Revista de Ciências Sociais - Política & Trabalho
Programa de Pós-Graduação em Sociologia
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Universidade Federal da Paraíba
Publicação semestral do PPGS/UFPB
53 - Junho/Dezembro de 2020
ISSN 1517-5901 (online)
CONSELHO EDITORIAL
César Barreira (Brasil), Christian Azais (França), Cynthia Lins Hamlin (Brasil), Edgard Afonso Malagodi (Brasil), Emília Araújo (Portugal), Howard Caygill (Reino Unido), Frédéric Vandenberghe (Brasil), Jacob Carlos Lima (Brasil), Joanildo A. Burity (Brasil), José Arlindo Soares (Brasil), Julie Antoinette Cavignac (Brasil), Lee Jonathan Pegler (Holanda), Marie-France Garcia-Parpet (França), Paulo Henrique Martins (Brasil), Regina Novais (Brasil), Rubens Pinto Lyra (Brasil), Sandra J. Stoll (Brasil), Theophilos Rifiotis (Brasil), Vera da Silva Telles (Brasil), Zhou Zhiwei (China).
EDITORIA
Roberto Véras de Oliveira, UFPB, Brasil
Miqueli Michetti, UFPB, Brasil
COMITÊ EDITORIAL
Roberto Véras de Oliveira, UFPB, Brasil
Miqueli Michetti, UFPB, Brasil
Mauricio Rombaldi, UFPB, Brasil
Simone Magalhães Brito (coordenadora do PPGS) UFPB, Brasil
Rogério de Souza Medeiros (vice-coordenador do PPGS) UFPB, Brasil
Assessoria Editorial
Ana Carolina Costa Porto (Bolsista PNPD)
REVISORA
Ana Carolina Costa Porto (Bolsista PNPD)
DESIGN GRÁFICO
Fotografia de capa: Heloísa Capasso
Projeto gráfico de capa: Helton Nóbrega
Diagramação: Brunos Gomes
A apresentação de colaborações e os pedidos de permuta e/ou compra devem ser encaminhados ao PPGS/UFPB:
Universidade Federal da Paraíba – Programa de Pós-Graduação em Sociologia
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POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais
Publicação do Programa de Pós-Graduação em Sociologia
da Universidade Federal da Paraíba
(Campus I - João Pessoa)
Ano XXXVII
Número 53
Junho/Dezembro de 2020
ISSN 1517-5901 (online)
Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFPB
indexação
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca Central - Campus I - Universidade Federal da Paraíba
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
Diretora: Mônica Nóbrega
Vice-Diretor: Rodrigo Freire
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
Coordenadora: Simone Magalhães Brito
Vice-Coordenador: Rogério de Souza Medeiros
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R449 Revista Política e Trabalho / Programa de Pós-Graduação em
Sociologia – Vol. 1, Ano 37, n. 53 (jun./dez. 2020). João Pessoa, 2020.
308p.
1517-5901 (online)-1. Ciências Sociais. 2. Política. 3. Trabalho.
