aquilo que os demais agentes desejaram fabricar resultam em uma mudança de perspectiva. Desse modo, ao invés de questionar o que cria o criador, a lente analítica recairia sobre os responsáveis pela criação de criadores, ou seja, sobre a ação coletiva que extrapola as intenções do indivíduo produtor da obra e alcança as lutas travadas pelo conjunto de agentes que integra o campo simbólico e possui a autoridade para promover determinadas leituras sobre o passado e a respeito do monopólio do direito de falar sobre o passado (HEYMANN, 2004).

Esse empreendimento coletivo de fabricação de uma assinatura assume uma vocação metapoética no caso de Fernando Pessoa, em virtude do próprio autor inventar um conjunto de assinaturas capazes de, na multiplicidade dos heterônimos, garantir sua singularidade por meio de uma rede de ações que, além de fabricar um produto fabricado, produz condições de eficácia, transubstanciando em valor econômico e simbólico. Tal operação coletiva reinventa constantemente a qualidade social do produtor e altera a qualidade social dos produtos a ele associados, conformando aquilo que Luciana Heymann (2004, p. 3) definiu como o trabalho social de produção de legados, entendido como um investimento social que transforma determinadas memórias em exemplar ou fundadora de um projeto: “a produção de um legado implica na atualização constante do conteúdo que lhe é atribuído, bem como na afirmação da importância de sua rememoração”.

Essa constante circulação de obras de e sobre Fernando Pessoa consiste em algumas das estratégias de “vigilância comemorativa” no campo literário. Na verdade, é necessário visualizar o escritor como uma “marca” distintiva, identificada com o capital simbolizado por seu nome e renome, sustentado ao longo do tempo graças às constantes ações de diferentes herdeiros que mobilizam as engrenagens de seu prestígio nas tramas de uma economia de símbolos. Herdeiros que são responsáveis pela instituição de leituras oficiais e, muitas vezes, pelo controle sobre versões alternativas que coloquem em risco a narrativa oficial instituída. Nesse processo, ao lutarem para que a marca distintiva permaneça em evidência, mobilizando lucros simbólicos, os mesmos se reinventam e adquirem, paralelamente, benefícios econômicos. No caso de Pessoa, isso pode ser comprovado nos embates sobre seus direitos autorais, conforme matéria publicada por Kathlenn Gomes, em 2005:

Fernando Pessoa morreu há 70 anos, Fernando Pessoa vai ter uma nova vida. A efeméride é significativa, porque, segundo a legislação, a obra de um autor entra no domínio público passados 70 anos sobre a sua morte. Traduzindo: Pessoa é, a partir de agora, de todos e são várias as editoras que estão a preparar novas edições do poeta português mais idolatrado e traduzido em 36 países. A exclusividade dos direitos autorais da sua obra coube, até agora, à editora Assírio & Alvim, e irá vigorar até final deste ano. A partir do início de 2006, são várias as edições que vão chegar às livrarias – e às bancas de jornais – com chancelas editoriais diferentes, da Relógio d’Água, que se prepara para publicar uma nova versão do Livro do Desassossego em Janeiro, à nova editora de Zita Seabra, Alêtheia, que anuncia uma edição anotada e comentada de Mensagem para Fevereiro ou Março. Outros projectos incluem uma vasta antologia de sete volumes, de poesia e prosa, coordenada pelo americano Richard Zenith, reconhecido tradutor e investigador pessoano, para o Círculo de Leitores, em conjunto com a Assírio & Alvim, no Outono de 2006, ou um volume antológico organizado por Eduardo Lourenço a convite da revista Visão. [...] O caso de Pessoa é sui generis porque não é a primeira vez que a sua obra entra no domínio público. Isso acontecera já em 1986, quando o prazo de protecção dos direitos de autor em Portugal era de 50 anos após a morte do autor. A Ática perdeu então os direitos exclusivos e, durante uma década, foram várias as editoras que o publicaram. Mas uma directiva comunitária de 1993 veio ampliar a vigência dos direitos de autor para 70 anos após a morte do autor e os herdeiros de Pessoa, representados pela sua sobrinha Manuela Nogueira, negociaram a reprivatização da obra com a Assírio & Alvim, então dirigida por Manuel Hermínio Monteiro. Esta opção foi objecto de polémica, tendo sido contestada por outras editoras que publicavam Pessoa. Francisco Vale, editor da Relógio d’Água, lembra que teve de suspender as edições em curso – a Relógio d’Água, como as restantes editoras, podia manter no mercado os títulos já editados, mas não podia proceder a novas edições ou reedições. Vale chegou a editar um primeiro volume do Livro do Desassossego que não teve continuação porque a obra de Pessoa regressou ao domínio privado (GOMES, ٢٠٠٥, p. ١).

Se recortarmos para a comunidade dos países de língua portuguesa, é possível destacar, nas últimas décadas, o crescimento de ações atualizadoras deste legado. Exemplares, nesse aspecto, são as biografias Fernando Pessoa: uma quase-autobiografia, de José Paulo Cavalcanti Filho (Record, 2011 e Porto Editora, 2012) e O quarto alugado: a vida de Fernando Pessoa revisitada por um velho amigo, de Ricardo Belo de Morais (Verso de Kapa, 2014); as antologias de poesia Fernando Pessoa, com organização, apresentação e ensaios de Cleonice Bernardinelli (Casa da Palavra, 2012), ABC de Fernando Pessoa (LeYa, 2016) e Mensagem e poemas publicados em vida (Imprensa Nacional Portuguesa, 2019); das antologias de contos Contos completos, fábulas & crônicas decorativas (Carambaia, 2019), prefaciada e anotada pelo poeta angolano Zetho Cunha Gonçalves, e O banqueiro anarquista e outros contos escolhidos (Nova Fronteira, 2018), organizada pelo poeta carioca Alexei Bueno; e da história em quadrinhos Eu, Fernando Pessoa, de Eloar Guazzelli com roteiro de Susana Ventura (Peirópolis, 2013).

No caso da fabricação de legados em torno de Fernando Pessoa, o mercado editorial internacional continua realizando esse investimento social na realização de publicações, premiações, reedições, estudos críticos e traduções. Todavia não apenas o campo literário contribui para a produção da crença no autor. São inúmeras as adaptações de sua obra para diferentes linguagens artísticas, a exemplo dos filmes Conversa acabada (1981) e Filme do Desassossego (2010), de João Botelho; La gentilezza de tocco (1987), de Francesco Calogero; Mistérios de Lisboa (2009), de José Fonseca e Costa; Ophiussa – Uma cidade de Fernando Pessoa (2011), de Fernando Carrilho; Lisbon Revisited (2014), de Edgar Pêra; e  Como Fernando Pessoa salvou Portugal (2018), de Eugène Green; e dos catálogos fotográficos com roteiros inspirados em sua vida e obra, a exemplo de Os lugares de Pessoa (EGEAC, 2008) e Lisboa em Pessoa (Leya, 2011), de João Correia Filho.

Nessa economia de símbolos em torno de Fernando Pessoa, um conjunto de ações mobilizou novos suportes e formas de leitura visando difundir seu legado para além do livro ou, segundo minha interpretação, dilatando a própria compreensão de literatura. Na verdade, esse estudo de caso dialoga com leituras que tenho realizado nos últimos anos sobre a musealização da literatura em museus-casas de escritores, percurso que tem contribuído para a desconstrução do entendimento sobre documento, acervo pessoal e literatura, abarcando outras tipologias e suportes, a exemplo dos objetos pessoais:

Exposições museológicas com textos inéditos e objetos pessoais, publicações de fac-símiles de manuscritos, datiloscritos e desenhos, criação de instituições de memória para preservar e promover essa documentação, e todo um conjunto de ações visando gerir o legado do escritor tem, a cada dia, estabelecido novas formas de encenar a imortalidade e conquistar visibilidade por meio da transformação do acervo em texto que, por sua vez, contribui para a formação de novos acervos. Os objetos se tornam, nesse caso, marcadores tangíveis da experiência em torno da vida literária, testemunhos materiais imersos nos círculos de consagração e nas relações de reciprocidade (BRITTO, 2018a, p. 30).

O intuito deste artigo é evidenciar as interfaces entre textualidades literárias e cultura material tendo como estudo de caso algumas experimentações museológicas na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa. Na verdade, analisa em que medida as fricções entre a materialidade do texto e a textualidade do acervo do escritor português contribuem para a instituição de um outro “espaço de ficção” construído por meio da triangulação entre texto literário, trajetória de vida e cultura material.

Museus-casas de literatura e as narrativas do desassossego

Cada vez mais, os acervos literários possuem valor estratégico na economia de símbolos que produz a crença em determinados escritores e obras, consistindo em uma das formas de materialização do legado. Nesse aspecto, dialogo com o entendimento de Eneida Cunha (2003), quando concluiu que as instituições detentoras de acervos pessoais constroem um texto autobiográfico, impondo sua própria narrativa, aberta à leitura, mas resistente a interpretações que desvirtuem, rasurem ou alterem a imagem instituída do titular. Portanto, possuir acervos geraria “a prerrogativa de uma ‘atividade’, que se faz em prol da divulgação, autorizada, de uma determinada imagem do escritor e de uma determinada vertente de leitura de sua obra” (CUNHA, 2003, p. 127).

Digo isso porque, para além dos discursos normalizadores, que também são fontes fundamentais nos processos de gestão de informação e de memória, é fundamental perceber que esses investimentos,

projetos institucionais, comemorações, homenagens – visam ancorar no passado as posições que os protagonistas desses investimentos ocupam no presente ou pretendem ocupar no futuro. [...] Em tais ações estão em jogo não apenas as condições que permitem criar uma instituição de memória, mas também as estratégias de valorização e comemoração (HEYMANN, 2012, p. 78).

Portanto, possuir acervos consiste em um importante recurso simbólico sobre os usos políticos do passado, fato que contribui, muitas vezes, para a abertura de instituições de memória. Segundo Luciana Heymann (2009, p. 54), as especificidades dos acervos pessoais possibilitam analisar os conteúdos e contextos de produção dos documentos e os investimentos de acumulação: “não se trata de descurar das relações que conectam atividades desempenhadas e registros documentais, mas de atentar também para a relação que cada titular manteve com documentos, para os usos que cada um deu aos registros e para os atributos que lhe foram conferidos.”

No caso dos acervos literários, é importante visualizar o modo como os objetos tridimensionais, a exemplo da biblioteca e artefatos relacionados à atuação profissional dos escritores, constituem repertórios da vida literária, estabelecendo uma semântica própria:

Móveis, quadros, máquinas de escrever, canetas, medalhas, selos, lembranças de viagens, peças de indumentárias, esculturas, pinturas, caixas de música e muitos outros objetos, formando uma coleção heterogênea, que tem um único denominador comum: terem pertencido a nossos escritores ou estarem a ele relacionados. Esses objetos, por seu valor intrínseco, justificam a sua incorporação [...] como documentos enriquecedores da compreensão, pontos de referência e fontes para a reflexão indispensável à recomposição do mundo, ficcional e não ficcional, como da personalidade de seus possuidores. Esses objetos crescem de importância quando nos permitem torná-los vivos e atuantes como elementos fundamentais nas exposições. (VASCONCELOS, 1997, p. 247).

Nesses termos, mais do que pensar a cultura material como integrante das coleções, a exemplo da presença dos objetos pessoais nos acervos literários, compete problematizar em que medida esses objetos contribuem para alargar a própria noção de literatura ou de textualidade, extrapolando a linguagem verbal ao abarcarem acervos tridimensionais. Para tanto, uma possibilidade interpretativa, que dialoga com o colecionismo e as injunções subjetivas dos agentes, consiste na compreensão dos objetos enquanto palavras que, articulados em um dado cenário, produziriam textos. Essa semântica das coisas consistiria em um dos resultados da musealização, entendido como uma passagem criadora ou uma performance específica por meio das coisas:

Musealização do objeto, antes de qualquer ato, pressupõe necessariamente um ato de cesura (césure), qualificado por André Malraux como “separação”, por Jean-Louis Déotte como “suspensão”, e por André Desvallées como “extração” (“arrachement”) (MAIRESSE, 2011). Instaurando uma ruptura com a realidade social, a musealização cria novas realidades. Jean Davallon (1986) define o objeto musealizado como um “objeto real que não está mais no real”. Mas ele está, também. Dizer que um objeto é elevado do real, não quer dizer que o objeto musealizado deixe de existir para o contexto social onde produzia sentido uma vez inserido em relações sociais de outra ordem. Como demonstram os exemplos contemporâneos de musealização in situ, uma nova realidade é criada no momento da “suspensão” simbólica que não obriga necessariamente a separação material do meio físico, mas implica numa existência dupla do objeto, como ele mesmo e como a sua representação. Tudo se passa como se o objeto existisse no limiar entre dois mundos, alcançando um estado de liminaridade característico dos rituais (TURNER, 1988). Assim, ele serve como suporte para as novas propriedades imateriais que lhe são atribuídas no plano museológico, passando a operar como parte de um texto, ou de uma performance. (BRULON, 2018, p. 200-201).

Nesse aspecto, a musealização consistiria em uma passagem criadora que alteraria a economia de símbolos em que os objetos estão inseridos, contribuindo para a leitura dos objetos enquanto partes de um texto composto por recortes, rasuras e intencionalidades. Isso ganha força no caso dos acervos literários musealizados, visto que assumiriam uma faceta metalinguística. É a partir desse entendimento que dialogo com Marcelo Cunha (2010), quando concebeu a exposição museológica como uma lógica textual, ou seja, como produtora de uma textualidade específica:

[...] Entendemos a exposição museológica como um texto, com uma infinidade de interfaces que se estabelecem e se relacionam permitindo diversas ‘leituras’ do seu conteúdo. Leituras que se dão na interação entre o programa e objetivos institucionais (idéia/proposta original), bem como nos aportes do visitante que observa e interage com o que vê, elaborando e reelaborando seus conceitos sobre o tema apresentado. Daí partimos do pressuposto que a exposição museológica caracteriza-se como um discurso, uma estratégia informacional em um contexto de comunicação, realizada por instituições e indivíduos com o objetivo de reforçarem uma idéia, uma proposta conceitual, um projeto de preservação de referências patrimoniais. Como em um texto, as exposições são construídas com diversos elementos e sinais distintivos. Há na sua composição um ritmo, uma gramática, uma sintaxe, que se evidenciam na articulação de seus elementos. A leitura de uma exposição permite que sejam percebidas ênfases, proposições, metáforas, e tal leitura não será uniforme, pois dependerá do grau e nível de interação de cada indivíduo com o tema e elementos que se apresentam. Expor é revelar, comungar, evidenciar elementos que se desejam explicitar, e este desejo pode estar relacionado a um momento histórico, uma descoberta científica, uma produção estética, um ideal político. Neste sentido, as exposições nos colocam diante de concepções, de abordagens do mundo, portanto, expor é também propor. Exposições são traduções de discursos, realizados por meio de imagens, referências espaciais, interações, dadas não somente pelo que se expõe, mas inclusive, pelo que se oculta, traduzindo e conectando várias referências, que conjugadas buscam dar sentido e apresentar um texto, uma idéia a ser defendida (CUNHA, 2010, p. 110).

Essa textualidade remete à leitura dos objetos como repertórios e da musealização como uma forma singular de manifestação da comunicação. Na analogia efetuada por Ulpiano Bezerra de Meneses (2002, p. 28), “[...] a distinção e relação que se podem estabelecer entre o dicionário (o acervo) e o poema (a exposição)”. Na verdade, no caso de acervos literários compostos por objetos tridimensionais consistem em importantes fontes para o exercício poético que traduzem as metamorfoses da própria noção de literatura. As experiências museológicas com o universo literário, especialmente no caso dos museus-casas de escritores, promovem um desassossego, para estabelecer um diálogo com o título de uma das mais conhecidas obras de Fernando Pessoa, Livro do Desassossego (1982).

Os museus-casas de literatura reverberariam uma narrativa do desassossego na medida em que visibilizariam uma metanarrativa por meio das coisas e dos espaços: empreenderiam a fabricação de um espaço de ficção (casa musealizada) que, por sua vez, se ampara, muitas vezes, na literatura do autor (narrativa de uma narrativa). Nesse aspecto, um poema sobre um determinado espaço inserido como recurso expográfico para a musealização ou um conjunto de objetos que representaria a escrivaninha de um literato borram as fronteiras entre as linguagens verbal e não-verbal, estabelecendo uma poética do espaço e uma poética das coisas (BACHELARD, 2008; CHAGAS, 2003). Isso assume outras dimensões com o uso das novas tecnologias nas exposições dos museus-casa, com a declamação de poemas e crônicas e/ou a projeção dos mesmos nas paredes e nos objetos, transformando a própria casa em suporte.

Talvez, por essa razão, tem crescido o número de museus-casas de literatura e de exposições literárias que tensionam os limites entre o espaço literário e o espaço museológico, ou, em outras palavras, fundem as narrativas na construção de um novo “espaço ficcional”. Essa prática, segundo Ana Luíza Rocha do Valle (2015), pode ser ilustrada a partir de três eixos principais: a) ênfase na literatura do autor (musealização dos originais, rascunhos, materiais de escrita, objetos referenciados nos textos ou produzidos a partir deles, primeiras edições ou edições especiais de livros etc.); b) ênfase na trajetória do autor (fotografias, objetos pessoais, mobiliário, indumentária etc.) e c) a que mescla espaço literário e trajetória social.

Valle (2015) sublinha, como desafio, a musealização de algo intangível como a literatura e, provavelmente, por essa razão, creio ser oportuno problematizar a divisão comumente apresentada entre elementos literários e extraliterários. Desse modo, os objetos pessoais e os próprios suportes e técnicas utilizados para a expressão das ideias literárias também integrariam a vida literária, a exemplo da máquina de datilografia presente em muitos acervos literários:

A ordenação dos objetos no espaço consiste na principal linguagem dos museus-casas de escritores, recurso privilegiado na construção da narrativa sobre a prática literária. A utilização de mobiliário de escritórios, com escrivaninhas repletas de papéis, livros, dicionários e canetas, além de óculos, lupas e outros objetos associados à leitura/escrita, é uma tática reiterada na representação museológica do fazer literário. Nessas exposições, a máquina de escrever se transforma em objeto metalinguístico por excelência, imagem que produz, muitas vezes, alta voltagem lírica (BRITTO, 2018b, p. 105).

Na verdade, a explosão metapoética instaurada pela musealização de objetos e das residências dos escritores contribui para a produção da crença nos autores e em suas obras. Reciprocamente, o leitor é motivado a conhecer o espaço musealizado em virtude do renome do autor e, do mesmo modo, o museu-casa, ao efetuar a fusão entre vida, obra e cultura material, incentiva a leitura da obra. Minha provocação, a partir do acervo de Fernando Pessoa, musealizado em uma das casas que habitou em Lisboa, consiste em problematizar em que medida a experiência da musealização das casas e dos acervos literários contribui para o estabelecimento de múltiplas leituras, acionadas no entre-lugar da materialidade do texto e da textualidade do acervo que, nessa interpretação, de algum modo, implodiria a noção canônica de documentos textuais.

Fernando Pessoa: musealização e materialidade literária

Fernando Pessoa (1888-1935) residiu em diversas casas em Lisboa, tendo sua trajetória marcada por deslocamentos. Situada na Rua Coelho da Rocha, número 16, Campo de Ourique, em Lisboa, Portugal, a Casa Fernando Pessoa consiste na musealização da residência onde o escritor habitou seus últimos quinze anos. Dividida em quatro pisos, o primeiro abriga a recepção e a biblioteca da Casa; o segundo, a biblioteca particular de Pessoa e a reconstituição do quarto de Fernando Pessoa; o terceiro, o auditório e a área administrativa; e o último, a Sala Multimídia e a Sala de Serviço Educativo. Conforme explicita o painel explicativo, apresentado na entrada da exposição:

Fernando Antônio Nogueira Pessoa nasceu a 13 de junho de 1888, em Lisboa, no Largo de São Carlos. Viveu em Lisboa, na África do Sul (em Durban, entre 1896 e 1905) e regressou a Lisboa, onde habitou o resto da vida. Morou em dezessete lugares diferentes, fixando-se, nos últimos quinze anos da sua vida, no apartamento que escolheu para viver com a família na Rua Coelho da Rocha, 16, onde agora é a Casa Fernando Pessoa.

A Casa Fernando Pessoa é um órgão da administração pública vinculada à Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural da Câmara Municipal de Lisboa. Conforme destacou Taiguara Aldabalde (2018, p. 2-3), consiste em instituição responsável pela promoção da obra e gestão do espólio do escritor, responsável legalmente “por documentos autógrafos, pela biblioteca pessoal com anotações manuscritas e por um subconjunto dos arquivos de Pessoa(s), tais como cadernos, notas, recordações, identidade, contratos, títulos de arrendamento, certificados e o manuscrito da última frase do escritor”. O autor destaca que a Casa converge material de museus, arquivos e bibliotecas, concluindo que a reconhece como um espaço de memória e, diferentemente de uma casa acerca de uma pessoa, ela traduziria um museu acerca de uma obra.1

Na verdade, é a amálgama existente entre o anfitrião do espaço, os objetos e o edifício que auxilia a produção da crença no personagem e, no caso dos museus-casas de literatura, atravessada pela literatura, o que complexificaria a fusão vida e obra. Isso é importante quando reconheço que a própria casa musealizada consiste em uma narrativa, um espaço ficcional importante para a monumentalização da trajetória do escritor e, consequentemente, da própria obra:

Nesse panorama, em 1986 a Câmara Municipal de Lisboa (CML) adquire os livros de Pessoa com 1.161 volumes e manuscritos anotados, já tendo em vista um projeto embrionário que daria origem à Casa Fernando Pessoa (CFP). Ora, o acervo em questão corresponde a uma parte significativa da materialidade da literatura de Fernando Pessoa, pois suas particularidades de criação e suas opções criativas (por exemplo, escolha de leituras, instrumento de escrita, cor da tinta, forma da letra, papel e variedades da utilização do livro como superfície de escrita) foram fisicamente manifestadas nos seus materiais. A responsabilidade dos custodiadores é preservar as evidências físicas e o sentido original dos registros, pois os arquivos são cultura material e expressões físicas da cultura em que foram produzidos e utilizados, e os custodiadores influenciam as futuras significações dos documentos através de suas escolhas. [...]. É razoável reputar a origem da CFP à Associação Pessoana dos Amigos do Martinho da Arcada (APAMA), que, ao expressar a vontade coletiva de colocar uma placa em homenagem a Pessoa na frente do imóvel, engendrou o processo de classificação do edifício ocupado hoje pela casa-museu. A APAMA nasceu em 1987, quando era um movimento de defesa da preservação do Café Martinho da Arcada. A mesma associação impediu a demolição do edifício onde hoje é a CFP com um comunicado à Câmara de Lisboa em 1988, que levou ao processo de classificação do edifício como de interesse público. Atualmente a CFP é um espaço da identidade, da memória e da obra pessoana. A própria casa-museu é uma representação simbólica que tem acrescido valor ao bairro de Campo de Ourique, projetando-o à cena cultural e para além das fronteiras (atribuímos essa projeção no estrangeiro ao objetivo dum projeto de internacionalização da obra e imagem de Pessoa). O projeto inicial da CFP foi inaugurado em ١٩٩٣ pelo Departamento de Cultura da Câmara de Lisboa através do despacho nº ٧٩/P/١٩٩٤ da CML, que definiu as seguintes funções: (١) promover a obra de Fernando Pessoa e estimular a poesia; (٢) assegurar o tratamento do espólio de Fernando Pessoa; (٣) apoiar e realizar edições e publicações para divulgar a obra de Fernando Pessoa e a poesia; (٤) incentivar e apoiar atividades de pesquisa no campo de estudos pessoanos em universidades e outras instituições; (٥) promover a investigação e difundir o conhecimento da obra de Fernando Pessoa internacionalmente através das novas tecnologias; (٦) organizar iniciativas culturais em colaboração com outras entidades públicas e privadas (ALDABALDE, 2018, p. 11-12).

Essa breve apresentação da trajetória da Casa Fernando Pessoa demonstra o lugar que a instituição ocupa não apenas na mobilização do legado do escritor, mas na economia de símbolos instituída a partir de uma memória topográfica (BOLLE, 2000), na articulação entre as estruturas da cidade e dos indivíduos que nela vivem. Desse modo, a casa do escritor seria um dos pontos de referência para captar experiências a partir de uma memória espacializada, reverberando as tramas de indivíduos acopladas a uma costura de lugares. O museu-casa se torna, assim, uma narrativa que insere o bairro, a cidade e o país em um circuito simbólico que atestaria a presença de Pessoa e, por sua vez, de sua obra. Seria, assim, como o ato de demarcação instaurado pela inserção da placa no imóvel, uma das ações de vigilância comemorativa a distinguir o personagem. Todavia aqui me interessa recuperar a ideia de que o acervo reunido no museu-casa corresponderia a uma parte significativa da materialidade da literatura de Fernando Pessoa, ampliando a interpretação para considerar a própria casa e os objetos pessoais como integrantes dessa materialidade:

A poética do espaço é potencializada pela poética contida na literatura do homenageado, legado este que muitas vezes foi produzido no local da casa-museu ou que a ele se refere. Nesse aspecto, umas das linhas de força dos museus-casas de literatura consistem na fusão entre as dimensões biográfica e literária, mesclando nas exposições trechos de obras relativos aos espaços e objetos musealizados, manuscritos, máquina de escrever, prêmios relacionados à vida literária e a biblioteca pessoal do autor (BRITTO, 2016, p. 40).

Essa questão pode ser visualizada na exposição da Casa Fernando Pessoa, inaugurada em 21 de março de 2013. Com conceito original de Inês Pedrosa, museografia de Antônio Viana e Miguel Costa, a exposição mescla trechos da obra de Fernando Pessoa, fotografias do escritor, biblioteca, móveis e objetos pessoais: blocos com anotações, documentos pessoais, óculos, máquina de escrever etc. Além da articulação entre vida e obra, incidindo no processo de monumentalização do autor por meio da musealização, é importante perceber como a própria casa se torna, simultaneamente, personagem e suporte para a produção de narrativas.

São inúmeros poemas apresentados nas paredes da casa, como se os cômodos se transformassem em grandes páginas de livro. Cada um dos cômodos apresenta a literatura de Pessoa, grafada sobre pedra e cal, evidenciando os textos “Fog”, “Quinto Nevoeiro” e “Saudação à Walt Whitman”. Na Sala Multimídia, ainda é possível escutar a declamação de vinte poemas, em meio a objetos e documentos pessoais do autor. Para além dessa outra textualidade ou outra forma de conceber a materialidade da literatura por meio dos manuscritos, datiloscritos e inserção de poemas nas paredes do imóvel, também considero importante conceber a própria narrativa museológica como uma forma de escrita, um espaço de ficção que materializa a literatura de Fernando Pessoa e mescla a casa na literatura e a literatura na casa por meio da fusão entre texto literário e cultura material. Exemplar, nesse aspecto, é a representação do quarto, no primeiro andar da casa, conforme texto apresentado na exposição:

Reconstituição de um dos quartos do apartamento que a família de Pessoa habitou em 1920 e onde o escritor viveu os seus últimos quinze anos: 1920 a 1935. A reconstituição deste espaço inclui móveis originais do escritor, inclusive a cômoda onde escreveu e criou os heterônimos; uma máquina de escrever que utilizou; um retrato a óleo para o qual posou quando tinha 24 anos; várias relíquias da família; documentos de várias etapas de sua vida.

Integrando a musealização do quarto – entendido como um espaço ficcional – ainda é possível assistir a um vídeo sobre a reconstituição em três dimensões de como seria o apartamento, a partir de testemunhos e desenhos de Manuela Nogueira, sobrinha de Fernando Pessoa, e fotografias de mobiliário ainda existente.

Figura 1 – Cômoda e cópia de datiloscritos de Fernando Pessoa.

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Fonte: Site da Casa Fernando Pessoa, sem data.

Na exposição, são destacadas a cômoda (Fig. 1) e a máquina de escrever e, em meio a um conjunto de manuscritos do autor, a exposição museológica evidencia uma carta de Pessoa a Adolfo Monteiro, datada de 13 de janeiro de 1935, em que o escritor tenta explicar o surgimento dos heterônimos Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos:

[...] Em 8 de março de 1914, acerquei-me de uma cômoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com o título “O Guardador de Rebanhos”. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro.

Na verdade, o trecho da correspondência, assim como os manuscritos e datiloscritos apresentados sobre a cômoda, contribuem para evocar a importância daquele espaço como parte integrante do processo criativo do escritor. Foi naquela cômoda e com aquela máquina de escrever que Pessoa vivenciou uma epifania e, dali, sua literatura. O quarto-escritório se torna, assim, um personagem da narrativa literária e, ao mesmo tempo, ao ser musealizado, utiliza a narrativa autobiográfica como estratégia para ficcionalizar aquele espaço, conferindo à cultura material uma função poética.

Isso é evidenciado no modo como o museu-casa aciona simultaneamente uma poética do espaço e uma espacialidade poética. Uma das publicações editadas pela Casa Fernando Pessoa consiste no livro Os objectos de Fernando Pessoa, de autoria de Jerônimo Pizarro, Patrício Ferrari e Antônio Cardiello (2013). O livro consiste em um catálogo ilustrado do acervo do museu e que é comercializado na própria casa, evidenciando, do mesmo modo que a exposição museológica, a textualidade do acervo. Ao explicitar, por exemplo, a máquina de datilografia Royal 10, mescla fotos de diversos ângulos ladeadas com reproduções de datiloscritos com correções do escritor e o poema “Dactylographia”, de Álvaro de Campos:

Procuramos, assim, apresentar os objetos para além da sua realidade arquivística e dedicar uma especial atenção a determinadas peças pertencentes à colecção da Casa Fernando Pessoa, como, por exemplo, os blocos de notas, que se evidenciam tanto por sua dimensão material como pela sua dimensão textual. [...] Assim, por exemplo, a máquina de escrever – instrumento de escrita que Pessoa utilizou com prazer e naturalidade muito antes de outros escritores portugueses – encontra uma ligação com outros três objectos textuais aqui apresentados: um anúncio de máquinas de escrever Royal publicado na Revista de Comércio e Contabilidade, um projecto de Pessoa para a invenção de um carreto para máquina de escrever, mas também, o poema “Dactylographia”, cuja versão datilografada reproduzimos (PIZARRO; FERRARI; CARDIELLO, 2013, p. 15).

É curiosa a estratégia utilizada no catálogo, de mesclar os objetos materiais com documentos textuais e com poemas, estabelecendo, assim, uma fusão. No caso da máquina de escrever, por metonímia do instrumento, a exposição museológica e o catálogo revestem-se de alta voltagem lírica à medida que inserem o poema “Dactylographia”, datilografado, ao lado da máquina. Desse modo, a operação metapoética reveste a versão datilografada de cultura material, fruto do exercício da datilografia, ali, representados pela fotografia do datiloscrito, pelo conteúdo do poema e pela própria máquina de escrever ambientando a representação do espaço de escrita: “Entre o corpo e a máquina, a máquina e a obra, o corpo e a obra envolvidos por uma atividade infinitiva: escrever. [...] A máquina é metonímia, passagem, veículo, extensão do corpo tornado escrita, transfiguração. A obra é seu índice, rastro, impressão, o que se quer inacabado, inumerável” (DINIZ, 2004, p. 58).

Entre o espaço vivido e o espaço literário surge uma outra textualidade conferida pela musealização. A cultura escrita e a leitura são tensionadas pela cultura material inserindo novas perspectivas para a produção e circulação de informações. Na Casa Fernando Pessoa, mesclam-se, assim, manuscritos, datiloscritos, livros impressos, livros digitais, poesia falada e poesia inserida nas paredes do museu-casa. Há também a musealização enquanto passagem criadora que articula a poética do espaço por meio dos objetos pessoais do escritor que, também, consiste em uma forma textual e, problematizo, literária.

Na verdade, a casa aciona uma memória topográfica que se expande para outros espaços eleitos como representativos de Pessoa. Assim como a inserção da placa na fachada do imóvel mobilizou uma economia de símbolos que resultou na criação do museu, hoje o museu-casa instaura novas territorialidades legitimadas pela própria literatura. Não por acaso, a Casa Fernando Pessoa realizou uma exposição e editou o catálogo Os lugares de Pessoa (2008), materializando a arquitetura literária do autor em diferentes espaços da cidade, por ocasião das comemorações dos 120 anos de seu nascimento.

Figura 2 – Poemas na fachada da Casa Fernando Pessoa.

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Fonte: Site da Casa Fernando Pessoa, sem data.

Nessa leitura, assim como a casa consiste no principal objeto do museu-casa, os demais espaços urbanos – que foram inspiração para a obra do poeta – hoje são retroalimentados, tornando-se parte de uma narrativa expandida pela musealização em uma espécie de museu de percurso. Todavia assim como a assinatura do poeta está estampada em vários espaços de Lisboa, a parede externa do museu-casa está coberta dos versos do poeta (Fig. 2), como se fosse uma gigantesca página que convida para ler os diferentes lugares de Pessoa que, por sua vez, contribuem para os constantes refazimentos de seu legado. A cultura material se torna um suporte, um dos marcadores tangíveis da vida literária e, ao mesmo tempo, um texto que mobiliza e potencializa os círculos de consagração do mercado simbólico.

Referências

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Recebido em: 02/07/2019

Aceito em: 16/09/2019


1 Majoritariamente, o acervo da Casa de Fernando Pessoa foi fruto de compra realizada pela Câmara Municipal de Lisboa e de doações realizadas pelos descendentes do escritor (Cf. ALDABALDE, 2018; PIZARRO, FERRARI, CARDIELLO, 2013).

A NEGAÇÃO DO IMAGINÁRIO:

notas sobre algumas traduções do Livro das Mil e uma Noites

THE IMAGINARY DENIAL:
notes on some translations of One Thousand and One Nights

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Mariza Martins Furquim Werneck1

Resumo

O Livro das Mil e uma Noites chegou ao Ocidente em 1704, na tradução francesa de Antoine Galland. A partir daí, o texto nunca tomou uma forma definitiva, nunca constituiu uma versão canônica. Os manuscritos não coincidem, assim como as sucessivas edições e traduções. Trata-se de um livro eternamente inacabado, cujo destino é o de ser, também, eternamente reescrito. O artigo procura interpretar o movimento de algumas versões, as querelas entre tradutores e comentadores, a obsessão pela busca da versão original, do verdadeiro autor, ou do texto mais legítimo, questões que, ao fim e ao cabo, terminam por negar a dimensão do imaginário e da fantasia, que são, afinal, as mais essenciais do livro.

Palavras-chave: Livro das Mil e uma Noites. Traduções. Versões. Negação do imaginário.

Abstract

The Book One Thousand and One Nights, or as it is often known in English, the Arabian Nights, reached the West in 1704, through Antoine Galland’s french translation since its inception, the text has never been definetely shaped, nor has it reached a canonical varsion. The manuscripts do not coincide,nor do the subsequent translations and editions. We thus deal with an eternally unfinished book, whose fate is to be, as well, forever rewritten. This paper aims at interpreting the movement of some of the versions, the quarrels among translators and commentators, the obsession with the pursuit of the original version, the real author, or the more legitimate text, which end up denying the dimension of the imaginary and fantasy that are, after all, the most essential dimensions of the book.

Keywords: One Thousand and One Nights. Translations. Versions. Imaginary denial.

A arrogância circula, como um vinho forte, entre os convivas do texto.

Roland Barthes

Desde a Idade Média, entre as estratégias desencadeadoras da narrativa encontra-se, com frequência, a referência a um livro perdido, do qual restou apenas um fragmento, achado ao acaso em lugar longínquo. Esse recurso, que serve para preencher a forma lacunar dos começos das histórias, pode ser pensado como uma cena retórica, ou seja, a representação da perda de um texto original, o único legítimo e verdadeiro. Mais do que o início da história, essa ausência provoca na narrativa uma fenda definitiva, uma falha intransponível. Metáfora da literatura, esse texto essencial, para sempre desaparecido, confunde-se com a própria natureza da narrativa. Sem outra função, agora, que a de suprir essa perda original, toda escritura tenta reinventar as onomatopeias do paraíso terrestre (DRAGONETTI, 1987). A literatura sonha com o tempo das


1* Professora do Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. E-mail: marizawerneck@gmail.com

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 51 Julho/Dezembro de 2019, p. 73-88

etimologias, “este tempo feliz das linguagens”, em que palavras e coisas coincidiam. Mas o que lhe resta é apenas a tentativa - trágica e utópica - de restauração desse texto inaugural (BARTHES, 1974, p. 167).

Nas Mil e Uma Noites do Oriente, nunca saberemos se o apelo ao manuscrito desaparecido é apenas uma encenação retórica, pois é também num livro perdido que vamos encontrar ou, para dizer melhor, perder para sempre o seu passado mais profundo. A história desse livro tem sido o da impossibilidade de reconstituí-lo. Nunca tomou uma forma definitiva, nunca constituiu uma versão canônica, mesmo após sua impressão. Os manuscritos não coincidem, assim como as sucessivas edições e traduções. Trata-se de um livro eternamente inacabado, cujo destino é o de ser, também, eternamente reescrito.

Sua chegada ao Ocidente, na tradução francesa de Antoine Galland, a partir de 1704, em nada atenuou sua natureza mágica e maldita. A diversidade entre manuscritos e traduções é de tal ordem que chega a impedir qualquer leitura comparativa. Alguns compiladores, na tentativa equivocada de atingir o número de mil e uma histórias – quando, parece, o número aproximado não chegaria a duzentas – acrescentaram ao conjunto original contos que pertenceriam a outro ciclo, ou simplesmente os inventaram. Existem manuscritos contemporâneos do livro impresso, sobre os quais recaem suspeitas de que as cópias teriam produzido seu próprio original.

A guerra entre orientalistas, tradutores e comentadores é insana, e dura séculos: traduzem uns contra os outros, inaugurando sempre novos argumentos, em discussões preciosísticas. Todos reivindicam a legitimidade do seu original, a descoberta do verdadeiro autor, ou a decifração de sua origem obscura. Fala-se abertamente em pilhagem literária e recorre-se a outras metáforas não menos brutais, que evocam exércitos cristãos contra o infiel sarraceno. O estigma da infidelidade e do adultério feminino que ronda as histórias estendeu-se também ao livro e a seus tradutores, modernos copistas que, no entender de René Khawam, “tentam fazer passar sua bela infiel1 por um modelo de virtudes(LES MILLE ET UNE NUITS, 1986, p. 23).

Jorge Luis Borges, leitor apaixonado e, de certa forma, autor secreto das Noites – que são recriadas por ele em toda a sua obra – prefere concebê-las como infidelidades felizes, consequências de uma literatura. Borgeanamente termina seu ensaio sobre os tradutores optando pela impossibilidade de decifração do Livro das Mil e Uma Noites: “As antessalas confundem-se com os espelhos, a máscara está por trás do rosto, já ninguém sabe qual é o homem verdadeiro e quais seus ídolos. E nada disso importa; essa desordem é trivial e aceitável como as invenções do limiar do sono” (BORGES, 1982, p. 95).

Se os manuscritos das Mil e Uma Noites jamais coincidiram entre si, a história do livro impresso não foi diferente, e caracterizou-se por relações extremamente belicosas entre os diversos tradutores e comentadores.

É ainda Borges que, em um ensaio bem-humorado, demonstra que as traduções do livro foram realizadas por uma “dinastia inimiga” (2001, p. 438). Obedeceram ao que poderíamos chamar de tradução contra: Richard Burton traduziu contra Edward Lane, que traduziu contra Antoine Galland, que não traduziu contra ninguém (a não ser contra, quem sabe, um obscuro autor, de improvável existência e identidade ignorada). E, pode-se acrescentar, René Khawam, que ainda não havia entrado na história, traduziu contra si mesmo, já que, em 1965, havia apresentado outra versão da obra, que mais tarde, repudiou.

À medida que aumentava o interesse pelo livro e pelo universo contido em suas histórias, foram se acumulando uma avalanche de críticas dirigidas, primeiro, ao introdutor do livro no Ocidente e, em seguida, a todas as traduções posteriores. Cada tradutor passou a registrar em suas edições fórmulas como “pela primeira vez na Europa uma tradução completa e fiel das Mil e Uma Noites”, para citar Mardrus (LE LIVRE DES MILLE ET UNE NUITS, 1985, tradução nossa), ou: “esta edição das Mil e Uma Noites é a única, no mundo, estabelecida exclusivamente a partir dos manuscritos originais”, como anuncia Khawam (LES MILLE ET UNE NUITS, 1986, tradução nossa).

Seria quase impossível registrar todas as batalhas verbais e escritas que o livro suscitou. Com efeito, as diversas versões ocidentais transformaram as Noites Árabes2, desde o início, num colossal amontoado de notas, prés e posfácios, intervenções no texto, cortes, justificativas de interrupções, alterações em nome da moral ou da verossimilhança, pormenorizados relatos etnográficos da cultura árabe, enfim, todo um arsenal de informações que pertence a uma ordem de discurso extraliterária. Embora muitas dessas contribuições tenham sido de inegável utilidade para o estabelecimento de uma edição crítica, elas acabaram imprimindo na obra uma documentalidade excessiva, que, no limite, nega o próprio fato ficcional, ou seja, a literatura do maravilhoso, natureza essencial da obra.

Na guerra entre tradutores, Antoine Galland talvez tenha sido o mais apedrejado. Entre os ataques que lhe foram desferidos, os mais insistentes acusam-no de ter feito uma adaptação, e não uma tradução, e de ter limpado o texto do conteúdo erótico e dos poemas intercalados nas histórias. Jean Gaulmier, um de seus defensores, diz que a omissão de certas histórias se deve às imperfeições dos originais com os quais Galland trabalhou. Além disso, algumas delas eram muito semelhantes às outras, e alongavam demais a narrativa. Quanto aos poemas, argumenta Gaulmier, o orientalista francês considerava-os “ornamentos inúteis”. Mesmo porque, o leitor de línguas orientais de Luís XIV conhecia melhor o turco que o árabe e, portanto, compreendia mal aqueles versos “plenos de uma obscura preciosidade” (GAULMIER, 1965, p. 11).

Quem melhor documentou as hesitações e os problemas enfrentados na tradução foi o próprio Galland, que manteve um diário durante parte do tempo em que realizou seu trabalho (entre 1708 e 1715, ano de sua morte), e que é rico em explicações (MAY, 1986, p. 83). Embora justifique os cortes em suas anotações, as intervenções de Galland insinuaram-se no próprio corpo do texto, com explicações do tipo: “O pudor não me permite contar tudo que se passou entre estas mulheres e estes negros, e é um detalhe desnecessário. Basta dizer que Shahzenan viu o suficiente para julgar que seu irmão não era menos deplorável do que ele” (LES MILLE Y UNE NUITS, 1965, p. 27).

Galland conservou a divisão em noites até a 236ª, que corresponde, em sua versão, ao início do tomo VII. Esse volume se abre com uma Advertência na qual o tradutor se refere ao cansaço causado nos leitores pelas sucessivas interrupções no texto, devido a essa divisão. O tradutor passa então a narrar as histórias linearmente, o que considera justo, desde que os leitores estejam informados sobre o projeto do desconhecido autor árabe. Em suas notas, Galland informa ainda que alguns manuscritos árabes não contém o conto-moldura, nem seus personagens principais – Sheherazade, sua irmã Dinarzade e os dois príncipes, Shahriar e Shahzenan –, e não estão divididos em noites: “O que demonstra” – assegura ele “que nem todos os árabes aprovavam a forma que este autor lhes deu, e que uma infinidade deles se entedia com estas repetições que são, na verdade, inúteis” (LES MILLE Y UNE NUITS, 1965, p. 256).

Outro ponto polêmico da primeira tradução para língua ocidental pode ser localizado na transcrição das histórias narradas por Hanna, seu criado alepino. Galland resumiu em seu diário quatorze dessas histórias, mas reteve apenas sete na versão final do livro. Para além das questões de autenticidade ou não desses contos, eles repõem, de alguma forma, a tradição mais antiga das Noites, que é a sua transmissão oral.

A defesa mais veemente de Galland será feita por Georges May (1986), num livro especialmente escrito para isso: Les Mille et Une Nuits d’Antoine Galland, ou le chef d’oeuvre invisible, que reúne vasta documentação. May, constatando a permanente falta de referências à Galland, não só nas diversas enciclopédias, mas também em obras de literatura especializada no gênero (da época de seu lançamento até a contemporaneidade), acredita que as Noites gallandianas sofreram um processo de invisibilidade. Isso em parte poderia ser explicado pelo fato de o livro ter sido editado nos primeiros quinze anos do século XVIII quando, convencionalmente, o grande marco inaugural desse período é o ano de 1715, data da morte de Luís XIV. Os anos imediatamente anteriores a esse seriam uma espécie de entreato, ou vácuo histórico, o que fez com que as Noites permanecessem fora do campo visual da crítica.