UFPB/BC CDU: 32
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
Reitora: Margareth Diniz
Vice-Reitor: Eduardo Rabenhorst
Pró-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa: Isaac Almeida de Medeiros
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SUMÁRIO
Editorial
DOSSIÊ
AVENTURA COLETIVA: a influência de Danièle Kergoat e Helena Hirata nos estudos do trabalho e na luta feminista no Brasil
APRESENTAÇÃO: As proposições teórico-metodológicas de Danièle Kergoat e Helena Hirata | Bianca Briguglio, Fabiana Sanches Grecco, Raquel Oliveira Lindôso, Thaís de Souza Lapa
ATUALIDADE DA DIVISÃO SEXUAL E CENTRALIDADE DO TRABALHO DAS MULHERES | Helena Hirata, Danièle Kergoat
A TRANSVERSALIDADE DO GÊNERO: desafiando cânones nos estudos brasileiros do trabalho | Nadya Araujo Guimarães
EVIDÊNCIAS DA PLASTICIDADE E ATUALIDADE DA DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO A PARTIR DE QUATRO MODALIDADES CONCRETAS | Bianca Briguglio, Fabiana Sanches Grecco, Raquel Oliveira Lindôso, Thaís de Souza Lapa
DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO, SEPARAÇÃO E HIERARQUIZAÇÃO: contribuições para a análise do gênero das democracias | Flávia Biroli, Débora Françolin Quintela
A FORMAÇÃO DE UM GRUPO PROFISSIONAL: entre permanências e mudanças das agentes de execução de programas sociais sob o prisma de gênero, classe e “raça” | Yumi Garcia dos Santos, Isabel Georges
REFLEXÕES ACERCA DA CONSTITUIÇÃO SEXUADA DO SUJEITO EM DANIÈLE KERGOAT | Maria Betânia de Melo Ávila, Verônica Ferreira
TRABALHO COMO PRODUÇÃO DO VIVER: consequências políticas para o feminismo | Renata Moreno, Tatau Godinho, Nalu Faria
ARTIGOS
ATITUDES E COMPORTAMENTOS DOS TRABALHADORES FACE ÀS TRANSFORMAÇÕES DO MUNDO DO TRABALHO SEGUNDO O MARXISMO ANALÍTICO OU INDIVIDUALISMO METODOLÓGICO | Noêmia Lazzareschi
JOVENS TRABALHADORES NO CAPITALISMO FLEXÍVEL: a experiência da aviação civil brasileira | Fernando Ramalho Martins, Daniel Wintersberger, Aline Suelen Pires
FLEXIBILIZAÇÃO E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO DOCENTE: uma análise das condições de trabalho dos Professores Admitidos em Caráter Temporário no Magistério Público de Santa Catarina | Matheus Felisberto Costa, Rafael Mueller
TRABALHADORES FORMAIS COM NÍVEL SUPERIOR: Análise para as regiões Nordeste e Sudeste (2006-2016) | Carlos Eduardo Pereira do Nascimento, Wellington Rodrigues da Silva, Silvana Nunes de Queiroz
O MITO DA OUTORGA E A ATUAL LEGISLAÇÃO TRABALHISTA NO BRASIL | Amauri Cesar Alves, Marina Souza Lima Rocha
OFENSIVA PATRONAL E VULNERABILIDADE LABORAL: os efeitos iniciais da reforma trabalhista a partir do relato de empresários e sindicalistas da indústria de confecção paulista | Ana Paula Fregnani Colombi, Patrícia Rocha Lemos, Ellen Gallerani Corrêa
MISCELÂNIA DESCOLADA OU GENTRIFICATION? Baixo Augusta – São Paulo | Beatriz Salgado Cardoso de Oliveira, Ana Lúcia de Castro
TRADUÇÃO
PEQUENAS EMPRESAS E DEMOCRATIZAÇÃO NO BRASIL (1978-1990) | William R. Nylen
RESENHA
OS OFÍCIOS NO MUNDO DO TRABALHO CONTEMPORÂNEO: resistências e transformações | Leonardo José Ostronoff, Fernando Salla
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CONTENTS
Editorial
DOSSIER
COLLECTIVE ADVENTURE: Danièle Kergoat and Helena Hirata’s influence in work studies and feminist struggle in Brazil
PRESENTATION: The theoretical and methodological propositions of Danièle Kergoat and Helena Hirata | Bianca Briguglio, Fabiana Sanches Grecco, Raquel Oliveira Lindôso, Thaís de Souza Lapa
RELEVANCE OF SEXUAL DIVISION AND CENTRALITY OF WOMEN’S WORK | Helena Hirata, Danièle Kergoat
GENDER TRANSVERSALITY: challenging the canons in Brazilian studies of work | Nadya Araujo Guimarães
EVIDENCE OF THE PLASTICITY AND TOPICALITY OF THE SEXUAL DIVISION OF LABOR FROM FOUR CONCRETE MODALITIES | Bianca Briguglio, Fabiana Sanches Grecco, Raquel Oliveira Lindôso, Thaís de Souza Lapa