Na defesa intransigente de Antoine Galland, Georges May reivindica para ele o título de autor das Noites, não só pelas histórias narradas por Hanna (que saíram de sua lavra, e fizeram a fama do livro), mas também por analogia com os contos de Perrault e de Grimm que, originários, como as Mil e Uma Noites, de fonte popular, e tendo sofrido, da mesma forma, adulterações, tiveram os nomes de seus compiladores anexados definitivamente à obra. Ressalta ainda o caráter literário do texto de Galland, obscurecido, aos olhos de quem lê, pela habilidade do tradutor em “fazer nascer a ilusão da narrativa oral” (MAY, 1986, p. 16). Quanto à interrupção da divisão em noites, argumenta May, o efeito já estava nulo na obra impressa, já que o leitor poderia passar a página e continuar a leitura. Nesta infindável discussão, o melhor seria voltar a Borges, para quem a versão de Galland é a pior de todas, a mais mentirosa e mal escrita, mas “quem nela se embebeu conheceu a felicidade e o assombro” (BORGES, 1982, p. 78).

A Revolução de 1789 vai interromper por um século as pesquisas francesas sobre o Livro das Noites. Durante esse tempo, alemães e ingleses é que irão retomá-las. Por ordem de relevância na linhagem francesa dos tradutores, segue-se a do Dr. Joseph Mardrus (LE LIVRE DES MILLE ET UNE NUITS, 1985), que dedica seu trabalho – realizado entre 1889 e 1904 – ao poeta Stéphane Mallarmé, e conta com adeptos fervorosos, como André Gide. A grande marca dessa tradução é a obsessão pelo íntegro e literal, e a pretensão não ocultada de aniquilar Galland. Ao contrário desse, Mardrus carrega nas tintas em tudo o que diz respeito às tentações da carne. Mas sua versão, como a de seu antecessor, contém textos não autenticados, que recolheu de fontes orais não especificadas.

Sírio de nascimento, naturalizado francês, Mardrus trabalhou, durante muitos anos, como médico de linhas de navegação, e foi assim que visitou, segundo afirma, todos os portos do Oriente, e pesquisou em todas as bibliotecas, além de ter tomado notas, de viva voz, nos mercados e cafés da Síria e do Egito. A Apresentação da edição original do livro, não assinada, refere-se à tradução de Galland como:

Um exemplo curioso de deformação que pode sofrer um texto ao atravessar o cérebro de um letrado do século de Luís XIV. A adaptação de Galland, feita para a corte, foi sistematicamente emasculada de toda originalidade e filtrada de todo sal. Mesmo como adaptação ela é incompleta, porque compreende apenas um quarto dos contos: os que formam os outros três quartos, que não são os menos interessantes, são desconhecidos na França. Além disso, os contos que sofreram a adaptação de Galland foram encurtados, deformados, expurgados de todos os versos, poemas e citações de poetas; sultões, vizires e mulheres da Arábia ou da Índia se exprimem como em Versailles ou em Marly. Numa palavra, esta adaptação antiquada não tem nada a ver com o texto dos contos árabes Mardrus (LE LIVRE DES MILLE ET UNE NUITS, 1985, p. VI).

Rafael Cansinos Asséns, o tradutor espanhol, faz de Mardrus o alvo principal de suas críticas, e é implacável com sua pretensão de ter realizado uma versão íntegra e literal: “Há muito de charlatanismo na jactância com que o Dr. Mardrus se apresenta como o verdadeiro descobridor das Mil e Uma Noites. (...) Há muito de palavrório nesta loquacidade narcisista de Mardrus” (CANSINOS-ASSÉNS, 1986a, p. 42). Cansinos Assens censura Mardrus principalmente por ter sido vago e pouco explícito em relação às fontes orais que utilizou, mas verborrágico e eloquente ao falar das qualidades de sua tradução. O tradutor espanhol não perdoa o esnobismo de Mardrus e classifica sua obra como tão fin-de-siècle quanto a de Galland, que reflete o século XVIII. Para ele, se Galland faz seus árabes falarem a linguagem de Versailles, os de Mardrus têm o sotaque do boulevard parisiense milenovecentista e ostentam “todo esse mundo falso, que se expressa em um tom também falso, porém sugestivo e encantador do final do século” (CANSINOS-ASSÉNS, 1986a, p. 43).

Conhecedor como ninguém dos encantos do falso, é Borges, mais uma vez, que vem resgatar o trabalho de Mardrus: “Enaltecer a fidelidade de Mardrus” – diz ele – “é não aludir sequer a Mardrus. Sua infidelidade, sua infidelidade criadora e feliz é o que deve importar para nós” (BORGES, 1982, p. 92). A versão de Mardrus é limpa de notas e vem acompanhada de um breve prólogo, de evidentes pretensões literárias. Traz para o título francês uma inovação que já existia nas edições inglesas de Payne e de Burton. Seu livro se chama: Les Mille Nuits et une Nuit. Na busca incansável da literalidade, Mardrus conservou as técnicas mnemônicas herdadas pelos árabes da Antiguidade Grega. Foi sob sua pena que as Mil e Uma Noites preservaram catálogos e listas inumeráveis que inventariam, de forma minuciosa, a Idade Média Oriental.

Com a tradução de René Khawam (1986) fecha-se, pelo menos provisoriamente, a linhagem francesa dos tradutores. Nascido em Alepo, na Síria, Khawam vem do mesmo lugar de onde surgiram os manuscritos trabalhados por Galland, e que vem a ser, também, a terra natal de Hanna, seu criado árabe. A primeira tentativa de Khawam de traduzir as Noites para o francês data de 1965. Organizou os contos em ciclos temáticos, suprimiu a divisão em noites, optando pela narrativa linear. E deu nome às histórias ao sabor de sua livre e portentosa imaginação. Ao conto de abertura chamou “A Tecelã das Noites”, e nele juntou as duas pontas do livro, reunindo numa só história, a primeira e a milésima primeira noite. Mas a impiedade da crítica fez com que Khawam considerasse este trabalho “mero canteiro de obras” (KHAWAN, 1986, p. 11). Persistiu e, em 1986, apresentou, enfim, o que considera a versão definitiva, mas que, em substância, não difere tanto da primeira.

Do alto de quase quarenta anos de pesquisas sobre os manuscritos, Khawam arrasou com os adversários. A retórica utilizada para atacar seus antecessores, revestida de cautelosa elegância, lembra em tudo, “A Arte de Injuriar”, curioso gênero literário do qual Jorge Luis Borges investiga o método. O agressor, diz Borges, sabe que se transformará em agredido e que, como advertem os policiais da Scotland Yard, “qualquer palavra que pronuncie poderá ser invocada contra si” (BORGES, 1982, p. 105). Isso fará com que, em suas estocadas, tome cuidados especiais.

Assim, Khawam, nascido num tempo em que a crítica literária não poderia mais desconhecer as condições históricas de produção de determinada obra, ao condenar Galland, defende-se antecipadamente:

Longe de nós jogar a pedra no admirável Galland. Ele viveu, não nos esqueçamos, na época de Luís XIV: os princípios que governam a crítica científica dos textos não haviam sido formulados e ainda seria preciso aguardar quase dois séculos. (...) Não se pode, portanto, sem má-fé, fazê-lo endossar erros que, por mais constrangedores que sejam aos nossos olhos de hoje, não o eram então, e, mesmo para os mais exigentes, não passavam de pecadilhos (KHAWAN, 1986, p. 12).

Faz parte do ritual do jogo satírico, lembra Borges, simular piedade pelos erros do adversário. O discurso do difamador é cheio de “falsas caridades”, de “concessões traiçoeiras”, e do “paciente desdém”. Em outras palavras, o agressor “finge aceitar o que está fulminando” (BORGES, 1982, p. 107). Seguindo à risca a receita borgeana da arte de injuriar, Khawam vale-se de preterições e simula perdoar o que não perdoa: “Mais constrangedora, sem dúvida, é a forma com que nosso excelente erudito trata o corpo de texto, ainda que seja preciso, aqui também, considerar os costumes da época” (KHAWAN, 1986, p. 13).

“Excelente erudito”: o termo pertenceria “ao alfabeto convencional da afronta”, usado pelos polemistas, “que se valem de expressões laudatórias para agredir”, explica Borges (1982, p. 106). E, para que ninguém se engane, enfatiza que chamar alguém de doutor ou senhor numa disputa verbal é uma fórmula particular de aniquilação (BORGES, 1982).

Khawam, porém, é determinado e, depois de mais meia página de comentários pouco lisonjeiros, faz pequena pausa, apenas para retomar mais cruelmente sua estratégia bélica:

Mas calemos por aqui as reprovações. O mérito de Galland é imenso. Foi ele quem revelou as Noites ao vasto mundo, ele quem abriu ao imaginário ocidental a porta mágica do Oriente [e, em seguida, fulmina] (...). Mesmo se se adivinha nas entrelinhas que alguma coisa falta ao texto, um pouco como um prato exótico do qual retiraram todas as especiarias (KHAWAN, 1986, p. 13).

Com Mardrus, Khawam não é menos implacável e, ao criticá-lo, utiliza dos mesmos piedosos recursos: “a infelicidade de Mardrus (...) foi ter escolhido mal suas fontes” ou “prosseguir na enumeração ‘de seus equívocos’ seria cruel”, e assim por diante (KHAWAN, 1986, p. 22-23).

René Khawam recusa a ideia de bastardia ou “geração espontânea” na origem das Noites e persegue um autor que ainda não revelou seu nome. Mas, como todos os tradutores que o precederam, retira alguns contos de circulação e acrescenta outros, inéditos. Como argumento final e prova definitiva da superioridade de sua obra, diz possuir um manuscrito particular, a que só ele tem acesso.

O aparecimento das versões inglesas em nada atenuou o caráter polêmico da história do livro. Bem ao contrário, elas acirraram o debate, trazendo novas questões e, sobretudo, transformando as Noites Árabes num pretexto para reunir, ao seu redor, uma portentosa documentação. O número de notas que acompanhou cada edição cresceu sempre, de tradutor para tradutor, até atingir, com Richard Burton (1986), nada menos de seis (em edições posteriores, sete) volumes suplementares. Entre outras contribuições, os ingleses foram os primeiros a chamar a atenção dos orientalistas para uma possível origem persa do livro.

A primeira edição de contos extraídos do manancial das Noites numa tradução independente da de Galland, que se chamou Tales, Anecdotes an Letters, translated from the Arabian and Persian, foi realizada pelo Dr. Jonatan Scott, funcionário do governo britânico em Bengala, a partir de um manuscrito descoberto por Worthley Montagu, e foi publicada em Londres no ano de 1800. Mas a primeira grande tradução inglesa foi a de Edward Lane, que apresentou uma versão preliminar entre 1831 e 1834, e outra em 1859.

A obra de Lane, erudita e expurgada, é, em tudo, um eloquente retrato do espírito vitoriano. Além do recato e da censura, o livro ganhou um volume especial de notas, que o transforma numa extensa enciclopédia. Não se contentando em omitir passagens que considera grosseiras ou obscenas, Lane “persegue-as como um inquisidor”, para delícia de Borges, que transcreve, em seu ensaio, algumas destas intervenções: “Passo por alto um episódio dos mais repreensíveis”; “Suprimo uma explicação repugnante”; “Suprimo necessariamente outro episódio”; “Daqui por diante dou curso às omissões”, e assim por diante. Mesmo os contos rechaçados na íntegra não deixam de ser mencionados, “já que não podem ser purificados sem destruição” (BORGES, 1982, p. 79).

Edward Lane seria, para Jorge Luis Borges, uma espécie de virtuose do subterfúgio puritano, especialista que é em ocultações e contorcionismos diante da mais leve alusão carnal. Sua medíocre tentativa de tradução das Noites tinha, no entanto, pelo menos uma clara intenção: a de superar Galland. Apontando em seu texto todos os expurgos que cometeu, Lane acreditou, quem sabe, que assim se fortalecia diante do adversário, numa batalha póstuma, e, ao mesmo tempo, se livrava da acusação de ter abreviado o original.

A obra que tornou Lane respeitado como orientalista não foi o Livro das Mil e Uma Noites, mas o trabalho etnográfico Account of the Manners and Customs of the Modern Egyptians (1908), resultado de cinco anos de perambulação pelo Egito. Nele encontra-se a mesma obsessão pelas notas e pelas descrições monumentais, o que leva Edward Said a afirmar que “o objetivo de Lane é tornar o Egito e os egípcios totalmente visíveis, não deixar nada oculto para o leitor” (SAID, 1990, p. 170). O espírito inquisitorial já está presente neste livro que precedeu a tradução das Noites em alguns anos, e manifesta-se, como diz Said “na busca do petisco sadomasoquista”(idem). Lane compraz-se em descrever, em suas minúcias, a automutilação dos derviches, as licenciosidades erótico-religiosas dos muçulmanos e toda sorte de paixão libidinosa, que transformam a vida oriental num extenso catálogo de excentricidades.

Na sequência das traduções inglesas, surge, em 1881, a versão de John Payne, que tem por título The Book of Thousand Nights and One Night, inovação que tanto Mardrus quanto Burton irão imitar. A edição, hoje considerada raridade bibliográfica, foi custeada por meio de assinaturas, teve apenas quinhentos exemplares que circularam entre os amigos da Villon Society, associação fundada por Payne e frequentada por dândis e esnobes literários da época vitoriana, gente como Oscar Wilde que, no dizer de Cansinos-Asséns, era igualmente gulosa de licores, ópio e poemas exóticos.

A versão de Payne guarda um ar antigo de lenda e de Idade Média e obteve o respeito até mesmo do mais polêmico dos tradutores, Richard Burton, que a considera não só a mais legível em inglês, como a que “acerta a maravilha nos seus passos mais difíceis” (CANSINOS apud BURTON, 1986, p. 39). O objetivo de Burton nunca foi detratar Payne, com o qual colaborou e se correspondeu durante os trabalhos de tradução de ambos que, em diversos momentos, correram paralelamente. Seu esforço de demolição estava todo voltado para Edward Lane, atacado em cada nota e em quase todos os seus comentários. “Quando Lane já não podia ser seu alvo”, afirma Edward Rice, “Burton atacou seu sobrinho-neto Stanley Lane Paole” (RICE, 1991, p. 463). Contudo para avaliar esta polêmica é preciso, antes, conhecer melhor esse denso personagem, Sir Richard Francis Burton.

Aventureiro em busca de ouro, viajante, oficial da Companhia das Índias Orientais, descobridor do lago Tanganika e pesquisador das fontes do Nilo, Burton era linguista (dominava 35 idiomas ou, segundo alguns, 25 línguas e mais de 40 dialetos), antropólogo, orientalista, poeta, tradutor, filólogo, especialista em adagas, espadas e iniciado nos segredos da arte erótica oriental. Foi autor de mais de quarenta livros de viagens – algumas delas feitas no Brasil, onde viveu três anos como cônsul da cidade de Santos – e mais de trinta grandes traduções como Os Kama Sutra, Os Lusíadas e Iracema, de José de Alencar. Burton era, em tudo, excessivo, e a tradução das Mil e Uma Noites, dentro de sua volumosa produção, não passa de um pequeno item. Seus biógrafos registram que, quando trabalhava, usava ao mesmo tempo onze escrivaninhas de pinho, cada uma delas contendo material para um novo livro.

Peregrinou por Meca e Medina disfarçado de afegão, iniciou-se no sufismo, mas sua lenda ainda é mais vasta, e não o livra, sequer, de acusações de canibalismo: quando foi recebido na tribo dos daomé, conta-se, teria comido “estranhas carnes”. Boato que, segundo Borges, foi certamente divulgado e fomentado por ele próprio (BORGES, 1982, p. 83).

No imenso documento em que se transformaram as Mil e Uma Noites sob a pena de Burton, muitos problemas foram resolvidos, como a identificação de aderências persas e sânscritas no texto, a fixação de equivalências fonéticas, minuciosos esclarecimentos sobre usos e costumes do Oriente Islâmico: “Aos cinquenta anos”, justifica Borges, “o homem já acumulou ternuras, ironias, obscenidades e incontáveis histórias; Burton as descarregou em suas notas” (BORGES, 1982, p. 83).

Burton, dizem, sabia de cor as histórias das Noites e divulgou-as oralmente, como um rawi, por todo o Oriente islâmico, seja nos desertos árabes, em Somalind ou Damasco. Quando, em 1881, tomou conhecimento, através de revistas literárias, de que John Payne também trabalhava numa tradução das Noites, Burton quase desistiu de terminar a sua versão. Retomou-a algum tempo depois, esperando superar esse adversário, não no tratamento dado por ele à prosa mileumanoitesca, que reconhecia ser da melhor qualidade, mas na poesia, na tradução dos dez mil versos que se entrelaçam nas histórias. A sua condição de poeta e peregrino no mundo oriental poderiam, certamente, assegurar-lhe algumas vantagens nesse campo.

Elegante, Richard Burton não poupa elogios a Payne. Usa em sua versão várias soluções utilizadas por ele, afirmando que “todos os tradutores futuros terão de usar obrigatoriamente a mesma expressão, sob pena de falharem” (1971, p. 473). Essas declarações soaram, no entanto, como justificativas prévias das inúmeras acusações de plágio que sua obra sofreria. Virulento e impiedoso com Lane, Burton, por sua vez, não conseguiu escapar do estigma de demolição que acompanha o livro e seus tradutores. Thomas Wright, que biografou tanto Payne quanto Burton, acusou esse último de fazer de sua tradução “em larguíssima medida, uma paráfrase da de Payne. (...) Ele toma centenas” – diz Whright – “ou melhor, milhares de frases e expressões de Payne, muitas vezes sem alterar uma única palavra” (WRIGHT apud RICE, 1991, p. 463).

A batalha para a qual Burton havia se preparado, no entanto, era de outra ordem. Precavendo-se contra previsíveis reações do puritanismo vitoriano ao seu livro, o escritor inglês simulou que as Noites Árabes – assim como suas outras traduções de livros eróticos – haviam sido editadas pela Kama Shastra Society, uma pseudoeditora de Benares, e destinavam-se a um público erudito e altamente especializado. Além disso, Burton chegou a planejar uma defesa teatral da obra, que teria por cenário os tribunais, onde compareceria brandindo a Bíblia, Rabelais e os clássicos gregos e latinos, livros que, segundo ele, qualquer escolar deveria conhecer (RICE, 1991, p. 464). No entanto nada disso foi necessário, pois o primeiro volume das Mil e Uma Noites que saiu do prelo não sofreu qualquer tipo de censura por parte da crítica – a não ser restrições às suas qualidades literárias – e alcançou grande sucesso entre os leitores.

O temor de Burton não se justificava, naturalmente, apenas pelas eventuais obscenidades contidas no texto das histórias árabes; o que o inquietava eram seus próprios escritos, em que nenhuma modalidade de prática sexual deixou de ser tratada e descrita em suas minúcias. O escandaloso Terminal Essay que fecha a obra, uma monografia de duzentas páginas que ganhou fama – extensiva a seu autor – de tratar única e exclusivamente de homossexualidade, vai muito além desse tema, e não hesita em comentar todas as formas de sexualidade orientais e ocidentais, além de técnicas de excisão, eunuquismo, rituais matrimoniais os mais diversos, tudo isso muito bem temperado com histórias e anedotas consideradas obscenas. Segundo Edward Rice, o Terminal Essay é um tratado exibicionista de erudição, em que “praticamente nenhum texto contemporâneo ou fato etnológico deixou de ser mencionado” (1991, p. 467). Além de tudo isso, o estudo de Burton serve ainda de pretexto para falar de sua iniciação ao sufismo. Algumas de suas páginas são escritas numa linguagem iniciática, e soam estranhas, impenetráveis, entrelaçando, num campo comum de saber, o Alcorão, As Mil e Uma Noites e o livro de filosofia sufi A Linguagem dos Pássaros.

Prosseguir enumerando as traduções ocidentais significa reproduzir, à exaustão, polêmicas, virulências, cenas de ciúme, de injúria ou de infâmia, adulterações, enfim, a exposição já tediosa – à custa de se repetir – de uma história passional, dissimulada, tantas vezes, pela aparência de rigor e probidade.

Até mesmo Rafael Cansinos-Asséns, o tradutor espanhol, cujo distanciamento no tempo, de traduções e tradutores (sua versão data de 1955), permitiu-lhe estabelecer uma primorosa edição crítica, antecedida de um completíssimo “Estudio Literario-Crítico de Las Mil y Una Noches” (1986), deixou-se contaminar pelos inflamados debates. A versão de Cansinos-Asséns é a que mais orientou Borges em sua leitura. É também a que denuncia, permanentemente, as constantes tentativas de sabotagem da magia e do maravilhoso inerentes ao livro. Para ele, a alquimia dos tradutores, na sua obcecada busca da integralidade ou da literalidade, é tão enganosa quanto a busca pela pedra filosofal.

Mesmo assim – e, pode-se dizer, até por fatalidade –, Cansinos-Asséns também cai vítima do pecado da busca pela verossimilhança, à qual sucumbiram tantos estudiosos do livro das Noites. Quase no momento de se fechar o livro, já na milésima primeira noite, o mestre de Borges comenta as diversas variantes do desenlace da história de Sheherazade e Shariar. Em uma delas, a princesa teria apresentado ao seu príncipe não um, mas três filhos varões. O tradutor espanhol contesta essa possibilidade, afirmando:

De um modo ou de outro este desenlace é igualmente absurdo e extemporâneo, pois não se concebe como Sheherazade pode suportar três gravidezes sem interromper uma só noite suas sessões de recitadora diante do rei, nem como este, com sua bárbara psicologia, pode sofrer, sem repugnância, a vista de uma mulher neste estado tão pouco estético e atraente. A reação de clemência deve ter-se operado nele ao ter a primeira notícia de que ia ser pai, e sentir essa emoção generosa que, em tais circunstâncias, experimentam todos os homens, e não depois de passar pela tríplice experiência, que já deveria ter embotado sua sensibilidade. Mas há, sobretudo para a verossimilhança da continuidade ininterrompida das noites, a dificuldade dos partos... (CANSINOS-ASSÉNS, 1986b, p. 1550)

O comentário de Cansinos, colocado numa nota que precede a história final do livro, pretende, mais uma vez, contestar Mardrus, autor da versão em que Sheherazade dá à luz três varões. É preciso reconhecer, no entanto, a ingratidão da tarefa. Médico de uma linha de navegação, Mardrus, pelo menos no que se refere aos partos, sabia, com certeza, o que estava dizendo quando, através de Sheherazade, anunciou ao sultão:

Teu filho mais velho tem agora mais de dois anos, e estes gêmeos não demorarão a completar um - que Alá afaste deles os maus olhos! Lembras-te, com efeito, ó rei do tempo, que estive indisposta entre a sexcentéssima-septuagésima-nona noite e a septingentésima? Ora, foi precisamente naquela ocasião que dei à luz estes gêmeos, cuja vinda fatigou-me mais do que a de seu irmão mais velho, no ano precedente. Porque meu primeiro parto foi de tal maneira sem inconvenientes para mim que pude, sem interrupção, continuar a história então em curso, a da ‘Douta Simpatia (AS MIL E UMA NOITES, 1961, p. 2986).

No reparo que faz a Mardrus, Cansinos-Asséns enredou-se nas ciladas que armam entre si os tradutores e a elas sucumbiu na milésima-primeira noite. Sheherazade às avessas, o mestre de Borges pecou contra a fantasia e, por isso, certamente não obteria o perdão do príncipe. No entanto foi o mesmo Cansinos quem afirmou, ao longo de sua análise do Livro das Noites, que, em lábios árabes, a verdade tem encanto de mentira e, até quando pretendem justificá-la com dados concretos, reais, eles a tornam ainda mais suspeita de ficção.

Para além do anedótico, o movimento das versões das Mil e Uma Noites, construído de sucessivas negações do modelo anterior convida, por sua singularidade, a uma reflexão. As dificuldades próprias à tradução de um texto manuscrito, cuja primeira referência remonta ao século X, não justificam, por si só, o processo de demolição mútua a que se entregaram os diferentes tradutores das Mil e Uma Noites. Muitos problemas propostos pelo livro resistem à decifração e causam inevitáveis controvérsias. É difícil, sobretudo, aceitar o desafio das disparidades, das zonas obscuras que se entrelaçam no texto, sem ceder à tentação de buscar interpretações fora da realidade textual, literária e estética, que, afinal, é a única que o livro propõe.

O diálogo, tantas vezes perverso, entre um texto e outro, ou de tradutor para tradutor, seria menos intrigante se não significasse, também, além da negação do modelo, uma contestação da ficcionalidade da obra. Tudo se passa como se, para além das diferenças entre os manuscritos, o texto não se sustentasse enquanto tal, e essa precariedade exigisse sempre a proteção de um discurso paralelo, metalinguístico, que, ao mesmo tempo em que o legitime, desmascare como espúrias as traduções anteriores.

Esse movimento, que se reveste de características muito específicas no Livro das Noites, não é novo na história da literatura, e vários caminhos teóricos já foram traçados para tentar entendê-lo. Contudo por mais sedutoras que sejam, essas propostas não explicam a virulência com que os tradutores das Noites se atacaram, nem o fato de terem ferido, em nome da “verdade”, da “verossimilhança” ou da “integralidade”, a autonomia estética da obra. Com efeito, a busca da verdade nas variantes das histórias ou nas traduções revelou uma forma particular de desprezo pela natureza ficcional do livro. Os tradutores parecem ter se esquecido de – ou não sabiam – que a palavra poética é que deve constituir a sua própria realidade; o mundo exterior a ela, ainda que integrado no texto, encontra-se aí dissolvido, “desenraizado de sua identidade banal imediata” (ROSENFIELD, 1986, p. 23).

Outra forma de obscurecer – ou negar – a ficcionalidade da obra manifestou-se no culto pelo documental, exercido principalmente pela vertente inglesa dos tradutores, que acrescentou ao livro um número excessivo de notas, transformando-o numa portentosa enciclopédia de cultura árabe. Essa postura, como as anteriores, está em franca oposição ao discurso próprio da literatura, que tem, essencialmente, um caráter não documental, ou, para dizer como Luiz Costa Lima, “uma radicalidade não documental” (1986, p. 195).

A insistência em transformar a literatura em documento, ou em prova de verdade, faria parte de um veto ou tentativa de controle do imaginário que, historicamente, marcou a literatura do Ocidente. “A ficcionalidade concede ao discurso que rege uma liberdade selvagem e ameaçadora a todo regime zeloso de sua verdade”, diz Costa Lima. “Por isso, onde ela aponte, é de se esperar que os defensores da verdade institucionalizada estendam suas mãos de ferro” (LIMA, 1986, p. 187).

No caso específico das Mil e Uma Noites, a negação do ficcional teve ainda outra forma de manifestação, através da busca da literalidade nas traduções. Octavio Paz (1971), referindo-se às dificuldades inerentes ao ato de traduzir, afirma que essas são tão antigas quanto a separação entre natureza e cultura (ou entre palavras e coisas): têm a ver com a divisibilidade do mundo. Nenhum texto é redutível a outro texto:

Cada texto é único e, simultaneamente, é a tradução de outro. Nenhum texto é inteiramente original, porque a linguagem mesmo, em sua essência, já é uma tradução: primeiro do mundo não-verbal e, depois, porque cada signo e cada frase é a tradução de outro signo e de outra frase. Mas esse raciocínio pode se inverter sem perder a validade: todos os textos são originais, porque cada tradução é distinta. Cada tradução é, até certo ponto, uma invenção e, assim, constitui um texto único (PAZ, 1971, p. 9).

Assim, para melhor entender a estratégia dos tradutores das Noites, é preciso, ainda, resgatar, com Cklovski (KOTHE, 1981, p. 133) o conceito de modelo negativo, que, embora próximo da paródia, dela se diferencia. Uma obra construída por modelação negativa seria a que escolhe determinado livro “como aquele que não se quer fazer”. Finge ignorá-lo, ou o toma como um modelo a ser evitado (KOTHE, 1981, p. 133).

As reflexões do formalismo russo são importantes também para compreender a obra literária enquanto sistema, ou série, da qual o escritor é sempre visto como um elo continuador. Em seus desdobramentos, essa discussão gerou uma troca fecunda entre a antropologia estrutural, a linguística de Jackobson e a teoria dos formalistas, o que permitiu a Claude Lévi-Strauss dar uma contribuição fundamental na análise dos mitos que, agora, numa experiência de torna-viagem, pode se estender também à obra literária.

Apropriando-se do conceito de série, cunhado por Tinianov, Lévi-Strauss (1967) vai pensar o mito como o conjunto de suas variantes e recusar qualquer prevalência de uma sobre a outra. Nesta perspectiva, o mito de Édipo, por exemplo, se iniciaria com a mais remota versão tebana, anterior ainda à de Sófocles, e incorporaria até a sua interpretação freudiana. Para Lévi-Strauss, não existe versão que seja mais “legítima”, “verdadeira”, ou mesmo “original” na narrativa mítica. O mito é sempre a soma de todas as suas versões (LÉVI-STRAUSS, 1967, p. 250).

Retomando as perspectivas aqui levantadas, poderíamos pensar, então, o movimento das versões ocidentais das Mil e Uma Noites como uma forma particular de estratégia que, inscrita na tradição do orientalismo ocidental, se constrói como um texto que sempre se cobre da autoridade de outro para melhor subvertê-lo. Seria um livro eternamente escrevível, como quer Barthes (1980), refeito inúmeras vezes à sua imagem e semelhança. Curiosamente, no entanto, a dinâmica destas reescrituras alimenta-se da negação permanente do imaginário, da destruição da obra em sua ficcionalidade, pela maior parte de tradutores e comentadores. Para que novas Noites se escrevam, é preciso, sempre, renegar todas as anteriores. Com Lévi-Strauss (1967), finalmente, tem-se a possibilidade feliz de não se excluir nenhuma das versões – de Galland a Khawam – e compreender o livro como a soma de todas elas.

Se as Mil e Uma Noites do Ocidente se escrevem quase sempre a partir de sua própria negação, esse não é o único movimento em sua trajetória. Outras histórias a elas se acrescentam, nascidas da mais pura fantasia. Entre essas, pode-se citar, inicialmente, as atribuídas a Galland – ou a Hanna, seu servidor alepino. Referindo-se a essas narrativas – mais especificamente, à história de Aladim – que hoje fazem parte do onirismo ocidental, diz Jorge Luis Borges:

Houve suspeitas de que Galland tivesse falsificado a narrativa. Acho que a palavra ‘falsificar’ é injusta e maligna; Galland tinha tanto direito de inventar um conto quanto aqueles confabulatores noctuni. Por que não se pode admitir que, após ter traduzido tantos contos, ele quis inventar um, que juntou aos outros? (BORGES, 1980, p. 88).

Isso considerado, afirma Borges em outro ponto de sua obra, “Galland seria o último elo de uma enorme dinastia de narradores” (BORGES, 1985, p. 12).

Felizmente, no entanto – e desmentindo Borges –, Galland significou apenas não o último, mas o primeiro elo da cadeia de narradores ocidentais das Noites, que prossegue ainda. E Jorge Luis Borges, este grande fingidor, está, sem sombra de dúvida, entre os autores que mais reescreveram as histórias árabes em sua obra, seja em referências implícitas ou explícitas. Para Borges, o Livro das Mil e Uma Noites faz parte prévia de nossa memória (BORGES, 1980, p. 94).

Em um de seus trabalhos mais conhecidos – o já citado ensaio sobre os tradutores –, Borges finge se espantar: “Não é assombroso que na noite 602 o rei Shahriar ouça da boca da rainha sua própria história?” (BORGES, 1980, p. 94). Para quem conhece os temas de sua literatura, nenhuma história poderia ser mais borgeana: história infinita, labiríntica, que sugere espelhos e vertigens

Inspirando-se no comentário de Borges, Todorov, em “Os homens-narrativas”, analisa o processo de encaixe das histórias, que vão nascendo umas de dentro das outras, criando um efeito vertiginoso. Diz Todorov: “O processo de encaixe chega a seu apogeu com o autoencaixe, isto é, quando a história encaixante se encontra, num quinto ou sexto grau, encaixada por ela mesma” (TODOROV, 1979, p. 126). E cita Borges:

‘Nenhuma interpolação é mais perturbadora que a da seiscentésima-segunda noite, noite mágica entre as noites. Nessa noite, o rei ouve da boca da rainha sua própria história. Ouve a história inicial que abrange todas as outras que - monstruosamente - abrange a si mesma. Se a rainha continuar, o rei, imóvel, ouvirá para sempre a história truncada das Mil e Uma Noites, daí por diante infinita e circular’ (BORGES apud TODOROV, 1979, p. 126).

Daí por diante, afirma Todorov (1979, p. 126), “nada mais escapa ao mundo narrativo, recobrindo o conjunto de sua experiência”.

Para construir sua teoria dos encaixes, Todorov recorre, além de Borges, à primeira edição das Noites traduzida por René Khawan. Essa edição, no entanto, não está dividida em noites. Aí não existe a de número 602. Menos ainda na tradução de Galland que, como se sabe, a partir da 236ª noite passa a contar as histórias linearmente. As versões de Mardrus e de Burton se ocupam, na referida noite, das “Aventuras de Hassan Al-Bassri e de Esplendor”. Cansinos-Assens (1986a), por sua vez, prefere contar a história de Aladim e sua lâmpada.

Em nenhuma dessas versões, todas citadas – e amadas – por Borges, encontra-se qualquer indício de um conto narrado por Sheherazade a Shahriar que trate de suas próprias histórias. No máximo, alguns temas próximos do conto-moldura falam de donzelas raptadas por gênios e da inexorabilidade da traição feminina.

A referência mais próxima da noite borgeana pode ser encontrada em Georges May que, tratando dos diversos desenlaces possíveis do livro, refere-se a uma versão, não especificada, na qual, ouvindo sua própria história dos lábios de Sheherazade, na última das noites, e não na 602ª, o príncipe Shahriar teria tomado consciência dos próprios crimes e, dilacerado pela culpa, teria, então, perdoado sua esposa, o que determina o fim do livro (MAY, 1986, p. 158).

Portanto, e até prova em contrário, “a noite mágica entre as noites” aparentemente não existe, ou melhor, é uma invenção feliz de Jorge Luis Borges. Essa convicção torna-se mais forte ainda quando se percebe que, em outro ponto de sua obra, Borges reproduz o mesmo conto, já em outra “versão”, no qual a narradora renuncia ao seu projeto inicial: “Assim, em uma de suas noites, Sheherazade refere-se à história de Sheherazade, sem suspeitar que se trata de si mesma; se tivesse persistido na sua distração, teríamos alcançado a vertigem e a felicidade de um livro infinito” (BORGES, 1985, p. 10-11).

Nesta perspectiva, a noite 602 poderia existir, então, como uma metáfora, bela e inquietante, deste momento mágico, em que o próprio livro se conta.

Referências

BARTHES, Roland. Novos ensaios críticos, seguidos de O grau zero da escritura. São Paulo: Cultrix, 1974.

BARTHES, Roland. S/Z. Lisboa: Edições 70, 1980.

BARTHES, Roland et al. Littérature et réalité. Paris: Seuil, 1982.

BORGES, Jorge Luis. Sete Noites. São Paulo: Max Limonad, 1980.

BORGES, Jorge Luis. História da Eternidade. Rio de Janeiro: Globo, 1982.

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LIBRO DE Las Mil y Una Noches. Por primera vez puestas en castellano del arabe original. Prologadas, anotadas y cotejadas con las principales versiones en otras linguas y en la vernacula por Rafael Cansinos-Asséns. México: Aguilar, 1986.

Recebido em: 20/07/2019

Aceito em: 17/12/2019


1 Este termo foi cunhado, segundo Georges May, por Gille Ménage (o Vadius) e passou a designar as traduções adulteradas de obras clássicas no início do século XVIII. Ver a respeito: ZUBER, Roger. Les Belles Infidèles et la formation du gôut classique. Paris: Armand Colin, 1968.

2 Algumas versões inglesas do livro receberam o título de Arabian Nights.

Artigos

AS STARTUPS NA PERSPECTIVA DAS CADEIAS GLOBAIS DE VALOR:
financeirização dos trabalhos de inovação e a reinvenção do salário por peça
1

STARTUPS FROM A GLOBAL VALUE CHAINS PERSPECTIVE:
financialization of innovation work and the reinvention of piecework wage

_____________________________________

Simone Wolff*

Resumo

A proposta deste artigo é contribuir com o debate acerca das formas ocultas de assalariamento decorrentes da financeirização da produção, a partir da abordagem de Cadeias Globais de Valor (CGV). Esta abordagem mira os novos expedientes de externalização das atividades produtivas das empresas transnacionais oportunizados pela desregulamentação financeira. A pesquisa circunscreve-se à deslocalização dos trabalhos de inovação através de novas modalidades de aplicações financeiras direcionadas a microempresas inovadoras, tomando como objeto as startups de base tecnológica, nas quais esses investimentos têm sido mais atuantes. O objetivo foi evidenciar que tal expediente denota um novo tipo de assalariamento por peça, assinalado pela produção sob encomenda (just in time), e impulsionado pelo capital financeiro. No caso, a peça é circunstanciada nos projetos encomendados para atender à incrementação da produtividade das empresas líderes das CGV e, com isso, a rentabilidade de seus acionistas. O instrumento mais utilizado para captar esses investimentos são os Editais de Inovação agenciados por políticas de governança e empreendedorismo, cujo principal pilar são as parcerias público-privadas. A análise de dois editais dessa natureza permitiu constatar que esses atuam como um meio de conectar encomendas corporativas a trabalhadores autônomos, servindo como um artifício para disfarçar processos de terceirização dos laboratórios de inovação das grandes marcas e disponibilizar força de trabalho qualificada sem despesas trabalhistas. Assim, riscos e custos laborais são transferidos às startups proponentes, ao mesmo tempo em que as deixa permanentemente disponíveis para novos pedidos, reiterando o paradigma do trabalho intermitente e sem direitos, característico do capitalismo contemporâneo.

Palavras-chave: Cadeias globais de valor. Startups. Financeirização da produção. Salário por peça.

Abstract

This study aims to contribute to the debate about the reinvention of piecework due to financialization of production, from a Global Value Chains (GVC) perspective. From this angle, new putting-out strategies of production activities facilitated by financial deregulation of transnational corporations became clear. The research about dislocated innovative work through new financial investments directed to innovative small firms has as subject startups of technological basis in which such investments have been more active. The putting-out system thus reveals the reinvention of piecework marked by just in time production and promoted by the financial capital. In this context, piecework is based on projects to attend productivity demands and profitability of leading companies of GVC, thus the rise of profitability for shareholders. Innovation Notices (Editais de Inovação) under a governance paradigm, entrepreneurship politics and public-private partnership are the most common type of such investments. The analysis of two notices demonstrate that they connect corporate demands to autonomous workers, thus reinventing outsourcing practices in innovation centers and making available a qualified and informal workforce. Therefore, the classical paradigm of temporary and informal work in contemporary capitalism is reinforced as risks and labor costs are shifted to startups, making workers permanently available.

Keywords: Global value chains. Startups. Production financialization. Workpiece wage.

Introdução

As cadeias globais de valor (CGV) são a última expressão do padrão de expansão e reprodução ampliada do capital, após quatro décadas de liberalização econômica em escala mundial. Essa abordagem permite observar como a liberdade financeira permitiu às grandes empresas reestruturar suas cadeias produtivas por meio de investimentos em negócios juridicamente autônomos e potencialmente rentáveis ao incremento e diversificação de seus empreendimentos, estabelecendo um regime de acumulação excepcionalmente condicionado ao capital financeiro (CHESNAIS, 2013; GUTTMANN, 2008). Essas transações são mormente direcionadas às atividades comerciais e logísticas dos produtos das grandes empresas globais nos espaços nacionais.

A proposta deste artigo é se valer de uma análise crítica das CGVs como recurso metodológico para revelar os novos expedientes de externalização dos laboratórios de inovação das grandes empresas, efetivados via capital financeiro, que ocultam um novo assalariamento por peça demarcado pela produção sob demanda (just in time). No caso, a peça é representada pelos projetos temporários encomendados para oportunizar novos negócios lucrativos, com custos e riscos compartilhados com os seus proponentes. Tal análise mira o padrão de industrialização calcado na dominância financeira que permite reduzir custos de transação e produção transferindo riscos para terceiros, concomitante à apropriação de lucros sob a forma de renda a partir de um conjunto de ativos financeiros que, de fato, é o que sustenta e controla esses projetos (SCHERER, 2014). São esses investimentos que conectam as demandas das grandes corporações às operações necessárias para levar seus produtos e serviços até mercados finais cada vez mais longínquos.

Uma das principais políticas para a captação desses ativos é a abertura a novas modalidades de aplicações financeiras voltadas para microempresas nascentes, que envolvem menores aportes de capital, porém com maior risco quanto às garantias de retorno lucrativo (SPOSITO; SANTOS, 2012). Essa modalidade de microempresa é chamada de startup de base tecnológica e tem como escopo produzir projetos que visam a inovações passíveis de se tornarem escaláveis, característica considerada fundamental para atrair esses investimentos por ter maior garantia de mercado, já que seus resultados podem ser replicados sem acarretar grandes aquisições (BICUDO, 2016).

O instrumento mais utilizado para esse fim são os Editais de Inovação lançados por agências de fomento ao sistema produtivo nacional, dentro do chamado modelo de governança, cujos principais pilares são as parcerias público-privadas. Juntamente às políticas de empreendedorismo, a governança vem sendo perfilhada como uma estratégia basilar de desenvolvimento capaz de alavancar a inserção qualificada do país na economia internacional (WOLFF, 2019; SANTOS; KREIN; CALIXTRE, 2012). A perspectiva aqui adotada se contrapõe a essa visão ao compreender tais editais como um método de agenciamento de força de trabalho qualificada barata para as empresas que encabeçam as CGVs, e/ou para aumentar a lógica dos mercados de capitais por essas patrocinados, que não se comprometem como países, mas apenas com rentabilidade.

Para fundamentar esse argumento, foram selecionados dois editais voltados ao fomento de startups, visando evidenciá-las como um modelo de negócios representativo do atual regime de acumulação sob predominância financeira e do novo salário por peça que este assinala. Além desta introdução e das considerações finais, o percurso conta com mais três seções. Na primeira, será apresentada a relevância que as microempresas ganharam no contexto das CGVs em conjunto com as políticas que visam promover a sua inserção nessas cadeias e que orientam as startups em tela. Essa discussão servirá de base para a problematização do assalariamento por peça ensejado pela financeirização da produção, que será realizada na segunda seção. A terceira analisa os editais à luz da metodologia construída nas seções anteriores, a fim de revelar os vínculos intermitentes de emprego incentivados pelas políticas de governança e empreendedorismo inovador.

Terceirização disfarçada:

as microempresas no contexto das CGVs

As cadeias globais de valor (CGV) dizem respeito à transferência de toda a gama de atividades envolvidas para a fabricação e venda de um dado produto para fora dos países que sediam as empresas proprietárias da sua marca e patentes de produção (GEREFFI, 1999). Desde a abertura das economias nacionais, essas externalizações são mobilizadas via investimentos financeiros que reestruturaram as cadeias produtivas das grandes empresas de dois modos inter-relacionados: ١. as cadeias produtivas dirigidas pelo produtor, quando uma grande indústria detém e controla a maior parte das operações a montante e a jusante do seu produto final, formando oligopólios e ditando o consumo; e 2. as cadeias produtivas dirigidas pelo comprador, quando uma grande marca coordena todas as etapas do processo até a chegada ao consumidor final, sendo ditada pelo consumo (GEREFFI, 1999). Enquanto a primeira é liderada pelo capital industrial, a segunda é puxada pelo capital comercial, sendo o capital financeiro liberalizado o elo que conecta ambos mediante duas formas de investimento que perfazem as CGVs: os Investimentos Estrangeiros Diretos (IED) e as Novas Formas de Investimentos (NFI).

O IED visa o controle acionário, total ou parcial, de empresas nacionais mediante privatizações e fusões com empresas estrangeiras. Geralmente, esse tipo de investimento se dirige às indústrias de grande porte que possuem maior potencial de internalização de oligopólios globais, como é o caso das corporações inseridas nas cadeias produtivas de tipo 1 (SANT ANNA, 2017). Já as NFIs referem-se ao controle de firmas nativas por corporações estrangeiras através de processos de externalização que prescindem de propriedade direta, tais como acordos de licença de uso e de assistência técnica, franquias, terceirizações e subcontratações internacionais etc. (SPOSITO; SANTOS, 2012; MARTINEZ-ORTIZ, 1994). Esse gênero de investimento prevalece nas cadeias produtivas de tipo 2, responsáveis por escoar os produtos das cadeias de tipo 1.

As NFIs foram particularmente favorecidas pela desregulamentação financeira, a partir da qual se originou uma ampla variedade de novos ativos monetários intangíveis que aumentou o leque de oportunidades de investimentos lucrativos, dispensando gastos com grandes aquisições. É essa cartela de produtos financeiros que constitui o coração das CGVs de tipo 2. Seus fluxos reconfiguraram o padrão de internacionalização do grande capital, tanto setorialmente, em vista da transferência de operações produtivas, logísticas e varejistas para firmas de outros países, como funcionalmente, ao envolver atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D) direcionadas à incrementação e parametrização desses processos, de acordo com as especificidades legislativas e de consumo das regiões em que se insere (SCHERER, 2014).

Essa industrialização puxada pelas finanças ocasionou uma interação estreita entre empresas financeiras e não financeiras, de tal modo que se tornou difícil discernir suas fronteiras (SERFATI, 2008). Tal amálgama levou as empresas que lideram as CGVs a se constituírem como fábricas sem fábricas, visto que se restringem à propriedade de marcas e patentes enquanto seus produtos e serviços passaram a ser produzidos em diferentes pontos do planeta (COWEN, 2014). São essas duas propriedades que sustentam toda a cadeia produtiva dessas empresas, reduzindo a sua estrutura a um sistema informacional virtual que integra e administra as suas redes globais de produção e circulação. Com efeito, é muito mais vantajoso transferir essas atividades para firmas locais menores do que edificar estruturas próprias e, portanto, sujeitas a tributos.