SEXUAL DIVISION OF LABOR, SEPARATION AND HIERARCHY: contributions to the analysis of the gender of democracies| Flávia Biroli, Débora Françolin Quintela
THE FORMATION OF A PROFESSIONAL GROUP: between permanences and changes of the social programs careworkers from the standpoint of gender, class and “race” | Yumi Garcia dos Santos, Isabel Georges
REFLECTIONS ON THE CONSTITUTION OF THE SEXED SUBJECT IN DANIÈLE KERGOAT | Maria Betânia de Melo Ávila, Verônica Ferreira
WORK AS THE PRODUCTION OF LIFE: political consequences for feminism | Renata Moreno, Tatau Godinho, Nalu Faria
ARTICLES
ATTITUDES AND BEHAVIORS OF WORKERS IN RELATION TO THE TRANSFORMATIONS OF WORLD OF WORK ACCORDING TO THE ANALYTICAL MARXISM OR METHODOGICAL INDIVIDUALISM | Noêmia Lazzareschi
YOUNG WORKERS IN FLEXIBLE CAPITALISM: the Brazilian civil aviation experience | Fernando Ramalho Martins, Daniel Wintersberger, Aline Suelen Pires
FLEXIBILIZATION AND PREACARIZATION OF TEACHING WORK: an analysis of the working conditions of teachers admitted in character temporary in the Public Magisterium of Santa Catarina | Matheus Felisberto Costa, Rafael Mueller
FORMAL WORKERS WITH HIGHER EDUCATION: Analysis for the Northeast and Southeast regions (2006-2016) | Carlos Eduardo Pereira do Nascimento, Wellington Rodrigues da Silva, Silvana Nunes de Queiroz
THE MYTH OF GRANTING AND CURRENT LABOR LAW IN BRAZIL | Amauri Cesar Alves, Marina Souza Lima Rocha
EMPLOYERS OFFENSIVE AND WORKERS VULNERABILITY: the early effects of labor law reform based on the perspective of entrepreneurs and trade unionists from the apparel sector in São Paulo state | Ana Paula Fregnani Colombi, Patrícia Rocha Lemos, Ellen Gallerani Corrêa
EDGY MISCELLANEA OR GENTRIFICATION? Baixo Augusta – Sao Paulo | Beatriz Salgado Cardoso de Oliveira, Ana Lúcia de Castro
TRANSLATION
SMALL BUSINESS AND DEMOCRATISATION IN BRAZIL (1978-1990) | William R. Nylen
REVIEW
CRAFTS IN THE WORLD OF CONTEMPORARY WORK: resistances and transformations | Leonardo José Ostronoff, Fernando Salla
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Em seu número 53, a Revista Política & Trabalho apresenta o dossiê Aventura Coletiva: a influência de Danièle Kergoat e Helena Hirata nos estudos do trabalho e na luta feminista no Brasil. As pesquisadoras Bianca Briguglio, Fabiana Sanches Grecco, Raquel Oliveira Lindôso e Thaís de Souza Lapa respondem pela organização e apresentação do dossiê, que nos brinda ainda com mais sete artigos inéditos, o primeiro dos quais é escrito pelas próprias Kergoat e Hirata. Juntos, os trabalhos demonstram a atualidade e a relevância das contribuições das homenageadas da edição, assim como da agenda de pesquisa e militância que ambas representam. A imbricação entre a Sociologia do Trabalho e a teoria feminista a partir da qual o dossiê é construído adquire ainda mais centralidade em razão do contexto da Pandemia de Covid-19, momento em que se tornam mais evidentes as relações entre os trabalhos produtivos e os trabalhos domésticos e de cuidados, bem como a sobrecarga das mulheres em âmbito global.
Além do dossiê, outros sete artigos recebidos em fluxo contínuo compõem esse número da revista, assim como uma resenha e uma tradução. Em Atitudes e comportamentos dos trabalhadores face às transformações do mundo do trabalho segundo o marxismo analítico ou individualismo metodológico, Noêmia Lazzareschi aponta que as atitudes, comportamentos e estratégias de ação política dos trabalhadores face às transformações recentes do mundo do trabalho, como a utilização da inteligência artificial, big data e multiplicação de aplicativos, resultam de uma escolha racional e expressam clara compreensão do contexto histórico mais amplo.
Na sequência, em Jovens trabalhadores no capitalismo flexível: a experiência da aviação civil brasileira, Fernando Ramalho Martins, Daniel Wintersberger e Aline Suelen Pires demonstram a relação entre o emprego de jovens em empresas do setor de aviação e a implementação de novos padrões de utilização da força de trabalho. Na mesma seara, o texto seguinte, Flexibilização e precarização do trabalho docente: uma análise das condições de trabalho dos Professores Admitidos em Caráter Temporário no Magistério Público de Santa Catarina, escrito por Matheus Felisberto Costa e Rafael Mueller, apresenta uma análise das condições de trabalho dos professores “Admitidos em Caráter Temporário” e chama a atenção para o processo de precarização das suas relações de trabalho.
Na continuidade, Carlos Eduardo Pereira do Nascimento, Wellington Rodrigues da Silva e Silvana Nunes de Queiroz, no manuscrito Trabalhadores formais com nível superior: Análise para as regiões Nordeste e Sudeste (2006-2016), adotam abordagem comparativa para analisar o perfil ocupacional, demográfico e socioeconômico de trabalhadores com nível superior completo, ocupados em vagas formais, nas regiões Nordeste e Sudeste. Seus resultados indicam que não há uma diferença expressiva entre o percentual de empregados formais com nível superior nas distintas regiões e também que, ainda que haja mais mulheres que homens ocupando essas vagas, os rendimentos das mulheres são menores.
Amauri Cesar Alves e Marina Souza Lima Rocha, em artigo intitulado O mito da outorga e a atual legislação trabalhista no Brasil sustentam que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) foi fruto da pressão dos trabalhadores sobre o capital e o Estado e não resultado da outorga estatal e buscam também atualizar a discussão sobre as leis trabalhistas. Em direção semelhante, o artigo seguinte, Ofensiva patronal e vulnerabilidade laboral: os efeitos iniciais da reforma trabalhista a partir do relato de empresários e sindicalistas da indústria de confecção paulista, Ana Paula Fregnani Colombi, Patrícia Rocha Lemos e Ellen Gallerani Corrêa analisam os efeitos iniciais da reforma trabalhista de 2017 no ramo de confecções do estado de São Paulo. A partir de entrevistas com empresários e sindicalistas, dão a ver a ampliação da terceirização e do contrato temporário e a configuração de um cenário adverso para a atuação dos sindicatos, assim como o declínio da dimensão pública do assalariamento.
O artigo Miscelânia descolada ou gentrification? Baixo Augusta – São Paulo fecha a sessão de fluxo contínuo. As autoras Beatriz Salgado Cardoso de Oliveira e Ana Lúcia de Castro realizam um mapeamento histórico da rua Augusta, na cidade de São Paulo, e indicam como, apesar de apresentar certas características do processo chamado de gentrification, a realidade efetivamente pesquisada revela peculiaridades, o que leva as autoras a sugerirem a prática etnográfica para construir interpretações de realidades locais em articulação com processos estruturais de escala global que superem a “violência epistêmica” da aplicação direta de conceitos forjados para pensar contextos distintos.
A tradução dessa edição é assinada por Daniel Gustavo Fleig e diz respeito ao trabalho Pequenas empresas e democratização no Brasil (1978-1990), de William R. Nylen. O texto explora as iniciativas de organização da ação coletiva por parte de empresários de pequenas e médias empresas em suas disputas e difíceis composições com o grande capital, na época da transição do regime militar para a democracia no Brasil.
A resenha que encerra esse número da revista é de Leonardo José Ostronoff e Fernando Salla e se debruça sobre o livro Ofícios e saberes: permanências, mudanças e rupturas no mundo do trabalho, organizado por Rosa Elisa Mirra Barone e Maria Rita Aprile e publicado pela Appris em 2019. Intitulada Os ofícios no mundo do trabalho contemporâneo: resistências e transformações, a resenha sublinha o interesse de uma obra que porta sobre o trabalho artesanal como resistência ao mundo industrial, e que registra, a partir das memórias dos trabalhadores de ofícios artesanais, as mudanças sofridas pelas ocupações e ofícios abordados ao longo do tempo.
Boa leitura!