Devido à intensa fragmentação e dispersão geográfica que esse movimento implica, um ambiente institucional confiável e apto ao aprovisionamento dos fatores necessários à gestão e operação desses processos torna-se decisivo para a motivação e permanência desse capital circulante. Essa conjuntura tem levado os países com um sistema produtivo de baixa densidade tecnológica a apostar na abertura a esse tipo de capital como um meio de absorver tecnologia de ponta e, assim, ampliar a oferta de produtos de maior valor agregado no âmbito do comércio exterior. Tal expectativa vem reorientando as políticas de desenvolvimento nacional no sentido de tornar seus sistemas produtivos mais atrativos às NFIs.

Uma das ações centrais para colocar a economia nacional no itinerário desses investimentos é o estabelecimento de acordos de cooperação em P&D que possam propulsar a sua inserção nas CGVs. As empresas que lideram essas cadeias, por sua vez, veem nessas parcerias oportunidades de promover inovações que concorram para expandir o consumo de suas marcas e patentes, se valendo de recursos localmente disponíveis para baratear custos (FAUSTINO; GOHR, 2016). Em tal contexto, as rendas relacionais, ou seja, ações institucionais capazes de conectar grandes empresas a pequenas firmas locais, ganham especial importância para o agenciamento dessas parcerias (OLAVE; AMATO NETO, 2001).

É dentro desse quadro que a internacionalização das micro e pequenas empresas (MPE) adquirem um papel estratégico. Conforme o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE, 2006, p. 12), a MPE pode representar uma parceria interessante para as empresas globais por “oferecer produção flexível, algo bastante atrativo para indústrias com demanda ou oferta sazonal; possíveis reduções de custo de produção em indústrias intensivas em trabalho; e proximidade com os mercados”. O caminho para tanto seria se tornar “um fornecedor para grandes empresas internacionais e concorrer por preço ou se especializar em nichos de mercados” (SEBRAE, 2006, loc. cit.).

Com a retração do papel do Estado na economia, essas transações passaram a ser afiançadas pelo chamado modelo de governança, que se alicerça nas parcerias público-privadas (PPP). Aplicada aos sistemas produtivos de inovação, a governança tem o objetivo de criar mecanismos institucionais de apoio a investidores, tendo no “empreendedorismo inovador” um de seus principais instrumentos (OLIVEIRA; CARNEIRO; SILVA FILHO, 2017; CONCEIÇÃO; FEIX, 2014). Essa concepção de empreendedorismo postula um novo perfil de MPE definido como toda atividade que “se dedica à geração de riquezas, seja na transformação de conhecimentos em produtos ou serviços, na geração do próprio conhecimento ou na inovação em áreas como: marketing, produção, organização, etc.” (LOURES, 2015, p. 93).

Portanto diferente do empreendedorismo compensatório à parcela de trabalhadores não absorvida no seguimento industrial, a MPE inovadora se anexa à indústria (NARETTO; BOTELHO; MENDONÇA, 2004). Isso porque se configura como um meio para acelerar a transição de uma economia movida por fatores de produção, caracterizada pelo predomínio de commodities e de produtos de baixo valor agregado, para o “estágio movido pela inovação”, capaz de criar as condições para qualificar pequenos negócios locais na rota mercantil e financeira das CGVs (OLIVEIRA; CARNEIRO; SILVA FILHO, 2017). Com isso, espera-se criar negócios mais competitivos para alavancar a economia nacional e gerar ocupações mais bem qualificadas e remuneradas (OLIVEIRA; CARNEIRO; SILVA FILHO, 2017).

Contudo, na medida em que as MPEs se colocam como fornecedoras das grandes empresas, suas atividades tendem a se confinar às franjas de suas cadeias produtivas, onde estão os processos de menor valor agregado quando comparados àqueles responsáveis por alterar padrões de consumo (WOLFF, 2019). Desse modo, longe de concorrerem para alçar a economia nacional a exportadoras de tecnologias avançadas, as atividades geradas dentro deste quadro são extremamente dependentes dos parâmetros tecnológicos das empresas globais (KREIN; BIAVASCHI, 2012). Deste prisma, o empreendedorismo inovador se revela como um mecanismo de terceirização disfarçada pelo recurso à “pejotização” do trabalho, que se refere à prática de camuflar vínculos empregatícios mediante a substituição da carteira de trabalho por contratações via Pessoa Jurídica (KREIN, 2018).

Nesse enfoque, as MPEs atuam como “empresas-mão” financeiramente subordinadas às “empresas-cabeça” das CGVs (CASTILLO, 2008), em especial as de tipo 2, que são as que se valem das NFIs para promover seus processos de externalização. Essa subordinação é dissimulada não somente pela aparência de negócios juridicamente autônomos, mas também pelas políticas de governança e empreendedorismo inovador, que organizam esses vínculos de forma contingente por meio do agenciamento de parcerias firmadas sobre projetos específicos e temporários voltados à incrementação de processos e produtos das grandes companhias.

É desde essa aparente autonomia que essas inovações deixam de representar custos de produção para se tornarem etapas de agregação de valor a essas funções, já que fora das grandes empresas essas se convertem em postos de trabalho produtivo (HUWS et al., 2009), com a vantagem adicional de que as tributações relativas a esses custos também são externalizadas. Considerando que as MPEs representam hoje 99,1% do total de empresas registradas no Brasil, respondendo por 52,2% dos empregos de carteira assinada (DATASEBRAE, 2019), depreende-se que a grande indústria não se rarefez, antes se encontra pulverizada de forma ubíqua nas MPEs que, sob a regência do capital financeiro, passam a participar ativamente dos seus processos globais de valorização.

A problematização feita em torno das MPEs inovadoras possibilitou constatar que essas serviram como um modelo precursor das startups de base tecnológica, que será visto a seguir. A análise procurará demonstrar como essa nova modalidade de microempresa aprofundou a subsunção dos serviços de inovação à lógica do regime de acumulação dominado pelas finanças emanado das CGVs de tipo 2, baseadas nas NFIs.

As startups na perspectiva das cadeias globais de valor:

subsunção financeira e o novo salário por peça

As startups de base tecnológica, também chamadas de inovadoras, são um tipo de microempresa conceituada como nascente, com até cinco anos de existência, e destinada à captação de recursos para o desenvolvimento de produtos replicáveis e escaláveis a partir de projetos selecionados por tempo determinado (BICUDO, 2016). Por ser um negócio eminentemente financeirizado, as startups inovadoras se distinguem como o perfil de microempresa mais afeito ao tipo de investimento carreado pelas NFIs que, neste contexto, se estabelecem por joint venture. Esse gênero de financiamento é realizado por meio de alianças corporativas de curto prazo, inclusive abertas ao capital estrangeiro e firmadas em torno de um projeto comercial comum envolvido nos vários níveis da cadeia de um produto, compartilhando lucros e prejuízos quanto aos seus resultados. Dada a imprevisibilidade desses resultados, o joint venture é considerado um investimento de risco (VILELA; SANTOS JHUNIOR, 2018).

Em vista da sua aptidão para atrair investimentos estrangeiros, as startups inovadoras vêm sendo objeto de várias ações de incentivo no Brasil, tanto públicas como privadas, que atuam sob o modelo de governança com a finalidade de criar um ambiente propício à captação desses recursos (NICOLAS; PIQUÉ, 2016). No âmbito governamental, destacam-se os programas Start-Up Brasil (2012), vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC); InovAtiva Brasil (2013), Inovapps (2014), promovidos pelo Ministério da Economia, Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC); bem como as várias incubadoras, normalmente acolhidas em universidades públicas, e os parques tecnológicos promovidos por políticas municipais (RONCARATTI, 2017).

Essas iniciativas têm a finalidade de promover o que no léxico empresarial é chamado de “ecossistemas de inovação”, concebidos como um ambiente favorável à articulação das políticas de apoio aos sistemas produtivos nacionais a mecanismos de geração de empreendedorismo inovador (AUDY; PIQUÉ, 2016). As chamadas aceleradoras têm desempenhado um importante papel para a constituição desses ecossistemas, pois são um tipo de incubadora especializada na propulsão de parcerias baseadas em joint ventures. A institucionalização dessas relações ocorre pela intermediação de editais voltados ao fomento de startups de base tecnológica.

Como visto, essa produção monetizada definiu uma divisão internacional da produção multiforme e fragmentada, em virtude da incorporação dos serviços como fator-chave de agregação de valor e, ainda, da importante participação do comércio de componentes como indicativo de maior integração internacional dos países (SCHERER, 2014). Tal cenário induziu à criação de uma legislação específica para as startups que até recentemente, eram regidas pelo Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, instituído em dezembro de 2006 pela Lei 123, em complemento à lei 9.613 de março de 1998 que fundou o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF. A lei 123/2006 representou um grande incentivo às empresas desse porte ao instituir o Simples Nacional, que isentou as MPEs de todos os impostos federais por dois anos, podendo ser prorrogáveis por mais dois e passando a ser de 50% por ano após esse período.

Apenas em abril de 2019, pela Lei 167, as startups passaram a receber um tratamento diferenciado relativamente às MPEs, através do Inova Simples, que substituiu o Simples Nacional por um sistema automático exclusivo para o seu registro e legalização tornando esses procedimentos mais ágeis, mantendo os mesmos incentivos tributários. Essa lei também trouxe uma definição mais precisa de startup, descrita como uma microempresa de “caráter inovador” com o objetivo de “aperfeiçoar sistemas, métodos ou modelos de negócio, de produção, de serviços ou de produtos” em “condições de incerteza” (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2019). Nos termos da lei, as startups podem ser de “natureza incremental”, quando visam a inovação de produtos já existentes, ou de “natureza disruptiva”, quando tem como escopo “a criação de algo totalmente novo”.

As startups que se ocupam com inovações incrementais são conhecidas como copycat, ou de imitação, visto que não tencionam alterar padrões de consumo, mas customizar tecnologias já consolidadas no mercado. Do ponto de vista dos investidores, as inovações incrementais têm maiores chances de resultar em produtos escaláveis sem que sejam necessárias muitas adaptações e, portanto, custos, compensando os investimentos de risco por uma maior garantia de venda para grandes mercados (ISHIZAKA; LIZARELLI, 2016). Vários estudos demonstram que nos países periféricos prevalecem as startups copycat, sendo as de natureza disruptiva mais presentes em países de industrialização avançada (RONCARATTI, 2017). Tal fenômeno também é explicado pela falta de oportunidade de empregos formais qualificados nos países de baixa industrialização (RONCARATTI, op. cit.).

A prevalência das startups copycat nesses países também indica que o regime de acumulação dominado pelas finanças agravou a dependência dos seus sistemas produtivos às patentes tecnológicas estrangeiras (CHESNAIS, 2013; SPOSITO; SANTOS, 2012). Além disso, o incentivo às startups tem funcionado como uma estratégia para absorver a força de trabalho qualificada expulsa da grande indústria pelos processos de externalização dos seus laboratórios de P&D na forma de um novo salário por peça, representado pelos projetos de inovação capitaneados pelas CGVs. Isso porque, em termos organizacionais, essas cadeias se estruturam conforme os métodos toyotistas de produção enxuta, que eliminaram os grandes estoques por técnicas logísticas voltadas à produção sob encomenda (just-in-time) (COWEN, 2014). No caso, essas encomendas são acionadas através das NFIs oriundas das CGVs de tipo 2, que buscam lucrar com ideias que possam agregar valor a tecnologias já estabelecidas e, por conseguinte, com maiores chances de se concretizarem em produtos escaláveis.

Tal como o que ocorre com as MPEs inovadoras, a força de trabalho demandada para esses processos tem sido realocada nas startups por meio de vínculos casuais de emprego urdidos pelo capital financeiro. A sua conexão ao arcabouço diversificado de negócios e ativos monetários implicados nas CGVs de tipo 2 é plugada a partir do financiamento de projetos com objetivos e tempo predefinidos, sendo os editais voltados para o seu fomento um dos principais instrumentos para esse fim. É essa economia por conexão que levou ao ressurgimento do salário por peça, aqui retratado pelos projetos submetidos a esses editais.

O salário por peça foi a primeira forma de assalariamento e caracterizou o modelo mercantilista que deu origem ao capitalismo, o qual era igualmente dependente do capital monetário para poder se expandir (MARX, 1984). Marx (1984) postulou essa forma de assalariamento como aquela que melhor responde ao anseio do capital de aliar o controle do trabalho com baixos custos de produção, uma vez que esse tipo de remuneração emula os trabalhadores a produzirem mais rapidamente, sem limitações legais quanto à jornada de trabalho, ao mesmo tempo que reduz despesas salariais com deslocamentos.

A grande indústria foi gestada dentro desse sistema externalizado de fabricação, especificado como putting-out-system. Em um período marcado pelo sistema colonial, e pela ausência da grande indústria, o sucesso do capitalista passava pelo acesso rápido aos locais onde havia insumos baratos e força de trabalho capacitada para a sua manufatura. Nesse sistema de produção, o capitalista se consubstanciava na figura do negociante, pois seus lucros procediam da sua vantagem de circulação, que lhe oportunizava a compra de matérias-primas e produtos finais de mercados mais baratos para a sua venda em mercados mais caros.

A atual liberalização do trânsito de capital entre países restabeleceu essa capacidade de circulação favorecendo um novo feitio de putting-out-system. A diferença em relação ao negociante dos primórdios do capitalismo é que agora esse tráfico ocorre em escala planetária, pois foi otimizado pelo advento das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC). Essas tecnologias proporcionaram a esse capital circulante o poder de fluir mundo afora em busca da apropriação de conhecimentos aptos a servirem de matérias-primas passíveis de agregar valor aos seus meios de produção, que também são desenvolvidos sobre suas plataformas. Essa acumulação via circulação desenhou uma estrutura de grande indústria diminuta, circunscrita às funções estratégicas para a manutenção do seu domínio sobre o mercado mundial, tais como produção de patentes, diversificação e gestão financeira de seus negócios.

Neste contexto, as empresas globais passam a se definir como conectoras e organizadoras dos fluxos globais de capital industrial e comercial através do controle do capital acionário, borrando as barreiras entre finanças e indústrias (CASSIOLATO, 2013). Todas as demais atividades passíveis de resultarem em novos insumos que possam agregar valor e ampliar o consumo das suas marcas são externalizadas, de maneira a convertê-las em negócios com potencial de auferir lucros futuros. Deste modo, denotam-se como fábricas sem fábrica, pois não se organizam mais com base em uma grande planta industrial e sim por meio de uma logística virtual pulverizada e financeirizada, que torna o mundo inteiro lócus de valorização (PRADO, 2005).

O modus operandi deste novo putting-out-system se caracteriza pela modularização da produção, processo pelo qual componentes com novas funções podem ser encaixados à uma dada base tecnológica sem alterar a sua arquitetura (MORO; MIGUEL, 2016). Este recurso reconfigurou o princípio da inovação, permitindo promover melhorias de desempenho, automação e redução de custos operacionais nos vários níveis de uma cadeia produtiva a partir de um mesmo sistema, abrangendo desde o desenvolvimento e diversificação de produtos e serviços até a sua integração aos processos logísticos de transporte, armazenamento e comercialização (COWEN, 2014).

A modularização da produção possibilitou externalizar essas operações e recontratá-las sob a forma de fornecedores de serviços eventuais, remunerados de acordo com demandas sazonais. O que distingue esse tipo de externalização com a primeira forma de putting-out-system é que agora, além de se apropriar das matérias-primas, controlar sua distribuição, e determinar o projeto e prazo de entrega, a grande indústria também detém o design das ferramentas de trabalho. Com isso, consegue englobar processos produtivos que ocorrem fora dos seus muros, além de ter sempre disponível uma força de trabalho habilitada para o uso dessas ferramentas, que pode ser recrutada, em qualquer tempo e lugar, através dos investimentos financeiros diretos beneficiados pelo livre mercado.

O trabalho de inovação é um campo, particularmente, profícuo para compreender esse sistema de fábrica pulverizada por meio da financeirização da produção, e o novo salário por peça que este demarca, visto que é onde o controle do capital financeiro tem sido mais atuante. Isso porque é a atividade responsável pelo desenvolvimento das adaptações necessárias para o ajuste dos produtos das empresas globais aos padrões de consumo e legislativos dos mercados que abarcam. Por isso, sua análise permite perceber como esses processos se concretizam nos sistemas produtivos nacionais e determinam seus mercados de trabalho.

Neste aspecto, os editais de fomento às startups podem ser entendidos como uma dessas práticas, visto que servem como um meio de conectar as demandas dos investidores com a força de trabalho capacitada para o desenvolvimento de projetos com viabilidade de ampliar os mercados das patentes tecnológicas das transnacionais. Ocorre que as redes emaranhadas e descontínuas de arranjos institucionais, parcerias e fontes de financiamento que se urdem sob esses editais obscurecem a subordinação dessas startups relativamente a quem vai se apropriar dos resultados dos seus projetos. A apreciação dos editais, a seguir, procurará desembaraçar essas relações, no intuito de desvendá-las como uma forma de assalariamento por peça subordinada às dinâmicas das CGVs.

Os editais:

de âncora à semente, salário intermitente

Os editais de fomento às startups de base tecnológica são um tipo de aliança estratégica entre empresas característica da economia conectiva delineada pelas NFIs problematizadas na seção anterior, servindo como um meio de conexão entre grandes e pequenas empresas. Essa estratégia tem o propósito de “atacar mercados precisos com o objetivo de se apossarem de partes de mercados em detrimento de concorrentes que se encontram em desvantagem face às empresas ligadas por alianças estratégicas” (OLAVE; AMATO NETO, 2001, p. 292). Tais acordos atuam pela prática de cross fertilization, que se refere ao uso de ideias provenientes de diversos lugares e grupos, a fim de produzir resultados diferenciais no mercado.

Dentre os vários tipos de alianças entre empresas, aquela que melhor se ajusta aos editais em questão é a aliança oportunística. Os investimentos derivados desse tipo de acordo são feitos visando desenvolver inovações incrementais para grandes empresas mediante aportes em startups de base tecnológica. O objetivo é oportunizar vantagens competitivas que possam ampliar os seus negócios ou criar novos empreendimentos. Essas alianças se firmam como “parcerias de distribuição”, definidas como aquelas em que “produtores dividem custos de estrutura física e humana para armazenamento e distribuição do produto no mercado comprador” (SEBRAE, 2006, p. 124). Por isso, possuem um nível de comprometimento médio com o mercado internacional, já que seus produtos objetivam atender mercados internos.

Nesse caso, a internacionalização acontece quando o foco se volta para a melhoria do acesso entre firmas locais aos canais de distribuição de empresas estrangeiras que pretendem entrar em mercados nacionais (SEBRAE, 2006). Esse tipo de parceria opera por joint venture, firmada pelo interposto de editais de fomento à MPEs e às startups inovadoras. Sendo assim, os editais dessa natureza institucionalizam um sistema de fábrica virtual e ocasional, dentro do modelo de putting-out-system característico das CGVs de tipo 2.

Na perspectiva aqui adotada, pode-se dizer que essa intermediação viabiliza a conexão entre um patrão intermitente (os investidores) e a força de trabalho subordinada às suas demandas mercadológicas presente nas startups. Neste sentido, tais editais desempenham um papel de negociante just in time de força de trabalho qualificada para o manuseio das tecnologias necessárias para abrir ou ampliar mercados, bem como desenvolver ou aprimorar a logística necessária para o seu comércio nos territórios nacionais. Para esta análise, foram selecionados dois editais. No primeiro, a demanda parte diretamente da indústria, visando à melhoria da produtividade de processos, produtos e serviços. No segundo, procede de investidores aleatórios privados visando a incentivar ideias temáticas que possam resultar em inovações modulares vocacionadas para customizar a integralização de componentes de fábricas inteligentes, isto é, baseadas em serviços de internet.

Edital SI

O Edital de Inovação para a Indústria (Edital SI) foi proposto pelo Sistema de Indústria (Sebrae, Sesi, Senai) e lançado em maio de 2018. O objetivo foi “financiar o desenvolvimento de soluções inovadoras para a indústria brasileira, sejam elas novos produtos, processos ou serviços de caráter inovador” com vistas a promover “o aumento da produtividade e competitividade industrial brasileira”, através do financiamento de horas técnicas, matéria-prima e insumos (SEBRAE; SESI; SENAI, 2018, p. 2).

Nos termos do edital, os projetos de inovação, referidos como “ideias”, são aqueles que propõem “soluções a desafios tecnológicos, em estágio que demande desenvolvimento ou aprimoramento tecnológico para realização de prova de conceito, preparação de planta piloto ou ainda para inserção da solução no mercado” (SEBRAE; SESI; SENAI, 2018, p. 4). Dentre os temas da chamada, destacam-se: A. Inovação Tecnológica para Grandes e Médias Empresas, B. Inovação Tecnológica para Micro e Pequenas Empresas (MPE), Microempreendedor Individual (MEI) e Startups de Base Tecnológica, e C. Empreendedorismo Industrial – Grandes empresas e Startups.

As startups, denominadas como Empresas Proponentes (EP), foram descritas como empresas nascentes com faturamento anual inferior a 4,8 milhões de reais (MEI ou MPE), com Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) e até cinco anos de existência. As empresas investidoras, referidas como Instituições Âncoras (IA), foram designadas como empresas de médio e grande porte com comprometimento de “disponibilizar recursos próprios para apoiar a execução de projetos de inovação” voltados a “temas específicos de seu interesse” (SEBRAE; SESI; SENAI, 2018, p. 2). O edital ainda abriu possibilidade de se estabelecer parcerias com centros de pesquisa e instituições estrangeiras, sendo que “todos os envolvidos compartilharão conjuntamente as obrigações e riscos do projeto” (SEBRAE; SESI; SENAI, 2018, p. 3).

Com exceção das inscrições submetidas à linha de tecnologias educacionais, que contaram com orçamento e prazo diferenciados, a duração dos projetos foi estipulada em até 24 meses, sem possibilidade de prorrogação. O valor máximo previsto para cada projeto foi de 400 mil reais sendo 75% desse valor contrapartida financeira do edital e 25% dos Departamentos Regionais (DR) do Senai envolvidos nos respectivos planos de trabalho. Para a grande empresa investidora, a contrapartida obrigatória foi de 50% e para a média empresa de 25% do valor do projeto selecionado. Às EPs, a contraparte fixada foi de 10% do valor previsto no projeto, com opção de aporte de mais 10% para alcançar a pontuação máxima classificatória. Ao Sebrae ficou a responsabilidade de viabilizar o acesso das startups à infraestrutura e conhecimentos científico-tecnológicos dos Institutos Senai de Inovação (ISI) e Institutos Senai de Tecnologia (IST).

As IAs tiveram a prerrogativa de “definir as condições de participação no projeto, podendo ser participação acionária na Empresa Proponente, Royalties ou outros”, com “total autonomia para selecionar as EPs em todas as fases da chamada podendo, inclusive, optar por não selecionar nenhuma” (SEBRAE; SESI; SENAI, 2018, p. 37). A IAs, portanto, foram as protagonistas do edital, pois ficaram com a incumbência de realizar as “chamadas temáticas específicas, negociar e validar as regras que estabelecem os valores dos projetos”, além de geri-los em conjunto com os DRs do Senai e Sesi (SEBRAE; SESI; SENAI, 2018, p.3). Evidencia-se, assim, o seu papel de patrão, já que o objetivo das EPs foi o atendimento das suas demandas de produtividade.

Cabe notar que, embora essas soluções tecnológicas sejam aplicáveis somente no plano das IAs, as EPs assumem conjuntamente os riscos dos projetos, o que revela como este modelo de negócios é vantajoso para a redução dos custos operacionais e de transação das IAs. Esses custos são subsidiados pelo Sesi e Senai, e pelas próprias EPs, o que torna os investimentos necessários à concepção e desenvolvimento de tais projetos bem mais baratos do que se tivessem que ser arcados totalmente no interior das IAs. É por este artifício que esses custos são externalizados e se convertem em etapas de agregação de valor aos seus processos.

Deste modo, o edital exerce a função de afiançar e estruturar, dentro do modelo de governança, uma usina virtual e contingente de ideias inovadoras para as IAs, nos moldes da própria da produção sob encomenda. Ademais, serve como intermediador e subsidiador de força de trabalho habilitada ao desenvolvimento dessas encomendas, a partir da sua contração just in time. No Edital SI, então, a subordinação das EPs às IAs se revela da seguinte maneira: 1) apesar de serem juridicamente autônomas, as startups selecionadas se submetem às demandas das IAs, estando, pois, a seu serviço; e 2) mesmo subordinadas às IAs, devido ao seu estatuto de Pessoa Jurídica, as EPs deixam de representar custos de produção para se tornarem etapas de agregação de valor aos seus processos e produtos.

Edital FINEP

O Edital Finep Startup – Programa de Investimento em Startups Inovadoras – foi aberto em julho de 2017 e promovido pela Financiadora de Inovação e Pesquisa (Finep). A Finep é uma agência pública vinculada ao MCTIC, que tem como objetivo financiar a inovação desde a pesquisa básica até a preparação do produto para o mercado. Seus recursos são oriundos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), do Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações (Funttel), e de convênios de cooperação com ministérios, órgãos e instituições setoriais (FINEP, 2019).

O edital teve como objetivo disponibilizar recursos a startups em sua fase inicial, considerada a mais crítica e dispendiosa, com o propósito de contribuir para a “criação de empregos qualificados e geração de renda para o País”, bem como para o “crescimento do mercado de capital semente no Brasil, compartilhando com os investidores privados os riscos associados ao investimento em empresas nascentes de base tecnológica” (FINEP, 2017, p.1). Capital semente é o investimento inicial em startups, feito por indivíduos ou empresas, visando a subsidiar o desenvolvimento de inovações tecnológicas. Esse investimento é considerado de risco porque é realizado na fase de desenvolvimento dos protótipos, sem garantia de retorno. O edital, assim, atendeu ao incentivo do “ecossistema de inovação” no país, através da política de governança, que compartilha os riscos dos investimentos com o setor privado.

O valor total do edital foi de 50 milhões de reais, sendo até 1 milhão de reais por projeto, feito mediante duas “rodadas de investimento” correspondentes ao “valor total da captação realizada pela empresa no âmbito da proposta submetida, incluindo o valor do aporte realizado pela Finep mais o valor aportado pelos demais investidores que acompanharem o investimento” (FINEP, 2017, p. 16). A cada rodada foi prevista a seleção de até 25 startups. Os temas apoiados foram: Educação; Cidades Sustentáveis; Fintech; Internet das coisas; Economia Criativa; Energia; Defesa; Mineração; Petróleo; Manufatura avançada; Biotecnologia; Agritech; Química; BIM (Building Information Modeling) – Soluções.

Diferente do Edital SI, os recursos previstos foram repassados diretamente às startups proponentes, não tendo demandas oriundas de empresas específicas. Nesse caso, as startups se colocam como subordinadas aos investidores-anjo, pessoas físicas, nacionais ou internacionais, que aplicam o capital semente. A contrapartida dos investidores-anjo foi a participação nos retornos obtidos pelos projetos selecionados nas mesmas condições da Finep, em valor proporcional ao aportado em cada rodada de investimento. Tanto a Finep como os investidores-anjo também tiveram a opção de compra das startups selecionadas, garantida em contrato de acordo com o percentual investido por cada parte.

Para esta análise, destacam-se os seguintes critérios de elegibilidade das startups: 1. o registro sob a forma de sociedade limitada (LTDA) ou de sociedade anônima (S/A); 2. que fossem “capazes de desenvolver produto, serviço ou processo novo a partir da integração de tecnologias existentes com adição de desenvolvimento novo”; e 3. que seus projetos estivessem “no mínimo na fase de protótipo ou testes, preferencialmente já tendo sido realizadas as primeiras vendas, não podendo encontrar-se em fase de ideia ou pesquisa” (FINEP, 2017, p. 5). Às startups que apresentassem “cartas de compromisso de investimentos” com valor superior a 50 mil reais anexadas ao projeto, foi prevista pontuação maior na avaliação.

Destaca-se que os negócios registrados como LTDA podem ser constituídos por apenas uma pessoa, o que caracteriza um tipo de pejotização do trabalho. Já o estatuto de S/A isenta os acionistas de qualquer responsabilidade quanto ao insucesso da empreitada, ou seja, a sua participação é restrita à propriedade das ações, o que significa que os projetos submetidos a essa forma de investimento ficam com os riscos maiores do empreendimento. Neste aspecto, é sintomático deste quadro analítico a preocupação do atual governo federal em estabelecer um marco regulatório das startups visando a “criação de incentivos fiscais para investidores e mecanismos para evitar que eles arquem com passivos no caso de falência da startup” (OLIVEIRA, 2019, p. 2).

Em recente matéria publicada na Folha de S. Paulo, o coordenador do subcomitê que trata de temas trabalhistas concernentes a este marco declarou que o principal objetivo do grupo é pensar “mecanismos que possam formalizar prestadores de serviços parceiros das startups (como no modelo adotado pela Uber para trabalhar com motoristas) sem criar barreiras para a atuação dessas companhias”, através do “uso de figuras jurídicas já adotadas em outros segmentos, como a do MEI” (Microempreendedor Individual). Segundo o depoimento do coordenador do subcomitê relativo a questões tributárias, a intenção é reduzir o “risco que investidores têm de serem responsabilizados por eventuais passivos trabalhistas e tributários de startups que não deem certo”, em vista do fato de serem “negócios arriscados” com “alta probabilidade de não atingir os objetivos propostos” (OLIVEIRA, 2019, p. 2).

Entende-se que esse tipo de edital já atende a este propósito, pois as condições de trabalho instáveis das startups financiadas por este meio tendem a se refletir na pejotização dos quadros funcionais necessários ao desenvolvimento de seus projetos, dentro do mesmo modelo de contratação just in time a que são submetidas, gerando uma rede de trabalhos casuais e sem direitos. Esse encadeamento acontece em vista da modularização da produção, que permite externalizar partes de seus processos para trabalhadores autônomos conforme demanda.

Em síntese, a análise desses editais leva a concluir que as startups têm uma probabilidade muito limitada de se tornarem um grande negócio, sonho de muitas delas, tendendo mais a ampliar processos de pejotização do trabalho que dissimulam vínculos empregatícios. Por se caracterizar como um empreendimento desenvolvido sob incertezas, o retorno de seus projetos só é obtido em caso de viabilidade do escalonamento do seu produto final. Deste modo, a tendência é que nunca saiam da sua condição de microempresa, pois não contam com capital suficiente para a produção em grande escala. Diante disso, restam duas opções para a sua sobrevivência: 1) participar ad aeternum de editais de fomento, e 2) vender seu negócio para uma grande empresa. No segundo caso, ainda que possam receber um bom montante pela venda, os lucros decorrentes do comércio escalonado sempre serão bem maiores.

Considerando que apenas uma grande empresa tem condições de produzir em grande escala, os produtos exitosos resultantes desses editais poderão ser posteriormente adquiridos como bens de capital por uma grande firma, enquanto a verba angariada pelas startups selecionadas servirá como renda de trabalho. Ou seja, os frutos da semente serão colhidos pelos investidores, enquanto às startups resta o emprego intermitente.

Considerações finais

A análise dos editais de fomento às startups procurou desembaraçar as redes de relações casuais de trabalho que fluem das novas formas de investimentos (NFI) ensejadas pela liberalização da economia. O cerne da análise focou na externalização das atividades de inovação à lógica rentista que emana das cadeias globais de valor, facultada pelo caráter modular de suas plataformas tecnológicas. O objetivo foi revelar como o padrão de acumulação de capital sob dominância financeira reestruturou as cadeias produtivas das empresas transnacionais nos moldes de um novo putting-out-system global, com vistas a se apropriar, através do capital financeiro, de ideias com potencialidade de se converterem em negócios lucrativos.

A pesquisa permitiu constatar que os editais analisados funcionam como um meio de conectar encomendas corporativas a trabalhadores autônomos, servindo como um artifício para empregar força de trabalho qualificada sem despesas trabalhistas e disfarçar processos de terceirização dos laboratórios de inovação das grandes marcas pelo emprego do trabalho just in time. Essa estratégia reinventa o salário por peça, ocultando-o sob o estatuto de pessoa jurídica. Com isso, custos laborais são transferidos às startups proponentes, ao mesmo tempo que as deixa permanentemente disponíveis para novos pedidos, reiterando o paradigma do trabalho intermitente e desregulamentado, característico do capitalismo contemporâneo.

Desde essa ótica, as políticas de governança e empreendedorismo inovador revelam-se como um artifício para agenciar empregos qualificados baratos para as empresas líderes das CGVs, com subsídios do Estado. Sob a aparência de firmas autônomas, as startups são apresentadas como parceiras dos seus investidores, quando, na verdade, são a esses subordinadas, visto que obedecem às suas demandas de produtividade e às regras sobre como atendê-las. Além de reduzir custos trabalhistas com processos de inovação, essa estratégia ainda permite o compartilhamento das despesas e riscos dos projetos com as startups financiadas. Em tal contexto, o trabalho sem direitos tem servido como moeda de troca para que países de baixa industrialização, como o Brasil, se tornem atrativos às dinâmicas das CGVs.

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Recebido em: 06/03/2020

Aceito em: 13/04/2020


1 Agradeço aos pareceristas da revista pelos comentários precisos e aos e às participantes do Grupo de Estudos sobre Novas Tecnologias e Trabalho (GENTT) pelas ricas discussões e pelo apoio técnico que propiciaram à pesquisa.

* Professora Associada do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidades Estadual de Londrina – UEL. Doutora em Ciências Sociais pela UNICAMP. Líder do Grupo de Estudos sobre Novas Tecnologias e Trabalho – GENTT. E-mail: wolff.simone@gmail.com

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 51, Julho/Dezembro de 2019, p. 90-107

TRABALHO PRECÁRIO:
precariado, vidas precárias e processos de resistências

PRECARIOUS WORK:
precarious, precarious lives and resistance processes

_____________________________________

Kelen Christina Leite*1

Resumo

O neoliberalismo assume características que ultrapassam a mera política econômica, inserindo-se na sociedade enquanto uma lógica que penetra e se enraíza em todas as relações sociais e em todas as esferas da vida. Tal política econômica vem produzindo, em níveis sempre mais elevados, trabalhos precários, trabalhadores precarizados e, sobretudo, modos de vida pautados pela precariedade. Assim, é objetivo central deste artigo analisar o processo de produção desses modos de vida precários, instituídos pelo neoliberalismo e, ao mesmo tempo, apontar a reação que se ensaia por parte dos precarizados, a exemplo das grandes manifestações ocorridas na Europa, em particular, Portugal, Espanha e Itália, bem como apontar para as possibilidades de organizações que surgem a partir desse contexto. Este artigo é fruto de uma pesquisa maior, ainda em desenvolvimento, iniciada na Università Sapienza di Roma. No tocante aos procedimentos metodológicos, este ensaio é produto de pesquisa bibliográfica e reflexão crítica junto aos pesquisadores da Università Sapienza di Roma.

Palavras-chave: Trabalho. Precariado. Vida precária. Processo de Resistência.

Abstract

Neoliberalism assumes characteristics that go beyond mere economic policy, rooted in society as a logic that penetrates and is rooted in all social relations and in all spheres of life. This economic policy has been producing, at ever-higher levels, precarious work, and precarious workers and, above all, ways of life ruled by precariousness. Thus, it is the central objective of this article to analyze the process of production of these precarious ways of life, instituted by neoliberalism and, at the same time, to point out the reaction that is rehearsed by the precarious ones, like the great manifestations that occurred in Europe, in particular, Portugal, Spain and Italy, as well as pointing to the possibilities of organizations arising from this context. This article is the result of a larger research, still under development, initiated at Università Sapienza di Roma. With regard to methodological procedures, this essay is the product of bibliographic research and critical reflection with researchers at Università Sapienza di Roma.

Keywords: Work. Precarious. Precarious life. Resistance Process.

Introdução

O foco deste artigo é a precarização do trabalho, mais especificamente o precariado contemporâneo, as trabalhadoras e os trabalhadores precarizados que, conjuntamente a outros sujeitos políticos, passaram a se manifestar e a protestar de forma ampla e recorrente contra a precariedade, contra o neoliberalismo e, em muitos casos, contra a globalização e as políticas de austeridade. Tais protestos, marcados por pautas amplas e por profunda crise quanto à representação e à representatividade política, marcaram a Europa – e não apenas –, sobretudo,


1* Professora do Departamento de Ciências Humanas e Educação e da Pós-Graduação em Estudos da Condição Humana da Universidade Federal de São Carlos. Visiting Professor junto à Universidade Sapienza di Roma (2018-2019). Doutora em Ciências Sociais. E-mail: kelen@ufscar.br

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 51, Julho/Dezembro de 2019, p. 108-125

a partir de 2010, iniciando-se pelos países que mais vivenciaram as consequências da crise e das imposições da Troika, mas, sobretudo, aqueles que, nos últimos anos, mais desregulamentaram e desestruturaram suas relações trabalhistas, abrindo a possibilidade de maior flexibilização e precarização na contratação, uso e remuneração da mão de obra, ou seja, países como: Portugal, Espanha, Grécia e Itália, portanto a pauta da precarização, da precariedade e, sobretudo, do precariado esteve e se fez ativamente presente em tais manifestações.

Recentemente, manifestações mais específicas das trabalhadoras e dos trabalhadores com trabalhos precários e precarizados, por via do uso de aplicativos (Uber, Uber Eats, Foodora, Deliveroo, Just eat etc.) por exemplo, estão ocorrendo em vários países, bem como a manifestação dos trabalhadores da Uber ocorrida no Brasil, em 10 de maio de 2019, que seguiu a paralisação mundial dos trabalhadores da Uber.

O artigo que ora se apresenta é parte inicial de um projeto de pesquisa, na condição de visiting professor, em desenvolvimento na Itália, junto à Università Sapienza di Roma e que possui como fio condutor de investigação as mudanças ocorridas nas relações entre capital e trabalho, que partem da crise do capitalismo nos anos de 1970 e a subsequente adoção das políticas de cunho neoliberal e que se manifestaram em uma profunda reestruturação capitalista da sociedade com consequências para a vida material e objetiva de trabalhadoras e trabalhadores, bem como afetaram, modificaram, (re)estruturaram uma nova subjetividade que – pautada pelo trabalho precário – conduziu a uma precariedade da vida; condições essas agravadas com o desenrolar da crise de 2008.

No tocante aos procedimentos metodológicos, este ensaio é produto de uma pesquisa bibliográfica e da reflexão crítica iniciada pela pesquisa em andamento e debatida com os pesquisadores da Università Sapienza di Roma tratando, especificamente, da precarização do trabalho e da vida.

As questões da precariedade e da precarização das relações de trabalho constituem-se como elementos sempre presentes no modo de produção capitalista, no entanto elas ganham dimensões e características diversas em períodos distintos. Deste modo, o precariado que aqui nos interessa é aquele que se constitui, sobretudo, a partir da crise dos anos de 1970 e vem se consolidando no decorrer dessas décadas de implementação e intensificação de políticas neoliberais que conduzem não apenas a uma precarização do trabalho, mas a uma situação e a uma condição de vida precárias. Utiliza-se, ainda, dados oriundos de institutos de pesquisa nacionais e internacionais e de outras pesquisas já realizadas. Salienta-se a importância de compreender e apreender a precarização do trabalho enquanto uma experiência material, concreta, vivida, corporeificada, em que a categoria da “experiência”, trabalhada por Thompson (1997) e utilizada em trabalhos anteriores (LEITE, 2007) pode ser esclarecedora.

Este processo de reestruturação capitalista da sociedade que redunda, portanto, em uma contínua precarização do trabalho e, consequentemente, da vida, é melhor compreendido tendo como referência inicial o desvelar da crise de 1972/3 que deu espaço para uma reestruturação capitalista da sociedade, configurando-se como uma crise advinda do esgotamento do modo de regulação fordista/keynesianista que havia, até aquele momento, conseguido compatibilizar altas taxas de lucro e acumulação com elevações de salários e do consumo em massa. Porém, por volta dos anos de 1970, esse modelo atingiu o ápice de seus próprios limites e contradições internas iniciando um processo de reestruturação capitalista da sociedade, um processo de contrarreformas que avança até a crise de 2008, abrindo um novo momento ou uma nova fase do próprio neoliberalismo, que se mostra mais intenso no aprofundamento de reformas econômicas e sociais, bem como mais autoritário.

Limites do modo de regulação fordista/keynesianista: ascensão do neoliberalismo

Os limites e as contradições internas do modo de regulação fordista/keynesianista (BOYER, 1990; ARRIGHI, 1997) tornaram-se evidentes e aparentes quando o sistema técnico-produtivo esgotou as possibilidades de aumento da produtividade em ritmos suficientes para atender, simultaneamente, às demandas do capital e do trabalho, característica essa que marcou o período anterior conhecido, sobretudo nos países do norte, como os trinta anos gloriosos do capitalismo. Deste modo, o consenso social, necessário para dar sustentação ao modelo, entrou em crise, visto que a forma de distribuição social da renda e da riqueza passou a colidir com os interesses da acumulação de capital. Percebe-se, portanto, que a crise que está na base de todo o processo não é apenas uma crise de base econômica e/ou técnico-produtiva, é também uma crise de rompimento do consenso social, de esgarçamento do tecido social, rompimento do pacto social estabelecido anteriormente (LEITE, 1998; 2007). Tais questões são, ainda, amplamente debatidas por Rosanvallon (1997) e Boltanski e Chiapello (2009).

A década de 1970, portanto, pode ser entendida como um período de contrarreformas pautadas por intensas mudanças que, no setor produtivo, por exemplo, se manifesta com a introdução de novas tecnologias e novas formas de organização da produção, visando a superar os limites técnicos apresentados pelo fordismo e, ainda, quebrar a resistência dos trabalhadores à linha de montagem. No setor das finanças, a tônica foi a desregulamentação e flexibilização dos fluxos financeiros, dando ainda maior liberdade ao capital, seja ele financeiro ou produtivo, em nome da competitividade e do crescimento econômico. Em relação ao mercado, houve certa saturação da produção em massa, pois aqueles com disponibilidade para o consumo já estavam cobertos pelo consumo em massa, provocando um desequilíbrio entre oferta e demanda que foi amenizado pela diversificação da produção, pelo desenvolvimento de novas técnicas de marketing e propaganda e, sobretudo, pela redução do tempo de vida útil dos produtos, uma vez que a procura era, agora, cada vez mais pautada pela reposição do que propriamente pela aquisição de novos produtos. Em relação ao Estado, o argumento do déficit fiscal, dentre outros, levou os Estados nacionais a uma defesa da implementação de políticas neoliberais que, partindo do Chile, do então ditador Pinochet, da Inglaterra de Thatcher, em 1979, e dos EUA de Reagan, em 1980, aportou na América Latina, principalmente com o fim das ditaduras militares na década de 1980, ganhando ampla adesão por toda década de 1990 e fazendo sentir seus efeitos ainda hoje, particularmente, no que tange ao objeto específico desta pesquisa: a precarização do trabalho, fato esse estruturante e constituinte de vidas precárias. No Brasil, o neoliberalismo avançou com a redemocratização do país e intensificou-se nos anos de 1990. Hoje, há uma forte retomada das políticas flexibilizadoras e desregulamentadoras, haja vista a regulamentação da terceirização para atividades-fim e não apenas para as atividades-meio, a reforma, ou contrareforma trabalhista (CESIT, 2017; LEITE, 2018), bem como uma reforma da previdência, visando a transferi-la, cada vez, mais para a gerência do capital financeiro.

Percebe-se, portanto, que para desvendar minimamente o tempo presente, os anos de 1970/80 devem ser tomados como um ponto de inflexão na compreensão desses processos. A relevância do período, neste sentido, é destacada por diversos autores (ARRIGHI, 1997; BRUNHOFF, 1991; HOBSBAWN, 1995; ANTUNES, 2000; ALVES, 2011; FANA, 2018; DARDOT; LAVAL 2016; BROWN, 2019; FRASER, 2019).

Faz-se importante registrar que, por um breve período de tempo, a sociedade do pleno emprego chegou a ser uma realidade para os países centrais como fazendo parte de uma política pensada e planejada para recuperar-se do pós-guerra, criando um mercado consumidor necessário à produção em massa, possibilitada pelo fordismo, detendo, deliberadamente, o avanço do socialismo e estabelecendo uma política de compromisso entre capital e trabalho mediada pelo Estado que, pouco a pouco, constituiu-se no Estado do bem-estar social. Tal movimento deu-se de maneira diferenciada nos países da América Latina, especialmente no Brasil que, embora tenha apontado para uma política nacional desenvolvimentista, não conseguiu consagrar políticas de bem-estar em meio a uma sociedade autoritária, oligárquica e com o Estado privatizado.

Assim, na esteira da análise de Gramsci (LEITE, 2011), o fordismo significou, para além de um modo de organização do processo produtivo, a reorganização de um modo de vida. Os novos métodos de trabalho tornaram-se inseparáveis de um modo específico de viver, de pensar, de sentir a vida, estabelecendo, portanto: uma nova organização do trabalho; um novo tipo de trabalhador; consumo em massa; uma nova organização familiar, novas formas de coerção moral, de sexualidade constituindo, assim, uma nova subjetividade.