Os editores
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 53, Junho/Dezembro de 2020, p. 9-10
Dossiê
Aventura coletiva:
a influência de Danièle Kergoat e Helena Hirata
nos estudos do trabalho e na luta feminista no Brasil
APRESENTAÇÃO:
As proposições teórico-metodológicas
de Danièle Kergoat e Helena Hirata
PRESENTATION:
The theoretical and methodological propositions
of Danièle Kergoat and Helena Hirata
____________________________________
Bianca Briguglio (Unicamp)
Fabiana Sanches Grecco (Unicamp)
Raquel Oliveira Lindôso (Unicamp)
Thaís de Souza Lapa (UFSC)
Este dossiê se propôs a visibilizar a trajetória coletiva de pesquisa de Danièle Kergoat e Helena Hirata e convidar pesquisadoras(es) de diversas áreas do conhecimento e o público em geral para compreender a dinâmica social por meio da perspectiva do feminismo materialista.
Para apresentar os objetivos do dossiê, este texto organiza-se em duas partes. Na primeira, são discutidas as proposições teórico-metodológicas de Danièle Kergoat e Helena Hirata; na segunda, são apresentados os artigos, que tratam de temáticas informadas pelo campo conceitual das autoras: a divisão sexual do trabalho, a consubstancialidade e coextensividade das relações sociais de classe, raça e gênero, o sujeito sexual do trabalho, o movimento social sexuado, os trabalhos de cuidados e a democracia, e a recepção e usos dessas elaborações nos campos da academia e da política.1
A notável conjuntura da pandemia de Covid-19 convoca essas chaves de leitura. As estratégias de enfrentamento à crise sanitária, adotadas em diversos países do globo para contê-la, colocaram em evidência a indissociabilidade entre os trabalhos produtivos e os trabalhos domésticos e de cuidados. Algumas modalidades de trabalho foram parcial, integral ou momentaneamente suspensas, transformadas em trabalho remoto, bem como alguns postos de trabalho foram intensificados e outros suprimidos. Mas as mulheres sofreram o impacto mais denso devido à sobrecarga de trabalho. Com a paralisação e racionamento da prestação de serviços públicos e privados, que se encarregam das demandas específicas de crianças, idosos e de todas as pessoas que necessitam de cuidados, o maior acúmulo de trabalho recaiu sobre as mulheres, que predominantemente os realizam. Esse trabalho, o qual elas têm sido convocadas a garantir sob o custo da perda de seus empregos, sustenta a “nova normalidade”.
Em um momento tão desafiador como esse, a organização deste dossiê temático só foi possível pela força do trabalho coletivo. Somamos aos desafios do acúmulo e das transformações no trabalho que esse momento exige de todas as pessoas e, especialmente, das mulheres, as questões econômicas, sociais e políticas, históricas e conjunturais, como processos eleitorais, lutas antirracistas e contra a violência às mulheres –, que nos colocam em posição de mobilização permanente e que caminham ao mesmo tempo que a realização de trabalhos acadêmicos como este. Assim, gostaríamos de registrar nossos sinceros agradecimentos ao trabalho, interesse e disponibilidade das pessoas envolvidas nesta publicação, em sua quase totalidade, mulheres: as autoras dos artigos, as pareceristas, a edição da Revista Política & Trabalho e a fotógrafa que gentilmente cedeu a imagem que ilustra a capa deste dossiê2.
A organização coletiva deste dossiê perpassa a trajetória profissional de suas quatro organizadoras. É nesse caminho de jornadas cruzadas entre mulheres, pesquisadoras e militantes, que construímos as nossas formações nos campos da Sociologia do Trabalho e da teoria feminista, baseadas na reafirmação da centralidade do trabalho tanto para a teoria social quanto para a luta feminista. Essa orientação consolidou-se em um processo formativo comum das organizadoras na equipe Genre, Travail, Mobilités (GTM), lotada no Centre de Recherches Sociologiques et Politiques de Paris (CRESPPA), vinculado ao Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS).3
Assim, a aventura coletiva que nomeia este dossiê, e atravessa a produção de Danièle Kergoat e Helena Hirata, deu sentido ao trabalho conjunto realizado pelas organizadoras, bem como à reunião de um grupo de excelência formado por pesquisadoras e feministas de diversas regiões do Brasil e da França.
Por que um dossiê temático sobre a sociologia do trabalho, feminista e materialista, de Danièle Kergoat e Helena Hirata?
A influência das obras das autoras referenciadas neste dossiê extrapola o campo da Sociologia e tem caráter eminentemente supradisciplinar, construindo pontes com a Economia, Psicologia, Estatística, Antropologia, Ciência Política, Ergonomia, Sociolinguística, entre outras áreas das Ciências Humanas e Sociais, bem como o diálogo ativo com a organizações políticas, sobretudo as feministas. As autoras têm diversas publicações conjuntas, muitas delas traduzidas para o português, como A classe operária tem dois sexos (França, 1993/Brasil, 1994), Relações sociais de sexo e psicopatologia do trabalho (França, 1988/Brasil, 2002), Paradigmas sociológicos revistos à luz da categoria de gênero. Que renovação à epistemologia do trabalho? (França, 2005/Brasil, 2008).
Mas a parceria das autoras é mais ampla do que essas publicações. Elas têm uma agenda de pesquisa em comum. Helena Hirata foi exilada na França em 1971, em decorrência da conjuntura da ditadura militar no Brasil e, em 1977, integrou o grupo criado por Kergoat, voltado ao estudo da divisão social e sexual do trabalho (DSST). A partir dos anos 1980, em conjunto com Odile Chenal, as autoras formaram um grupo de trabalho reconhecido, desde 1983, como uma unidade de pesquisa do CNRS. Nos anos 1980, integraram a rede Atelier Production-Reproduction (APRE), que resultou no livro “O Sexo do Trabalho” (França, 1984/Brasil, 1986), cuja tradução teve grande importância e circulação no Brasil. Elas também participaram juntas de eventos científicos no país, como os encontros anuais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), contribuindo para a capilaridade de suas obras no debate brasileiro, como destacou Nadya Araújo Guimarães, no artigo “A transversalidade do gênero: desafiando cânones nos estudos brasileiros do trabalho”, aqui publicado.
Ambas compõem atualmente a equipe Genre, Travail, Mobilités (GTM), lotada no Centre de Recherches Sociologiques et Politiques de Paris (CRESPPA), vinculado ao CNRS. Esse grupo de pesquisa é um desdobramento de formações anteriores: o Groupe d’Étude sur la Division Sociale et Sexuelle du Travail (GEDISST) e o grupo Genre et Rapports Sociaux (GERS). Como consequência desse trabalho coletivo, as autoras desenvolvem uma teoria sociológica materialista e feminista, que traz contribuições para análises do trabalho, em sua dimensão coletiva e individual, material e subjetiva, e para a luta das mulheres trabalhadoras.
Danièle Kergoat é socióloga, e como mencionado, é pesquisadora emérita do CNRS, onde atua no laboratório do CRESPPA, equipe GTM. É conhecida internacionalmente por seus estudos sobre a divisão sexual do trabalho e as relações sociais de sexo, pelo menos desde os anos de 1970. Alguns de seus principais textos encontram-se na obra Lutar, dizem elas … (França, 2012/Brasil, 2018), parcialmente traduzida para o português pela organização feminista SOS Corpo - Instituto Feminista para a Democracia. Nela, sua trajetória de pesquisa e a relação com o movimento feminista na França são evidenciados, deixando clara a indissociabilidade entre teoria e prática política no feminismo materialista.
O trabalho de Kergoat reafirmou a condição heterogênea e sexuada da classe e a centralidade do trabalho nas relações sociais de sexo/gênero. Ao realizar estudos sobre o movimento social das enfermeiras e do coletivo que surgiu desse movimento nos anos 1980 – a Coordenação Enfermeira – desenvolveu os conceitos de “sujeito sexuado do trabalho” e “movimento social sexuado”; ambos centrais no artigo Reflexões acerca da constituição sexuada do sujeito em Danièle Kergoat, escrito por Maria Betânia Ávila e Verônica Maria Ferreira, pesquisadoras e educadoras do SOS Corpo, que compõem este dossiê.
Além disso, Kergoat utiliza a noção de “relações sociais de sexo” para compreender as desigualdades entre homens e mulheres na sociedade capitalista e patriarcal. A pesquisadora produziu, também, os conceitos de “consubstancialidade” e “coextensividade”, para explicar a imbricação e retroalimentação entre as relações sociais de classe, de sexo e de raça/etnia. Para Kergoat, essas três contradições fundamentais do capitalismo se sobrepõem parcialmente (coextensão), e elas, diferentemente de outras problemáticas, como geração e sexualidade, são regidas por dominação, opressão e exploração (KERGOAT, 2016). Nessa perspectiva, as questões étnicas e raciais referem-se às questões relativas à migração, especialmente em sua dimensão de fluxos globais de trabalho. Como não podia ser diferente, esse conceito foi tratado neste dossiê, no artigo A formação de um grupo profissional: entre permanências e mudanças das agentes de execução de programas sociais sob o prisma de gênero, classe e raça, escrito por Yumi Garcia dos Santos e Isabel Pauline Hildegard Georges.