Deste modo, uma das perguntas que podemos nos colocar é se as atuais mudanças no mundo do trabalho, sua intensa precarização e o estabelecimento de um modo de vida precário, que atinge milhões de trabalhadoras e trabalhadores no mundo, adquiriria valência semelhante a essa descrita por Gramsci (1988) em relação ao fordismo, ou seja, estar-se-ia forjando um novo tipo humano adequado aos novos processos produtivos e aos novos modos de contratação, uso e remuneração do trabalho de forma precarizada? Um novo tipo humano que não pode basear-se mais na estabilidade, no planejamento da própria vida, no planejamento da própria família, no cuidado da saúde e da velhice? Um novo tipo humano que não possui mais a perspectiva do trabalho em tempo indeterminado como regra, mas sim o trabalho atípico, temporário e precário? Um novo tipo humano que deve mudar o registro e pensar a vida a partir de projetos de curta duração? Um novo tipo humano, ou uma nova condição humana, que transforma a vida em um empreendimento a ser gerenciado?

A reestruturação capitalista, instaurada a partir da crise dos anos de 1970, envolveria, portanto: o processo produtivo em nível tecnológico e organizacional, as relações de trabalho, ou seja, os modos de contratação, uso e remuneração da força de trabalho, bem como as políticas do Estado, que foi um dos pilares do modo de regulação anterior. Estaríamos, ao lado dos aspectos econômicos, também diante de uma crise de valores, crise da solidariedade social (ROSANVALLON, 1997; ZOLL, 2000) que, com a implementação das políticas neoliberais, reestruturam, melhor seria, desestruturam as políticas públicas, em especial as voltadas para saúde, educação, seguridade social e, o objeto específico desta pesquisa, o trabalho por meio de desregulamentações, introduzindo formas cada vez mais estendidas de flexibilização, que acabam por se transformarem em precarização não apenas do trabalho, mas da vida.

Precarização do trabalho e formação do precariado

A flexibilização do trabalho foi apresentada à sociedade, em muitos contextos, por meio de um discurso sedutor e “moderno” de maior autonomia na gestão do próprio trabalho e do próprio tempo, no entanto ela acabou por significar, como já apontado por vários autores (DAL ROSSO, 2017; ALVES, 2011; ANTUNES, 2000; HIRATA; SEGNINI, 2007; MAGATTI, 2012; GALLINO, 2014; FANA, 2018; STAMDING, 2011), principalmente para países com fraca organização sindical, uma precarização do emprego e das condições de trabalho, tendo como referência as necessidades das próprias empresas. Tal processo também foi marcado pelas intensas e numerosas deslocalizações de parques industriais, pois o capital foi ao encontro de melhores e maiores possibilidades de exploração da força de trabalho, buscando países e regiões com salários mais baixos, fraca regulamentação trabalhista e movimento sindical menos organizado, produzindo, no interior das economias e das regiões mais desenvolvidas economicamente, grandes e graves problemas no tocante ao emprego.

Os modos como ocorreram essas flexibilizações foram os mais diversos: flexibilidade funcional, numérica e salarial, consistindo na mobilidade e polivalência da força de trabalho; formas mais arbitrárias de contratação da mão de obra, em relação aos prazos, horários de trabalho e salários; organização de grupos de trabalho semiautônomos; subcontratação; terceirização; trabalho por metas e/ou projetos, com expressivo enxugamento do quadro das empresas; uso cada vez mais intenso do trabalho intermitente – hoje plenamente (des)regulado no Brasil –; intensificação da chamada “pejotização”; o trabalho part-time dentre tantas outras formas detalhadamente descritas por Fana (2018) e Cesit (2017).

A crise de 2008, causada justamente pelas consequências da desregulamentação, liberalização e flexibilização das amarras financeiras das décadas anteriores, tornou o cenário ainda mais propício para as investidas do capital frente ao trabalho levando não apenas a uma precarização ainda maior do trabalho e das relações de trabalho, bem como intensificando a precarização da vida, ou seja, consolidando um modo de vida que vai se caracterizando cada vez mais pela precariedade, pela instabilidade, pela incerteza e pelo medo diante do presente e do futuro.

Assim, após quase 40 anos de hegemonia neoliberal, as economias centrais, bem como as periféricas, sofreram os abalos da crise instaurada em 2008 que, basicamente, expôs a ponta do ice-berg tendo sua manifestação fenomênica no crescimento dos empréstimos subprime associado a altos níveis de inadimplência, execuções hipotecárias e, ainda, práticas creditícias abusivas potencializadas pelo uso de novos instrumentos financeiros, levando a uma insolvência do sistema financeiro que, como em várias outras crises, precisou do auxílio do Estado para frear a dissolução de instituições financeiras e “salvar” o mercado, bem como várias industriais, dentre as quais algumas automobilísticas como a General Motors e a Chrysler que, no início de 2009, já haviam recebido em torno de 21 bilhões de dólares por parte do governo estadunidense para gerenciar suas crises.

Neste contexto é que ganha expressão, no cenário global, de forma cada vez mais enraizada, esses novos trabalhadores produzidos pelos processos acima descritos e que compõem a realidade do assim denominado precariado que, segundo Braga (2012), pode ser definido como um proletariado precarizado.

Para Antunes (2000), estaríamos falando da classe que vive do trabalho, uma vez que, nessa classe que vive do trabalho, o autor considera a classe trabalhadora na totalidade dos assalariados, incluindo, portanto, nessa categoria, todos os trabalhadores dos serviços, todos os despossuídos dos meios de produção. Assim, essa classe caracterizar-se-ia pela sua amplitude e heterogeneidade tendo como núcleo central os trabalhadores produtivos que produzem diretamente o mais-valor, incorporando, ainda, o trabalhador improdutivo, seja público ou privado, uma vez que todos possuem em comum o fato de serem assalariados. Deste modo, para Antunes, estariam presentes na classe que vive do trabalho: terceirizados, temporários, part-time, “uberizados”, proletariado rural etc.

Na contramão dessas definições de Braga (2012) e Antunes (2000), Standing (2011) olha parte do precariado como uma possível “nova classe perigosa”, mais precisamente, uma classe em construção que seria distinta da classe trabalhadora que caracterizou o capitalismo durante todo o período fordista/keynesianista. Para o autor, a estrutura de classes, hoje, estaria organizada, ou estruturada, em sete níveis que, embora não sendo definidos pelo rendimento, possuiria também essa dimensão. Esses sete níveis seriam, segundo ele, caracterizados por: 1. uma plutocracia, ligada, sobretudo ao capital financeiro e desvinculada do Estado-nação; 2. uma elite, caracterizada, essa sim, por ações no âmbito do Estado-nação; 3. um conjunto de trabalhadores salariados, composto por uma burocracia estatal e trabalhadores de grandes companhias; 4. um grupo denominado de proficians, ou seja, consultores, pequenos empresários e atividades afins, vivendo constantemente sob o risco do rebaixamento social; 5. o velho proletariado/operário, em amplo processo de retração; 6. o precariado que vai ganhando forma como uma classe em construção desenvolvendo trabalhos de natureza frágil e instável e; 7. um lumpen precariado (STANDING, 2014).

A característica do precariado, portanto, seria, para Standing (2014), a de desenvolver trabalhos de natureza contratual frágil, instável, flexível, com rendimentos não assegurados, com menos direitos do que outros trabalhadores, por ele denominados de velho operariado ou salariado, por exemplo, tendo sua consciência profundamente marcada por um sentimento constante de privação e frustração, exposto a uma incerteza crônica. Para o autor, essas condições poderiam abrir caminhos para uma transformação, uma vez que ele vê, no precariado, três tendências, ou três tipos de precariado. O primeiro tipo seria aquele oriundo das velhas classes trabalhadoras, muitos sem grande instrução/escolarização e com forte sentimento de frustração e privação, essa parte do precariado tenderia a uma aproximação de grupos populistas e de extrema-direita, constituindo aqueles que Standing (2014) denomina atávicos. Um segundo tipo, seriam os nostálgicos, composto basicamente por imigrantes e minorias apresentar-se-iam, relativamente, de forma mais passiva e desprendida. O terceiro tipo seria formado por aqueles trabalhadores precários instruídos, alto grau de escolaridade e com forte sentimento de privação relativa e frustração, normalmente vistos como progressitas, esses comporiam a parte potencialmente transformadora do precariado e, portanto, uma nova classe perigosa em construção.

Para além das questões teóricas e, portanto das estratégia políticas derivadas dessas concepções acima descritas, o fato é que essas expressões – precariado, como entendido por Braga (2012); precariado, como entendido por Standing (2011) e classe que vive do trabalho, como entendido por Antunes (2000) – manteriam, portanto, esses sujeitos no centro do modo de produção capitalista, demarcando que a precariedade vivenciada pela classe que vive do trabalho ou pelo precariado faz parte de uma dimensão intrínseca do processo de mercantilização do trabalho e da vida, processo esse que sempre marcou as relações capitalistas de produção e que, hoje, se intensificam. No entanto, enquanto Braga e Antunes falam em superação da sociedade capitalista, Standing se mantém em uma discussão sobre a possibilidade de transformações substantivas em direção ao commons.

Contudo é importante demarcar que o movimento de intensificação da precariedade do trabalho, no trabalho e na vida, alimentou-se da reestruturação produtiva, das deslocalizações, da desregulamentação, da financeirização, da terceirização, dentre outros elementos. Todo esse processo questiona o status salarial, questiona a relação salarial anteriormente concebida e estruturada no e pelo modo de regulação fordista/keynesianista e manifesta-se na precarização econômica, por meio da desconstrução dos contratos coletivos; na institucionalização da instabilidade por meio de uma desestruturação do direito trabalhista como ocorreu, não sem resistência, em vários países do mundo e, mais recentemente, intensificou-se no Brasil pelo governo do senhor Michel Temer (LEITE, 2018). Tal movimento de desestruturação continua no atual governo do senhor Jair Bolsonaro e seu Ministro da Economia que defendem ser necessário tudo desregular, tudo privatizar, sustentando que o mercado de trabalho “vai ter que se aproximar da informalidade”1.

Constata-se, portanto, que nos últimos anos, seja no Brasil como em outros países, o denominado mercado de trabalho passou por grandes modificações para além das produtivas e organizacionais, houve: um grande incremento da força de trabalho das mulheres – com grandes disparidades segundo os países –, que sabidamente recebem menos que os homens e não ascendem facilmente aos cargos mais elevados pela existência de um machismo e uma misoginia que se configuram como estruturais e, aqui, acrescenta-se, ainda, a questão da mulher negra que recebe ainda menos do que a mulher branca; ampliou-se o trabalho morto em detrimento do trabalho vivo; aumentou-se a terceirização, a quarteirização, a pejotização e, nos últimos anos, a “uberização”; aumentou-se o trabalho em tempo parcial, o trabalho temporário e o trabalho intermitente; assistiu-se ao declínio da força dos trabalhadores organizados e seus sindicatos; expandiu-se o trabalho em redes; cresceu a falta de trabalho para a juventude; intensificou-se o trabalho em domicílio; ampliou-se o trabalho no setor de serviços, marcado por baixos salários e intensa rotatividade; aumentou-se o número de trabalhadoras e trabalhadores de call centers; houve uma proliferação das “organizações sociais”, intermediando força de trabalho, situação que, no Brasil, se agravará ainda mais com a terceirização irrestrita das atividades-fim e não apenas das atividades-meio; aumentou-se, com grande velocidade e voracidade, o uso dos APPs, aplicativos em plataformas digitais que intermedeiam trabalho ao proporcionar o “encontro” entre oferta e demanda de trabalho/serviço e, deste modo, isentam as companhias de aplicativos de toda e qualquer responsabilidade perante as trabalhadoras e os trabalhadores, considerados como colaboradores, parceiros ou “empresários” de si mesmos.

Enfim, o campo de pesquisa acerca do mundo do trabalho é vasto e faz-se necessário debruçar-se sobre a aparência dos fenômenos para poder ultrapassá-la e compreender como essas relações se dão no presente e o modo como as trabalhadoras e os trabalhadores conseguirão se colocar nessa relação que, por definição, é conflituosa, antagônica e desfavorável aos trabalhadores, daí a importância de estudos e pesquisas sobre a precarização do trabalho, mas também sobre a precarização da vida provocada por esse estado de coisas.

Precarização da vida: o precariado nas ruas

Assim, a precarização do trabalho, intensificada ano a ano, vem, há algum tempo, transformando-se em uma precariedade da vida, fazendo com que trabalhadoras e trabalhadores passem a internalizar a responsabilização sobre sua empregabilidade, introjetando a ideia e a responsabilidade de tornarem-se empreendedores de si, com as necessárias consequências que uma perspectiva como essa comporta. Tal perspectiva pode conduzir a um egoísmo social, ou seja, à negação da solidariedade e à rejeição da redistribuição. Eis, portanto, como esse modo de conceber a sociedade e as relações sociais fomenta movimentos reacionários e, até mesmo, neofascistas.

Todavia, como salientam Dardot e Laval (2016), o neoliberalismo, centrado ideologicamente na categoria do mercado, é muito mais que uma política econômica ou uma ideologia, porque produz regras e disciplinas que vão muito além do mercado, ao mesmo tempo que produz o desmantelamento de normas, regras, leis em relação ao trabalho, por exemplo, transformando-se, deste modo, naquilo que, apropriadamente, os autores denominam “a nova razão de mundo”, uma vez que o neoliberalismo estendeu a lógica do capital a todas as relações sociais e a todas as esferas da vida. Em outras palavras, os autores dizem que estaríamos irremediavelmente impregnados e, porque não, capturados por essa nova racionalidade que externaliza-se por uma:

(…) concepção que vê a sociedade como uma empresa constituída de empresas necessita de uma norma subjetiva, que não é mais exatamente aquela do sujeito produtivo das sociedades industriais [do modo de regulação fordista/keynesianista]. O sujeito neoliberal em formação (...) é correlato de um dispositivo de desempenho e gozo que foi objeto de inúmeros trabalhos (...) esses trabalhos preciosos, e muitas vezes convergentes, no cruzamento da psicanálise com a sociologia, revelam uma condição nova do homem, a qual, para alguns, afetaria a própria economia psíquica (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 320).

A afirmação de Dardot e Laval pode remeter à famosa frase expressa por Thatcher, no Sunday Times, de 7 de maio de 1988: “a economia é o método, o objetivo é mudar o coração e a alma”; processo esse que Gramsci (1988) descreve e analisa no clássico Americanismo e Fordismo demonstrando o quanto a produção em massa, àquela época, estava mudando objetivamente o trabalho, mas também a subjetividade do trabalhador, ao constituir um novo homem apto para o novo tipo de produção e trabalho. Ou, ainda, a afirmação de Lukács (2013) quando, ao analisar o fordismo, demarcava que esse era a representação de uma apreensão da subjetividade do trabalhador, invadindo a consciência dos sujeitos. Alves (2011) por sua vez, também demarca que o processo de precarização do trabalho atinge tanto a objetividade quanto a subjetividade da classe trabalhadora, pois o eixo central das mudanças está na captura da subjetividade do trabalho pela lógica do capital.

Assim, o trabalho, embora central na vida dos indivíduos e da sociedade e, portanto, categoria essencial de análise sociológica, não ofereceria mais, como dito acima, um quadro estável, uma carreira previsível, a possibilidade de planejamento, um conjunto de relações pessoais sólido, como poderia oferecer no passado recente, mas basear-se-ia na instabilidade dos projetos e perspectivas de uma vida futura, na variação contínua das redes de contato e das equipes de trabalho, tornando o mundo profissional uma soma de transações pontuais. (DARDT; LAVAL, 2016, p. 364). Isso, evidentemente, tem um impacto sobre a vida privada, a organização familiar, a representação de si mesmo e os projetos futuros.

Callea (2018) analisando especificamente trabalhadoras e trabalhadores italianos concluiu que as trabalhadoras e os trabalhadores que vivem sob o jugo da precariedade, com contratos de trabalho por tempo determinado, apresentam o desenvolvimento de várias formas de ansiedade, depressão, raiva, falta de autoestima, distúrbios ligados ao stress e instabilidade emocional em número e grau mais elevado que os outros trabalhadores e trabalhadoras com contratos por tempo indeterminado.

Para Callea (2018, p. 222, tradução nossa), a precariedade da vida, pode ser definida, como a “(...) condição de fragilidade, de impotência e de pânico acerca do futuro profissional dos trabalhadores atípicos. Tais condições penetram, atravessam a vida do trabalhador manifestando-se na esfera privada, pessoal, familiar, colocando em risco as relações interpessoais”.

Gallino (2014) aponta que o maior custo humano do trabalho flexível pode ser resumido na ideia ou no conceito de precariedade entendida não apenas como a natureza do contrato de trabalho, mas como uma condição social e humana que deriva da sequência desses contratos, causando uma insegurança objetiva e subjetiva que se torna insegurança das condições de vida e de existência. Essa é uma das grandes diferenças em relação a mudanças anteriormente verificadas no interior do mundo do trabalho e é também sobre essas questões que se mobilizaram vários movimentos e protestos nos últimos anos ao redor do mundo.

Assim, pode-se, inicialmente, compreender, por exemplo, as grandes manifestações e protestos que ocorreram pós-crise de 2008, como parte das reações diante da precarização do trabalho e da vida. Braga (2017) ressalta que as mobilizações ocorridas em Portugal, Grécia e Espanha – e poderíamos acrescentar, as mobilizações que ocorreram também na Itália e o próprio movimento Occupy Wall Street – representariam tanto reações ao crescimento do desemprego, da pobreza e das desigualdades, quanto uma denúncia ao sequestro da democracia pelo sistema financeiro e à precarização do trabalho e da vida, experiência essa que afeta sobremaneira trabalhadoras e trabalhadores de faixa etária mais jovem.

Não é surpreendente, portanto, verificarmos o ressurgimento de uma agenda política diretamente ligada à promessa da cidadania salarial entre jovens ativistas que criticam os limites de um sistema político colonizado pelo poder das finanças e, portanto, incapaz de assegurar a soberania popular nos diferentes contextos nacionais (...) Em outras palavras, há um protagonista, o jovem precariado urbano, mais ou menos engajado na formação de coalizões com os trabalhadores organizados, assim como uma agenda centrada em torno da defesa da cidadania salarial. (...) Luta travada em escala nacional e não na arena global (BRAGA, 2017, p. 199-200).

Braga (2017), porém, analisando especificamente o caso português, salienta que se o Estado nacional se apresenta como o espaço em que as reivindicações do precariado se manifestam – e assim ocorre cada vez mais em vários países – o aprofundamento da crise da globalização impede, ou devera impedir, a limitação ao espaço nacional2. Tal consideração faz-se relevante diante do crescimento, em alguns países, de um nacionalismo/populista que imagina resolver os problemas do trabalho em âmbito nacional com fechamento de fronteiras e/ou um puro e simples protecionismo, por exemplo, em benefício de um suposto capital nacional que praticamente não existe mais. Portanto não propor um debate e uma discussão ampla, global sobre políticas econômicas e sobre o trabalho em particular, significa não afrontar seriamente o problema. Esse é um dos motivos pelos quais os discursos que fazem muitos nacionalistas/populistas/antiglobalismo ganha espaço, pois é um discurso imediato, fácil, simples, constituindo-se como uma “mercadoria” prontamente vendável3.

Assim, pode-se dizer que em quase todo o mundo ocidental protestos contra as consequências do neoliberalismo se fizeram presentes. No entanto tais protestos não são apenas eventos dos últimos anos, mas muitos outros protestos contra as consequências do neoliberalismo, bem como da globalização, se fizeram sentir desde a segunda metade dos anos de 1990, por meio de novos grupos militantes, além dos já tradicionais na cena política. Esses grupos, através de suas mobilizações e ações, já colocavam em evidência os efeitos deletérios e destruidores das políticas neoliberais e afirmavam a necessidade do estabelecimento de uma nova ordem mundial, alicerçada em princípios diferentes daqueles da concorrência, do lucro, da exploração abusiva dos recursos naturais. Tais movimentos se materializaram, àquela época, seja em movimentos antiglobalização, seja em movimentos por uma outra globalização. Foram muitos os movimentos que, no fim do século XX, se impuseram como testemunhas da recomposição de uma esfera anticapitalista de dimensões mundiais, constitutiva de um momento de conjunção das mobilizações ambientalistas, dos movimentos sociais tradicionais e das contestações mais específicas às políticas neoliberais (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 106).

Já com a crise de 2008 novas formas de protestos e, talvez, um novo sujeito começou a aparecer na cena pública demarcando diferenças em relação aos movimentos das décadas anteriores, pois como ressalta Braga (2017), quando a crise da globalização se aprofundou, enfraquecendo o poder negociador dos sindicatos, proletarizando setores médios e ampliando o peso do precariado na estrutura de classes nacional, as lutas sociais nacionalizaram-se, centrando-se em torno de questões mais diretamente ligadas ao cotidiano dos sujeitos. Tratando-se, antes de tudo, de uma luta travada em escala nacional, e não na arena global.

Quando a crise de 2008 se transformou também na crise da zona do euro, houve uma onda de greves de massa sem precedentes na Europa Ocidental que tiveram seu início com as greves na Itália e na França, dois países que foram o estopim para outras grandes manifestações. Deste modo, entre 2010 e 2014, segundo dados de Nowak e Gallas (2014), houve 14 greves gerais em cinco países diferentes. O aumento das greves deveu-se ao fato de os governos adotarem sempre mais e com maior intensidade a agenda neoliberal, portanto elas foram dirigidas, basicamente, contra a austeridade imposta pelos governos que envolviam, invariavelmente: redução de pensões, reformas previdenciárias, retração do welfare, demissões no setor público, redução de salários do setor público e, por fim, restrições na negociação coletiva, trazendo as greves para o campo político. Sendo assim, ressaltam Nowak e Gallas (2014), o objetivo dessas greves de massa seria evidenciar, denunciar o caráter antidemocrático da gestão política das crises na Europa e o fato de que os trabalhadores estão sendo chamados a pagarem uma crise que não causaram.

Ainda que essas greves de massa (greve geral) não tenham, ou não demonstrem, sobretudo hoje, tanta eficácia prática, elas possuem a característica de perturbar a vida política, afetar o discurso público, provocar respostas dos governos e de outros órgãos. Embora se apresentem geralmente como greves defensivas, elas possuem, ainda assim, um importante papel mobilizador ao proporcionar a experiência da ação coletiva. Experiência essa que permeou e permeia as grandes manifestações e mobilizações que ocorreram e ocorrem em torno da luta contra a precariedade e que podem ser mais bem compreendidas por meio dos aportes trazidos por Thompson ao pensar a categoria da experiência amplamente elaborada, desenvolvida e debatida pelo autor, seja em Formação da Classe Operária Inglesa (1997) seja em As Peculiaridades dos Ingleses e outros artigos (2002).

Para Thompson (1997), a categoria da “experiência” explicita a existência de homens e mulheres que reaparecem e retornam como sujeitos históricos, quebrando a ideia e a noção do sujeito autônomo ou dos indivíduos livres, ideia tão presente e marcante no pensamento neoliberal, mas esses sujeitos reaparecem como pessoas que experimentam suas situações e suas relações produtivas/econômicas/trabalhistas como necessidades e interesses, porém também como antagonismos e, em seguida, tratam, lidam, vivenciam essas experiências em sua consciência e em sua cultura.

Assim, antes mesmo da ocorrência das greves gerais na Itália e na França iniciadas, em 2010, a Islândia viveu protestos contra a crise financeira que se iniciaram já em 2008 e marcadamente eram dirigidos contra as medidas do governo islandês perante a crise econômica que se abateu sob o pequeno país, o movimento intitulou-se Revolução dos Panelaços.

Nos países árabes, uma série de manifestações e protestos tiveram início em 2011 e, para além da crise econômica – e, portanto, para além das questões relacionadas ao mundo do trabalho –, tais manifestantes reivindicavam maior abertura à democracia. Os protestos envolveram países como Líbia, Tunísia, Síria, Iêmem, Narein e Egito, quatro governos foram derrubados o que não necessariamente redundou em mais democracia nesses países, pelo contrário, vários deles vivem, no momento, um estado de guerra civil.

Em Portugal, os protestos foram convocados por jovens, no mês de março de 2011, inaugurando um novo ciclo de manifestações que já havia se iniciado anos antes com o movimento dos Precários Inflexíveis. As novas manifestações também foram organizadas via redes sociais, autoproclamando-se sem vinculação partidária e atingindo milhares de pessoas que se manifestaram contra a precarização do trabalho e da vida, bem como deixaram clara a insatisfação com a política e os políticos. Diante de tal cenário, abriu-se a possibilidade de um acordo político inédito, definido como a “geringonça”, que levou a esquerda ao poder novamente naquele país, passando a enfrentar as consequências deixadas pela austeridade dos anos anteriores.

Em maio de 2011, irrompeu, na Espanha, o Movimento dos Indignados, que se voltava contra os partidos políticos e a situação de desemprego e precariedade na qual se encontravam e se encontram, sobretudo, os mais jovens. Tal situação é resultante, para além da crise econômica/financeira de 2008, da extensa desregulamentação trabalhista promovida pela política neoliberal das décadas anteriores. Cidadãos indignados começaram a ocupar permanentemente Puerta del Sol em Madri. A mobilização rapidamente se espalhou para centenas de cidades espanholas. Com uma mistura de utopismo e pragmatismo, o novo movimento elaborou uma lista concreta de exigências, incluindo a remoção de políticos corruptos das listas eleitorais (POSTILL, 2012).

Em setembro de 2011, institui-se, no coração financeiro do mundo, o Movimento Occupy Wall Street, tal movimento se colocou contra a desigualdade econômica e social diante dos escândalos financeiros de 2008, reunindo muitos jovens precarizados e intelectuais sob o slogan We are the 99% (Nós somos os 99%), referindo-se à crescente desigualdade na distribuição de renda e da riqueza nos Estados Unidos.

Na Itália, em Roma, ocorreu uma grande manifestação em outubro de 2011, em função do dia de ação transnacional pelos indignados espanhóis. Foram mais de 300 mil manifestantes. No entanto apenas alguns conseguiram chegar à Piazza San Giovanni, porque violentos confrontos com a polícia iniciaram-se após ações de Black blocs (DELLA PORTA; ZAMPONI, 2013).

Para Andretta e Della Porta (2015), a instituição e o crescimento do Podemos, na Espanha, como um partido relacionado ao movimento dos Indignados, atestaria os efeitos, no longo prazo, de um ciclo de contestação que envolveu grande parte da população espanhola e que poderia se espalhar para outros países. Do mesmo modo, Braga (2017) vê como alvissareiras iniciativas como o Podemos, ou a formação da “Geringonça”, em Portugal, que é fruto de uma aliança programática entre o Bloco de Esquerda, o Partido Comunista Português e o Partido Verde, em apoio ao Partido Socialista (CARMO et al., 2017). Mais recentemente, na Itália, para as eleições de março de 2018, apresentou-se o Potere al Popolo, um movimento de esquerda que agrupa partidos políticos e movimentos sociais, com pautas semelhantes ao Podemos e à da coalizão de esquerda em Portugal, embora não tenha conseguido se apresentar de forma unificada com o restante da esquerda italiana para as eleições ocorridas em março de 2018.

O que se constata é que não apenas esse precariado urbano começa a engajar-se na formação de movimentos, de coalizões, de associações, de coletivos como também ensejam uma participação política por meio de novos canais e, ainda, participam pelos canais eleitorais constituindo-se em partidos, em alianças e/ou em listas cívicas, onde isso é permitido.

Detendo-se nos trabalhadores precarizados da Itália, Andretta e della Porta (2015) revelam, por meio de uma pesquisa quanti-qualitativa com esses sujeitos, um pouco sobre o perfil dos manifestantes contra a austeridade durante o período de 2010-2014. Para os autores, essa geração precária, participante das manifestações, é composta por pessoas que, diferentemente de gerações anteriores, não possuem relações de confiança com o capitalismo ou com o Estado. Esse precariado é caracterizado por uma soma de inseguranças no mercado de trabalho, no trabalho (uma vez que as regulamentações sobre a contratação e demissão oferecem pouca proteção), sobre o trabalho (com cada vez mais frágeis regulamentações sobre acidentes de trabalho, doenças e aposentadorias), sobre a renda (com salário muito baixo) e todas essas condições produzem efeitos em termos de acumulação de raiva, de anomia e ansiedade. A conclusão da pesquisa quanti-qualitativa de Andretta e della Porta (2015) aponta para o fato de que a geração precária, na Itália e também na Espanha, compartilham características semelhantes: são equilibradas em termos de gênero (50%); nasceram depois de 1986, portanto jovens; são mais formalmente educadas, sendo que 80% possui nível médio; 25% são estudantes; além dos desempregados e os que efetivamente ocupam posições “precárias” em termos de trabalho. A pesquisa mostra que em ambos os países, Itália e Espanha, essa geração mostra um tipo de indignação contra o sistema político e os partidos políticos tradicionais, que se revela numa baixa confiança da democracia que, em uma escala de 0 a 10, chegou a 2,4, ou seja, um nível de confiança baixíssimo (ANDRETTA; DELLA PORTA, 2015).

Em 2018, ocorre uma nova onda de manifestações na França, promovidas pelos assim chamados: Giletes Jaunes (coletes amarelos). Os sujeitos presentes nas ruas são: trabalhadores e trabalhadoras, desempregadas e desempregados, camadas médias urbanas e, nas manifestações mais recentes, estudantes e movimento de mulheres. Os protestos são contra a precariedade da vida traduzida na falta de emprego, em baixos salários, preços elevados dos transportes, contra a política de corte dos impostos sobre grandes fortunas, descontentamento com o sistema previdenciário e os valores das pensões e aposentadorias, somado a um descrédito na política e nos políticos.

Para Negri (2018, p. 1, tradução nossa):

(...) há, certamente, na França uma multidão que insurge violentamente contra a nova miséria que as reformas neoliberais provocaram. Os manifestantes protestam pelo fato da força de trabalho ter-se reduzido ao precariado e pela coação do cidadão a uma vida baseada na insuficiência dos serviços sociais públicos, má tributação de todo serviço social, pelos cortes gigantescos nas finanças dos governos municipais e agora, sempre mais, pelos efeitos (que se começa a sentir) das alterações na Lei Trabalhista e, ainda, uma preocupação pelos ataques futuros ao sistema de aposentadoria e ao financiamento da educação nacional (universidades e escolas secundárias).

As movimentações francesas denotam uma situação de acirramento de forças políticas distintas: há nas ruas um número considerável daqueles que se dizem desiludidos, descrentes e frustrados com a política e os políticos; há a esquerda que sempre ocupou as ruas e sempre pautou as questões relacionadas ao trabalho e aos direitos sociais; mas há, também, com força e relevância, um comportamento em direção a uma extrema-direita que avança de forma ordenada e contínua pelos países europeus nos últimos anos. Em muitos casos, esses grupos de extrema-direita têm conseguido, no discurso, conciliar os interesses do capital com as pautas dos trabalhadores, elegendo como o principal problema dos baixos salários, da piora nos serviços públicos, da mobilidade, da moradia, dentre outras questões, a presença de imigrantes e, sobretudo, o processo que a extrema-direita denomina de globalismo. Esse discurso já se mostrou vencedor em alguns países e prospera, sendo assunto a ser desenvolvido em outro espaço.

O desfecho das manifestações ou da insurgência na França ainda está em aberto e, mesmo que não seja o espaço para desenvolver tal argumento, pode-se apontar que desde as manifestações de 2013, no Brasil, ou ainda o tipo de organização que propõe o Movimento 5 Estrelas na Itália (que imagina superada a dicotomia esquerda/direita) parece ter se aberto um novo tipo de presença no espaço público, com manifestações sem lideranças declaradas e específicas ou com lideranças difusas, o que permite uma disputa de narrativas e de ações que era, até então, desconhecida.

Considerações finais

Deste modo, ainda que as diferenças entre os países sejam enormes, que as diferenças entre as economias capitalistas, mais ou menos desenvolvidas, sejam relevantes, que o processo de flexibilização, desregulamentação e implementação do neoliberalismo tenha se dado de formas diversas, algumas questões são comuns a todos os países e necessitam ser enfrentadas, ou seja, são questões que abrangem o âmbito da teoria social, mas também da política, da economia, da cultura e da prática cotidiana.

Uma dessas questões diz respeito às formas de representação/organização das trabalhadoras e dos trabalhadores precários e precarizados, pois os sindicatos estavam e, em sua maioria, ainda estão, preparados para representar um tipo específico de trabalhador que se torna cada vez mais escasso, ou seja, o trabalhador da relação salarial tutelada, o trabalhador estável, contratado por tempo indeterminado, portador de direitos, regulados por convenções e/ou contratos coletivos. É necessário que a organização das trabalhadoras e dos trabalhadores consiga pensar também o trabalho e a trabalhadora e o trabalhador precarizados, ou seja, é necessário incorporar a extensa massa do precariado em uma discussão coletiva das suas condições de vida e trabalho e que o precariado seja assumido como fundamental e imprescindível para e na luta das trabalhadoras e dos trabalhadores.

Nos lugares nos quais o sindicato não consegue fazer essa aproximação, alguns movimentos estão sendo instituídos pelo próprio precariado, que inicia, timidamente, um tipo de organização coletiva.

Há, ainda, que se enfrentar as discussões e os desafios que marcam o mundo do trabalho, portanto a classe que vive do trabalho, e que perpassam de modo interseccional, melhor seria, indissociável: as questões de gênero, pois são as mulheres as mais precarizadas; as questões étnico-raciais, pois a população negra está entre as mais precarizadas, tendo a mulher negra uma situação ainda pior que o homem negro; as questões LGBTs, pois a precarização atinge de forma diferenciada essa população; bem como os imigrantes e os jovens.

As organizações das trabalhadoras e dos trabalhadores e, especificamente, os sindicatos, estão buscando, lentamente, abarcar a complexidade dessas diversidades, pois já apreendem que suas organizações vão aos poucos perdendo sua ancoragem social quando não reconhecem essas outras dimensões da vida presentes no mundo do trabalho. A capacidade dos sindicatos de ampliar o olhar sobre as trabalhadoras e os trabalhadores, sejam estes precários ou não, fortalece a sua capacidade de articulação e a capacidade de homens e mulheres pensarem-se, identificarem-se, reconhecerem-se enquanto classe que vive do trabalho e que, portanto, possuem interesses comuns, sendo o principal deles a luta contra a precarização do trabalho, que já se transformou em precariedade da vida.

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Recebido em: 18/02/2020

Aceito em: 17/04/2020


1 https://g1.globo.com/politica/noticia/2018/12/13/bolsonaro-diz-que-a-legislacao-trabalhista-vai-ter-que-se-apr oximar-da-informalidade.ghtml (G1, 2018).

2 A greve internacional de 24h dos trabalhadores da empresa Uber realizada em março de 2019 é uma contratendência nesse sentido.

3 Por sinal, essa questão já foi, de certo modo, compreendida por aqueles que defendem um novo nacionalismo. Steve Bannon, ex-estrategista chefe da Casa Branca no governo de Donald Trump e, antes disso, diretor executivo da campanha presidencial de Trump, editor do site de extrema-direita Breitbart News, organizou a criação do The Movement, uma organização surgida em 2017, pelas mãos de Bannon, que pretende se “opor” ao globalismo/globalização e promover o nacionalismo. O movimento de Bannon atraiu para si líderes como: Marine Le Pen (França), Viktor Orbán (Hungria), Matteo Salvini (Itália) e Jair Bolsonaro (Brasil), embora outros líderes da extrema-direita europeia tenham manifestado não ver com bons olhos a interferência da atual política americana, presente nas ideias do The Movement, nos assuntos europeus, como foi ressaltado pelos líderes Alexander Gauland, do Alternative for Germany, Harald Vilimsky, do Freedom Party of Austria’s , e Gerard Batten, do UK Independence Party – UKIP. Bannon denominou Eduardo Bolsonaro como o representante do movimento na América Latina.

JUVENTUDE, TRABALHO INFORMAL E SAÚDE MENTAL

YOUTH, INFORMAL WORK AND MENTAL HEALTH

_____________________________________

Marina Batista Chaves Azevedo de Souza*1

Isabela Aparecida de Oliveira Lussi**

Resumo

Estudos apontam que jovens podem exercer trabalhos informais por necessidade não por desejo pessoal, o que pode acarretar impactos negativos na saúde mental. O objetivo do artigo foi apontar abordagens, destacar problemáticas e realizar reflexões sobre juventude, trabalho informal e saúde mental, através do mapeamento de estudos científicos. Realizou-se uma revisão de escopo pelo modelo de Arksey e O’Malley para mapear/sintetizar os estudos. Foram encontrados 51 artigos com a expressão: “informal work” OR “informal workers” OR “informal sector” OR “informal job” OR informality AND “mental health” AND “young adult” OR “young adults” OR young OR youth e 2640 teses e dissertações. Após as exclusões das duplicações, ensaios teóricos, revisões, trabalhos indisponíveis e estudos em que os títulos e resumos não abordavam a temática central, analisou-se 6 artigos científicos e 3 dissertações na íntegra. Os estudos são de anos diversos, a maioria quantitativos e investigam associações entre trabalhos informais/precários/desemprego e sintomas psiquiátricos. Questões geracionais não foram consideradas indicadoras de peculiaridades sobre o assunto nos artigos, mas duas dissertações trouxeram essa discussão. Foram inexistentes artigos que priorizam percepções do trabalhador sobre sua condição de trabalho/saúde, todavia, uma das dissertações analisadas abordou as condições sociais e o trabalho precário como sugestivos a problemas de saúde. Indica-se como necessário realizar reflexões que articulem saúde mental a condições políticas/socioeconômicas, considerando o trabalho como determinante de saúde/doença e a juventude como detentora de idiossincrasias que influenciam nas reflexões sobre o tema.

Palavras-chave: Economia informal. Juventude. Saúde mental. Trabalho informal.

Abstract

Some studies show that young people can perform informal jobs because of necessity and not personal desire, which could generate negative impacts on mental health. The aim of this article was to point out approaches, highlight problems and reflections about youth, informal work and mental health, through the mapping of scientific studies. A scope review was carried out using the Arksey and O’Malley model to map/synthesize the studies. We found 51 articles with the expression: “informal work” OR “informal workers” OR “informal sector” OR “informal job” OR informality AND “mental health” AND “young adult” OR “young adults” OR young OR youth and 2640 theses and dissertations. After the exclusions of duplications, theoretical essays, reviews, unavailable works and studies with abstracts that do not talk about the central themes, 6 scientific articles and 3 full dissertations were analyzed. The studies are of different years, most are quantitative and investigate associations between informal/ precarious work/unemployment and psychiatric symptoms. Generational issues were not considered to indicate peculiarities about the subject in the articles, but the dissertations made this discussion. There were no articles that prioritize workers’ perceptions about their own work/ health condition, however, one of the analyzed dissertations addressed social conditions and precarious work as determinants of mental health. It is necessary to carry out theoretical reflections that would link mental health to political/socioeconomic conditions, considering work as a determinant of health/disease and considering that youth have idiosyncrasies that have some influence on the theme.

Keywords: Informal economy. Young. Mental health. Informal work.


1* Professora do Curso de Terapia Ocupacional da Universidade Federal de Sergipe; Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Terapia Ocupacional da Universidade Federal de São Carlos. E-mail: marinabs91@hotmail.com

** Docente do Departamento de Terapia Ocupacional e do Programa de Pós-Graduação em Terapia Ocupacional da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 51, Julho/Dezembro de 2019, p. 126-144

Introdução

No Brasil, delimita-se legalmente a idade dos jovens através da lei nº 12.852, de 5 de agosto de 2013, que institui o Estatuto da Juventude e determina a idade dos jovens como sendo 15 a 29 anos (BRASIL, 2013). Esclarece-se, porém, que juventude é um conceito socialmente construído e que a faixa etária varia de acordo com características do local em que será analisado (ARNETT, 2007). Todavia é o referencial brasileiro que será utilizado neste artigo para determinar a juventude e refletir sobre o tema.

O último censo demográfico brasileiro apontou que existem 51,3 milhões de jovens no país (IBGE, 2010). No que se refere ao trabalho, aponta-se que entre os jovens especificamente de 25 a 29 anos, mais de 70% trabalha ou está procurando trabalho, enquanto apenas 12% permanece estudando. O relatório do Banco Mundial divulgou, em 2018, que 52% dos jovens de 15 a 29 anos perde o interesse pelos estudos e corre risco de não se inserir no mercado de trabalho principalmente devido à alta qualificação exigida nos contratos. Por esse motivo, grande parte adere ao trabalho informal, geralmente menos exigente (BIRD-AID, 2018).

As taxas de informalidade atingiram, no ano de 2019, números nunca vistos na história do Brasil, chegando a corresponder à 41,4% da força total de trabalho. Os dados indicam que os trabalhadores, independente da faixa etária, vêm se inserindo em trabalhos informais, seja na condição de trabalhador autônomo, seja exercendo qualquer atividade laboral sem vínculo formal com um contratante (SILVEIRA; ALVARENGA, 2019).

Acerca do trabalho na informalidade, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) caracteriza-o como sendo precário, instável, com baixa remuneração, escasso de direitos e de proteção social. Sobre trabalho informal e juventude, a OIT aponta que de cada dez empregos de jovens na região da América Latina e do Caribe, seis são informais (OIT, 2015). Com relação especificamente à realidade brasileira, o último relatório do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) sobre trabalho decente e juventude, identificou que a faixa etária de 15 a 17 é a mais inserida em trabalhos informais no Brasil. Logo após, se encontram os jovens de 18 a 24 anos, seguidos dos jovens de 25 a 29 anos. Ainda, mais da metade dos jovens de 15-29 anos (52,07%) trabalha e não participa de nenhuma atividade educacional (IPEA, 2015).

Sobre o conceito de trabalho informal, esclarece-se que esse, até a década de 1970, era entendido mundialmente como trabalho em condições ruins, típico de países subdesenvolvidos. O discurso neoliberal justificava que o trabalho informal existia porque o capitalismo ainda não tinha alcançado capacidade de absorver todos em trabalhos formais, mas que posteriormente o sistema formalizaria todos os trabalhadores (MACHADO DA SILVA, 2002).

Todavia com o avanço dos processos de flexibilização do trabalho no mundo, passa-se a identificar que a população que trabalhava informalmente não era simplesmente residual, já que não foi absorvida. Em 2002, a OIT afirmou que a informalidade é parte da dinâmica do capitalismo e substituiu o termo “setor informal” por “economia informal”, chamando os processos de informalidade de “nova informalidade”1, ou seja, a OIT passa a entender que a informalidade integra o sistema econômico capitalista de maneira interdependente (OIT, 2002). Deste modo, aponta-se uma relação de tensão entre a informalidade e o capitalismo. Uma relação de tensão pois, ao mesmo tempo que o capitalismo é refém da mão de obra barata do trabalho informal, o mesmo sistema pode desprezar esse tipo de atividade de trabalho, incriminando-a, desvalorizando-a, o que dependerá de aspectos como mercadoria vendida, ocupação exercida, cargo ou até local de realização do trabalho (MISSE, 2006).

Com relação ao tipo de mercadoria que se vende, Misse (2006, p. 218) aponta que “a designação criminal de um certo tipo de mercadoria depende do seu significado contextual para a ordem pública, para a reação moral da sociedade e por suas possíveis (ou imaginárias) afinidades com outras mercadorias e práticas criminalizadas”. Já sobre a função que é exercida pelo trabalhador informal, a ideia de ser seu próprio patrão pode legitimar maior status social para aqueles que “são donos do próprio negócio”, em detrimento daqueles que ocupam funções hierarquicamente mais baixas na informalidade (PINHEIRO-MACHADO, 2008).

O mundo vivencia novamente a transformação do conceito de trabalho informal através da difusão do discurso do empreendedorismo, que desvincula o informal da pobreza e valoriza a ideia de que “as atividades informais seriam um repositório do surgimento de novos empreendedores, reprimidos pelo excesso de regulação estatal” (LIMA, 2013, p. 3). Todavia o incentivo a esse tipo de discurso econômico liberal está diretamente ligado à elaboração de estratégias governamentais que reduzem políticas protecionistas. O “excesso” de regulação estatal criticado pelos neoliberalistas é, na verdade, o investimento que o Estado deveria fazer para proteger os trabalhadores (LIMA, 2013). Esclarece-se que o trabalho informal é resultado das condições materiais produtoras de desigualdade providas pelo capitalismo. Contudo a necessidade subjetiva de estar “no topo” faz com que alguns trabalhadores optem pelo informal. Esses acabam convencidos de que trabalhar para si mesmos possui muito mais valor do que trabalhar para outro, mesmo que isso implique menos proteção legal para eles próprios (PINHEIRO-MACHADO, 2008).

A globalização dos meios de produção, que tem como uma de suas características a grande incidência do trabalho informal, impactou principalmente as camadas da sociedade que não conseguem atingir as necessidades de se qualificar diante dos novos modelos de produção (TELLES, 1996; DUARTE, 2016). Contudo políticas neoliberalistas, em todo o mundo, trataram de expandir o público destinado ao trabalho informal. No Brasil, podemos citar a aprovação da lei nº 13.467/2017, denominada Reforma Trabalhista (BRASIL, 2017), que alterou 201 pontos da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), retirando direitos e transformando contratos, um exemplo de política que amplia o trabalho informal para todos. Em junho de 2019, foi extinto o Ministério do Trabalho, por meio da lei nº 13.844, que reorganizou a estrutura administrativa do governo federal (BRASIL, 2019). O Ministério sempre foi considerado como o importante fiscalizador de situações indignas de trabalho.