Nascida no Japão, Helena Hirata realizou seus estudos no Brasil e desenvolveu parte de sua carreira acadêmica na França. Como já mencionado, é pesquisadora emérita do CNRS e também do laboratório do CRESPPA, equipe GTM, associada às Universidades de Saint-Denis (Paris 8) e Nanterre (Paris 10). No Brasil, é professora visitante do departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP).
Ao final dos anos 1970, e ao longo da década de 1980, Hirata desenvolveu pesquisas sobre a indústria e as mulheres operárias, que são referências importantes na Sociologia contemporânea. Desenvolveu reflexões sobre a noção de trabalho, problematizando a falsa homogeneidade da classe trabalhadora centrada na figura do operário padrão e a ausência da dimensão dos trabalhos domésticos e de cuidado nas concepções predominantes.
Há algumas décadas a autora realiza investigações com caráter comparativo internacional, não apenas em relação à França e ao Brasil, mas também ao Japão. Hirata realizou estudos sobre a divisão sexual do trabalho em indústrias multinacionais francesas e japonesas, comparando condições de trabalho nas matrizes e suas filiais no Brasil. O livro Nova divisão sexual do trabalho? Um olhar voltado para a empresa e a sociedade (HIRATA, 2002), com grande circulação no Brasil, é fruto dessa trajetória de pesquisa numa perspectiva que conjuga, de um lado, a teorização feminista das chaves analíticas da Sociologia do Trabalho e, de outro lado, a metodologia de comparação internacional com pesquisas empíricas.
O conceito da divisão sexual do trabalho foi amplamente difundido no país pelo livro mencionado, escrito por Hirata. A dimensão plástica desse conceito, bem como a metodologia da comparação conduzida pela autora, é abordada no artigo aqui publicado, Evidências da plasticidade e atualidade da Divisão Sexual do Trabalho a partir de quatro modalidades concretas, escrito por Bianca Briguglio, Fabiana Sanches Grecco, Raquel Oliveira Lindôso e Thaís de Souza Lapa.
Hirata é uma das pioneiras no desenvolvimento de estudos sobre o cuidado (care) a partir de uma perspectiva sociológica e feminista, com o enfoque no trabalho, e vem aprofundando, nos anos recentes, pesquisas que consubstanciam as relações sociais de gênero, classe, raça e região do mundo sobre essa temática. Ainda no campo dos estudos dos cuidados, Hirata vem construindo um diálogo potente com a América Latina, para além do Brasil, para pensar as temáticas da precarização e precariedade das condições de trabalho das(os) cuidadoras(es), os fluxos migratórios no contexto de globalização e as políticas públicas de cuidados executadas nas duas últimas décadas. É nessa linha de abordagem – que articula o trabalho de cuidados, a divisão sexual do trabalho e o campo da democracia – que Flávia Biroli e Débora Françolin Quintela situam sua análise, em mais um artigo publicado neste dossiê: Divisão sexual do trabalho, separação e hierarquização: contribuições para a análise do gênero das democracias.
A produção de mais de quatro décadas das autoras promoveu um intercâmbio intelectual e pesquisas comparativas entre França e Brasil, deixando uma contribuição teórica e política para os dois países. As repercussões desse legado teórico são o foco da análise de Nadya Araújo Guimarães, mencionada acima. No campo da política, a influência de seus estudos na construção de narrativas de movimentos e organizações políticas – que se desenvolve, no Brasil, especialmente ancoradas na triangulação entre academia, movimento feminista e organizações não governamentais (ONGs) – é tratada no texto aqui publicado, Trabalho como produção do viver: consequências políticas para o feminismo, escrito por Nalu Faria Silva, Renata Moreno e Tatau Godinho.