Após a Reforma Trabalhista, e com a extinção de um Ministério que atendia aos interesses do trabalhador, têm-se atualmente, no Brasil, a expansão, ampliação, e o incentivo à abertura de postos de trabalho sem regulação. Assim, foi aumentado o “leque de possibilidades abertas que significam formas de contratação mais baratas aos empregadores e mais vulneráveis aos trabalhadores” (KREIN, 2018, p. 88) o que aqui denominamos de formalização do trabalho precário. Dessa forma, lideranças governamentais do Brasil contemporâneo legislam para oportunizar aos contratantes, possibilidades de flexibilização de vínculos de trabalho, facilitando contratos informais (KREIN, 2018).

Sobre trabalho informal e trabalho precário, algumas reflexões são importantes. De acordo com Vargas (2016), a precariedade está sempre relacionada a algo, por exemplo: à condição social do trabalho, condição objetiva do trabalho ou questões subjetivas do trabalho. Sendo assim, aponta-se que nem toda atividade de trabalho que é considerada precária trata-se necessariamente de um trabalho informal. Todavia entende-se que a ausência de vínculo empregatício, no Brasil, necessariamente restringe direitos trabalhistas e proteção social (precarização com relação às condições sociais do trabalho). Para a população economicamente desfavorecida, os trabalhos informais disponíveis são os mais precarizados que existem, a exemplo de trabalhos que além de não garantirem direitos, fornecem baixos salários, submete-os a situações violentas, instabilidade financeira e insegurança. (VARGAS, 2016).

De acordo com documentos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do Banco Mundial, e da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a maior parte da juventude brasileira está submetida a situações econômicas problemáticas. Sobre os brasileiros que têm até 14 anos, 12,5% vivem na extrema pobreza (dispõem de menos de US$ 1,90 por dia) e 43,4% se encontram em situação de pobreza. Dos brasileiros de 15 a 29 anos, 30,1% se encontram em situação de pobreza (BRASIL, 2017; SILVEIRA; GERBELLI, 2018). Indivíduos que se inserem no mercado de trabalho por necessidade, devido à falta de melhores oportunidades, encontram-se destinados à trabalhos informais extremamente precários (VARGAS, 2016).

Sobre a saúde e o trabalho da juventude, a literatura internacional indica que, de forma geral, os jovens são mais propensos a serem vítimas de opressão no ambiente de trabalho e a permanecerem em atividades menos valorizadas pela sociedade. Esses também são considerados um grupo com dificuldades de exercer controle sobre a sua própria atividade de trabalho (TUCKER; LOUGHLIN, 2016). Acerca do trabalho e saúde mental, aponta-se a existência de alguns tipos de transtornos comportamentais relacionados à solidão, maus-tratos, violência e sentimento de indeterminação no trabalho, que são mais incidentes na vivência de trabalho de sujeitos sem experiência, como os jovens (BENDASSOLLI; SOBOLL, 2011; PAIVA et al., 2013). Entretanto é importante compreender a saúde considerando as desigualdades sociais e suas consequências, pois, os processos de precarização estão diretamente ligados à expropriação do trabalho capitalista (RIBEIRO, 2015).

Contudo o conceito de saúde mental não se relaciona só a diagnósticos psiquiátricos, mas também a aspectos sociais. Essa relação é reafirmada, pela Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS), que pontua: “um ambiente que respeite e proteja os direitos básicos civis, políticos, socioeconômicos e culturais é fundamental para a promoção da saúde mental” (OPAS/OMS, 2016).

Diante da problematização apresentada, o objetivo deste estudo é apontar abordagens, destacar problemáticas e realizar reflexões sobre juventude, trabalho informal e saúde mental, através do mapeamento de estudos científicos sobre o tema. Especificamente, pretende-se compreender: a) o nome dos autores e o período de realização de suas pesquisas, b) em quais locais do mundo essas relações vêm sendo analisadas, c) quais procedimentos metodológicos e referenciais vêm sendo utilizados nos estudos sobre o tema e, d) quais os resultados.

Ao descrever os aspectos citados, pretende-se refletir sobre quando, como e por quê a ciência vem se interessando em discutir o tema mundialmente. É possível pensar quais problemáticas ou vantagens de escolhas teóricas e metodológicas, comparando, replicando ou descartando metodologias e práticas aplicadas em vários locais do mundo, o que pode auxiliar na elaboração ou aprimoramento de referenciais teóricos, metodologias e políticas nacionais.

Método

O estudo é classificado como uma revisão de escopo (scoping review), orientado pelo modelo teórico de Arksey e O’Malley (ARKSEY; O’MALLEY, 2005). Os autores apontam que revisões de escopo podem ser utilizadas para sintetizar resultados de pesquisa ou identificar lacunas existentes na literatura. As revisões de escopo são configuradas no campo dos estudos de revisão como revisões da literatura e não como “revisões sistemáticas”, pois não pretendem analisar a qualidade dos estudos encontrados, mas abordar tópicos mais amplos, realizar mapeamentos e descrições. Mays, Roberts e Popay (2001) esclarecem que essa estrutura metodológica é indicada quando um campo de conhecimento ainda não está suficientemente mapeado e os fenômenos são considerados complexos.

De acordo com Arksey e O’Malley (2005), é necessário identificar: 1) a questão de pesquisa; 2) os estudos relevantes; 3) a amostra; 4) os dados obtidos dos estudos; 5) os resultados da coleta/mapeamento feito e realizar as análises.

Como pergunta de pesquisa, estabelecemos “o que é apontado na literatura sobre a juventude inserida em trabalhos informais e os possíveis rebatimentos dessa inserção na saúde mental dos jovens?”.

Buscou-se primeiramente, encontrar todos os artigos científicos que, necessariamente, relacionassem os três elementos que compõem a temática desta revisão, a saber: juventude, trabalho informal e saúde mental. Para garantir a abrangência internacional das buscas, ela foi realizada em inglês. Foram utilizados os sinônimos e plurais dos termos, que compuseram a expressão de busca utilizada: informal work OR informal workers OR informal sector OR informal job OR informality AND mental health AND young adult OR young adults OR young OR youth. As buscas foram realizadas no ano de 2018, nas bases de dados Pubmed, Scielo, Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), Scopus e Sociological Abstracts, sem filtros de data. A escolha das bases foi pautada no entendimento de que se tratam de bases da área da saúde, ciências sociais e interdisciplinares. Foram contabilizados apenas artigos científicos.

Optou-se pela larga quantidade de termos na expressão de busca, pois os fenômenos têm significados diferentes e são mais ou menos utilizados a depender da área do conhecimento. Com relação ao termo “setor informal”, embora esse seja considerado ultrapassado, alguns estudos recentes o utilizam para se referir a momentos históricos anteriores. A decisão de utilizá-lo foi pautada na preocupação em não excluir estudos importantes do mapeamento. Ainda, os descritores da área da saúde são indicados pelo vocabulário estruturado e trilíngue DeCS (Descritores em Ciências da Saúde), diferente do vocabulário de outras áreas. Aponta-se como um desafio identificar descritores a partir da diversidade entre áreas.

Os critérios de inclusão adotados para as buscas nas bases foram: a) ser um artigo científico de um periódico avaliado por pares, b) apresentar no mínimo dois termos que estivessem combinados primeiramente no título e posteriormente no resumo. Como critérios de exclusão foram estabelecidos: a) revisões sistemáticas e ensaios teóricos, b) artigos que não tinham seus manuscritos disponíveis na íntegra para consulta livre.

Para complementar as análises dos artigos, foi utilizado o Catálogo de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) para obter um panorama das dissertações e teses desenvolvidas em programas de pós-graduação no Brasil. Foram utilizados os descritores “trabalho informal”, “saúde mental” e “juventude” em português, por se tratar de um catálogo nacional. As buscas foram feitas no primeiro semestre de 2020.

Foram mapeados os estudos dos últimos cinco anos devido ao grande número de resultados encontrados. Os critérios de exclusão foram a) estudos indisponíveis, b) que não relacionavam ao menos dois dos termos utilizados nas buscas, em seus títulos, c) que não relacionavam os três termos no resumo.

Ressalta-se que, apesar do grande número de estudos que retornam das consultas ao Catálogo de Teses e Dissertações da Capes, a maioria de seus títulos e resumos se distancia muito dos termos utilizados nas buscas. Isso se deve ao fato de que o sistema não apresenta uma tecnologia de busca evoluída como a dos sistemas das bases indexadas, consultadas na etapa dos artigos científicos. O catálogo da Capes tem seu refinamento limitado e não funciona através de codificação fornecida por manuais como as bases de dados indexadas, o que restringe as chances de o pesquisador encontrar resultados precisos, leva-o a realizar um trabalho manual que demanda mais tempo e implica no descarte de grande parte do material que retorna.

Na revisão de escopo, podem ser inseridas diferentes fontes para responder à pergunta de pesquisa, o que faz com que não seja obrigatório que as sistematizações das buscas nas diversas fontes sejam, necessariamente, processos idênticos. Nesta revisão, foi consultada literatura branca (de fácil acesso e ampla divulgação) e realizadas duas sistemáticas de buscas (uma para artigos, outra para dissertações/teses). As dissertações e teses são parte da literatura branca devido à existência atual dos catálogos online, que facilitam o acesso. As fontes que não constituem a literatura branca são denominadas literatura cinzenta, de difícil busca e sem acesso amplo (BOTELHO; OLIVEIRA, 2015). Apesar da flexibilidade do modelo teórico, optou-se por não utilizar literatura cinzenta, pois este estudo faz parte de um projeto de doutorado que trará, em novas publicações, as análises de obras completas sobre o assunto.

Resultados

Nas bases indexadas, 51 artigos científicos foram encontrados. Desses, 6 permaneceram na revisão após as exclusões. Com relação às teses e às dissertações, dos 2640 trabalhos resultantes da busca, 3 compuseram a amostra final. A Figura 1 a seguir detalha os procedimentos das duas buscas, incluindo: o local das buscas; as expressões utilizadas; quantidade dos estudos inclusos; os motivos das exclusões; e as amostras finais.

Figura 1 - procedimentos da revisão nas bases indexadas e no Catálogo Capes

Fonte: Dados da pesquisa elaborados pelos autores, 2018-2020

Primeiramente, elegemos alguns aspectos a serem especificamente pontuados nos artigos científicos que compuseram a amostra final, realizando uma caracterização geral dos 6 estudos, a saber: a base de dados que o estudo foi encontrado; os autores e o ano de publicação da pesquisa; o país da coleta de dados; o título; o objetivo; e os resultados das pesquisas.

Os artigos que relacionavam o trabalho informal e a saúde mental especificamente, estavam em maioria indexados nas bases da área da saúde, porém também estavam presentes em bases de caráter interdisciplinar, como a Scopus, e das Ciências Sociais, como a Sociological Abstracts. O ano de publicação das pesquisas foi um dado disperso, pois os artigos foram publicados a partir de 1997 até 2010, sem uma frequência significativa entre os anos.

Aponta-se que 4 artigos são do Brasil, 1 dos Estados Unidos e 1 do Canadá. A maioria dos autores foram brasileiros que publicaram em português e em inglês, mas que desenvolveram suas coletas de dados no Brasil, com participantes brasileiros. Devido a isso, optou-se por fazer uma busca em nova fonte, o Catálogo de Dissertações e Teses da Capes, de forma a compreender se o tema vem sendo discutido em Programas de Pós-Graduação (PPG’s) do Brasil, e como vem sendo discutido. A caracterização dos artigos está exposta na Figura 2 a seguir.

Os três estudos finais da busca no catálogo, foram dissertações de Mestrado de PPG’s do Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro e São Paulo, realizadas em 2016 e 2017. Os resultados das buscas no catálogo estão detalhados na Figura 3. Após a exposição dos resultados nas Figuras 2 e 3, descreveu-se mais detalhadamente as informações dos artigos, como: a localização geográfica, métodos, instrumentos, objetivos, populações e resultados apontados. Em seguida, foi elaborado outro tópico para descrição dos mesmos aspectos nas dissertações, que foram indicadas aqui como material complementar às análises dos artigos científicos.

Figura 2 - Resultados dos artigos (bases, autores, país, título, objetivos e resultados)

Fonte: Dados da pesquisa, elaborado pelos autores, 2020


Figura 3 - Resultados do Catálogo de Dissertações e Teses da Capes

Fonte: Dados da pesquisa, elaborado pelos autores, 2020

Descrição das informações dos artigos científicos analisados

Todos os artigos utilizaram abordagens quantitativas, realizando associações e comparações entre diferentes grupos de trabalhadores. Algumas pesquisas analisaram os sintomas psiquiátricos em associação com: gênero do trabalhador; diferentes categorias de trabalhadores informais; ou empregados/desempregados. Um dos estudos comparava a inserção de jovens americanos brancos com a inserção de jovens americanos negros no mercado de trabalho, discutindo sobre qual grupo se insere mais facilmente no trabalho.

Todos os estudos utilizaram questionários padronizados. Os questionários possibilitaram aos pesquisadores associações e comparações estatísticas entre os grupos de trabalhadores de diferentes gêneros, categorias profissionais, etnias e desempregados. As reflexões foram pautadas no entendimento de que alguns grupos de trabalhadores apresentavam maior incidência de sintomas psiquiátricos do que outros.

Dos estudos produzidos por brasileiros, participaram trabalhadores jovens e adultos (LUDEMIR, 2000; LUDEMIR, 2005; SANTANA et al., 1977; OLIVEIRA et al., 2010). Um deles investigou apenas mulheres (SANTANA et al., 1977). As mulheres foram divididas entre as que trabalham formalmente e as que trabalham na informalidade. Os estudos apresentavam alguns jovens em sua amostra, mas nenhum focalizou a faixa etária entendendo que o fato de ser jovem pode facilitar a inserção em trabalhos do tipo informal ou que essa é uma população que apresenta idiossincrasias que merecem ser melhor investigadas.

O estudo realizado no Canadá se propõe a desenvolver uma pesquisa longitudinal para saber o impacto do desemprego em indivíduos a partir dos 18 anos, e o que esse desemprego influencia na vida desses entrevistados, até os 32 anos (KRAHN; CHOW, 2016). Todavia esse estudo, apesar de problematizar impactos de trabalhos informais para os sujeitos, não identificou o fato de ser jovem como um aspecto importante na discussão sobre trabalho informal e consequências para a saúde.

O estudo norte-americano utilizou como sujeitos de pesquisa jovens norte-americanos com influências africanas ou ditos “africanos americanos” (african american) e jovens norte-americanos considerados brancos ou a “juventude branca” (white youth) (MC DANIEL; KUEHN, 2013). Os pesquisadores estavam interessados em perceber se existem diferenças entre grupos, com relação às oportunidades de trabalho, buscando compreender quais as possíveis relações entre desemprego e questões de raça. Nesse estudo, há uma preocupação maior com as questões étnico-raciais colocadas na América do Norte.

Aponta-se que, de forma geral, apenas dois artigos abordam a questão da juventude em seus títulos, e foi necessário considerar a articulação de dois termos para analisar artigos nas buscas, pois não foram encontrados títulos que articulassem os três termos claramente. No geral, os artigos analisados constatam influências do trabalho informal, do desemprego e de questões étnico-raciais, na vivência de trabalho, oportunidades de emprego e na saúde. Alguns grupos se mostraram estatisticamente mais propensos a desenvolverem sintomas psiquiátricos, como trabalhadores com empregos precários, mulheres que trabalham informalmente, homens adultos com empregos informais e jovens negros. Ainda, os estudos apontam que, quanto maior a precariedade e a informalidade, maior a chance de aparecimento de sintomas psiquiátricos.

Descrição das informações das dissertações analisadas

Uma grande quantidade de estudos retornou na busca do Catálogo de Dissertações e Teses da Capes, entretanto a maioria dos títulos se referiam à saúde mental de estudantes ou de trabalhadores da economia formal, principalmente os trabalhadores da área da saúde. Alguns estudos traziam a questão do trabalho informal no título, porém, não traziam a questão da saúde mental como foco da análise. De forma semelhante aos artigos, foi necessário considerar a articulação de dois termos nos títulos e posteriormente compreender que os três termos estavam nos resumos, pois não foram encontrados nenhum título que articulasse trabalho informal, saúde mental e juventude.

Ainda, os estudos que apontavam interseção entre trabalho informal e saúde mental não esclareciam a questão da juventude trabalhadora nem no título nem em seus resumos. Na primeira filtragem, foram encontrados muitos trabalhos que estudavam a juventude trabalhadora com foco na formação básica, complementar e profissional, focalizando a aprendizagem para o trabalho.

Com relação à pesquisa de Vasconcelos (2017), contemplada na análise final, a autora analisou, por meio do referencial da psicodinâmica do trabalho (DEJOURS; ABDOUCHELI; JAYET, 2010), aspectos relacionados à saúde mental de trabalhadores feirantes. Com a utilização de abordagem mista, com a aplicação da Escala de Prazer e Sofrimento no Trabalho (EPST), questionários sociodemográficos e entrevistas abertas, a autora identificou alto nível de estresse nos trabalhadores. Esses sustentam o prazer que têm no trabalho através da sua realização pessoal e sentimento de orgulho pela profissão. A autora identifica que a flexibilização do trabalho e liberdade dos feirantes pode ser positiva para os mesmos, mas aponta que “as consequências do trabalho informal não são apenas de ordem física, mas abrangem também a saúde mental dos trabalhadores e sua subjetividade, estando relacionadas ao estresse e ao sofrimento psíquico revelado pelos feirantes da pesquisa” (VASCONCELOS, 2017, p. 59). O estudo sinaliza que o trabalho de feirante é uma maneira dos sujeitos garantirem seu sustento, embora careçam de proteção legal. Não foram encontradas discussões acerca das questões geracionais, ou seja, a faixa etária dos trabalhadores não foi focalizada na pesquisa.

No trabalho de Santos (2016) foi utilizado o General Health Questionnaire para verificar associações estatísticas entre transtornos mentais comuns (TMC), trabalho e pressão arterial de trabalhadores adolescentes. Essa pesquisa se assemelha, em termos de abordagem e análise, com os artigos científicos anteriormente analisados, uma vez que prioriza compreender a saúde mental no trabalho através da incidência de sintomas psiquiátricos. No estudo, não foi dada ênfase à questão do trabalho informal nem de seus possíveis impactos.

A pesquisa de Suiron (2017), por meio da utilização de entrevistas, aponta que uma maior escolaridade não é suficiente para que o trabalho de jovens em lojas de departamento seja menos precário. As lojas se apresentam para a juventude como uma porta de entrada para a obtenção de experiência em trabalhos formais e de um futuro melhor. Os problemas de saúde mental estavam ligados às altas jornadas e à intensificação do ritmo de trabalho. As questões psíquicas dos trabalhadores eram influenciadas por elementos da organização do trabalho. Apesar de o estudo ter focalizado o trabalho formal de jovens, é apontado que a precarização social do trabalho, no Brasil, é um movimento que atinge diretamente a juventude. Foram utilizados referenciais da saúde do trabalhador para compreensão da presença de doenças ocupacionais na atividade de trabalho.

Discussões

A partir dos resultados, percebe-se a lacuna que a literatura científica nacional e internacional apresenta acerca da interseção entre os três termos utilizados nesta revisão. Além disso, os estudos brasileiros foram indicados como mais expressivos do que os provenientes de outros países, o que pode indicar que países com maiores índices de desigualdades sociais demandam mais pesquisas sobre a temática abordada.

Sobre trabalho, juventude e desigualdade social no Brasil, esclarece-se que alguns dados se apresentam como alarmantes. De acordo com a matéria “Metade dos jovens correm risco de não se inserir no mercado de trabalho”, veiculada pelo Jornal O GLOBO no ano de 2018, existe um desinteresse precoce dos jovens nos estudos, podendo acarretar em dificuldades na inserção no trabalho formal que demanda maiores níveis de qualificação. Esses jovens geralmente estão em três situações: desistiram do sistema educacional; conciliam estudos com trabalho informal; ou estão na escola matriculados em séries que, teoricamente, não correspondem a sua idade (NASCIMENTO, 2018). Tais características da juventude brasileira podem ser um dos fatores que influenciam pesquisadores brasileiros a estudarem temas como trabalho informal, juventude e seus impactos na saúde mental.

Com relação às bases de dados pesquisadas, percebe-se que grande parte dos estudos sobre saúde mental se concentra em bases que indexam periódicos da área de saúde, embora a maioria delas não relacionem o termo ao trabalho informal e à juventude simultaneamente. Na Sociological Abstracts, foram encontrados vários artigos sobre trabalho informal, e dois deles foram analisados nesta revisão por apresentarem ligação com a saúde mental (um no título e outro no resumo), indicando que os termos vêm sendo discutidos interdisciplinarmente.

Sobre saúde e trabalho, mesmo que o processo de globalização tenha diminuído doenças fatais relacionadas a agentes químicos, observa-se agora o aumento de outros tipos de doenças, consequência de condições subjetivas dos novos tipos de trabalho. O novo panorama de saúde do trabalhador vem sendo constituído pelo aumento de doenças cardiovasculares e de transtornos psiquiátricos, por exemplo (RIBEIRO, 2015). A maior incidência de adoecimentos psíquicos provenientes do trabalho, está relacionada a existência de fenômenos como o trabalho precário ou o desemprego, explicados estruturalmente (TELLES, 1996; DUARTE, 2016).

Apesar de os trabalhadores jovens estarem contidos em algumas amostras de participantes, nenhum dos autores abordou a juventude separadamente, como uma fase que demanda reflexões específicas sobre trabalho informal e saúde mental. Guerreiro e Abrantes (2005) apontam que jovens percorrem caminhos precários no mundo do trabalho e, pela dificuldade de inserção em trabalhos dignos, aceitam trabalhos por necessidade e não por escolha. Esses apresentam também maior possibilidade de vivenciar situações opressoras no trabalho (TUCKER, LOUGHLIN; 2016; BENDASSOLLI; SOBOLL, 2011).

Acerca da metodologia dos estudos, a presente revisão revelou que a temática foi estudada predominantemente a partir de procedimentos quantitativos. Os questionários padronizados são interessantes para testar hipóteses e generalizar resultados a partir de procedimentos estatísticos. Todavia questiona-se, aqui, se a utilização de metodologias qualitativas e de coletas de dados, centradas na opinião do próprio trabalhador e na observação de seu cotidiano, poderiam ser mais adequadas para compreender trabalho informal, juventude e saúde mental. Questiona-se, sobretudo, se é possível que haja insegurança dos trabalhadores ao responder verdadeiramente a questionários, em razão do medo e do constrangimento de revelar situações problemáticas.

Sobre esta questão, Galheigo (2012) aponta que os estudos com populações vulneráveis devem ter cuidado ao coletar informações, uma vez que essas podem não resgatar o poder de decisão e autonomia da pessoa, pois, essas populações estão submetidas a uma sociedade capitalista e competitiva. Trabalhadores submetidos à lógica capitalista podem ter o poder de decisão limitado, apresentar insegurança e serem tomados pelo medo no momento de responder a entrevistas estruturadas ou questionários padronizados. Sugere-se, ainda, que trabalhadores informais possam ter sua realização profissional influenciada pela gratidão que esses têm à oportunidade dada através dessa atividade laboral, de continuar fornecendo subsídios financeiros para si próprio e para seus dependentes.

Neste rumo, indica-se a elaboração de estudos que compreendam a existência de vínculos entre condições de vida, trabalho e processos de saúde e doença. É necessário valorizar a experiência, vivência, cotidiano e modo de vida dos sujeitos, pois esses acompanham e constituem os processos de adoecimento no e pelo trabalho (THOMPSON, 1981; SELLIGMAN-SILVA, 1994; JACQUES, 2003).

Na contemporaneidade, é insuficiente reduzir a análise teórica de fenômenos complexos a categorizações que não se aprofundam nos contextos históricos, sociais, políticos e econômicos da atividade de trabalho e da população que a exerce (CASTEL, 2009). Deve-se refletir, sobretudo, a respeito das questões de pauperismo e desigualdade. Com a reestruturação produtiva e a flexibilização do trabalho, o poder político e econômico local diminuiu, aumentando o trabalho informal para as parcelas mais pobres da população (LIMA; JUNIOR, 2018). É necessária a tomada de consciência “das condições de existência das populações que são, ao mesmo tempo, os agentes e as vítimas da revolução industrial.” (CASTEL, 2009, p. 30). No caso do Brasil, considerando que o país apresenta quase um terço de toda sua renda concentrada nas mãos de apenas um grupo de brasileiros, e que hoje o Estado investe majoritariamente em contratos desregulamentados, questiona-se: para quais grupos de brasileiros são hoje destinadas oportunidades dignas de emprego? Para quais grupos restarão as oportunidades mais precárias?

Ainda, a diminuição das políticas protecionistas e o aumento dos contratos atípicos nos levam a refletir que, no cuidado ao trabalhador, será necessário construir práticas profissionais articuladas em rede (saúde, previdência e trabalho). Conhecer as novas realidades de trabalho e as reais necessidades dos trabalhadores da “nova informalidade” permitirá discutir os caminhos das intervenções de profissões que lidam com trabalho, juventude e saúde, já que essas precisarão intervir fora da tradicional rede formalizada de atenção ao trabalhador.

Nos artigos selecionados, questões como a fragilidade dos vínculos empregatícios, o desemprego e as questões étnico-raciais, foram apontadas como influenciadoras da saúde mental dos indivíduos. Entretanto as discussões sobre saúde mental foram pautadas no paradigma psiquiátrico e no antigo modelo de saúde, o modelo biomédico. Entender juventude, trabalho informal e saúde mental a partir de teorias sobre a subjetividade do trabalho e de perspectivas epidemiológicas, elucidaria a importância de considerar o sujeito como parte de experiências construídas também por meio do contato com o trabalho (JACQUES, 2003).

As teorias sobre a subjetividade do trabalho têm o objetivo de abordar “o cotidiano de vida e de trabalho enquanto expressões do sujeito na intersecção de sua particularidade com o mundo sociocultural e histórico, em que se incluem as vivências de sofrimento e adoecimento sem privilegiar, necessariamente, os diagnósticos clínicos. ” (JACQUES, 2003, p. 111-112). Na perspectiva epidemiológica, aborda-se o papel do meio no aparecimento de doenças. Em pesquisas que a utilizam, instrumentos padronizados são combinados com entrevistas em profundidade e observações. O trabalho é, nessa abordagem, constitutivo e não somente fator desencadeante de problemas mentais. As abordagens subjetiva e epidemiológica foram construídas através de correntes marxistas e referenciais histórico-críticos (JACQUES, 2003).

Agenda de pesquisa

Para futuros estudos, sugere-se a elaboração de pesquisas pautadas na opinião dos jovens sobre seu trabalho e sua saúde mental através de metodologias que observem o trabalho real, registrem o cotidiano e entendam histórias de vida dos participantes. Entende-se que pesquisas baseadas em métodos etnográficos ou participativos poderiam complementar resultados de estudos que já compõem o arcabouço científico sobre o tema.

Alguns autores já identificam que o informal, mesmo sem proteção social, pode vir a ser um “espaço de sobrevivência”, ou de “ascensão social”, diante da escassez de oportunidades regulamentadas de trabalho e dos baixos salários oferecidos pelos empregadores. Atualmente, é imensa a heterogeneidade dos contratos de trabalho (PAMPLONA, 2013). Na economia informal, existem grandes diferenças de renda, perfil e condições de trabalho. Há trabalhadores por escolha e outros por falta de opção. Noronha (2003) aponta que, diante da diversidade do significado de trabalho informal, um dos desafios teóricos sobre o tema seria pensar na construção de uma tipologia contratual que explicasse as razões que possam levar à não observância da lei.

Assim, pesquisas teóricas que se debrucem sobre os novos tipos de contratos e dediquem-se a reelaboração do conceito de trabalho informal, pensando na atualidade, contribuiriam sobremaneira na discussão sobre o trabalho contemporâneo. Neste momento histórico, os pesquisadores devem compreender quais os novos tipos de contratos vêm sendo estabelecidos em seus países; quem são os indivíduos normalmente submetidos a eles; como os trabalhadores avaliam a questão; os motivos pelos quais esses adentram/permanecem nessas lógicas contratuais; e quais os rebatimentos de tais questões na saúde do trabalhador.

Percebe-se também a necessidade de que os pesquisadores utilizem referenciais teóricos que compreendam a saúde por meio de uma visão ampliada, fora do antigo modelo, entendendo o trabalho como um determinante social de saúde e doença. As reflexões podem inclusive se desdobrar em ações práticas, dedicadas ao cuidado com os jovens inseridos em trabalhos informais ou até mesmo à criação de políticas que busquem garantir trabalho formalizado para esses.

Como limitações desta revisão, identifica-se a dificuldade de determinar a expressão de busca mais adequada, devido à interdisciplinaridade do tema, e a não utilização de literatura cinzenta que é uma possibilidade nas revisões de escopo.

Considerações finais

O estudo concluiu que a relação entre juventude, trabalho informal e saúde mental ainda é pouco analisada pela literatura branca nacional e internacional. Todavia pesquisadores que discutem o tema “trabalho informal e saúde mental” vêm se debruçando sobre perspectivas teóricas semelhantes, centradas na psiquiatria, assim como na utilização de instrumentos de pesquisa padronizados, analisados por técnicas estatísticas. Ainda, a maioria dos estudos foram realizados no Brasil, analisaram populações em situação de vulnerabilidade social e não consideraram a questão da juventude como um fenômeno com características específicas que contribuem para as análises.

Nota-se que Programas de Pós-Graduação brasileiros vêm discutindo os temas do trabalho informal e da saúde mental, porém com pouca interseção com a juventude. Uma das dissertações analisadas utilizou um método misto na coleta de dados e a teoria da subjetividade para analisar saúde mental, divergindo dos demais estudos resultantes da revisão.

Contudo, internacionalmente, percebe-se que os trabalhadores informais se encontravam em situação de desvantagem social, embora não tenham sido feitas vinculações entre essa situação e a saúde mental. Por esta razão, identificou-se o quanto seria incompleto apontar o tratamento de diagnósticos psiquiátricos como a única solução para os possíveis problemas de saúde mental enfrentados por trabalhadores jovens inseridos na economia informal.

Referências

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BENDASSOLLI, Pedro Fernando; SOBOLL, Lis Andrea Pereira Clínicas do trabalho. São Paulo: Atlas, 2011.

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Recebido em: 24/09/2019

Aceito em: 20/04/2020


1 A “nova informalidade” incorpora ao trabalho informal a dinâmica do capitalismo globalizado, tanto em países desenvolvidos como nos considerados em desenvolvimento. Esse conceito se refere às “mudanças relativas à desregulação econômica, à flexibilização das relações de trabalho e à desterritorialização da produção e internacionalização dos mercados, nas quais as relações entre a economia formal e a economia informal formam um continuum com fronteiras imprecisas. ” (LIMA, 2013, p. 330)

O “TRABALHO FORMAL”/NEGÓCIOS ENTRE OS CIGANOS:

encontros e desencontros

THE “FORMAL JOB”/BUSINESS BETWEEN GYPIES:
encounters and mismatches

____________________________________

Maria Patrícia Lopes Goldfarb*
José Aclecio Dantas
∗*

Resumo

Este artigo apresenta resultados de pesquisas sobre grupos ciganos, com foco nas formas de trabalho exercidas pelos mesmos, ao identificarmos a ausência de estudos que retratassem a inserção de ciganos no mercado de trabalho, especialmente os da etnia Calon. Visando suprir lacunas existentes na produção acadêmica acerca desses grupos étnicos, buscamos identificar, através dos discursos proferidos a respeito dos ciganos, como se categoriza “trabalho formal” e levantar as categorias nativas que são acionadas, gerando uma distinção entre trabalho /negócio. O recorte metodológico é de caráter descritivo e exploratório e constituiu-se numa pesquisa bibliográfica com levantamento dos dados empíricos em várias dissertações e teses, com ênfase nas pesquisas etnográficas.

Palavras-chave: Trabalho. Ciganos. Mercado de trabalho. Negócios.

Abstract

This article presents results of a research on gypsy groups, focusing on the forms of work performed by them, by identifying the absence of studies that portrayed the inclusion of gypsies in the labor market, especially those of the Calon ethnic gruop. In order to fill gaps in academic production about these ethnic groups, we seek through the speeches given about Roma, how to categorize ‘formal work’ and analyze the native categories triggered, generating a distinction between work / business.The methodological approach is descriptive and exploratory, and consisted of a bibliographic research with survey of empirical data in various dissertations and theses, with an emphasis on ethnographic research.

Keywords: Work. Gypsies. Job Market. Business.

Introdução

Nosso interesse pela temática nasceu durante pesquisas iniciadas no Programa de Iniciação Científica da Universidade Federal da Paraíba (Pibic/UFPB), vinculada ao Grupo de Estudos Culturais (GEC), do CNPq1. Nesse período, observamos disparidades nas formas como os ciganos e os não ciganos concebiam, em seus discursos, a questão do trabalho.

Em lugares onde vivem ciganos, é comum observarmos, nas falas da população local não cigana, convicções elaboradas por meio de rótulos e estereótipos, como as expressões: “cigano não gosta de trabalhar”, “cigano não trabalha”, “é um povo preguiçoso” etc. Tais expressões não pareciam (de acordo com as nossas observações in locco2), corroborar com a perspectiva dos ciganos inquiridos sobre as mesmas questões3.

A partir dessas reflexões iniciais, passamos a buscar analisar os sentidos acerca do “trabalho formal”, em especial entre os ciganos Calon, que seriam originários da Península Ibérica, formada principalmente por Portugal e Espanha, além dos pequenos Gibraltar e Andorra, e uma pequena fração do território da França (GOLDFARB, 2013). Deste modo, nos interessam as representações sociais4 sobre o trabalho e suas formas de resistência aos processos capitalistas de proletarização.

A totalidade da vida social é imbricada por uma complexidade que envolve a reprodução da força de trabalho, seu nexo com a pobreza e com as desigualdades. Tais categorias: trabalho, renda, pobreza e desigualdade não se esgotam a seus aspectos econômicos, sendo preciso ampliar o alcance da análise a problemáticas pluridimensionais. Para tal, realizamos um levantamento bibliográfico, através do qual analisamos produções acadêmicas sobre perspectivas ciganas do trabalho – formal ou informal –, verificando os processos de inclusão/exclusão do cigano do mercado formal de trabalho e examinando também as categorias nativas que distinguem trabalho/negócio.

A metodologia usada foi do tipo qualitativa que, segundo Minayo (2001, p. 21): “...trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos”. Fizemos uma pesquisa exploratória de caráter histórico-crítico bibliográfico, com análise de materiais sobre ciganos, para assim compreender esses sujeitos e seus contextos históricos de vida (FREITAS, 2002).

Contextualizando os ciganos

Começamos por afirmar que esta é uma “história” narrada, especialmente, por não ciganos. É recente o interesse de pesquisadores brasileiros sobre a história ou os modos de vida ciganos, o que colaborou para anos de invisibilidade e desinformação nas terras brasileiras. É preciso esclarecer que estamos falando de grupos heterogêneos, com vasta riqueza sociocultural; aqui pensados como grupos étnicos5, cuja historicidade relaciona-se a diásporas e trânsitos por diversos países, alvos de controle e coerção social por parte dos Estados, governos ou sistemas políticos.

Enfrentaram o degredo (PIERONI, 2001), o holocausto e formas várias de “limpeza étnica6 – como a lei dos pobres7, de combate à vadiagem8 (pobreza ociosa) –, workhouses9, escolas de aprendizes; de apagamento cultural, proibição do uso do dialeto e da buena dicha10; enfrentaram polícias municipais e estaduais, exércitos nacionais, milícias e mercenários; conseguindo resistir a tantas formas de exclusão social.

Uma certa visibilidade dos ciganos começou a se desenhar com a criação da Gypsy Lore Society11, em 1888 na Inglaterra, que além de ser uma pioneira tentativa de unificação dos estudos sobres os ciganos, estimulava pesquisas que envolvessem diversas áreas do conhecimento, na tentativa de identificar uma origem comum para esses grupos.

Antes do século XIX, já existia na Europa uma produção literária e artística, bem como documentos oficiais, que retratavam estórias ou mesmo descrições sobre os ciganos: pinturas, relatórios, leis, boletins de ocorrência, canções, poemas, contratos, anúncios de jornais ou revistas, que indicavam a passagem ou permanência dos ciganos em determinadas localidades e suas formas de vida.

Uma das características mais acentuadas dessa literatura repousa na associação da figura dos ciganos aos estereótipos da vagabundagem e da pobreza, do ócio, da malandragem, da indisposição ao trabalho, da vigarice ou do ludíbrio, que construíam a imagem de um povo sem voz e vez. Tal produção serviu a interesses políticos coercitivos e a convalidação de leis que ampliavam a estratificação social desses grupos, já muito marginalizados.

Muitas são as explicações sobre as “origens” dos ciganos, que vão desde as que afirmam ligações com castas inferiores indianas, até as que colocam os ciganos como parte de guerreiros que formavam a segunda categoria das quatro castas da sociedade hindu. Ainda encontramos narrativas de cunho religioso, que ligam a “errância cigana”12 à sua procedência do Egito, e a sua paga por terem recusado hospedagem à Virgem Maria – quando ela fugia da perseguição herodiana dos infantes; motivo pelo qual peregrinam dispersos sobre a terra, sem pátria – e aquelas que os identificam com a condição errante de Caim, o personagem bíblico (FONSECA, 1996).

Não há dados precisos sobre o número de ciganos no mundo, contudo a Europa parece ser o continente com a maioria de ciganos e pessoas itinerantes. Registros históricos mostram que os ciganos Calon foram os primeiros a chegarem ao Brasil, mas também há ciganos de outras nominações, como os Roma13, os Kalderash ou os Sinti.

Estima-se que a grande maioria dos ciganos no nordeste do Brasil seja Calon. No estado da Paraíba, existe a maior comunidade de ciganos sedentarizados alocados em um único bairro, no município de Sousa (GOLDFARB, 2013).

É importante frisar que os processos migratórios dos ciganos não aconteceram de forma linear, tendo as mais variadas motivações, resultando em interações com culturas diferentes, o que conduziu a um vasto e rico acervo cultural entre os mesmos. Apesar de o termo “cigano” ser generalizado no Brasil, mais do que os etnônimos “Calon”, “Kalon” ou “Rom, a pertença é determinada por critérios específicos a cada contexto social, de acordo com as formas de interação com a sociedade envolvente.

As representações Gadjé14 acerca dos ciganos tende a ser marcadas por preconceitos e estigmas (GOFFMAN, 1988), que os segregam, estabelecendo muitas vezes conjuntos de ações repressivas ou excludentes. Problematizando os estereótipos, observamos que nem todos os ciganos são nômades, leem a buena dicha, habitam tendas etc.

O nomadismo surge quase que automaticamente como elemento definidor dos grupos ciganos, tanto no senso comum como em parte da literatura, sendo associados à ausência de vínculos duradouros, a pessoas não civilizadas e expatriadas (TEIXEIRA, 2007). Enquanto “nômades”, passam a ser marcados por uma condição forasteira, que desestabiliza a ordem pública.

No Brasil, o processo de sedentarização observado entre os ciganos Calon, em vários municípios, se deu, especialmente, na região nordeste, nos anos 1980, estimulado por pressões externas que trariam, se não as condições ideais, ao menos, as condições mínimas para um assentamento mais prolongado. Interessante destacar que, nesse mesmo período, os avanços urbanos promovidos pelo Banco Nacional de Habitação (BNH) fixavam grupos de pessoas de baixa renda em bairros populares. Consideramos uma confluência de fatores e conjunturas sociais, políticas e econômicas, conformando os condicionantes que permitiram o assentamento, não apenas dos ciganos, mas também das populações pobres em seus fluxos migratórios internos, do campo para as cidades.

Na Paraíba houve uma “parada”15 a partir dos anos 1980, nos municípios do interior do estado, tais como: Cajazeiras, Condado, Conceição de Piancó, Congo, Bonito de Santa Fé, Marizópolis, Ingá, Itapororoca, Juazeirinho, Livramento, Patos, Pombal, Mamanguape, São João do Rio de Peixe, São Mamede, Santa Luzia, Santa Rita, Soledade, Triunfo, Lucena, Cajá, Esperança, Lagoa Grande, Guarabira, Alhandra, Sousa etc. (CUNHA, 2013).

É necessário reafirmar que os grupos ciganos são formados por uma ampla heterogeneidade, pois podem ser distinguidos com relação às atividades econômicas, a procedência ou lugar de origem, e a moradia atual, formando um grande mosaico étnico.

Ofícios e meios de reproduzir a vida material

Observamos que um dado muito importante na relação entre o fazer profissional e os ciganos, contrariando o senso comum, é a utilização de etnônimos representativos de seu fazer profissional ou ofício, em que vários grupos ciganos usam os do tipo ergonímico16, o que significa que o próprio nome do grupo denota o trabalho como parte constituinte de sua identidade, contrariando a fama de “avessos ao trabalho”.

Historicamente, os ciganos exerceram vários ofícios, que por sua destreza lhes garantiam a subsistência e estadia nas cidades. Para Camacho (1997, p. 8), os primeiros ciganos da Europa ocidental, primordialmente na Espanha, desenvolviam atividades que em sua grande maioria estava vinculada a funções de “ferreiros e trabalhadores de couro, vendedores do mercado, cartomantes, acrobatas, etc”.

Entre os ofícios relatados por pesquisadores, podemos encontrar vários ligados a trabalhos manuais, que exigiam a destreza dessas artes: ferreiro, latoeiro, funileiro, marceneiro, ourives, escultor, carroceiro etc. Mas não apenas esses, também a prestação ou mesmo a venda de serviços, que podiam variar entre a própria leitura das mãos (realizada majoritariamente pelas mulheres), o cuidado veterinário, consertos de utensílios e ferramentas, apresentações artísticas de música e dança, entretenimentos circenses etc. (SILVA SANCHES, 2006).

Podemos citar ainda os tipos de exercício laboral que podiam variar entre o exercício da advocacia, o funcionalismo público, escrivães e tradutores (SOUZA, 2006). Nos ofícios ligados ao artesanato com metais, estão os subgrupos dos ciganos Rom, tais como Calderash (ou Kalderach), etnônimo de origem romena, ciganos caldeireiros que faziam artesanalmente tachos, potes, panelas e outros utensílios domésticos feitos de alumínio e cobre. Os Aurari são, por sua vez, ciganos ourives, que faziam artesanalmente joias em ouro, prata ou cobre. Os Kovatsa (origem húngara) são ciganos ferreiros, faziam artesanalmente, com o ferro, vários utensílios domésticos: ferraduras, ferramentas, rodas, panelas etc. Os Bugurdzje referem-se aos ciganos broqueiros (ferreiros que trabalhavam com brocas), que faziam artesanalmente brocas de ferro endurecido para madeira (HOUAISS, 2001).

Existiam aqueles que trabalhavam artesanalmente a madeira, seja nos processos de entalhamento artístico, ou aqueles que produziam utensílios de madeira, dos quais se destacam: os Lingurari, os Balanara (ou Balajara), fabricantes de cochos em madeira, e os Tsurara. Outra subcategoria era daqueles que trabalhavam artesanalmente os materiais de cestarias (ciganos cesteiros), os que trabalhavam detalhes artísticos decorativos e aqueles que produziam artefatos para o uso diário, como os Sepecides (TOMKA, 1984; PEREIRA, 2009).

Entre aqueles que se dedicavam ao comércio em geral, encontramos muitas especificações, que vão se adequando aos tipos de produtos produzidos, seja nas manufaturas, ou indústrias, como os Lovara, cuidadores de cavalos (etnônimo de origem húngara). De acordo com Bareicha (2013), eles estão relacionados também à negociação de empréstimos em dinheiro.

Desta forma, percebe-se, entre os ciganos, que a concreção de um ofício estava ligada aos seus “modos de vida”, isto é, práticas culturais engendradas histórica e cotidianamente; um sistema de significados simbólicos, culturalmente produzidos, com valores e práticas sobre o fenômeno social do trabalho (GEERTZ, 1989).

Mas tal relação de termos ergonímicos não esgotam o raio de participação ativa dos ciganos nas atividades laborais nem se restringem apenas a tal relação. Lembrando que tal caracterização não se engloba como fator generalizante, pois como em qualquer outro grupo social, há aqueles que não trabalham, não necessariamente por falta de vontade, mas propriamente por imposição ante as dificuldades de inserção no mundo do trabalho.

No século XX, segundo Charlemagne (1984), pouco mais da metade dos ciganos persistiam no nomadismo e, por correspondência, em seus ofícios tradicionais. Devido aos baixos índices de oportunidades no “trabalho formal”, os ciganos têm se dividido entre as atividades primárias, secundárias e terciárias, com maior desenvoltura naquela primeira, como é o caso dos dados publicados pelo Diagnóstico social de la comunidade gitana en España, de 2007.

Falando de Portugal, Mendes e Magano (2013, p. 6) apontam que, em Bragança, no que tange aos ofícios, “há fortes contrastes e assimetrias entre os ciganos que vivem em zonas rurais e os que residem em territórios urbanos”. Os ciganos das aldeias rurais tendem a usar o recurso ao trabalho na agricultura e na pastorícia, enquanto os citadinos tendem ao comércio. Também apontando a questão de gênero, entre os ciganos de Portugal, Mendes, Magano e Candeias (2014, p. 11), explicam que entre as mulheres ciganas: “As atividades profissionais desenvolvidas vão desde atividades agrícolas, ao cuidado de idosos e de crianças, restauração (cozinheiras, empregadas de mesa), tarefas de limpeza, educadora de infância e mediação sociocultural...”.

Para uma melhor compreensão da distribuição entre os diversos ofícios ou meios de vida dos ciganos portugueses nos dias atuais, divididos pelos seus conselhos, observa-se uma forte inserção dos ciganos no trabalho comercial ambulante. De acordo com Casa-Nova (2009, p. 182):

Em termos profissionais e à semelhança da maior parte dos ciganos portugueses, os elementos desta comunidade dedicam-se maioritariamente à venda de vestuário em espaços concessionados para o efeito: as feiras, tendo-se também dedicado, nos últimos anos (desde 2004), à venda de DVD’s e CDs de contrafacção, acumulando com a venda de vestuário como uma forma de diversificação dos artigos comercializados, procurando contornar assim alguns dos efeitos do “capitalismo de acumulação flexível”.

Já Azevedo (2013, p. 8) acrescenta que para os ciganos Calon das cidades de Lisboa, Setúbal, Porto, Guarda, Bragança e Faro, “a ocupação geral é o negócio, a venda ambulante, em feiras e mercados. Uma pequena percentagem ocupa postos de trabalho precário: na construção civil, nos barcos, em empresas industriais – são os trabalhos menos remunerados”. Conforme Amaral e Nascimento (2008, p. 98), alguns ciganos na sub-região de Trás-os-Montes “vivem essencialmente da venda ambulante de produtos artesanais (cestos em vime) que produzem”.

Com relação ao Brasil, encontramos as primeiras referências em Morais filho (1886, p. 26), que fala de ciganos trabalhando com “... metaes: eram caldeireiros, ferreiros, latoeiros o ourives; as mulheres rezavam do quebranto e liam a sina.” Gilberto Freyre destaca que por causa do transporte de gente e artigos, em lombos de cavalos e burros no nordeste agrário, os ciganos eram negociantes de cavalos junto aos senhores de engenho (FREYRE, 2013).

Nos dias atuais, de acordo com Moraes (2015, p. 6), os ciganos Calon que estão no município de Carneiros, Alagoas, “vivem de pequenos negócios como, por exemplo, trocas, leitura da sorte em feiras, venda de patuás e amuletos, Bolsa Família, doações. ” E acrescenta que “Em Carneiros eles evitam algumas práticas como pedir dinheiro na rua e a leitura da sorte”.

No Rio Grande do Norte, os ciganos que foram observados nas cidades de Cruzeta, São Vicente, Currais Novos e Florânia, de acordo com Souza:

Economicamente, os ciganos de Florânia vivem de aposentadoria, bolsa família, de trocas realizadas pelos ciganos homens e de trabalhos como pedreiros e serventes. [...] em São Vicente [...] trabalham com comércio ambulante (vendem redes). [...] Embora alguns ciganos trabalhem em empregos de jurons, no que tange à concepção de uma rotina fixa com horários estabelecidos, no caso de ajudante de pedreiro que trabalha das 07:00 às 17:30, eles continuam a exercer a atividade da troca comercial com o que conseguem, seja uma bicicleta, uma moto ou carros assim como da venda de determinados produtos como o relógio, redes, colchas de cama e panos de pratos (SOUZA, 2016, p. 5-8).

Ainda sobre o estado do Rio grande do Norte, Coradini e Souza (2014, p. 216) afirmam que, embora a maioria esteja desempregada, os ciganos “...preservam sua cultura de serem ‘bons comerciantes’, como eles dizem, fazem biscates ou pequenos empreendimentos, como conserto de automóveis ou compra e venda de artigos usados”.

Quanto aos ciganos da Paraíba, no caso da comunidade de Sousa, Siqueira (2012 p. 60), afirma que “A grande maioria dos adultos não obteve educação formal, restando-lhes as trocas simples, a mendicância e poucos trabalhos de bico. [...]”. Aponta, ainda, que apesar das restritas oportunidades e dos estereótipos que ainda continuam a fechar as portas para oportunidades de trabalho, os ciganos “inventam e reinventam formas concretas de subsistir”. Neste mesmo contexto, Batista e Cunha (2013, p. 9) nos mostram a existência de funcionários públicos, pois: “Hoje já tem cigano trabalhando, muitos trabalham na prefeitura, na CAGEPA,[...]”.

Na família cigana de Juazeirinho, por nós pesquisada, a principal fonte de renda provém de pensões das viúvas e programa de transferência de renda (Bolsa Família) das crianças, embora o processo comercial de automóveis e bens duráveis ainda é vivo (GOLDFARB et al., 2013)17. Em Condado, observamos o hábito de vender as próprias casas, prática também observada no município de Mamanguape (MONTEIRO, 2015).

Silva (2009, p. 89) apresenta os ciganos em Limoeiro do Norte, no Ceará, que:

[...] possuíam como principal fonte de sobrevivência a troca de animais ou objetos, sendo exercida essencialmente pelos homens. As mulheres, por sua vez, dedicavam-se à quiromancia e à leitura de baralho. A procura de fontes de renda determinava certa mobilidade dos ciganos no espaço do Baixo Jaguaribe, já que a atividade de troca exigia tempo e envolvia um processo de negociação, o qual nem sempre se apresentava de maneira satisfatória. Atualmente, [...] os ciganos vivem inseridos no contexto da população local, [...] eles têm residência fixa; os homens trabalham em firmas localizadas no próprio município de Limoeiro do Norte; as mulheres cuidam da casa, dos filhos e algumas colocam o baralho para as pessoas do bairro e de lugares vizinhos[...].

O mesmo autor, em outra publicação, acrescenta que alguns “complementam a renda familiar com a venda de garrafadas, espécie de xarope produzido a partir de troncos de árvores e raízes de determinadas plantas encontradas nas imediações do bairro” (SILVA, 2010, p. 21). Em Sousa, observamos também que alguns ciganos18 desempenham atividades como mototaxistas.

Para os pesquisadores Mello e Souza (2006, p. 29): “Durante praticamente todo o século XIX e parte do XX, ciganos calon do bairro do Catumbi ocuparam posições bem definidas no Judiciário da cidade do Rio de Janeiro”.

Pereira (2009, p. 104), relata a existência de ciganos nos seguintes ofícios: artesão de cobre, ator, circense e poeta. Campos (2016, p. 2), se referindo aos Calon do São Gabriel (Belo Horizonte, Minas Gerais), diz que: “Outro motivo comum para as saídas temporárias do acampamento são as viagens de negócios, como a venda de artigos para cavalos ou pequenos eletrônicos e a realização de catira, uma modalidade de troca comum entre os calons”. A autora ainda acrescenta a existência de alguns ciganos Rom conhecidos pelo comércio de panelas de tacho, ou seja, os tacheiros, que também “mexem” com revenda de cobertor.

As atividades comerciais observadas em Pelotas, no Rio Grande do Sul, não se restringem exclusivamente aos sedentários, pois tanto os sedentários como os nômades (ou os seminômades) mantêm similitudes nas formas de prover o sustento familiar (PERIPOLLI, 2013). A autora acrescenta ainda que além dessas atividades comuns, algumas ciganas vendem simpatias para fechamento de corpo, a benção de Santa Sara etc.

Relatando suas experiências entre os ciganos, o padre Paulo Pedro Garcia (CUTTI, 1997) nos fala que entre aqueles que transitavam entre Belo Horizonte e o estado do Espírito Santo via-se a leitura da sorte entre as mulheres como um meio de proventos e a venda de produtos entre os homens.

Apesar dessa diversidade de ofícios e meios de reproduzir a própria vida entre os ciganos de diversas localidades e espaços temporais, pôde-se perceber entre os ciganos uma tendência histórica a atividades que se relacionam diretamente com o mercado ou o comércio informal, e que mesmo com suas singularidades regionais diferenciadas, revela-se como um habitus (CASA-NOVA, 2009) de exercício profissional, mas que sofreu as inflexões das leis repressivas, de governos autoritários e de controles variados.

De igual modo, os ciganos continuam desenvolvendo seus “negócios”, que em seu percurso histórico, mesmo adquirindo novas interpretações culturais, continuam a prover as condições de subsistência necessárias aos grupos, como fonte principal ou complemento de renda. Mesmo que os empregos formais e o funcionalismo público estejam aumentando entre os ciganos, na proporção da adesão desses aos processos educacionais da escola regular, tais atividades tendem a se perpetuar com variações que respeitam as oscilações econômicas de cada conjuntura histórica em maior ou menor grau.

Concepções ciganas de trabalho

É necessário afirmar que a ideologia de positivação do “trabalho” é uma construção arquetípica da sociedade ocidental no combate às formas de “ociosidade”, a partir de todo um construto legal e social para valorização do trabalho formal. O trabalho contínuo ganharia status quando desvinculado da condição subumana para fomentar o desenvolvimento de riquezas.

A partir do século XV, nota-se uma considerável mudança na imagem negativa do trabalho manual (ABBAGNANO, 2007). Para Decca (1982, p. 8), “A dimensão crucial dessa glorificação do trabalho encontrou suporte definitivo no surgimento da fábrica mecanizada”. Com a necessidade de controle, a sociedade moderna vai criar dispositivos disciplinares, legais ou não, para coagir os que estavam fora do mercado de trabalho, ou os que viviam das práticas do trabalho intermitente, a ingressarem na sociedade de trabalho formal e contínuo.

Para os ciganos, o “negócio” se constituiu como uma categoria importante de sobrevivência material. Desta forma, negócio, na base dos comércios diversificados dos ciganos, constitui-se como uma solução cultural encontrada entre seus modos de viver e o modo de produção social majoritário e dominante19. Segundo Ferrari (2011, p. 731):

Se durante séculos foi, e ainda é, muito difícil manter as condições mínimas de reprodução da vida, sustentando às vezes um núcleo familiar extenso, em uma comunidade sedentária, que de uma forma ou de outra gozavam de certo acesso a bens coletivos públicos, ou se estabeleciam nos sistemas produtivos comuns, que poderia ter como base a terra, a oficina, a manufatura, a pequena indústria, e assim por diante; onde a casa – quando se tinha – representava determinado alento e abrigo; imagine o quão se ampliam essas dificuldades quando não se pode usufruir dos bens públicos mais básicos por sua condição não cidadã, nômade e estrangeira.

Ao contrário dos estereótipos que afirmam que ciganos não estimam o trabalho, muitas pesquisas nos mostram entre os ciganos a valorização da escola e da formação universitária como valor a ser perseguido (MENDES; MAGANO; CANDEIAS, 2014). Entretanto é preciso destacar que projetos que combinem valores culturais, escolaridade e abertura de oportunidades reais de emprego e renda para os ciganos são quase inexistentes no Brasil.

Por outro lado, é também importante marcar que a noção de “trabalho” para muitos ciganos passa pelo coletivo, ou seja, por aquele labor que favorece uma dependência recíproca ou orgânica do grupo ou família.

[...] durante o trabalho de campo, que alguns dos inquiridos que se declaravam como desempregados, desempenhavam alguma atividade laboral, contudo, está por ser de natureza informal (biscates, vendas, tarefas agrícolas) os inquiridos optaram por subvalorizá-la. Uma questão pertinente, remete também para as concepções sobre o que se entende por trabalho. Por exemplo, num campo de resposta aberta, um inquiridor anotou “nunca trabalhou, só como vendedor ambulante” o que nos remete para o não reconhecimento pelos próprios ciganos da venda ambulante como “trabalho”. O que resulta de uma interpretação do termo trabalho que o associa, exclusivamente a trabalho pago mediante salário, por conta de outrem, ignorando as situações de trabalho doméstico não pago ou serviço comunitário voluntário, por exemplo (MENDES; MAGANO; CANDEIAS, 2014, p. 175, grifo nosso).

Mas uma propensa inclinação positiva ao comércio para subsistência dos grupos ciganos não é uma condição que se prioriza unicamente nesse tipo de atividade laboral, os próprios “trabalhos formais”, entre ciganos espalhados pelo Brasil, parecem ter constituído novos espaços, que foram muito bem assimilados entre eles.

Nesta locução, o trabalho na coleta de reciclados, shows, o comércio ambulante, a leitura de mãos etc., se apresentam como uma opção aos baixos rendimentos oferecidos pelas vagas disponíveis ou ofertadas no trabalho formal. Entretanto tais questões têm reverberações bem mais amplas, que podem incluir sentimentos nocivos em relação não propriamente ao “trabalho”, mas as condições inumanas desse (FERRARI, 2011).

Conforme as referências etnográficas consultadas, trabalho para os ciganos não se vincula diretamente ao conhecimento escolar, uma vez que embora se reconheça a importância da escola, ela é vista como transmissora de saberes muitas vezes considerados dispensáveis, quando comparados aos conhecimentos adquiridos em família, entre os iguais. Mas fazer negócios, quer seja: comercializar, incentivar as trocas, fazer a leitura de mãos, vender algum produto, convencer um possível comprador etc., isso só um cigano ensina a outro cigano por meio das regras de convivência.

Para a maioria dos ciganos falar de trabalho não é a mesma coisa que falar de negócio20. O cigano trabalha, muitas vezes, muito mais do que os não ciganos, principalmente porque tem que carregar consigo, além das dificuldades naturais de prover o sustento, como qualquer outro indivíduo, os impedimentos, barreiras e dificuldades impostas por sua condição de pária, da falta de direitos legalmente reconhecidos e das condições desiguais a que são submetidos, isso sem contar a carga pejorativa que acompanha a imagem negativa socialmente construída, que condiciona e até determina os limites do que lhe é oferecido como oportunidade de trabalho.

Deste modo, os ciganos precisam desenvolver habilidades de comunicação e convencimento, técnicas de quiromancia, de leituras de mãos etc. e ainda lidar com um mundo de estereótipos que os cercam e os colocam em posição de suspeição constante.

O “trabalho formal” tende a ser algo mais distante de suas realidades cotidianas e passa a ressignificar a falta de liberdade, desgaste físico e mental. Os ciganos valorizam os aspectos qualitativos das atividades produtivas, se ela vai permitir tempo para a família, para as viagens, para a resolução de outras necessidades, tanto da pessoa, quanto do núcleo familiar. Neste sentido, se consideram menos “escravos” que os não ciganos. As atividades laborais precisam conferir tempo ou disponibilidade para a vida comunitária, para as resoluções políticas do grupo, para o tratamento de doenças, do corpo e do espírito, para o lazer, para a dignidade humana.

Grande parte dos ciganos Calon do Brasil, principalmente no nordeste brasileiro, parecem seguir um mesmo padrão de inserção nas atividades laborais, dedicando-se, sobretudo, a vendas e trocas comerciais, no caso dos homens, e à quiromancia, no caso das mulheres; considerando as diferenças de ofertas de trabalho entre as grandes cidades e as cidades do interior, em que os ciganos se encontram em maior quantidade, e onde a oferta é quase inexistente.

Cabe destacar que a exclusão étnica se liga à pobreza de boa parte dos Calons brasileiros, o que é percebido nas suas condições de vida e de consumo. Conforme Bergham (1995), os processos de exclusão social relacionam-se com a supressão econômica e o afastamento dos direitos civis instituídos, o que se vincula à ausência de cidadania e participação social igualitária; com raríssimas políticas públicas ou de intervenção na resolução desses problemas.

No caso dos ciganos Calon da Paraíba, enquanto parcela pobre da sociedade, observa-se a ausência de participação nas esferas do “trabalho formal”, baixo nível de escolaridade e qualificação profissional, ausência de políticas de saúde, habitação e seguridade social (GOLDFARB, 2013).

“Negócios” – Entre a informalidade e a precarização

A grande maioria dos grupos ciganos, ligada ou não ao nomadismo tradicional ou seminomadismo, está com sua produção material e condições de subsistência ligadas, direta ou indiretamente, ao negócio ou artesanato, incluindo, é claro, os que trabalham com o entretenimento, que de uma forma ou outra, perfaz o conjunto de ofícios tradicionais e modos de produção, pois muitos comercializam serviços de entretenimento.

O comércio de serviços de entretenimento, que pode variar de acordo com a habilidade musical, corporal, técnica de adestramento e condicionamento físico de cada grupo, pode se estender inclusive ao aluguel de instrumentos e aparelhagens necessárias para muitos de seus shows.

O comércio (ou negócios) é uma atividade terciária de grande relevância para muitas pessoas que foram expropriadas dos meios de produção, que não respondiam às exigências formais do emprego industrial ou que não queriam se sujeitar à lógica da fábrica. Em especial, o comércio ambulante foi um dos poucos meios de subsistência disponíveis para uma grande massa de desvalidos das sociedades industrializadas, como dos escravos recém-libertos, dos desempregados pobres, da população flutuante do exército industrial de reserva, dos não escolarizados ou analfabetos.

O trabalho autônomo ou ambulante tem essa característica atrativa: a flexibilidade de tempo e espaço. A flexibilidade de espaço reflete as condições de mobilidade estabelecidas pelos níveis de sucesso ou insucesso comercial em determinadas áreas territoriais, mais ou menos propicias à venda de certos produtos.

De acordo com nossas análises, depreendemos que é importante entender o mercado informal de trabalho não como um setor apenas oposto ao formal ou como uma não funcionalidade econômica. Entre os ciganos, a informalidade do trabalho se expressa na forçosa posição na qual são colocados, expulsos das oportunidades reais de emprego, pelos estereótipos negativos construídos socialmente, bem como pelo declive profissional imposto pelo desenvolvimento técnico-científico nas revoluções industriais. Subjacente a essa “informalidade”, há uma suspeição que, além de formar uma população flutuante em que a relação com o emprego é vista como passageira e intermitente, coloca a informalidade de trabalho entre os ciganos como uma “inclinação natural”.

[...] a maioria dos ciganos, tradicionalmente, sempre preferiu trabalhar por conta própria, em atividades artesanais (fabricando ou consertando objetos de madeira, vime ou de metal), ou comerciais (vendendo artesanato ou negociando cavalos), ou atividades consideradas ilegais (mendicância, quiromancia e cartomancia, contrabando e atividades afins [...] (MOONEN, 2013, p. 68).

Casa-Nova (2009, p. 182), expõe alguns fatores que levam os ciganos a exercerem algumas atividades informais, mesmo que estejam qualificadamente preparados para o exercício de determinados empregos:

[...]. Na opinião de muitos dos elementos da comunidade, esta situação tem lugar devido ao racismo dos não ciganos portugueses em relação aos ciganos. Mas na observação participante por mim realizada, foi também perceptível que, a par deste racismo, os baixos níveis salariais, a existência de supervisão no trabalho assalariado e as 7 horas de trabalho diárias realizadas em espaços fechados, este último aspecto exigindo uma forte reconfiguração do seu habitus primário, principalmente no que diz respeito à disciplina, apresentam-se como fortes condicionantes de uma alternativa profissional ao seu modo de vida económico.

O que se extrai disso é que sempre foi oferecido aos ciganos, salvo algumas raríssimas exceções, as piores vagas de emprego, em trabalhos altamente desgastantes, subempregos, na verdade, de baixíssimos salários e jornadas de trabalho extensivas.

A precarização, quando se referindo à relação entre ciganos e trabalho formal, não se constituiu apenas nas condições de trabalho e renda, mas estende-se ao seu acesso, pois também precisavam exercer uma profissão21 que permitisse uma mobilidade rápida e constante, uma profissão que não criasse vínculos duradouros e tivesse fáceis condições de adaptabilidade aos territórios e sistemas econômicos: locais das feiras, e do qual, os instrumentos ou equipamentos para seu exercício fossem leves e relativamente fáceis de carregar de um lugar para outro.

Uma profissão que permitisse a integração familiar e fornecesse as condições adequadas para a educação profissional dos filhos, que herdariam naturalmente os talentos objetivos para a continuidade do exercício do labor familiar. Uma profissão também que exigisse poucos recursos financeiros para sua inserção nos preâmbulos do comércio de bens úteis e de valor de troca.

O negócio entre os ciganos repercute atividades econômicas que refletem condições de trabalho independentes da figura de “patrão”, resistência à proletarização e à alienação dos vínculos salariais; tendo a venda/troca como principal fonte de renda, o que se relaciona ao simbolismo de uma “vida em movimento”, autonomia na gestão de seu tempo e a versatilidade nos negócios.

Concordamos com Liégeois (1989), quando nos aponta que um emprego, nos termos de trabalho formal, se apresenta para os ciganos como uma necessidade e não um objetivo a ser perseguido, não como um sonho ou uma meta. “O trabalho não é um valor ou um aspecto da vida em que se pode obter realização pessoal, mas uma condição indispensável à sobrevivência quotidiana” (MENDES, 2005, p. 123).

A sobrevivência econômica não se desliga da solidariedade familiar e grupal, por isso marcas de resistência às exigências do mercado formal de trabalho e tentativas de sobrevivência nos modelos de vida coletiva, transformando as situações de exclusão em modos de resistência material e simbólicas.

Os ciganos têm plena convicção das exclusões econômicas a que estão expostos, fora do “modelo fordista” de trabalho desenvolvido nas sociedades capitalistas, afastados também das formas de proteção social por parte do Estado22. Assim, a família se apresenta enquanto unidade de apoio e proteção, representando uma instituição centralizadora e capaz de gerir o que o Estado lhes nega.

Cabe ainda destacar que considerável parte dos Calon na Paraíba, e em outros estados brasileiros, dependem dos benefícios da Previdência Social – aposentadorias –, como meio de subsistência dos núcleos familiares, complementando os recursos obtidos com os negócios.

Enfim, não se trata de atribuir aos ciganos pouca afeição ao “trabalho formal” ou pensá-los como membros de uma cultura irredutível e despreparada, mas destacar as especificidades vividas ante as formas de vulnerabilidade a que estão submetidos e as desigualdades criadas pela negação de direitos básicos por parte da sociedade envolvente, com a conivência do Estado brasileiro, cujos efeitos podem ser vistos no cotidiano de exclusões que os cerca.

Considerações finais

Ao ponderar sobre os impactos provocados por um conjunto de normativas políticas onde se incluem todas aquelas que visavam o controle, muitos povos foram excluídos das benesses do sistema capitalista, por não se inserirem nos moldes da chamada “classe trabalhadora”.

Esse contexto inclui o processo de declive profissional de ofícios laborais tradicionais, com o controle social e de leis locais, regionais e nacionais anticiganas, que justificavam os estereótipos e os processos de estigmatização sofridos por esses grupos.

As corporações de ofícios, em algumas localidades conhecidas como guildas, exerciam um controle extensivo e intensivo, tanto no que tange aos tipos de ofícios que podiam ser exercidos, como quanto a quais indivíduos poderiam exercê-los, assim como, estipulando quando, quanto e onde poderiam trabalhar.

Contudo, considerando a função social de cada ofício em seu determinado período histórico e social, concordamos que os ciganos durante razoável tempo se dedicaram aos processos produtivos artesanais e tinham os seus ofícios, e os produtos decorrentes desses, como atividades relativamente bem aceitas socialmente, chegando, muitas vezes, à maestria produtiva de determinados objetos ou serviços. Esse quadro mudou drasticamente com a passagem gradativa para o modo de produção capitalista, inicialmente com as revoluções comerciais e o controle das corporações de ofícios, culminando, em último grau, cada um com suas especificidades, com as revoluções industriais.

No que concerne aos discursos sobre uma provável tendência dos ciganos ao “desprazer com o trabalho”, observamos, primeiro, que tais alusivas fizeram parte dos processos de criação de estereótipos negativos por parte dos não ciganos, numa comparação desenvolvida a partir de perspectivas sobre moral, ordem, decência e adequação cultural. Em segundo lugar, é preciso considerar as representações sociais criadas para segregar, estigmatizar e excluir todo e qualquer diferente ou sujeito que não tomasse a forma daquilo que era tido como socialmente aceito e “comum”, categorizando aqueles que se recusavam a se adequar às regras de exploração econômica.

Nisto, observamos, não apenas entre os ciganos, uma crítica ao trabalho como fardo, uma ignomínia, uma representação da falta de dignidade humana, diretamente relacionada à condição escrava. A partir dessas considerações, podemos afirmar que, no Brasil, faltam políticas públicas de inclusão, que priorizem as suas próprias concepções de trabalho e renda. Faltam canais de escuta abertos aos ciganos, deixando que eles mesmos possam traçar os caminhos, meios e finalidades dos programas e projetos que envolvam seu grupo social. Enquanto isso não acontece, eles vão margeando as formas periféricas, precarizadas e informais de trabalho e renda, preenchendo os espaços sociais que restam, ou que não foram ainda absorvidos pela lógica da formalidade.

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Recebido em: 28/03/2019

Aceito em: 17/04/2020


1* Professora Associada do Departamento de Ciências Sociais e Programa de Pós-Graduação em Antropologia do DCS/UFPB. Líder do GEC- Grupo de Estudos Culturais do CNPq. E-mail: patriciagoldfarb@yahoo.com.br

** Mestre em Serviço Social pela UFPB. Professor da Rede Municipal de João Pessoa-PB. Membro do GEC- Grupo de Estudos Culturais. E-mail: acleciodantas@hotmail.com

Dando prosseguimento a pesquisas sobre ciganos no projeto intitulado “Os Ciganos no estado da Paraíba”, realizamos, entre 2013/2014, um mapeamento da população cigana no município de Juazeirinho/PB, e, nos anos 2014/2015, desenvolvemos a pesquisa intitulada “As representações sociais sobre os ciganos na internet”.

2 Falamos de pesquisas realizadas nas cidades de Sousa e Juazeirinho, na Paraíba.

3 Sobre estereótipos ver: Sousa e Barros, 2012.

4 Moscovici, 2003.

5 Grupo étnico é aquele definido como uma forma de organização social em populações cujos membros se identificam e são identificados como tais pelos outros (BARTH, 1969).

6 Segundo Seyferth (1995), a eugenia e o processo seletivo foram ideologias e políticas usadas para atestar a “inferioridade” das chamadas “raças inferiores”, como foi o caso dos ciganos.

7 Em 1601, a Inglaterra criou a chamada “Lei dos Pobres”. No Brasil, o governo de Getúlio Vargas cria a “Lei da vadiagem”, para punir os vadios e ociosos, que era usada pela polícia para deter e prender todos os “suspeitos” (KERSTENETZKY, 1999).

8 Em 1834, no Brasil, tornou-se obrigatório o trabalho, distinguindo os “pobres dignos” dos “indignos”, criando categorias morais que não condiziam com a realidade econômica do país.

9 As workhouses foram estabelecidas na Inglaterra no século XVII, seguindo a “Lei dos pobres”. Era uma casa de trabalhadores com regime prisional, onde se realizavam trabalhos improdutivos e exaustivos (MARX; ENGELS, 1982).

10 Leitura de mãos, forma de prever o futuro praticado em grande maioria pelas mulheres ciganas. Sobre tais proibições ver Moonen, 2011.

11 Instituição ainda em funcionamento e responsável pela edição de publicação de diversos livros, revistas, jornais sobre os ciganos no mundo. É uma associação internacional que se reúne anualmente e pode ser encontrada no endereço eletrônico: http://www.gypsyloresociety.org/.

12 Tal enunciado constitui-se numa tautologia, visto o próprio termo “cigano” ter sido durante muito tempo, a partir da Idade Média, representativo do nomadismo e, por sua vez, da própria condição de errante.

13 Plural da palavra Rom. A palavra Rom, que identifica os ciganos dos países balcânicos, é de origem hindu, que significa “homem” ou exatamente “pai de família” (PEREIRA, 2009).

14 Nome genérico que alguns grupos ciganos usam para indicar o não cigano.

15 Termo nativo usado para se referir aos processos de sedentarização (GOLDFARB, 2013).

16 O etnônimo do tipo ergonímico funciona como um adjetivo que liga o nome à área da vida laboral exercida. Tal adjetivo representa não só aquilo que o sujeito produz, mas vincula essa produção a um modo de vida, sendo uma denominação que traz origem na profissão tradicionalmente exercida.

17 Destacamos que os ciganos de Juazeirinho e os da cidade de Condado fazem parte da mesma família ampliada que se dividiu durante o período de sedentarização no Seridó e Sertão paraibano.

18 Um serviço de transporte de pessoas utilizando motocicletas.

19 Destacamos que não se trata de uma simples opção ou solução cultural, mas de medidas tomadas a partir dos diversos condicionantes políticos, sociais e históricos que os excluíram das “benesses” do sistema capitalista.

20 Entendido esse como uma atividade produtiva, remunerada e formal que opera no mercado de trabalho, como trabalho assalariado, devidamente cercada por todos os direitos legais do trabalho e de proteção contra os riscos desse.

21 Utilizamos neste trabalho o termo profissão como uma atividade de trabalho exercida por indivíduos de notório saber, e não como uma atividade que requer estudos de um dado conhecimento ou formação acadêmica, como as profissões de professor (Pedagogia), assistente social (Serviço Social), advogado (Direito) etc.

22 Por “modelo fordista”, referimo-nos ao modelo de desenvolvimento que passou a fazer parte dos sistemas capitalistas de economia, que inclui formas de produção e trabalho; marcado pelo desenvolvimento industrial, lucros e produção em alta escala, com trabalho mais mecânico e controlado (BRAVERMAN, 1980).

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 51 Julho/Dezembro de 2019, p. 145-163

OS PARÂMETROS ESTRUTURAIS E OS DESEQUILÍBRIOS
DE PODER QUE RECHAÇAM AS PRESCRIÇÕES
DE DESENVOLVIMENTO HUMANO DAS NAÇÕES UNIDAS:
uma crítica baseada em Celso Furtado

STRUCTURAL PARAMETERS AND POWER IMBALANCES THAT REJECT THE UNITED NATIONS HUMAN DEVELOPMENT PRESCRIPTIONS:
a critique based on Celso Furtado

_____________________________________

Maria José de Rezende*1

Resumo

Investigam-se, neste artigo, as (des) semelhanças entre duas abordagens prospectivas – a formulada nos Relatórios do Desenvolvimento Humano (RDHs) do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), das Organização das Nações Unidas (ONU), e a construída, por décadas de pesquisa e de atividades técnicas e políticas, por Celso Furtado – que estiveram presentes, de modo simultâneo, no final do século XX e início do XXI. Como parte de uma pesquisa documental mais ampla acerca do modo como os elaboradores dos RDHs comunicam intenções, interesses, ideologias, valores, agendas, prescrições e diagnósticos, visando criar políticas para alcançar o desenvolvimento humano, a reflexão, que por ora se apresenta, visa elucidar, com base nos últimos escritos de Celso Furtado, como os elaboradores dos RDHs de 1992, 1994 e 1996 constroem um caráter prospectivo genérico distanciado dos elementos históricos específicos e dos desequilíbrios de poder que impedem todo avanço rumo ao desenvolvimento humano.

Palavras-chave: Desenvolvimento social e humano. Devir. Perspectivas prospectivas. Parâmetros estruturais.

Abstract

This article investigates the (dis)similarities between two prospective approaches (the one formulated in the UNDP / UN Human Development Reports and the one built for decades of research and technical and political activities by Celso Furtado) which were present, simultaneously, at the end of the XX century and beginning of XXI. As part of a broader documentary research of how HDRs developers communicate intentions, interests, ideologies, values, agendas, prescriptions and diagnoses, in order to create policies to achieve human development, the present discussion aims to elucidate, based on the last writings of Celso Furtado, how the developers of the 1992, 1994 and 1996 HDRs construct a generic prospective character distanced from specific historical elements and the imbalances power that hinder any progress towards human development.

Keywords: Social and human development. Future. Prospective approaches. Structural parameters.

Introdução

Com inspiração nos escritos de Norbert Elias (1998, 1999b, 1999c), pode-se dizer que a densidade das reflexões acerca do desenvolvimento na América Latina, que gerou um fundo social de conhecimento substantivo, constitui-se material riquíssimo capaz de ajudar a desvendar a multiplicidade de vozes formadoras dos Relatórios do Desenvolvimento Humano (RDHs), os quais têm sido encomendados, encampados e publicados, desde ١٩٩٠, anualmente, pelo


1* Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP). Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: mjderezende@gmail.com

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 51, Julho/Dezembro de 2019, p. 164-179

Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). No âmbito de um único artigo não é possível abranger o amplo leque de debates e questões que desacatam e desafiam a abordagem prospectiva presente nos RDHs1.

Enrique Leff (2010, p.77), em Discursos sustentáveis, oferece elementos para classificar as prescrições dos ODMs (Objetivos do Desenvolvimento do Milênio), dos ODSs (Objetivos do Desenvolvimento Sustentável) e dos RDHs como séries de aconselhamentos prospectivos que visam a fazer inúmeras “projeções (idealizadas) do presente para o futuro”. As abordagens “prospectivas simulam” melhorias, idealizam um mundo melhor, que é negado pelas “estratégias de poder” e pelas condições insustentáveis “de degradação ambiental, de desigualdade social e de pobreza” (LEFF, 2010, p. 77). Degradação, desigualdades e pobreza que se manifestam tanto na área rural quanto na urbana.

Sem negar a relevância das abordagens prospectivas alimentadas também pelas produções realizadas nas Ciências Sociais, pode-se dizer que há muitas maneiras distintas de construir tais prospecções. É notório que Celso Furtado também construiu análises dessa natureza (1997, 1997a, 1997b, 1997c, 1997d) que foram se modificando perceptivelmente, ao longo do tempo, dependendo de como ele olhasse o futuro e as possibilidades de haver um devir mais voltado ao investimento no fator humano, no mundo rural bem como no mundo urbano, como forma de diminuir as disparidades sociais e a concentração de riqueza, de renda, de patrimônio, de recursos e de escolarização. Isso levou Celso Furtado (1992, 1998, 1999, 2002), nas décadas de 1990 e 2000, a um refinamento de sua abordagem prospectiva tida como pertinente para uma comparação com as perspectivas prescritivas do desenvolvimento humano presentes nos RDHs.

O objeto deste estudo são as abordagens prospectivas formadoras dos Relatórios do Desenvolvimento Humano de 1992, 1994 e 1996 e os desafios com os quais elas se deparam quando são confrontadas com as análises, também, prospectivas, que têm no seu centro a questão dos desequilíbrios de poder e dos vértices de tensões que minam os diagnósticos, as prescrições e os modelos atuais de projeções de futuro. Celso Furtado registrou em artigos (1992a, 1999, 2000, 2000a, 2004), livros (1992, 1998a, 1999a, 2002) e entrevistas (FURTADO, 1998, 2002a, 2003, 2003a, 2004, 2004a) divulgados na década de 1990 e no início de 2000, compondo um conjunto de análise prospectiva que lidava com os desafios postos pelos polos de decisão e de poder vigentes no limiar do século XXI.

As narrativas e os argumentos dos RDHs da década de 1990 tentam impulsionar ações, práticas e procedimentos capazes de promover o desenvolvimento humano. Os produtores desses documentos não enfrentam, nos moldes sugeridos por Celso Furtado, os bloqueios estruturais (concentração extrema de rendas, riquezas, terras, patrimônios, poder, recursos e oportunidades) que funcionam como “efeitos-travas”, para utilizar uma expressão cunhada por Norbert Elias (1994), a qualquer tipo de desenvolvimento social e humano.

Sem dúvida, pela própria natureza, os respectivos documentos visam a sugerir aos governantes, às lideranças políticas, às organizações da sociedade civil e aos organismos internacionais que encontrem formas de dar impulso ao investimento nas melhorias sociais; eles não estão voltados a esmiuçar os bloqueios que impedem a efetivação do desenvolvimento humano2 – entendido como a ampliação da segurança econômica (alimentar, renda, empregabilidade), dos direitos, das liberdades, da participação política, da escolarização, do acesso à terra, à saúde e à moradia adequada.

Esses relatórios foram selecionados em vista das temáticas por eles trazidas. São discussões sobre desenvolvimento humano, crescimento econômico, mercado, dívida externa, formas de cooperação internacional, trabalho, consumo, globalização, relações entre nações pobres e nações ricas, industrialização periférica, desigualdades, pobreza, expansão tecnológica, entre outras. Foram esses, dos primeiros aos últimos escritos, os temas-chave de Celso Furtado.

Os RDHs de 1992, 1994 e 1996:

Como lê-los à luz das reflexões de Celso Furtado?

A proposta de análise do desenvolvimento, calcada não somente em indicadores econômicos e de renda, mas também em outros aspectos sociais e humanos (escolarização, longevidade, habitação, saneamento, direitos, participação política), resultou do empenho de muitos indivíduos, grupos e segmentos – de cientistas, técnicos, lideranças políticas, organizações da sociedade civil – para encontrar formas de desenvolvimento que dotassem as pessoas de condições sociais e políticas para melhorar tanto os seus rendimentos como também as suas participações na sociedade. É o longo debate sobre o mau e o bom desenvolvimento. Essa distinção só é possível de ser feita porque “hoje dispomos de um aprofundado conhecimento das estruturas econômicas e sociais” (FURTADO, 2004b, p. 3). O Brasil, por exemplo, seria “um caso conspícuo de mau desenvolvimento” (FURTADO, 2004b, p. 3) expresso na “emergência de uma classe média afluente, em meio à pobreza, quando não miséria, de praticamente um terço da população” (FURTADO, 2004b, p. 3).

Norbert Elias (1999, p. 157) afirma que o percurso do conceito de desenvolvimento torna explícita uma trajetória que vai da melhoria “do rendimento da maioria – e não do aumento da riqueza de um grupo de pessoas” somente - até a geração de conhecimentos, valores, padrões de pensamento, indagações e reflexões capazes de construir diagnósticos e prognósticos acerca dos processos de mudanças.

Do percurso seguido pela ideia de desenvolvimento, que inclui o crescimento econômico e da renda, e a compreensão dos fatores impeditivos ou impulsionadores dos processos de melhorias sociais para os mais pobres é que emergem as abordagens prospectivas que têm em seu núcleo o objetivo de construir um futuro distinto do presente. As análises prospectivas podem ser histórico-processuais e, neste caso, buscam métodos de investigação e construção de perguntas que demandam investigações não apenas das condições atuais (ELIAS, 1998).

As análises histórico-processuais, como as de Furtado, procuram compreender os bloqueios sociais, econômicos e políticos ao desenvolvimento social que foram construídos ao longo de um dado processo histórico. Há ainda as abordagens prospectivas, como as contidas nos RDHs, que partem de “ideais centrados em certas sociedades de hoje” (ELIAS, 1999, p. 166). Neste caso, os diagnósticos e prognósticos contêm uma carga exagerada de idealizações que levam as proposições sobre desenvolvimento a se centrarem em “(...) esforços [que] se dirigem menos para a compreensão e explicação daquilo que realmente acontece e para a elaboração de um diagnóstico, do que para a elaboração de um esperançoso prognóstico” (ELIAS, 1999, p. 162).

Tanto a abordagem prospectiva de Celso Furtado quanto a dos RDHs são esperançosas, todavia, enquanto aquela está mais centrada na compreensão histórico-processual dos emperramentos e dos bloqueios, que são constituídos e, ao mesmo tempo, constituintes dos parâmetros estruturais, que regem as sociedades latino-americanas, em geral, e a brasileira, em particular, esta, a dos RDHs preocupa-se mais em detectar ações, práticas, procedimentos e políticas em andamento que possam reiterar prognósticos acerca dos avanços rumo ao desenvolvimento humano. “El curso actual no es inevitable. Si se reconocen los problemas, se acepta la responsabilidad en su creación y se toman medidas para afrontarlos, incluyendo algunas muy difíciles, es posible dar marcha atrás y asegurar la salud y el bienestar de toda la población mundial” (PNUD/RDH, 1992, p. 45).

Ao lerem-se os RDHs, percebem-se preocupações em dosar, na exposição das narrativas e argumentos, as dificuldades de avançar rumo ao desenvolvimento humano3. Essa é uma estratégia argumentativa que abre espaços maiores para as prescrições de ações e políticas e para a exaltação daquelas práticas consideradas acertadas. Em diversos momentos, os elaboradores dos RDHs (PNUD/RDH, 1992, 1996, 1998, 1999, 2001, 2003) insistem na positividade de medidas que estariam construindo investimentos favoráveis ao desenvolvimento humano, o que leva a uma confusão, pela natureza dos próprios documentos, entre um ideal a ser alcançado e a realidade. Em um de seus trechos consta: “En los lugares donde la descentralización ha funcionado — como en algunas zonas de Brasil, Jordania, Mozambique y los estados Indios de Kerala, Madya Pradesh y Bengala occidental — ésta ha dado lugar a mejoras muy significativas” (PNUD/RDH, 2003, p. 2).

Celso Furtado, em artigos, livros e entrevistas nos últimos anos do século XX e no início do século XXI, insistia que a incúria referente ao fator humano, ao longo da história do Brasil, persistia e, portanto, comprometia um devir voltado para melhorias sociais e humanas. Ele sugeria, tendo em vista a situação do Brasil, ponderação nas afirmações que atestavam, euforicamente, melhoras sociais significativas ao longo da década de 1990 e início da de 2000 (FURTADO, 1992; 1999a; 2000). As estruturas sociais calcificadas e as profundas disparidades, desigualdades e pobreza (FURTADO, 2000), no âmbito rural e no urbano, já seriam elementos suficientes para pôr em dúvida, com base nos estudos de Furtado, a euforia sustentada em passagens dos RDHs, segundo as quais o Brasil caminhava, indubitavelmente, para melhoras sociais incontestes.

Enquanto os elaboradores dos RDHs expunham os indicadores sociais e sobre eles argumentavam que era possível verificar sinais expressivos de melhoramentos, Celso Furtado (1992a, 1998, 2000a, 2003, 2003a, 2004, 2004a, 2004b) seguia insistindo no quanto seria difícil e desafiador construir processos duradouros de combate às desigualdades sociais e políticas que impediam a emergência de um devir não reafirmador das “tendências atávicas da sociedade (brasileira) ao elitismo, à exclusão social” (FURTADO, 2002, p. 37), à concentração da renda, da terra, da riqueza e do poder. Em tais condições, a viabilidade do desenvolvimento humano, advogada pelos RDHs, seria remota ainda que não impossível.

Desde o seu surgimento, as diversas vozes que constroem os RDHs procuram, a todo custo, registrar avanços que possibilitem às nações caminharem rumo ao desenvolvimento humano. Em razão das ações – desenvolvidas através tanto dos programas Bolsa Escola, Fome Zero, Bolsa Família, quanto das políticas de apoio à agricultura familiar, aos Direitos Humanos e às organizações que resultaram nos Orçamentos participativos4 – que foram postas em curso nas décadas de 1990 e 2000, o Brasil tornou-se o país-chave do eixo sul a ser focado, nos RDHs, da primeira década do século XXI e da última do século XX, como exemplo de nação que, não obstante construir algumas mudanças, permanecia sendo um dos países mais díspares do mundo. “Existen considerables disparidades de ingresos en el interior de los países. La peor disparidad nacional es la de Brasil: 26 veces entre el 20% más rico de la población y el 20% más pobre, de acuerdo con su ingreso per cápita” (PNUD/RDH, 1992, p. 21).

Todavia, os formuladores do RDH de 1992 assinalavam que as disparidades eram – no âmbito mundial – muito mais acentuadas do que no Brasil. Daí, segundo os elaboradores dos documentos encampados pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, a necessidade de que os relatórios se detivessem na construção de uma agenda para abrir espaço “crescente de oportunidades internacionais” (PNUD/RDH, 1992, p. 85). Tais agendas deveriam pôr a descoberto as disparidades de renda, de crescimento econômico, de oportunidades no mercado, de capital humano, de ajuda e de cooperação internacional (PNUD/RDH, 1992).

No texto Globalização das estruturas econômicas e identidade nacional (1992a) e no livro O capitalismo Global (1998a), Celso Furtado (1992a, p. 1) afirmava que os ajustamentos em curso no final do século XX exigiam uma visão tanto global quanto local das relações políticas e econômicas, mas isso teria de ser combinado com uma “visão prospectiva que nos habilitaria a pensar o futuro”. Refletindo sempre a partir do entendimento de que as nações, os grupos, as organizações sociais, os Estados, as empresas transnacionais, os organismos internacionais são sujeitos históricos, ele expunha os diversos vértices de tensão que desequilibravam a balança do poder no âmbito externo e interno. Os desequilíbrios estruturais no mundo econômico e a concentração de poder nas mãos de alguns países e empresas transnacionais (FURTADO, 1981) poriam em suspeição a afirmação contida no RDH de 1992 (FURTADO, 1981, p. 85), sobre “a brecha crescente de oportunidades internacionais” que estariam abertas na década de 1990.

Os formuladores dos RDHs se atêm de modo bastante específico e singularizado aos desequilíbrios estruturais da economia, aos jogos configuracionais5 que estruturam as relações de poder mundial, às tensões políticas insolúveis entre países, regiões, continentes, empresas transnacionais, organismos internacionais, entre outras. Não se trata de supor que eles ignorem os vértices de tensões na economia e na política mundial. Eles trazem para dentro da argumentação os desequilíbrios de poder, fazendo-o, todavia, de modo que as tensões e os desequilíbrios pareçam contornáveis.

Os produtores do RDH de 1992 (p. 23-24) dão destaque às dificuldades de negociação dos países do eixo sul nos mercados internacionais. Referem-se aos poucos bens e serviços que esses países têm a oferecer, ao fato de serem exportadores de produtos primários (“los cuales representan muchas veces el 90% de las exportaciones de países africanos y el 65% de las de países de América Latina”), às dificuldades de gerarem divisas substantivas, às altas taxas de juros que culminam em explosão da dívida externa que penaliza mais e mais os países mais pobres. “Como resultado de la reducción de sus precios de exportación, los países en desarrollo pagaron efectivamente una tasa de interés real promedio de 17% durante la década de los años ochenta, en comparación con el 14% pagado por las naciones industrializadas” (PNUD/RDH, 1992, p. 23).

Após apresentarem todas as debilidades, já que evitam falar em desequilíbrio de poder, porque esse tem uma conotação muito mais irreversível que a noção de debilidade, os formuladores do RDH de 1992 passam a insistir na possibilidade de reversão dessas fragilidades dos países do eixo sul. E, de que maneira isso poderá ocorrer? Através do melhoramento de “sus perspectivas mediante políticas sólidas de manejo econômico e inversiones cuantiosas en capital humano”. As debilidades das nações parecem reversíveis se os países forem capazes de melhorar “su[s] ventaja[s] competitiva[s] y fortalecer su[s] posición[es] en los mercados internacionales” (PNUD/RDH, 1992, p. 24). Mas para que isso ocorra “habrán de afrontar un desafío doble: ampliar el nivel básico de desarrollo humano y concentrar energías en áreas más avanzadas” (PNUD/RDH, 1992, p. 24).

Em artigo publicado também em 1992, Celso Furtado chamava a atenção para as extremas desigualdades de poder presentes no contexto político internacional. O predomínio das “empresas internacionalizadas, as quais balizarão o espaço a ser ocupado por atividades de âmbito local e/ou informais” (FURTADO, 1992a, p. 2) era para ele uma das muitas dificuldades que as propostas de desenvolvimento social enfrentariam. De certa forma, seriam essas as empresas que estabeleceriam o grau e o tipo de investimento, de intervenção e de exploração nas diversas partes do mundo. Era, então, evidente que “as áreas desenvolvidas e subdesenvolvidas estarão assim estruturalmente integradas numa compartimentação do espaço político que cristaliza as desigualdades sociais” (FURTADO, 1992a, p. 2).

O modo como os formuladores do RDH de 1992, nos capítulos 3, 4 e 5, expõem a forma de expressão das disparidades internacionais está pleno de estratégias que evitam o enfrentamento das consequências econômicas, sociais e políticas nos moldes assinalados por Furtado, ou seja, tendo-se em vista os parâmetros estruturais e os jogos de interesses oriundos do “avanço da internacionalização dos circuitos econômicos, financeiros e tecnológicos” (FURTADO, 1992, p. 2) que tem aprofundado as condições de desigualdades no final do século XX e no limiar do século XXI. Isso não significa, de modo algum, que os produtores dos relatórios não se atenham ao fato de que a “distribuição do PNB [Produto Nacional Bruto]6 nos últimos 30 anos” (PNUD/RDH, 1992, p. 84) tenha revelado um crescimento brutal das desigualdades econômicas e de poder. “En 1960, el 20% más rico recibía 30 veces más que el 20% más pobre; en 1989, la diferencia era de 60 veces” (PNUD/RDH, 1992, p. 85).

A narrativa formadora do RDH de 1992, capítulo 3, por exemplo, está plena de dados sobre as disparidades de bens, de oportunidades e de acesso ao mercado. É uma forma encontrada, pelos construtores do documento, para enfatizar, de modo simultâneo, as consequências das disparidades para pessoas e nações. São constatadas diferenças e disparidades econômicas entre países e regiões, mas não há um tratamento detalhado do modo como tais condições tendem a se perenizar com a “globalização das estruturas econômicas” (FURTADO, 1992a, p. 2). Isso não impede os produtores do relatório de perguntar como inverter essa lógica ultraconcentradora de riquezas e oportunidades de países e pessoas. “A los niveles tanto nacional como internacional el interrogante básico que debe plantearse en este momento es: ¿Cómo puede invertirse esta tendencia?” (PNUD/RDH, 1992, p. 95).

Todavia, ainda que a pergunta seja feita de modo a suscitar reflexões e respostas sobre a inversão da tendência cumulativa de disparidades, nota-se que não há uma tentativa de resposta acerca disso, no decorrer do documento. Tanto que, após esse questionamento, os elaboradores do relatório de 1992 passam a discutir as disparidades do capital humano. Há, nitidamente, uma mudança no rumo da discussão. E isso tem de ser analisado em seu significado político. Levar adiante uma tentativa de explicar como seria possível inverter esta tendência geradora de disparidades implicaria enfrentar os desequilíbrios de poder exacerbados pelo modo como os espaços econômicos e políticos se estruturam na reprodução das muitas formas de desigualdades.

E por que, após perguntarem como mudar o rumo do processamento das desigualdades atuais, os formuladores do RDH de 1992 entram na temática sobre as disparidades do capital humano? Porque “a estrutura internacional de poder evoluiu para assumir a forma de grandes blocos de nações-sedes de empresas transnacionais que dispõem de rico acervo de conhecimento além de pessoal capacitado” (FURTADO, 1992a, p. 4). E é evidente que o capitalismo financeiro e tecnológico está assentado na hipervalorização de capital de conhecimento “em detrimento dos bens tradicionais” (FURTADO, 1992a, p.4), o que resulta em tensões e clivagens insolúveis no que diz respeito ao poderio de grupos, organizações e países.

No entanto os produtores do relatório de 1992 e 1994 parecem obstinados em fazer parecer, muitas vezes por meio de silêncios, que as diferenças e disparidades são solucionáveis. Daí não trabalharem com as clivagens existentes entre os blocos de países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Os argumentos contidos nos RDHs do início da década de 1990 empenham-se em mostrar que havia possibilidades objetivas de gerar consensos, no que concerne à diminuição das disparidades econômicas e políticas, entre as muitas nações dos eixos norte e sul. Celso Furtado (1992a, p. 4) afirma “(...) para escapar a esse sistema de forças articuladas planetariamente, é necessário que se conjugue vontade política fundada em amplo consenso social com condições objetivas que poucos países do terceiro mundo reúnem atualmente”.

No centro das interpretações de Celso Furtado (1981, 1992a, 1998, 1998a, 2002a) sobre os obstáculos econômicos e políticos, que bloqueiam as possibilidades de estabelecimento de outra “lógica das transações internacionais”, está a questão dos desequilíbrios de poder. Desequilíbrios esses que aparecem nos RDHs, mas de uma forma esvaziada de substancialidade política, porquanto os problemas, como a queda dos “preços reais dos produtos primários exportados pelos países do terceiro mundo (...) e o desmantelamento dos tênues mecanismos de defesa dos preços” (FURTADO, 1992a, p. 5), bem como a queda da renda nos países pobres, as dificuldades técnicas, a não habilitação da mão de obra, entre outras questões, parecem muito mais fáceis de solucionar do que o são de fato.

No caso das soluções pautadas na melhoria do que os elaboradores dos relatórios chamam de capital humano – o qual está centrado na melhoria da saúde e da educação, que são geradoras de trabalhadores mais bem preparados para ajudar a impulsionar a economia dos países do eixo sul – nota-se que as narrativas constituidoras dos documentos tendem a fazer parecer que não seria difícil formar esse capital humano, desde que houvesse um investimento maior na educação e na saúde das pessoas mais pobres. Embora isso faça todo sentido, pois “para participar da distribuição da renda, a população necessita estar habilitada por título de propriedade ou pela inserção qualificada no sistema produtivo” (FURTADO, 2002, p.16), há elementos essenciais não contemplados nos diagnósticos e prescrições dos RDHs, tais como a existência de “sociedades em que esse processo de habilitação está bloqueado” (FURTADO, 2002, p. 16-7) por condições de desigualdades sociais, políticas e educacionais extremas. Pode-se indagar: O que significa, nas propostas de mudanças feitas nos RDHs, dar centralidade à correção das disparidades relacionadas ao capital humano?

Tendo como norte algumas reflexões, postas por Celso Furtado (1999a, 2000, 2000a, 2003, 2003a, 2004b) no final do século XX e início do XXI, pode-se dizer que o investimento no fator humano deve ser pensado em primeiro lugar como uma maneira de corrigir as disparidades salariais (FURTADO, 1999a) e a perene manutenção de salários aviltantes de grande parte dos trabalhadores. Salários que, por serem baixíssimos, interessam às empresas transnacionais, razão porque deslocam suas produções industriais para aquelas áreas do mundo que pagam cada vez menos (FURTADO, 1981, p. 47) e subtraem cada vez mais direitos.

Pode-se dizer, então, que situar a discussão do combate às disparidades quanto ao capital humano no âmbito somente da melhoria da produtividade, nos países do hemisfério sul, é uma forma de despolitizar questões essenciais tais como: a superexploração do trabalho nos países periféricos; o sistema de divisão do trabalho internacional vigente; a lógica dos mercados, das transações e dos preços internacionais; as barreiras internas e externas antepostas aos trabalhadores, os desequilíbrios de poder e as desigualdades em múltiplos níveis (econômicos, sociais e políticos). Tais elementos são obstáculos a toda e qualquer possibilidade de melhoramento do fator humano, possível de ser concebido como “promotor do bem-estar da massa da população” (FURTADO, 1999a, p. 12).

A noção de capital humano presente no capítulo 3 do RDH de 1992 é distinta da noção de fator humano de Celso Furtado. Não se trata, porém, de um problema somente semântico. Trata-se de um encaminhamento político para a questão, tanto que os elaboradores do RDH de 1992 insistem que, nos últimos anos, teria havido progresso concernente às melhorias da vida da população com mais acesso à educação e à saúde. Seriam, então, perceptíveis melhoras expressivas no capital humano (maior escolarização, longevidade, consumo calórico e expectativa de vida ao nascer).

Celso Furtado (1999a, 2000, 2000a, 2003, 2003a), por sua vez, ressaltava que esses avanços tendentes a ser pontuais e descontínuos, estavam bloqueados pelas desigualdades de renda, riqueza, patrimônio e escolarização. Por isso, a noção de fator humano é construída em vista, para utilizar uma expressão de James Ferguson (2012), de uma artilharia política e não de uma “maquinaria7 antipolítica”. James Ferguson (2011), em pesquisa em Lesoto (África), fez uma ampla crítica aos diagnósticos e prescrições que acabam por “remover a política da vida das pessoas”. São fórmulas de desenvolvimento denominadas, por ele, de maquinaria antipolítica. As agências internacionais geram, segundo ele, uma verdadeira artilharia antipolítica em nome do desenvolvimento. Celso Furtado (1992) estava, a todo momento, criticando as prescrições assentadas em formas de engenharia social que esvaziavam o papel político dos diversos agentes sociais. Não se estão equiparando as discussões de Celso Furtado e James Ferguson. Elas são muito distintas em vários aspectos, mas há alguns traços semelhantes que podem ser comparados, principalmente acerca dos contextos específicos dos países periféricos (FURTADO, 1981).

A pobreza, a fome endêmica, a inacessibilidade à moradia adequada (com saneamento e água potável), à saúde, à escolarização, e todas as formas de desigualdades são pensadas como resultados de intensos processos tanto de concentração de riqueza como de poder. Não há solução puramente técnica ou tecnocrática livre do enfrentamento político. Pode-se dizer que a noção de formação do capital humano exposta nos RDHs parece simplificar as coisas ao indicar que é possível caminhar rumo à expansão do capital humano ainda que não se enfrente satisfatoriamente a concentração de renda, terra, riqueza e poder. A própria noção de capital humano contém uma carga de instrumentalidade técnica da pessoa em favor do desenvolvimento.

Últimas Considerações

Os elaboradores dos RDHs dão destaque à necessidade de que as disparidades sejam pensadas não só no âmbito externo, mas também no seio de cada país8. Em vista disso, eles trazem muitos dados sobre as diferenças salariais, de renda, de acesso a serviços educacionais, de saúde, entre outros. Consta no RDH de 1996 uma preocupação com o acesso à terra. A ideia divulgada é que o desenvolvimento humano só pode expandir se houver uma melhor distribuição da terra, a qual não seria somente uma fonte de sustento, mas também uma fonte de reconhecimento social (PNUD/RDH, 1996, p. 112-113). A distribuição díspar da terra, também urbana, seria fonte das muitas dificuldades de expandir o desenvolvimento humano. “A pobreza em massa, característica do subdesenvolvimento, tem com frequência origem numa situação de privação do acesso à terra e à moradia” (FURTADO, 1999, p.12).

Celso Furtado (1997a, 1997b), desde a década de 1950, insistia que o desenvolvimento social dependia da reforma agrária. Há uma similitude entre suas posições e as dos formuladores do RDH de 1996 que desenvolveram um tópico sobre o acesso à terra e o desenvolvimento humano. Ficou registrado no relatório de 1996 um conjunto de dados (índice de Gini, por exemplo) sobre: o grau de concentração da propriedade da terra em diversos países; a carência de programas de ajuda governamentais para os pequenos agricultores poderem levar adiante suas atividades agrícolas; as taxas de êxitos e insucessos nas políticas de assentamentos agrícolas; e a discriminação das mulheres nos processos de assentamentos e reformas agrárias. Todos esses problemas careciam, como consta no RDH de 1996, de soluções para que houvesse impulso no crescimento econômico equitativo e no desenvolvimento humano.

Apesar de serem de extrema importância todas as questões levantadas pelos formuladores do RDH de 1996, é perceptível que não há enfrentamento político aos entraves antepostos a uma reforma agrária capaz de reduzir as disparidades e favorecer o desenvolvimento social e humano. Tais entraves se manifestam nos desequilíbrios extremos de poder entre os controladores de extensas faixas de terras e os pequenos agricultores, refletindo tanto nas instituições locais como nas nacionais. Por isso, para Celso Furtado (2004b, p. 4) “(...) [o] verdadeiro objetivo da reforma agrária é liberar os agricultores para que se transformem em atores dinâmicos no plano econômico”.

Essa posição de Celso Furtado expressa uma crítica ao modo como, na maioria das vezes, mesmo discussões favoráveis à reforma agrária acabam por justificar suas posturas com argumentos produtivistas, operacionais, técnicos e inclusivos no que se refere a uma atividade econômica que retiraria as pessoas da pobreza extrema e da miséria. Celso Furtado (1998) considera que esse não é o melhor caminho para abraçar a tese da necessidade de uma melhor distribuição da terra. A melhor via é aquela que põe em relevo que o acesso à terra pode estimular a participação política e a geração de novos agentes com capacidade de impulsionar o melhoramento do fator humano. Uma nova estrutura agrária é imprescindível não só porque estimula “a oferta de alimentos de consumo popular” (FURTADO, 2004b, p. 4), mas também pelo fato de gerar novos agentes políticos que sejam habilitados a participar das contendas econômicas e políticas de suas localidades, regiões e países.

Em síntese, pode-se dizer que, em todos os aspectos em que seja possível comparar a abordagem prospectiva contida nos relatórios e a abordagem prospectiva de Celso Furtado, aparecem diferenças relacionadas ao enfrentamento substantivo dos desequilíbrios de poder e demais parâmetros estruturais (concentração de renda, de riqueza, de terras, de recursos etc.) que alimentam, ano após ano, década após década, século após século, o mau desenvolvimento, entendido como aquele que transforma todo processo de geração de renda, riqueza e recursos (materiais e imateriais) em benefícios de alguns e em miséria e pobreza de muitos.

A abordagem prospectiva de Celso Furtado (2002) assenta-se na sua convicção de que a pobreza é resultado tanto da concentração de renda, do patrimônio e do poder quanto da forma de organização institucional expressa no modo como o Estado tem sido direcionado para atender, maiormente, os interesses de alguns segmentos e setores que têm, no consumo supérfluo, a principal razão de suas práticas e ações espoliativas. As elites têm ajudado a moldar uma lógica econômica altamente incapaz de traçar caminhos duradouros de combate à pobreza, a qual se manifesta não somente pela fome endêmica (FURTADO, 2002), mas também pela falta tanto de habitação adequada quanto de acesso à saúde e à escolarização (FURTADO, 2002). “A precariedade educacional foi destacada, por ele, como um elemento central da perpetuação da pobreza e das desigualdades” (REZENDE, 2014, p. 20).

Em seus últimos escritos (FURTADO, 1998a, 2002), há uma preocupação em deixar registrado que não eram inócuas as prescrições resultantes das abordagens recorrentes nos documentos das Nações Unidas a respeito das capacidades, porém era necessário combinar tais prospecções de desenvolvimento humano com uma luta política e institucional para desconcentrar o patrimônio, a renda e o poder. Essas concentrações acabam por se constituir em bloqueios instransponíveis para o desenvolvimento humano, formador de capacidades sociais e políticas. Não obstante, na América Latina como um todo, era muito intrincada qualquer tentativa de efetivação de políticas norteadas pela expansão das capacidades tal como constava nos RDHs. Muito menor era, todavia, a possibilidade de combinar essa efetivação com medidas distributivas de renda e recursos.

As privações decorrentes da pobreza extrema, que penalizavam muitos indivíduos no continente, tinham origem nos parâmetros estruturais e por isso “não encontra[vam] solução por meio dos mecanismos dos mercados” (FURTADO, 1999, p. 12). Segundo ele, era preciso investir, maciçamente, “na formação de gente” (FURTADO, 2002, p. 19). Só, assim, as pessoas poderiam participar das contendas e das disputas para direcionar as políticas em favor de melhores equilíbrios de poder. Sem esses equilíbrios, o Brasil e os demais países latino-americanos continuariam a perenizar exclusões e desigualdades em escalas descomunais, que invalidariam toda e qualquer tentativa de ampliação do desenvolvimento social e humano.

Note-se que Celso Furtado, nos seus textos da década de 1990 e de 2000, destacava o alto grau de instabilidade interna e externa, que a concentração de patrimônio, riqueza e poder vinha produzindo no mundo atual. Solucionar, nessas condições, ainda que em parte, os problemas gerados pela pobreza e pelas desigualdades, era cada vez mais difícil. Isso porque não se tratava apenas do aumento do nível de renda do país. “Hoje [2002] o Brasil tem uma renda dez vezes maior do que tinha quando comecei [meados do século XX] a estudar esses problemas, mas tem também maiores desigualdades, e os pobres continuam (...) pobres” (FURTADO, 2002, p. 21).

As prescrições de ampliação do desenvolvimento social e humano teriam de considerar, indubitavelmente, as muitas dificuldades, repetidamente demonstradas, de realização de reformas tributárias, que indicassem no seu teor e essência a intenção de combater a pobreza e as desigualdades. Um dos pontos de distanciamento entre as prescrições estabelecidas nos RDHs – as quais foram inspiradas na abordagem das capacidades de Sen9 – e as prospecções de Celso Furtado está no seguinte: os formuladores do documento do PNUD estão em busca de ações que possam “aumentar a renda e as oportunidades dos mais pobres sem que isso signifique, necessariamente, subtrair a riqueza dos mais abastados” (REZENDE, 2014, p. 20). Para Celso Furtado, isso seria impossível, uma vez que, para ele, “sem transformações estruturais profundas (desconcentração patrimonial, distribuição de renda, de recursos e de poder), não (...) é possível alcançar processos habilitadores e capacitadores” (REZENDE, 2014, p. 20).

Entre muitas outras questões, que poderiam dar azo a uma ampla comparação entre a abordagem prospectiva presente nos relatórios e a abordagem prospectiva de Celso Furtado, merece relevo o que o RDH de 1992 destacou sobre as “desigualdades de oportunidades econômicas [expressas] nos investimentos estrangeiros diretos (...) e nas barreiras comerciais que afetam [alguns] países empenhados em atividades industriais e agrícolas” (REZENDE, 2014, p. 42). Os elaboradores desse documento demonstravam preocupação não só a respeito de como se processavam as exportações e como se faziam os investimentos das empresas multinacionais, que favoreciam os países ricos, mas também como surgiam as crises econômicas, que impactavam sobremaneira os países do eixo sul e bloqueavam tanto as suas possibilidades de caminhar rumo ao desenvolvimento humano quanto criavam a necessidade de empréstimos do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, que impunham regras draconianas aos países dependentes de tais aportes financeiros. Pode-se perguntar: qual era a questão que alimentava essas preocupações contidas nesse RDH? Eram aquelas relacionadas à necessidade de superar as dificuldades de investimento gerador de renda e emprego.

Não há dúvida de que todas essas questões foram muito exploradas por Celso Furtado ao longo de décadas. Ele repetiu diversas vezes que “o desenvolvimento só é efetivo se a economia puder contar com mercados em expansão” (FURTADO, 1998, p. 26). De algum modo, os produtores do RDH de 1992 estavam dizendo que o desenvolvimento humano teria grandes dificuldades de se efetivar com um cenário econômico internacional instável e inteiramente desfavorável ao combate à pobreza. Cabe, nesse caso, uma reflexão feita por Furtado em O Capitalismo Global (1998a). [“Seria necessário], expunha ele, explicar de que maneira os mercados se ampliariam no quadro de uma revolução tecnológica que [gera] a retração da demanda de mão-de-obra e da renda da massa dos trabalhadores” (FURTADO, 1998a, p. 27).

Os técnicos que produziram o RDH de 1992 não respondiam a essa questão posta por Furtado. Eles procuravam fazer prognósticos considerados executáveis nesse quadro econômico internacional dificílimo para os trabalhadores mais pobres. O que não significava que eles não demonstravam as condições visivelmente deterioradas naqueles países que “depend[iam] da venda de produtos primários, [onde] todo e qualquer processo de deterioração nos preços elevam as dificuldades das nações e de seus habitantes” (REZENDE, 2014, p. 46). De certa forma, notam-se, em seus diagnósticos e prognósticos, preocupações já bastante debatidas por cientistas sociais latino-americanos, ao discutirem as dificuldades – geradas pelo processo de globalização e de financeirização10 – de expansão de um desenvolvimento industrial que fortalecesse regiões e países inseridos numa economia internacional (BACELAR DE ARAÙJO, 1999, 2010, 2010a) calcada na expansão dos poderes globais tecnológicos e financeiros (FURTADO, 1998a).

Enquanto os formuladores dos RDHs se esquivam de enfrentar tais questões, Tânia Bacelar de Araújo e Celso Furtado são assertivos quanto à necessidade de estabelecer prescrições que levem em conta os reveses criados pelos interesses políticos ligados à financeirização e à expansão tecnológica responsáveis pelo fato, segundo Tânia Bacelar de Araújo (1999, 2010a), de os ativos produtivos perderem, mais e mais, espaço para os ativos financeiros. Explica ela: “Quando a gente fala em desenvolvimento, está falando (...) da produção material, da inserção das pessoas na vida produtiva do país” (BACELAR DE ARAÚJO, 2010a, p. 28). E o problema é que “a economia mundial hoje se move em outra escala. Os ativos que estão na escala financeira são muito maiores do que os ativos que estão na escala produtiva” (BACELAR DE ARAÚJO, 2010a, p. 28). Assim, toda proposta de desenvolvimento humano encontra-se obstaculizada por um processo de financeirização e tecnização, para utilizar uma expressão de Norbert Elias (2006), que tem aprofundado as desigualdades, a pobreza, a inclusão precária no mundo do trabalho e o desemprego.

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Recebido em: 08/05/2019

Aceito em: 17/04/2020


1 Sobre os muitos impactos da abordagem prospectiva presente nos RDHs, ver: Zincke e Gonzáles (2006).

2  Mahbub Ul Haq (1995), que foi o idealizador dos RDHs, contou com a ajuda de Amartya Sen (2005; 2011) no processo de criação e implantação desses documentos. As abordagens do desenvolvimento humano presentes nos relatórios, ainda que não idênticas, possuem uma larga influência das pressuposições de ambos.

3 Neste artigo, não é possível entrar no debate sobre desenvolvimentismo, neodesenvolvimentismo e pós-desenvolvimentismo. A refutação das teses pós-desenvolvimentistas (ESCOBAR, 2007; BRETÓN; GARCÍA; ROCA, 1999) foi feita, no Brasil, por José Eli da Veiga (2001, 2005, 2006, 2006a). Na vertente do desenvolvimento sustentável, também oponente ao pós-desenvolvimentismo, estão os escritos de Ignacy Sachs (2002, 2004).

4 São muitas as discussões nas Ciências Sociais sobre as melhorias pelas quais o Brasil estaria passando na década de ١990 e 2000. Entre outras, ver: Lavinas e Garcia (2004) eIncao (2001).

5 Nos moldes postos por Norbert Elias (1999a), os Estados, os organismos internacionais, os movimentos sociais, os sindicatos, os governos, entre outros, formam configurações interdependentes.

6 O PNB é formado por todas as riquezas produzidas interna ou externamente por atividades econômicas vinculadas a uma nação específica. Daí a utilização do PNB mundial para calcular as desigualdades. A riqueza canalizada ao exterior e aquela remetida de fora para um dado país contam na formulação do cálculo do PNB.

7 Há, na atualidade, ainda que polêmicos e nem sempre aceitos, estudos que buscam conexões entre as perspectivas de Celso Furtado e aquelas formadoras do pós-desenvolvimentismo. Sobre isso ver: Bianconi (2014).

8 “En Sri Lanka, el 20% más rico de la población gana sólo cuatro veces más que el 20% más pobre; en Indonesia, cinco veces más; y en Marruecos, siete veces más. Pero las disparidades pueden ser también enormes: en Guatemala y Panamá los más ricos ganan 30 veces más, y en el Brasil, 32 veces más” (PNUD/RDH, 1996, p. 17).

9 É necessário ter em vista as diferenças entre a abordagem do desenvolvimento de Sen e a contida nos relatórios. Sobre isso ver artigo da Diretora dos RDHs Fukuda-Parr (2002).

10 A “financeirização da riqueza [é a] crescente possibilidade exercitada pelos agentes econômicos — sobretudo os maiores —, de ampliar seu patrimônio, de valorizar seu capital na esfera financeira da economia” (BACELAR DE ARAÚJO, 1999, p. 10).

RELAÇÃO FAMÍLIA–ESCOLA:
experiência de uma extensão universitária com famílias de baixa renda
em escolas da rede pública do município de Mamanguape/PB

FAMILY - SCHOOL RELATIONSHIP:
experience of a university extension with low income families
in public schools in Mamanguape / PB

_____________________________________

Osicleide Lima Bezerra*1
Ana Paula Taigy Amaral
**

Resumo

O presente trabalho é fruto de reflexões resultantes de um projeto de extensão universitária, realizado em 2017, pelo Campus IV – Litoral Norte da Universidade Federal da Paraíba –, denominado “Família, escola e desenvolvimento de aprendizagem”, que teve como objetivo a investigação da participação familiar no acompanhamento da aprendizagem de crianças e adolescentes matriculados no II ciclo do ensino fundamental de escolas da rede pública de ensino do Município de Mamanguape/PB. Utilizou-se o método de abordagem indutivo, desenvolvido através de uma pesquisa exploratória de estudo de caso e bibliográfica sobre a discussão e análise do tema descrito. Constatamos a dificuldade existente no âmago da relação família-escola, quando o cenário envolve famílias de baixa renda e escolas da rede pública de ensino. Concluiu-se que é possível a construção de um diálogo com as famílias dos estudantes de baixa renda, no intuito de aproximá-las do cotidiano escolar da criança/adolescente, mas que essa prática exige uma mudança de postura por parte da escola e de um trabalho em conjunto com a Secretaria de Educação, que disponibiliza recursos e dá suporte para que os profissionais da educação desenvolvam esse trabalho.

Palavras-chave: Relação Família-Escola. Aprendizagem. Baixa renda. Diálogo.

Abstract

The present work is the result of reflections resulting from a university extension project, carried out in 2017, by Campus IV - North Coast of the Federal University of Paraíba - UFPB, called “Family, school and learning development”, which aimed to research of family participation in monitoring the learning of children / adolescents enrolled in the 2nd cycle of elementary school in public schools in Mamanguape - PB. We used the inductive approach method, developed through an exploratory case study and bibliographical research on the discussion and analysis of the described theme. We note the difficulty at the heart of the family - school relationship, when the scenario involves low - income families and public schools. It was concluded that it is possible to build a dialogue with the families of low-income students, in order to bring them closer to the daily life of the child / adolescent, but that this practice requires a change of attitude on the part of the school and a I work closely with the education department, which provides resources and supports education professionals to develop this work.

Keywords: Family-School Relationship. Learning. Low income. Dialogue


1* Professora adjunta da Universidade Federal da Paraíba (Campus IV – Litoral Norte). Possui graduação, mestrado e doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). É líder do Grupo de Estudos Sociedade, Trabalho e Educação (CNPQ/UFPB). Coordenadora adjunta do Projeto de Extensão “Família, Escola e Aprendizagem”. E-mail: osicleide@ccae.ufpb.br.

** Mestranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Advogada, graduada em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa. Graduanda em Letras (licenciatura) – Língua Portuguesa, pela UFPB. E-mail: paulataigy@gmail.com.

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 51, Julho/Dezembro de 2019, p. 180-197

Introdução ­­

A família e a escola são as duas principais instituições de formação do ser humano e, como toda relação de poder, há entre elas expectativas recíprocas, especialmente no que se refere à competência e à divisão do trabalho em relação à educação da criança. Nesse contexto, reconhece-se a diversidade de organizações familiares existentes na atualidade e toma-se como referência de “família” toda unidade ou configuração composta por, pelo menos, um adulto e uma criança ou adolescente (OLIVEIRA; MARINHO-ARAÚJO, 2010).

Partindo dessa concepção, compreende-se a relação família-escola, segundo Silva (2010), como sendo constituída por duas vertentes (escola e lar) e por duas dimensões de atuação (individual e coletiva). A primeira vertente, denominada “escola”, é a mais visível e implica toda atividade realizada pelos pais/responsáveis na instituição de ensino, por exemplo, conversas ou encontros com a direção ou corpo docente, participações em reuniões, eventos, órgão de gestão etc. A segunda (lar), menos visível, engloba as ações desempenhadas em casa, com a participação familiar e do estudante, e se refere ao acompanhamento e auxílio nas atividades escolares, deveres de casa, leituras, revisão do conteúdo, ou seja, as ações fomentadas por algum membro da família, fora da escola, que promovem o apoio e o incentivo da aprendizagem do educando.

Quanto às dimensões de atuação, a relação família-escola, quando acontece numa dimensão individual, diz respeito a qualquer ação que o familiar toma em relação à educação e no interesse do educando. Quando se dá numa dimensão coletiva, envolve práticas em defesa de interesses difusos, por exemplo, quando o responsável atua em nome ou na esfera de uma associação de representantes parentais, em órgãos colegiados na escola, no governo etc.

O presente trabalho, portanto, é fruto de reflexões resultantes de um projeto de extensão universitária, realizado em 2017, pelo Campus IV (Litoral Norte) da UFPB, denominado “Família, escola e desenvolvimento de aprendizagem”, que tinha como fim estimular a participação familiar no acompanhamento da aprendizagem da criança, no caso específico, jovens matriculados no II ciclo do ensino fundamental de duas escolas da rede pública de ensino do município de Mamanguape/PB.

Apesar de as ações terem ocorrido em duas escolas públicas da Zona da Mata paraibana, o cenário social encontrado se repete em contextos semelhantes em qualquer região do Brasil. Destarte, partindo dessa experiência local, percebeu-se a dificuldade existente no âmago desta relação (família-escola) em escolas públicas com famílias de baixa renda.

As universidades públicas são ancoradas no princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão – artigo 207 da Constituição Federal (BRASIL, 1988) e artigo 43 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (BRASIL, 1996). As ações de extensão têm por finalidade, dentre outras, “estimular o conhecimento dos problemas do mundo presente, em particular os nacionais e regionais, prestar serviços especializados à comunidade e estabelecer com esta uma relação de reciprocidade” – artigo 43, da lei nº 9.394/1996 (BRASIL, 1996). Portanto, desta experiência acadêmica, que proporcionou um contato com as instituições de ensino da rede pública do município de Mamanguape e os familiares de alunos de baixa renda, surgiu a seguinte inquietação: É possível aprimorar a relação “família-escola” e construir um diálogo construtivo entre essas duas esferas?

O Brasil é um dos países participantes do PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), coordenado pela OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e, segundo o relatório de 2015, o desempenho dos estudantes brasileiros na prova, que avalia três áreas de conhecimento (Leitura e Língua Portuguesa; Matemática e Ciência, além de Competências Financeira e de Resolução Colaborativa de Problemas) está abaixo da média geral dos países integrantes da OCDE.

De acordo com o estudo desenvolvido pelo Centro de Políticas Públicas do Insper e da USP (SASSAKI. et al., 2018), esse baixo desempenho pode ter como causa não apenas a falta de domínio e falhas no aprendizado do conteúdo, mas, também, a ausência de habilidades socioemocionais, como, por exemplo, perseverança, motivação, confiança e resiliência. Nesse aspecto, a educação primária (familiar) é de vital importância para a construção da base emocional do educando. O que demonstra, mais uma vez, a importância dessa relação família -escola, principalmente como objeto de estudo para pesquisas acadêmicas.

Destarte, o presente trabalho foi desenvolvido como fruto de uma experiência de extensão universitária, com o intuito de apresentar algumas reflexões sobre o respectivo tema. Para tanto, utilizou-se o método bibliográfico, bem como o relato de experiência, para abordar a relação família-escola em um contexto com pessoas de baixa renda.

Metodologia

O presente trabalho foi desenvolvido em três etapas. A primeira se refere à apresentação do estudo de caso – o projeto de extensão universitária “Família, escola e desenvolvimento de aprendizagem” –, que motivou as reflexões e questionamentos que resultaram nesta pesquisa.

No segundo momento, realizou-se a apuração e análise de alguns dados socioeconômicos da região, coletados a partir de fontes secundárias, os quais serviram como pano de fundo para a contextualização acerca da realidade social e educacional das famílias participantes do projeto, a fim de auxiliar na compreensão do contexto social e da realidade local e como isso pode interferir na relação das famílias com a escola.

Por fim, uma vez realizada a observação crítica da realidade local, partiu-se para uma análise macro da situação, com o objetivo de compreender a natureza das instituições, baseadas na perspectiva de autores clássicos como: Pierre Bourdieu e Passeron (1992), Saviani (1997), Pedro Silva (2010), entre outros autores contemporâneos, para entender o que está por trás dessa relação (função social e natureza simbólica existente). Por último, pontuou-se algumas sugestões para a construção de um diálogo possível, baseado especialmente em uma experiência bem-sucedida, realizada pela Secretaria de Educação do Município de Lagoa de Dentro/PB.

No campo científico, Richardson e colaboradores (1999, p. 70) definem o método como “a escolha de procedimentos sistemáticos para a descrição e explicação de fenômenos”. Esses procedimentos podem configurar as chamadas abordagens quantitativas ou qualitativas, muito embora autores como Goode e Hatt (1973, p. 398), por exemplo, discordem dessa dicotomia e cheguem a afirmar que: “A pesquisa moderna deve rejeitar como uma falsa dicotomia a separação entre estudos ‘qualitativos’ e ‘quantitativos’, ou entre ponto de vista ‘estatístico’ e não ‘estatístico’. Além disso, não importa quão precisas sejam as medidas, o que é medido continua a ser qualidade. ”

Neste trabalho, optou-se pelo método qualitativo diante de uma perspectiva iniciada a partir de um caso específico (projeto de extensão universitário “Família, escola e desenvolvimento de aprendizagem”). Para Yin (2005, p. 19), o Estudo de Caso torna-se particularmente adequado “quando o pesquisador tem pouco controle sobre os acontecimentos e quando o foco se encontra em fenômenos contemporâneos inseridos em algum contexto da vida real”.

O projeto de extensão universitária, ora relatado, foi realizado durante os anos de 2017/2018, correspondentes aos períodos acadêmicos 2017.2/2018.1, no Campus IV (Litoral Norte), da UFPB, denominado “Família, escola e desenvolvimento de aprendizagem”, que tinha como fim estimular a participação familiar no acompanhamento da aprendizagem da criança, no caso específico, jovens matriculados no II ciclo do ensino fundamental de duas escolas da rede pública de ensino do município de Mamanguape/PB.

A ação do projeto consistia em realizar oficinas pedagógicas para os pais/responsáveis dos alunos matriculados no II ciclo de ensino fundamental (público-alvo) de duas escolas da rede pública de ensino do município de Mamanguape: a Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio (EEEFM) Umbelina Garcez e a Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) Prof. Adailton Coelho Costa, para discutir e refletir o papel de cada instituição (família e escola), no intuito de despertar neles a relevância do acompanhamento familiar em relação à aprendizagem do educando. A escolha dessa faixa etária se justifica pelo fato de que experiências demonstram que é a partir desta fase que se observa um afastamento gradativo das famílias quanto ao acompanhamento da vida escolar de seus filhos(as)/tutelados(as).

O projeto consistia na realização de oficinas pedagógicas desenvolvidas com o intuito de tratar da relevância do acompanhamento familiar para o desempenho escolar do educando e da participação da família no ambiente escolar. Além das oficinas pedagógicas, desenvolveu-se uma cartilha educativa com informações jurídicas sobre o direito à educação dos menores, bem como dicas e sugestões de atividades para serem executadas no seio familiar e que funcionariam como estímulos positivos para o desenvolvimento e aprendizagem do estudante. Em um segundo plano, as ações visaram também sensibilizar a comunidade escolar e promover uma maior participação das famílias dos estudantes na vivência/gestão escolar, bem como avaliar o trabalho de incentivo à participação familiar nas instituições visitadas.

Por ser a sede da região metropolitana denominada Vale do Mamanguape, as escolas estaduais da rede pública de ensino de Mamanguape costumam receber alunos advindos das diversas prefeituras da região, especialmente aqueles que residem em zonas rurais. Esse é, por exemplo, o cenário vivenciado na EEEFM Umbelina Garcez, onde se realizaram as primeiras oficinas pedagógicas. Ao todo, a escola possuía, à época do projeto, 187 alunos matriculados no II ciclo do Ensino Fundamental no turno da manhã e 155 matriculados no turno da tarde; de forma que se optou por realizar duas oficinas, uma para cada turno.

Já a EMEF Prof. Adailton Coelho Costa está localizada em uma zona mais periférica do município de Mamanguape, cujas famílias vivem em condições desfavoráveis e com baixa renda per capita. Ao todo, segundo informações da diretoria da escola, são apenas quatro turmas (uma para cada ano do II ciclo do ensino fundamental: 6º, 7º, 8º e 9º), todas no horário vespertino, com uma média de quinze a vinte alunos cada, todas bastante heterogêneas (diversas faixas etárias numa mesma classe e com alunos repetentes).

Foram impressas cartas-convites (já que a forma escrita era o meio de comunicação adotado, segundo as escolas, de interlocução com os pais/responsáveis e de divulgação de avisos), que continham informações sobre o tema a ser abordado, tais como data, hora e local, chamando-os para participarem de um lanche coletivo ao final das oficinas. As entregas foram feitas pelas monitoras do projeto que visitaram as escolas citadas em ocasiões (dias/horários) distintos: na primeira instituição (EEEFM Umbelina Garcez), em seis oportunidades (três vezes em cada turno: manhã e tarde) e, na segunda (EMEF Prof. Adailton Coelho), em três momentos distintos, durante o turno escolar (vespertino). Durante as visitas, as monitoras (discente bolsista e a voluntária do projeto) entravam nas classes e se comunicavam diretamente com os alunos, explicando o projeto, a importância da presença dos pais/responsáveis, apresentavam o conteúdo a ser abordado nas oficinas e finalizavam com a entrega dos convites.

Entretanto percebeu-se que os estudantes tinham receio da presença dos pais/responsáveis na escola, afirmavam que não iriam chamá-los, pois tinham medo que eles fossem informados sobre seus comportamentos ou sobre seus rendimentos escolares. Foi preciso reforçar que as oficinas pedagógicas não tinham esse objetivo. Destarte, detectou-se, neste momento, um dos primeiros problemas da relação entre as instituições e os familiares: os pais/responsáveis só eram convidados para irem até a escola quando da entrega dos boletins dos alunos ou da presença de algum problema de relacionamento/comportamento com o menor. Segundo depoimentos colhidos repetidamente nas oficinas, os responsáveis eram chamados apenas para “ouvirem reclamação” sobre os seus filhos(as)/tutelados(as).

Apesar do empenho da equipe na divulgação e preparo das oficinas/cartilhas, a adesão às mesmas foi significativamente baixa em ambas as escolas. Menos de 3% dos representantes estiveram presentes, conforme registro de assinaturas em lista de presença, no dia da realização da oficina. Ao fim do projeto, percebeu-se o baixíssimo nível de envolvimento real entre as duas esferas em ambas as escolas. As instituições promovem poucas (ou quase nenhumas) ações no sentido de se reverter o quadro.

Por outro lado, constatou-se que existe um anseio dos pais/responsáveis por mais informações sobre a vida/gestão escolar de seus filhos(as)/tutelados(as), entretanto, há também uma resistência deles no sentido de se integrar à comunidade escolar (talvez, ou principalmente pela barreira, dificuldade e/ou pouca receptividade que encontram). Julgam, muitas vezes, como se não pertencessem àquele ambiente ou como se os problemas ali existentes (inclusive em relação à aprendizagem/comportamento dos menores) não fossem de suas responsabilidades, mas sim, da escola (um campo autônomo e independente).

É certo que esse resultado (em relação à baixa adesão por parte dos pais/responsáveis) pode ter se dado por inúmeros fatores, contudo, é preciso observar essa relação em sua natureza, para enxergar o viés do problema que se põe, que é o distanciamento e a pouca participação da família na vida escolar e no processo de aprendizagem do educando de baixa renda. Os desafios e as dificuldades que surgem dessa relação produzem distorções importantes à formação, com prejuízos para as práticas de inclusão das famílias nas escolas. É preciso refletir, portanto, sobre projetos para melhorar a convivência e a relação dessas duas entidades (família e escola).

A realidade social das famílias e dos estudantes das escolas públicas em Mamanguape

O Nordeste brasileiro se destaca como a região que apresenta os maiores índices de analfabetismo, segundo aponta a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) da Educação 2018 (IBGE, 2019). Em comparação com os demais estados nordestinos, a Paraíba se coloca na quarta posição, registrando a taxa de 16,1% da sua população com quinze anos ou mais analfabeta, atrás apenas dos estados de Alagoas, Piauí e Maranhão (IBGE, 2019). Enquanto o índice nacional, nesse quesito, é de apenas 6,8%. Regiões como Sul e Sudeste, por exemplo, apresentam os melhores índices do país com somente 3,5% (IBGE, 2019).

A cidade de Mamanguape fica a cerca de sessenta quilômetros da capital paraibana (João Pessoa) e é sede da Região Metropolitana do Vale do Mamanguape, composta por outros oito municípios, todos caracterizados pelos baixos índices socioeconômicos e educacionais e pela exploração da cana-de-açúcar e do trabalho nas usinas sucroalcooleiras. De acordo com dados do IBGE (2017a), em 2017, o PIB per capita de Mamanguape era R$ 13.890,28 e o salário médio mensal na região era de 1.8 salários mínimos (IBGE, 2017b). Quanto à proporção de pessoas ocupadas em relação à população total, era de apenas 16.3% (IBGE, 2017b).

Em relação ao desempenho da educação, com base nos resultados do Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica), cujo principal objetivo é mensurar a qualidade do ensino ministrado nas escolas das redes públicas e é realizado a cada dois anos, o município de Mamanguape apresentou índices abaixo da média do Estado da Paraíba. Em 2015 e 2017, os índices gerais nos anos iniciais (5º ano) e finais (9º ano) do ensino fundamental, entre as escolas públicas (federal, estadual e municipal) foram (INEP, 2015a, 2017a):

IDEB Ensino Fundamental - anos iniciais e finais:

Paraíba
(Índice geral):

Mamanguape
(Índice geral):

Resultado (2015):

Meta (2015):

Resultado (2017):

Meta (2017):

Resultado (2015):

Meta (2015):

Resultado (2017):

Meta (2017):

  1. 5º ano:

4.5

4.1

4.7

4.4

3.8

3.9

3.5

4.2

  1. 9º ano:

3.5

3.7

3.6

4.0

3.2

3.6

2.7

3.9

Fonte: Elaboração própria, com base nos resultados do IDEB 2015/2017 (INEP, 2015a, 2017a)

Pode-se perceber que no município de Mamanguape, em 2017, nenhuma das duas metas do ensino fundamental (inicial/final) foram atingidas no IDEB. Pior, os índices foram menores do que os observados em 2015, indicando que, provavelmente, não houve ganhos de aprendizagem relevante durante esse período, nessa fase educacional.

Em relação ao FUNDEB, o percentual de distribuição da receita de Mamanguape, em comparação ao orçamento estimado da Paraíba, percebe-se que ele sofreu uma queda no ano de 2017, contudo, está em processo de recuperação nos últimos dois anos, consoante os dados apresentados na tabela demonstrativa (MEC/FNDE, 2015a/2015b, 2016a/2016b, 2017a/2017b, 2018a/2018b, 2019a/2019b):

Estimativa de receitas do FUNDEB:

Ano (exercício):

Paraíba:

Mamanguape:

*Percentual de distribuição

(em relação à PB):

2015

R$ 2.394.309.423,50

R$ 17.463.887,59

0,72%

2016

R$ 2.427.264.604,35

R$ 18.224.224,25

0,75%

2017

R$ 2.509.881.011,21

R$ 16.288.055,53

0,64%

2018

R$ 2.662.171.002,04

R$ 17.947.389,72

0,67%

2019

R$ 2.805.504.303,82 1

R$ 19.359.878,23

0,69%


FONTE: Elaboração própria, com base no valor anual por aluno estimado, no âmbito do Distrito Federal e dos Estados dos Estados, e a estimativa de receita do Fundeb, em relação ao nº de matrículas, coeficientes de distribuição de recursos e receita anual prevista por Estado e Município (MEC/FUNDEB, 2015a/2015b, 2016a/2016b, 2017a/2017b, 2018a/2018b, 2019a/2019b)

Se pegarmos o montante (cota-parte) da transferência de recursos (receita) do FUNDEB para Mamanguape e dividir pelo número de matrículas na rede pública de ensino (estadual e municipal), em escolas urbanas e rurais, teremos um valor anual por aluno estimado, daquele ente federativo. Destarte, o quadro a seguir faz uma comparação com esse valor municipal estimado, o valor anual por aluno estimado no estado da Paraíba, e o definido anualmente, pelo Poder Executivo federal, nos termos do artigo 15, inciso IV, da Lei nº 11.494, de 20 de junho de 2007.

Valor anual estimado por aluno (Receitas do FUNDEB):

Ano (exercício)

Nacional1:

Paraíba2:

Mamanguape:

Nº de matrículas na Educação Básica, na rede pública de Mamanguape:

Nº de matrículas no Ens. Fundamental, na rede pública de Mamanguape:

2015

R$ 2.890,42

R$ 2.285,57

R$ 1.750,77

9.975

6.056

2016

R$ 2.739,87

R$ 2.545,31

R$ 1.875,50

9.717

5.860

2017

R$ 2.875,03

R$ 2.739,77

R$ 1.666,13

9.776

5.976

2018

R$ 3.016,67

R$ 2.926,56

R$ 1.884,64

9.523

5.671

2019

R$ 3.238,52

R$ 3.048,73

R$ 2.043,26

9.475

5.633

FONTE: Elaboração própria, com base nos dados Brasil (2007), MEC/FNDE (2015a, 2016a, 2017a, 2018a, 2019a) e INEP (2014, 2015b, 2016, 2017b, 2018a).

Como se pode perceber, o ano de 2017 apresentou o menor valor anual estimado por aluno, provavelmente, se for confirmado3, se deu em razão da redução do percentual de distribuição das receitas do FUNDEB para aquele município, no período em questão.

Quando observamos os resultados do Brasil no PISA, o status socioeconômico é um forte prenunciador de desempenho das habilidades medidas (leitura, matemática e ciências). Segundo os dados divulgados pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico OCDE (2019), os alunos das classes mais favorecidas superaram, em 97 pontos, os resultados dos estudantes das classes mais baixas. De acordo com os dados socioeconômicos colhidos na aplicação do exame de 2015 (de forma amostral), entre os alunos matriculados a partir do 7º ano do ensino fundamental, 43% dos alunos se situam entre os 20% mais desfavorecidos na escala internacional de níveis socioeconômicos do PISA, enquanto a média dos países integrantes da OCDE é de apenas 12%. Não obstante, cerca de 10% desses estudantes, classificados nessa faixa econômica, em 2018, conseguiram atingir o mesmo quadrante de desempenho, em leitura, dos alunos mais favorecidos, demonstrando que, felizmente, a desvantagem não é um destino.

Em relação à escolaridade dos pais/responsáveis desses jovens, de acordo com a OCDE (2016), menos de 15% dos adultos na faixa etária de 35 a 44 anos de idade possuem o ensino superior completo. Essa média é confirmada pelo Inep (2018b, p. 154), no Relatório do 2º Ciclo de Monitoramento das Metas do Plano Nacional da Educação – 2018, em que demonstra que a escolaridade média brasileira (em anos de estudo) da população de 18 a 29 anos de idade era, em 2016, de 10,2 anos. Entretanto, nas regiões Norte e Nordeste do país, a escolaridade média desse grupo baixa para 9,4 anos (2018b, p. 154).

Quando se refere à escolaridade média, em anos de estudo, dessa população (18 a 29 anos de idade) pertencente aos 25% mais pobres (com base na renda domiciliar per capita) no Brasil, esse índice cai para 8,4 anos. Quando se compara, contudo, a escolaridade desse grupo (vulneráveis) com a dos jovens e adultos pertencentes às classes de maior renda, a escolaridade média, em 2016, salta para 12,2 anos. Esse é um dado tão preocupante que se transformou em um objetivo do Plano Nacional de Educação, inserido na Meta 8, isto é, o compromisso de elevar a escolaridade média da população de 18 (dezoito) a 29 (vinte e nove) anos:

De modo a alcançar, no mínimo, 12 (doze) anos de estudo no último ano de vigência deste plano, para as populações do campo, da região de menor escolaridade no país e dos 25% (vinte e cinco por cento) mais pobres, e igualar a escolaridade média entre negros e não negros declarados à fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE” (INEP, 2018b p. 151).

Ainda com base no relatório de desempenho do Brasil no PISA 2018, elaborado pela OCDE (2019), quando perguntados sobre a continuidade de estudo em nível superior, cerca de 1 em cada 10 estudantes, com bom desempenho escolar, mas pertencentes às classes mais desfavorecidas, não possui expectativa de completar o ensino superior, enquanto essa relação é de 1 em cada 25 estudantes entre os que pertencem às classes mais favorecidas. Não se tem, contudo, informações quanto às percepções e envolvimento dos pais na escola e no aprendizado de seus filhos. Porém, no geral, os estudantes cujas famílias valorizam a educação como fator de ascensão econômica, desfrutam de um melhor clima familiar e recebem maior apoio dos pais, possuem mais chances de concluir os estudos e têm menos chance de abandonar a escola (OCDE, 2019).

Fundamentação teórica

A fundamentação teórica foi desenvolvida a partir da realização de uma pesquisa bibliográfica sobre o tema, que Martins e Lintz (2002, p. 29) definem como a pesquisa “baseada em referências teóricas publicadas em livros, revistas ou periódicos”, no intuito de compreender se é possível a construção de um diálogo entre essas duas esferas (família e escola). A seguir, algumas conclusões sobre este tema, que puderam ser formuladas a partir da experiência da extensão universitária relatada, assim como em decorrência da doutrina consultada/pesquisada.

Família – escola: o que está por trás dessa relação?

Durante a preparação das oficinas pedagógicas e das cartilhas, o principal objetivo foi delimitar qual a função social dessas duas instituições, já que a ambas competem a função e o dever de educar a criança, segundo o artigo 207 da Constituição Federal (BRASIL, 1988) e o artigo 43 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (BRASIL, 1996). Apesar desse ponto comum que lhes une, não há, porém, entre elas, uma relação de dependência, mas sim, um conjunto de expectativas recíprocas.

Existem entre essas duas instituições (família e escola), portanto, responsabilidades e funções que foram mudando ao longo da história. A educação familiar, primeiramente, é mais antiga do que a escolar. Segundo diversos autores (SILVA, 2010; OLIVEIRA; MARINHO-ARAÚJO, 2010), aquela assumiu diferentes formas ao longo do tempo e tem como principal função a transmissão de valores morais e costumes, conforme a época histórica e o tipo de sociedade na qual está inserida.

A essa educação, no sentido de transmitir papéis sociais, é tradicionalmente chamada de educação primária, uma vez que tem como “tarefa principal orientar o desenvolvimento e aquisição de comportamentos considerados adequados, em termos dos padrões sociais vigentes em determinada cultura” (OLIVEIRA; MARINHO-ARAÚJO, 2010, p. 101).

A segunda nasce junto com o processo formal de educação, que inclui, entre outros aspectos, a promoção do acesso à leitura e à escrita (SILVA, 2010). Tem como principal função a transmissão do saber letrado, da produção de conhecimento desenvolvida ao longo do tempo e exerce (historicamente) a função de legitimar a ordem social.

Para Saviani (1997), as teorias educacionais são divididas em dois grupos: as que entendem educação como instrumento de equalização social e, logo, de superação da marginalidade, ou as que compreendem educação como instrumento de discriminação social, portanto, um fator de marginalização. Silva (2010, p. 444) é categórico ao afirmar que “dois traços caracterizarão durante muito tempo a ‘escola’: a) será, até recentemente, para uma minoria; e b) exige a separação de funções entre as famílias e alguém especializado no ‘saber escolar’”.

Ao longo da história, o acesso à educação formal sempre foi restrito à elite. Não obstante, na Europa Central, nos Séculos XVI e XVII, como consequência da Reforma Protestante, os teóricos reformadores já defendiam o letramento universal para que todos os cristãos pudessem ler suas bíblias e interpretá-las, o que exigia a criação de escolas e a universalização do ensino (COMENIUS4, 1649 apud SILVA, 2010, p. 445). No entanto a consolidação do direito a uma escolaridade obrigatória e gratuita só veio a se firmar mesmo no século XIX.

Destarte, o processo de escolarização de massas do ensino primário somente se estabeleceu quando passou a ser interesse da burguesia educar os filhos do proletariado, para consolidar a ordem democrática vigente (SAVIANI, 1997), o que permitiu o acesso à escola por parte de uma maioria não letrada da população. A partir de então, consubstanciou-se a especialização de funções entre pais e professores e, inevitavelmente, entre a família e a instituição escolar, que passou a se posicionar em um lugar de superioridade em face das famílias (SILVA, 2010).

Apesar de a institucionalização da educação formal, até então restrita à elite, ter sido viabilizada com o apoio da burguesia, surgem, a partir de então, os conflitos de interesses (classes), os quais estavam submersos sob o objetivo em comum (SAVIANI, 2010). O acesso à educação pela classe dominada provoca sua organização e faz surgir os movimentos sociais que conclamam a população para reivindicar seus direitos, especialmente em defesa da criação de escolas públicas para os trabalhadores.

A partir desse ponto, volta-se a ruptura, pois não mais interessa à burguesia que o povo se aproprie do conhecimento. A consequência é o surgimento de teorias pedagógicas que beneficiam e aprimoram o ensino destinado às elites e facilitam o “rebaixamento do nível do ensino destinado às camadas populares” (SAVIANI, 2010, p. 58). Assim, a educação passa, mais uma vez, a ser um instrumento que reforça a marginalização e que legitima a ordem social.

Seguindo este entendimento, Bourdieu e Passeron (1992, p. 22) apontam o sistema de ensino como um instrumento de legitimação da cultura dominante que provoca uma violência simbólica, uma segregação que favorece aqueles que se encontram mais próximos do capital cultural vigente, ou seja, um sistema que provoca a seleção e a legitimação dessa marginalidade:

A força simbólica de uma instância pedagógica define-se por seu peso na estrutura das relações de força e das relações simbólicas (exprimindo sempre essas relações de força) que se instauram entre as instâncias exercendo uma ação de violência simbólica, estrutura que exprime por sua vez as relações de força entre os grupos ou classes constitutivas da formação social considerada.

E continuam os autores:

Numa formação social determinada, a Ação Pedagógica (AP) que as relações de força entre os grupos ou classes constitutivas dessa formação social põem em posição dominante no sistema das Ações Pedagógicas é aquela que, tanto por seu modo de imposição como pela delimitação daquilo que ela impõe e daqueles a quem ela impõe, corresponde (...) aos interesses objetivos (materiais, simbólicos e, sob a relação considerada aqui, pedagógicos) dos grupos ou classes dominantes (BOURDIEU; PASSERON, 1992, p. 22).

Ou seja, o sistema de ensino (escola) reproduz as relações de força entre as classes sociais, consequentemente, esse conflito também se repete na relação família-escola, uma vez que essa se apresenta em uma posição de superioridade em face daquela (família). E quanto maior a distância do capital cultural dominado pela família do educando em relação ao arbitrário cultural reproduzido pela ação pedagógica (escola), maior se converte a posição de superioridade da instituição em relação à família.

Os alunos que não se enquadram no suposto modelo desejado pela escola tornam-se responsabilidade da família, isto é, o sistema isenta-se de culpa pela não assimilação do arbitrário cultural e pela dificuldade de aprendizagem do estudante e culpam a família pelo problema. Surgem, então, as expectativas da escola em relação à divisão do trabalho de educar com as famílias (principalmente no que tange ao comportamento dos estudantes), porém, essa abertura de diálogo e divisão de responsabilidades é limitada aos interesses da escola.

Segundo Oliveira e Marinho-Araújo (2002, p. 102), a ideia de que a família é a base da criança, “o locus afetivo e condição sine qua non de seu desenvolvimento”, pode posicionar, mais uma vez, “a família no lugar de desqualificada”, quando esse desempenho não é bom. Conforme explanam os autores que “nesse enfoque, as razões de ordem emocional e afetiva ganham um colorido permanente quanto ao entendimento da relação família-escola e da ocorrência do fracasso escolar. Ganha status natural a crença de que uma ‘boa’ dinâmica familiar é responsável pelo ‘bom’ desempenho do aluno” (OLIVEIRA; MARINHO-ARAÚJO, 2002, p.102).

Destarte, este enfoque psicológico dado à relação família x escola considera o contexto psicológico do aluno um dos grandes responsáveis pelo baixo rendimento dele e acaba gerando um processo de culpabilização e não de responsabilização compartilhada (OLIVEIRA; MARINHO-ARAÚJO, 2010).

Por outro lado, estudos demonstram a correlação entre habilidades cognitivas e socioemocionais e o desenvolvimento do estudante. Recentemente, uma pesquisa elaborada pelo Centro de Políticas Públicas do Insper demonstrou que as diferenças nas quedas de desempenho dos estudantes ao longo de uma prova, especialmente exames que medem resultados com base em respostas objetivas, como o PISA, “refletem habilidades socioemocionais, tais como persistência, concentração e determinação” (SASSAKI et al., 2018, p. 2) da população dos países. De acordo com os autores, este impacto supera, inclusive, “indicadores construídos a partir de informações auto relatadas, que limita a comparabilidade entre indivíduos e regiões” (SASSAKI, et al., 2018, p. 02).

Sabe-se, portanto, que a família fomenta o processo de socialização, de proteção, na medida em que (idealmente) deve oferecer as condições de desenvolvimento social, cognitivo e afetivo a todos os seus membros. Entretanto, ao longo das últimas décadas, essa instituição vem sofrendo inúmeras transformações sociais, as quais vêm afetando sua relação com a escola e desconfigurando papéis sociais historicamente atribuídos.

Essas transformações sociais são dinâmicas e suas consequências, tanto de ordem interna quanto externa, ainda são assimiladas no cotidiano. O direito ao divórcio, a conquista do mercado de trabalho e a luta das mulheres pela igualdade de gênero, os novos arranjos familiares (famílias socioafetivas, monoparental, anaparental etc.), os direitos LGBTQ+ e as uniões homoafetivas, a luta por políticas inclusivas, o engajamento da sociedade civil organizada, as inovações e ferramentas tecnológicas que alteraram a dinâmica de comunicação das escolas com as famílias (como, por exemplo, o uso de aplicativos de comunicação como whatasapp, redes socais, entre outros) têm provocado alterações na relação família-escola.

Pode-se dizer que é um processo contínuo de mudanças de um padrão antes estabelecido para um cenário ainda em transformação. Em contrapartida, tem-se a instituição escolar, cuja estrutura se mantém praticamente inalterada, e que tem enfrentado dificuldades para acompanhar e para se adaptar a essas mudanças sociais e tecnológicas contemporâneas, especialmente as escolas públicas em comunidades de baixa renda, as quais, muitas vezes, insistem em reforçar esse modelo de hierarquia e de distanciamento das famílias.

Pedro Silva (2010) aponta dois movimentos importantes decorrentes de todo esse processo de transformação e que influenciam diretamente a relação família x escola, mas no sentido ao da culpabilização das famílias, compreendendo que a escola passou a assumir funções/papeis sociais que antes não lhe cabiam:

Por um lado, nas famílias, temos cada vez mais ambos os membros do casal a trabalhar, o que provoca a entrada cada vez mais precoce das crianças para a instituição escolar ou para-escolar5 (creche, amas, jardim de infância, etc.). Isto tem como consequência uma alteração das relações tradicionais entre socialização primária e secundária, conduzindo a “uma espécie de secundarização da socialização primária e de primarização da socialização secundária” e àquilo que designo por um processo de parentização docente; por outro, a crescente dificuldade da escola em assumir sozinha a plenitude do seu projecto educativo (SILVA, 2010, p. 446, grifo nosso).

Portanto, Silva (2010) descreve acima dois fenômenos da atualidade importantes que influenciam na relação família x escola. O primeiro é o que ele chama de “parentização docente”. Esse é um fenômeno contemporâneo, em que, com a ida da mulher ao mercado de trabalho, ou, no caso dos novos desenhos familiares, com a necessidade do(s) membro(s) familiar(es) trabalharem por questões financeiras, há cada vez mais a urgência de matricularem seus filhos/tutelados precocemente no sistema escolar, o que tem provocado duas consequências imediatas: a primeira é de ordem jurídica, que é a necessidade de o Estado ofertar instituições que atendam a essa demanda. A segunda é de ordem social, que é a alteração das relações tradicionais de socialização primária da criança, que antes ficava a cargo exclusivo das famílias, mas que agora, com a ida às creches em idade tenra, passou a ficar a cargo também das escolas, ocasionando uma espécie de “parentização docente” (SILVA, 2010, p. 446).

Assim, se de um lado essa relação/contato com a família do menor tem se iniciado cada vez mais cedo, já na educação infantil, com a ida do bebê às creches públicas, por exemplo; a medida que a criança vai crescendo e se desenvolvendo dentro do sistema educacional, a experiência demonstra que a relação da escola com a família vai se distanciando, e aumentando, consequentemente, a dificuldade da escola em assumir sozinha o projeto educativo e de formação da criança e do adolescente.

O momento atual, descreve Silva (2010, p. 446), direciona para uma “encruzilhada”: se, por um lado, a situação requer a construção de relações formalmente mais estreitas entre a família e a escola, na prática, se percebe que esse diálogo nunca esteve tão distante, principalmente quando envolve escola pública e pais/familiares de estudantes de baixa renda. É possível, contudo, construir uma ponte entre tais instituições e estabelecer um diálogo em prol de um objetivo comum, sem que haja, porém, um processo de culpabilização ou animosidade?

A seguir, algumas sugestões nesse aspecto e o exemplo de ações bem-sucedidas desenvolvidas por uma equipe multidisciplinar da Secretaria de Educação do município de Lagoa de Dentro, localizada no limiar entre o Agreste e a Zona da Mata paraibana.

Relação família-escola: é possível um diálogo construtivo?

Não obstante, a presente pesquisa não visa esgotar o tema em questão. Contudo, apresentar-se-ão algumas ações que podem ser úteis na construção dessa relação. Assim, para se estabelecer um diálogo construtivo entre essas duas esferas (família e escola), é preciso, primeiramente, reconhecer a posição de desvantagem em que se encontra a família. Dessa forma, é importante que a iniciativa de contato parta da escola, isto é, a instituição precisa assumir uma postura ativa.

Ao contrário, para que haja o desenvolvimento desta relação, a escola não deve adotar um comportamento passivo, de espera, aguardando ou que os pais/responsáveis lhes procurem, ou procurando-os apenas em situações específicas ou extremas, reforçando o comportamento de culpabilização dos pais/responsáveis pelos problemas com o menor na escola (mau comportamento, nota baixa etc.).

A segunda sugestão é de que esse não pode ser um trabalho individual, pontual, isto é, não compete exclusivamente ao docente de sala de aula, ao coordenador, ao diretor, nem à instituição escolar. Trata-se de um trabalho em rede, em que todo o sistema trabalha em equipe e em conjunto, ou seja, cada instituição ampara a ação do outro. Um exemplo bem sucedido é o que está sendo desenvolvido, atualmente, na cidade de Lagoa de Dentro, município do Agreste paraibano, em que uma equipe multidisciplinar, formada por pedagogos e psicopedagogos, trabalha amparada pela Secretaria de Educação do município (que disponibiliza recursos e meios para que seja desenvolvida uma rede de trabalho), juntamente aos professores, diretores das escolas, coordenadores, e com o apoio, quando necessário, do conselho tutelar municipal e do Ministério Público Estadual.

Essa equipe multidisciplinar, além de visitar as escolas, inclusive às da zona rural (ou principalmente, já que, em geral, são as que possuem menos recursos), promovem encontros e treinamentos (contínuos) com os professores e profissionais da educação do município. Nesses encontros, ouvem-se as dificuldades locais de cada profissional/instituição, para então serem sugeridas as ações correspondentes. Eles são estimulados a ressaltarem características positivas de cada aluno dentro de sala de aula (Projeto “Faça três elogios por dia”). Além disso, são treinados para identificarem alunos em situações de vulnerabilidade e com dificuldade de aprendizagem. A direção da escola é incentivada a se aproximar da família desse aluno e ir conhecer o contexto social em que vivem.

Em um primeiro momento, tenta-se um encontro dentro da instituição, chamando-os para irem até a escola. Se, contudo, os pais/responsáveis se mantiverem indiferentes, reporta-se o caso à Secretaria de Educação. A equipe multidisciplinar, quando da resistência por parte da família do estudante, faz uma visita ao domicílio da criança/adolescente.

Em qualquer desses encontros, o contato com a família deve sempre buscar atender um apelo emocional e nunca de enfrentamento ou de culpabilização desses pais/responsáveis, já que eles próprios também se encontram, muitas vezes, em situação de pobreza e/ou extrema pobreza e possuem baixa escolaridade. A aproximação, portanto, deve ser muito mais no sentido de escutar com empatia e com cuidado o que eles têm a dizer, seus medos e preocupações, do que para repreendê-los por alguma omissão no acompanhamento escolar do educando.

Os frutos de tais ações ainda estão sendo colhidos, entretanto, já se percebe uma melhora no desenvolvimento escolar dos alunos, principalmente em itens como comportamento, concentração e frequência, conforme relato da psicopedagoga Déborah Kallyne Santos da Silva, das professoras-pedagogas Cláudia Costa dos Santos (orientadora educacional e presidente do conselho do CACS/FUNDEB) e Maria José de Andrade Silva (coordenadora pedagógica do Ensino Fundamental – séries iniciais), todas servidoras do Município de Lagoa de Dentro, em palestra realizada no dia 16 de agosto de 2018, no Campus IV/Mamanguape6.

Portanto, para uma relação construtiva, a escola precisa ser integrada à comunidade, ter conhecimento dos problemas que acontecem dentro e entre a escola, ter uma rede de apoio onde possa reportá-los, no intuito de, em parceria com outros órgãos do Estado, tentar, se não os resolver, amenizar seus impactos na aprendizagem da criança/adolescente.

Considerações finais

Este artigo é resultado de análises e reflexões produzidas a partir de experiências decorrentes do projeto de extensão universitária (UFPB/Campus IV) “Família, escola e desenvolvimento de aprendizagem”, que teve como fim trabalhar com pais/responsáveis de crianças/adolescentes matriculados no II ciclo do ensino fundamental de duas escolas da rede pública de ensino do município de Mamanguape-PB, com o objetivo de despertar a relevância do acompanhamento familiar para o desenvolvimento de aprendizagens.

Apesar de a proposta inicial, no decorrer da experiência, percebeu-se a relação crítica que se estabelece entre a escola pública e os familiares dos estudantes de baixa renda. Assim, partindo de uma pesquisa bibliográfica sobre o tema, à luz da leitura de Saviani (1997), Bourdieu e Passeron (1992), Pedro Silva (2010), analisou-se o que está por trás da relação família-escola, isto é, a função social, a natureza simbólica das instituições, as transformações sociais que as influenciaram/influenciam e, por fim, reuniram-se algumas sugestões de ações que são consideradas benéficas para o estreitamento desse vínculo.

Quanto a este aspecto, concluiu-se que é preciso que a escola focalize seu olhar crítico em si e que crie condições para que os pais/responsáveis participem do trabalho escolar. Para tanto, é necessário que a mesma adote uma postura ativa e procure estabelecer uma relação de confiança com a família e com a comunidade na qual está inserida.

No entanto este trabalho não pode ser desenvolvido de forma unitária, exclusiva pelo professor, pela coordenação ou pela direção da escola, porém, em conjunto, com o amparo e o suporte de secretarias de educação, e até com o apoio de outras instituições públicas (Conselho Tutelar e Ministério Público), considerando sempre o melhor para o desenvolvimento da criança e do adolescente.

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Recebido em: 24/09/2019

Aceito em: 26/03/2020


1 Conforme o §1º, do art. 4º, da Lei nº 11.494/2007, o valor anual mínimo por aluno, definido nacionalmente, constitui-se valor de referência, relativo aos anos iniciais do ensino fundamental urbano, e será determinado contabilmente em função da complementação da União (BRASIL, 2007).

2 Valor anual por aluno estimado, no âmbito do estado da Paraíba, relativo aos anos (séries) iniciais do ensino fundamental urbano, com base nos dados divulgados anualmente, pelas Portarias Interministerial do Poder Executivo Federal (MEC/FNDE 2015a, 2016a, 2017a, 2018a, 2019a).

3 Solicitou-se formalmente, através de e-mail, com base na lei de acesso à informação (Lei n° 12.527/2011), à Secretaria de Educação e Cultura de Mamanguape, a confirmação do valor anual gasto por aluno, no período mencionado, porém não obtivemos resposta.

4 Comenius, conhecido como o pai da didática moderna, defendeu a universalidade da educação em sua obra “Didática Magna”, também conhecida por “Tratado da Arte Universal de Ensinar Tudo a Todos”, publicado em 1649. (Quem foi Comenius? Editora Comenius. [documento eletrônico] Disponível em: <http://editoracomenius.com.br/index.php?id_cms=6&controller=cms>. Acesso em: 29 jul. 2018).

5 O que equivale no Brasil à educação infantil, que engloba creches ou entidades equivalentes (para crianças de até três anos de idade) e pré-escolas, para crianças de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade, conforme artigo 30 da LDB (BRASIL, 1996).

6 I Roda de diálogos do projeto de extensão universitária “Família, escola e desenvolvimento de aprendizagem”. Ocorrido no dia 16 de agosto de 2018, na sala da ADUF – PB/Campus IV, Mamanguape – Litoral Norte, das 15 h às 18 h, na presença do professor e coordenador doutor Geraldo Alexandre de Oliveira Gomes, da bolsista extensionista Layze Cristine Maia Alves e da aluna colaboradora Ana Paula Taigy do Amaral.

Resenha

UMA REVOLUÇÃO EM PERSPECTIVA:
uma análise de “Cuba en Revolución: miradas en torno a su sesenta aniversario”

A REVOLUTION IN PERSPECTIVE:
an analysis of “Cuba en Revolución: miradas en torno a su sesenta aniversario”

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Marcos Antonio da Silva1*

Gabriel Dourado Rocha2**

SALAZAR, Luis Suárez (coord.). Cuba em Revolución: miradas en torno a su sesenta aniversario. Buenos Aires: CLACSO, 2019. Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20191017033409/Cuba_en_revolucion.pdf Acesso em: 2 dez. 2019.

A Revolução Cubana é, sem dúvida, um dos acontecimentos mais emblemáticos da América Latina contemporânea e a celebração, em 2019, de seu sexagésimo aniversário foi marcada por diversas comemorações e eventos em Cuba e ao redor do planeta, demonstrando sua importância e transcendência e, principalmente, por inúmeros debates, reflexões e análises que procuraram discutir o significado, a dinâmica e os desafios atuais que caracterizam este processo.

Apesar disto e do significado histórico da Revolução Cubana para toda a região, tal discussão não teve uma repercussão adequada e aprofundada no cenário brasileiro, que continua determinado, em grande medida, por uma perspectiva eurocêntrica das ciências que conduz a um desconhecimento persistente da América Latina e dos laços que nos unem a tal região – o que Francisco de Oliveira (2006) denominou de “fronteiras invisíveis”, mais sutis, profundas e eficazes que as fronteiras oficiais – e que tem sido acentuado, recentemente, pelos efeitos de uma conjuntura política polarizada e por uma onda conservadora que dificulta o debate (e a divulgação) de questões, temas e perspectivas latino-americanas e emancipatórias.

De toda forma, nos debates e reflexões que ocorreram ao redor do planeta pode-se constatar o intuito de aprofundar diversos elementos do processo revolucionário cubano considerando, dentre outros, dois aspectos fundamentais. Por um lado, procuraram compreender a natureza e o desenvolvimento de tal processo, incorporando elementos históricos que nos permitem observar os impactos, as contradições e os limites dessa onda revolucionária nas mais diversas dimensões da sociedade cubana contemporânea (arte, política, economia, demografia, cultura, educação etc.). Por outro lado, procuraram discutir a realidade contemporânea da ilha caribenha e, principalmente, a situação atual do socialismo cubano, buscando compreender e analisar suas especificidades, suas transformações e, principalmente, suas condições e desafios atuais num cenário internacional dominado pelo capitalismo financeiro, pelo consumismo excessivo, pelo hiperindividualismo e pela ampliação da desigualdade em escala global, bem como pela dificuldade de construção e afirmação de projetos alternativos viáveis, atraentes e de caráter global.

Por sua amplitude mundial, tal debate, embora tenha considerado diversas perspectivas, nem sempre, por inúmeras razões, envolveu a presença de visões e vozes de intelectuais da ilha caribenha, dificultando o desenvolvimento de visão multifacetada e aprofundada de temáticas que o envolviam. Neste sentido, esta obra preenche uma lacuna importante pois foi coordenada por Luis Suárez Salazar, um dos mais importantes intelectuais cubanos contemporâneos, e reúne trabalhos de autores cubanos e latino-americanos que conhecem profundamente a ilha e sua realidade atual e, principalmente, estão comprometidos na superação dos problemas e desafios que cercam a continuidade de tal processo, pois como afirma o organizador:

“De lo dicho se desprende que en las páginas de este volumen los lectores encontrarán diversas facetas escasamente conocidas o poco divulgadas de los logros, insuficiencias y dilemas económicos, sociales y políticos internos y externos que desde 1959 hasta la actualidad ha tenido, tiene y seguramente tendrá que enfrentar en el futuro previsible la que prefiero llamar “transición socialista cubana”, así como su sexagenaria y generalmente fructífera “proyección externa”, incluidos aquellos que, como se vio en el índice, se relacionan con la multifacética política exterior desplegada por los sucesivos Gobiernos revolucionarios cubanos presididos por Osvaldo Dorticós Torrado, Fidel y Raúl Castro, al igual que con la “dinámica generacional” que, desde 1959 hasta hoy, ha caracterizado a la sociedad civil y política de la Mayor de las Antillas” (SALAZAR, 2019, p. 13).

Além disto, a obra foi publicada pelo Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso), que procura impulsionar e difundir o pensamento crítico latino-americano, inaugurando a série editorial “Fóruns”, que pretende publicar debates e reflexões derivadas de seus eventos, sendo este livro resultado de diversas mesas organizadas na sua oitava Conferência e no Primeiro Fórum Mundial do Pensamento Crítico, ocorrida em Buenos Aires, no final de 2018.

Da leitura da obra é possível apontar que as reflexões podem ser agrupadas em três eixos fundamentais (temas, processos e conjunturas nacionais, política externa e projeção internacional e, finalmente, fontes e lideranças políticas e intelectuais) que são introduzidos pela reflexão inicial de Gerardo Hernandez Nordelo, herói cubano que esteve detido nos EUA, resgatando alguns dos traços fundamentais da história da Revolução Cubana e, principalmente, discutindo as mudanças atuais que ocorrem na ilha caribenha.

O primeiro eixo se refere ao debate sobre as condições políticas, econômicas e sociais que caracterizam o socialismo cubano, analisando sua realidade interna, sua especificidade e os desafios atuais que cercam a continuidade e o aprofundamento desse processo.

Neste sentido, se destacam os trabalhos de Georgina Alfonso González, “La democracia en Cuba: algunos retos de la actualización del modelo socialista”, que procura discutir como o país tem procurado desenvolver, em contraposição à visão hegemônica de democracia representativa e procedimental, um modelo de democracia participativa, popular e protagônica, que procura impulsionar os valores coletivos e solidários, em detrimento do hiperindividualismo contemporâneo, apresentando, desta forma, os pilares fundamentais do sistema político cubano contemporâneo relacionados à diversidade e à pluralidade dos atores políticos e sociais do país. Neste sentido, aponta para a emergência e o empoderamento de um sujeito popular, múltiplo e plural, em que a ampliação da participação e dos espaços decisórios será fundamental pois: “El modelo social y económico cubano socialista no podrá ser actualizado sin la participación y el Poder Popular. Diversas formas de gestión aparecen en este espacio, y pensar en alternativas de desarrollo local desde formas productivas comunitarias cooperadas es una posibilidad real” (p. 34).

Em seguida, se pode destacar o trabalho de José Luis Rodríguez Garcia, “Notas sobre la economia cubana y latino-americana: sessenta años después del triunfo de la Revolución”, que apresenta uma análise instigante sobre o desenvolvimento da economia cubana, considerando os indicadores econômicos e sociais mais relevantes no período recente, e, a partir disto, desenvolve uma análise comparativa com os demais países latino-americanos (considerando indicadores como desenvolvimento, PIB, comércio exterior, políticas públicas e gastos sociais, dentre outros), demonstrando as similaridades e as diferenças entre estas e que, no caso cubano, é possível constatar que a ênfase na dimensão social (gastos e políticas sociais universais) se constitui no traço distintivo cubano em relação à região, mesmo em momentos de crise.

A partir disto, o autor aponta que qualquer balanço da economia cubana contemporânea deve levar em consideração, além da perspectiva comparativa com o contexto latino-americano, uma abordagem mais complexa e multidimensional da noção de desenvolvimento incorporando elementos geopolíticos, dentre outros, pois:

“Por un lado, contrasta la interpretación económica y social del desarrollo asumida por los revolucionarios cubanos frente a la concepción determinista y estrecha de que el desarrollo social debe estar condicionado por el crecimiento económico: visión que, de una u otra forma, ha estado presente en la forma que han evolucionado la mayoría de los países de la región. (...) La realidad es que Cuba ni ha explotado ni ha agredido a nadie en toda su história revolucionaria. En cambio, sí ha ayudado solidariamente a otros pueblos más necesitados, compartiendo no lo que le sobra, sino lo que tiene, a partir del esfuerzo y el sacrificio de sus hijos” (p. 75-76).

A esses artigos podem ser incorporados o trabalho de Ramón Pihs Madruga “La transición socialista cubana: una mirada a sus dimensiones científicas y socioambientales”, que discute a relação entre ciência, meio ambiente e desenvolvimento no país, destacando a implementação de um desenvolvimento sustentável, tanto social como ambiental, e as ações e adaptações do país à mudança climática global, demonstrando como tal temática foi incorporada à agenda política e econômica do país. Por fim, embora esteja na parte final do livro, pode-se incluir o trabalho de Maria Isabel Domínguez, “Las dinâmicas generacionales en Cuba: el lugar y el papel de las juventudes”, que discute a dinâmica populacional da ilha, discutindo o processo de envelhecimento da população do país, acentuado pela onda migratória recente, e a transição geracional, demonstrando a necessidade de desenvolvimento de políticas públicas consistentes e do empoderamento da juventude cubana, como um elemento importante para a continuidade do processo revolucionário.

Um segundo eixo de abordagem refere-se à projeção internacional e à política externa cubana, discutindo os fundamentos, a atuação e os laços internacionais da Revolução Cubana, principalmente em relação à América Latina e sua adaptação ao novo contexto regional e internacional.

Neste sentido, destaca-se o trabalho de Isabel Allende Karam, diretora do Instituto Superior de Relações Internacionais (ISRI), intitulado “La política exterior de la Revolución cubana: una mirada a su universalidad y sus diferentes dimensiones”, que realiza um balanço da política externa cubana revolucionária, discutindo os princípios e prioridades que orientaram tal política, sua condução unificada em defesa da soberania e autodeterminação, as percepções equivocadas sobre esta, destacando o caráter terceiro-mundista e latino-americano como traço fundamental, permanente e distintivo de tal política, orientada pela liderança de Fidel Castro.

A partir disto, discute os desafios atuais, internos e internacionais, que cercam a continuidade e o aprofundamento de tal política, apontando que:

“En esa dificilísima situación, muchos auguraron la desaparición de la Revolución cubana. En el plano interno la divisa esencial fue preservar la independencia y la soberanía de Cuba y proteger al máximo las principales conquistas de la Revolución y el socialismo. No obstante, los principios de la política exterior cubana se mantuvieron inalterables, pero a los esfuerzos internos habría que unir nuevas tácticas en el escenario internacional. (...) Mantener y consolidar su papel de vanguardia en la arena internacional; diversificar sus relaciones exteriores, buscar nuevas vías en el plano económico y nuevos socios comerciales. En resumen, afianzar su presencia y activismo en el mundo fueron objetivos prioritarios para la política exterior cubana” (p. 123-124).

Em seguida, se destaca o texto de Luis Suárez Salazar, “La proyección externa de la Revolución Cubana en América Latina y el Caribe: una aproximación en sus sesenta aniversários”, coordenador da obra, que aponta que um conjunto de fatos ou acontecimentos (a vitória da guerrilha, a primeira lei de reforma agrária, a campanha de alfabetização, a vitória da invasão da Bahia dos Porcos, a afirmação do caráter socialista da revolução, dentre outras) indicam uma pluralidade de datas que podem indicar vários momentos emblemáticos relacionados a múltiplos sessenta anos.

Além disto, procura discutir a projeção internacional da revolução cubana, como uma categoria analítica que permite compreender diversas dimensões da atuação internacional da política revolucionária, e analisar, a partir disto, as raízes e os laços que unem tal processo à América Latina (Nuestra América) (retomando Martí e Bolívar, dentre outros) e como tais laços foram reforçados por políticas baseadas na solidariedade e integração e se consolidam com o contexto regional recente e o processo de atualização do modelo cubano. A partir disto, conclui que:

“Asimismo, se reiteraron los conceptos acerca de la indisoluble articulación de todas esas luchas con la unidad y la integración económica y política de ese continente que, como hemos visto a lo largo de este escrito, siempre han estado presentes en el ideario y en la praxis de la proyección externa de la Revolución Cubana en América Latina y el Caribe” (p. 170).

A estes trabalhos, podemos inserir os textos de Marco Antonio Guandásegui (hijo) “El impacto de la Revolución cubana sobre América Latina: ‘Solo sabemos que lo imposible es posible’”, que analisa o impacto dessa na América Latina, discutindo as condições de sua emergência, compartilhadas por toda a América Latina, e que nos permitem compreender, em seus anos iniciais, o seu impacto impressionante na região, bem como sua vigência atual, derivada do desejo de libertação nacional (ou regional) e da constituição de sociedades baseadas na solidariedade e justiça social.

Por fim, o artigo do argentino Julio Gambina denominado “Consideraciones sobre la experiencia de la Revolución cubana: una mirada desde el Sur”, que discute a relevância da experiência cubana, para se compreender as potencialidades e os limites dos processos de transformação social e, a partir disto, repensa os debates sobre a transição e o socialismo neste novo século, fundamentando-se em Mariátegui, para a mudança social diante do contexto atual e das especificidades latino-americanas.

Finalmente, é possível identificar um terceiro eixo, relacionado à influência e ao legado das principais referências intelectuais (Jose Martí) ou lideranças políticas e intelectuais de tal processo (Che Guevara e Fidel Castro), pois como indica uma das autoras:

“De manera singular, han pasado a la historia de su accionar dos de sus figuras más emblemáticas: Fidel Castro Ruz y Ernesto Che Guevara. El primero, por ser su líder indiscutible, y el segundo, por su integralidad y lealtad al proyecto de liberación nacional y social asumido por los revolucionarios cubanos” (p. 257).

O primeiro trabalho deste eixo é o Pedro Pablo Rodríguez intitulado “Martí y la revolución del pensamento: hacia una nueva cultura”, que discute a originalidade e o alcance do pensamento martiano, sua condição latino-americana em contraposição à mentalidade colonial e eurocêntrica, e seu papel como fonte fundamental do processo revolucionário e de inspiração e desenvolvimento de uma política cultural de caráter emancipatório e apropriada à Cuba e à Nuestra América.

Em seguida, emerge o artigo de Maria del Carmem Ariet García, diretora do Centro de Estudos Che Guevara, “Del pensamento y actuar del Che: validez y transcendência” que analisa a presença e a atuação do Che na construção do socialismo cubano, discute sua importância nas diferentes etapas do processo revolucionário cubano, e aponta sua concepção inovadora do marxismo, como um sistema integral e crítico de transformação social, em que se destacam a moral e a consciência social (junto à solidariedade e ao exemplo) como um elemento fundamental para tal processo.

A partir disto, a autora aponta que, vislumbrando os erros e equívocos do socialismo soviético, Che Guevara destacava a importância da consciência e do compromisso social, e indicava que:

“Ante la evidencia de esas manifestaciones negativas y la puesta en práctica de un modelo en retroceso, surgió en el Che la pregunta de lo que se debe hacer para impedirlo y sobre de qué manera actuar ante una traslación mecánica impuesta desde el modelo soviético entonces imperante. Las alternativas planteadas por él se sustentaron no solo en un pensamiento coherente, sino en la necesidad de la apropiación de una verdadera participación de todos, apoyados en una dirección que los involucre en el trabajo y en la vida cotidiana y que los eduque dando el ejemplo, y nunca por medio de decretos impositivos” (p. 272).

Por fim, destaca-se o texto da pesquisadora mexicana Josefina Morales, “Pensamiento y legado de una imensidad histórica: Presentación de Yo soy Fidel” que, discutindo o livro de John Saxe-Fernández (Yo soy Fidel: pensamento y legado de una imensidad histórica), apresenta e analisa os diversos depoimentos dos intelectuais que contribuíram para a obra, demonstrando a relevância e a vigência do pensamento de Fidel Castro para o desenvolvimento da Revolução Cubana.

Diante disto, pode-se apontar que a obra oferece uma reflexão instigante e atualizada sobre a realidade contemporânea de Cuba e os desafios que perpassam a continuidade ou o aprofundamento do seu processo revolucionário. Além disto, por estar fundamentada em análises, informações, dados e estatísticas atualizadas contribui para um conhecimento mais objetivo dessa realidade e, em tempos de desinformação ou manipulação de dados, também propicia ao leitor a aprendizagem de um tratamento objetivo e cuidadoso com as informações disponíveis.

Desta forma, possibilita um balanço multidimensional do processo revolucionário cubano, indicando seus avanços, limites e desafios atuais, e contribui para uma compreensão histórica de tal processo e uma análise comparativa, principalmente em relação à América Latina, que nos permite compreender a ilha caribenha de um modo mais realista e em perspectiva.

Apesar disto, vale mencionar que, certamente, apresenta algumas limitações, boa parte delas derivadas da amplitude e complexidade de tal temática ou da dificuldade de uma análise com maior distanciamento, que pudesse refletir sobre os equívocos ou limites do processo revolucionário cubano. Neste sentido, seria importante, por exemplo, aprofundar a herança do modelo soviético nas ações e instituições sociais e governamentais e relacionar o debate sobre o processo de atualização do modelo (cubano) com os enormes desafios de reconstrução, na atualidade, do ideário socialista e dos novos projetos emancipatórios diante do capitalismo global.

Além disto, alguns aspectos importantes relacionados à sociedade cubana ou a seu processo revolucionário contemporâneo estão ausentes ou mereceriam um tratamento mais aprofundado, como a dinâmica populacional e migratória (inclusive de temáticas associadas, como gênero e relações raciais), a emergência de uma relativa desigualdade e seus efeitos, os desafios atuais das manifestações e movimentos culturais (arte, literatura, dança, música etc.) ou a análise da eficácia de diversas políticas públicas, dentre outros, e na esfera internacional um balanço mais aprofundado das relações com China e Rússia (considerando sua dimensão e efeitos) ou com os novos movimentos emancipatórios que têm emergido ao redor do planeta.

De toda forma, trata-se de uma obra fundamental para compreender a natureza e a dinâmica do processo revolucionário cubano e, principalmente, sua realidade atual, desenvolvendo um balanço sóbrio e profundo sobre os sessenta anos da Revolução Cubana, permitindo vislumbrar como parte da intelectualidade cubana e latino-americana observa e analisa as transformações que o país está vivenciando e como isso irá incidir sobre o futuro da ilha caribenha e sua relação com a região, contribuindo para a superação das “fronteiras invisíveis” que marcam a relação do Brasil com a América Latina e, particularmente, com Cuba.

Referências

OLIVEIRA, Francisco de. Fronteiras invisíveis. In: NOVAES, Adauto (org.). Oito visões da América Latina. São Paulo: Editora SENAC, 2006. p. 23-47.

SALAZAR, Luis Suárez (coord.). Cuba em Revolución: miradas en torno a su sesenta aniversario. Buenos Aires: CLACSO, 2019.

Recebido em: 16/04/2020

Aceito em: 27/04/2020


1* Doutor em Estudos sobre a Integração da América Latina (PROLAM/USP). Professor do curso de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Membro do Laboratório Interdisciplinar de Estudos sobre América Latina (LIAL/UFGD). E-mail: marcossilva@ufgd.edu.br

2** Bacharel em Direito e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGANT) pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Foi membro do Laboratório Interdisciplinar de Estudos sobre a América Latina (LIAL). E-mail: gabriel_drocha@hotmail.com

ISSN 1517-5901 (online)

POLÍTICA & TRABALHO

Revista de Ciências Sociais, nº 51 Julho/Dezembro de 2019, p. 199-205