A divisão sexual do trabalho, colocada em evidência tanto como conceito analítico quanto em termos metodológicos por Kergoat e Hirata, é certamente a que mais se espraiou e foi utilizada em incontáveis pesquisas acadêmicas e militantes de várias regiões do país. Apesar da amplitude das contribuições das autoras – e embora atualmente estejam consolidados grupos dedicados à articulação entre trabalho e gênero, ao mesmo tempo em que se reafirma a centralidade do trabalho – persistem os desafios de ampliar e aprofundar de um ponto de vista feminista materialista o paradigma do trabalho. Assim, Hirata e Kergoat trazem uma contribuição “contra a maré” à produção da teoria feminista hegemônica, que coloca em dúvida a relevância das condições objetivas da reprodução da vida e, portanto, da centralidade do trabalho, para compreender as transformações sociais contemporâneas e para apontar ações políticas e emancipatórias. É nesse curso de reafirmação da centralidade do trabalho, na teoria e na política, que Danièle Kergoat e Helena Hirata brindam este dossiê com o artigo Atualidade da divisão sexual e centralidade do trabalho das mulheres.
Os artigos do dossiê e suas chaves de leitura
No artigo de Danièle Kergoat e Helena Hirata deste dossiê, o contexto da formulação do conceito divisão sexual do trabalho e os problemas enfrentados pelas feministas que propõem uma reconceituação da categoria trabalho são a antessala de discussões que correlacionam trabalho e luta política das mulheres na atualidade. Sob um primeiro enfoque, a centralidade do trabalho é abordada por Hirata e Kergoat a partir de mobilizações recentes de resistência das mulheres trabalhadoras ao redor do mundo, por meio da organização de greves e integrando outros movimentos com pautas de melhoria de condições de vida de trabalhadores(as), como os “Coletes Amarelos”. Na segunda parte, a partir da metodologia das comparações internacionais, na qual Helena Hirata se baseia para pesquisar o trabalho do care no Brasil, França e Japão, o artigo analisa permanências e mudanças na correlação de forças entre homens e mulheres.
De um lado, as mobilizações examinadas evidenciam trabalhadoras na condição não somente de vítimas de relações de exploração-dominação-opressão-apropriação, mas portadoras do potencial subversivo de resistir e apontar caminhos para a emancipação. De outro lado, o trabalho do care revela e reitera a centralidade do trabalho feminino para a reprodução social, tanto quando realizado gratuitamente no espaço doméstico, “em nome do amor”, quanto quando realizado em instituições de cuidado e em domicílios. É a partir de tais situações de trabalho e de lutas contemporâneas das mulheres que as autoras chamam a atenção para a atualidade e relevância política da divisão sexual do trabalho e das relações sociais de sexo, situadas como ferramentas necessárias para uma reflexão cidadã e feminista.
A contribuição de Kergoat e Hirata para os estudos do trabalho no Brasil foi analisada por Nadya Araújo Guimarães. Nesse artigo, a autora recupera a passagem dos “estudos da mulher” para os “estudos das relações de gênero” no Brasil dos anos 1990, verificada na agenda de estudos da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS). A autora discorre sobre naquele contexto – marcado também pela renovação do marxismo e pela ênfase no estudo das relações de produção – ser aberto um espaço para o estudos mais amplos que incorporaram a noção de divisão sexual do trabalho, conforme entendiam e elaboravam Hirata e Kergoat.
Esse artigo destaca como a obra das autoras torna mais complexa a própria Sociologia do Trabalho. A inseparabilidade entre os trabalhos considerados produtivos e os trabalhos domésticos e de cuidados, que estrutura a problemática da divisão sexual do trabalho, questiona uma concepção teórica de trabalho ancorada no assalariamento e na figura do operário padrão. A utilização da noção de divisão sexual do trabalho como uma perspectiva metodológica promove uma mudança nos estudos empíricos sobre a divisão e os processos de trabalho, nos quais a separação e a hierarquia são identificadas, denunciadas e questionadas. A obra dessas autoras tem, portanto, uma consequência política.
As chaves de leitura elaboradas pelas autoras são trabalhadas nos demais cinco artigos que compõem este dossiê. A proposição teórico-metodológica de divisão sexual do trabalho conduz o artigo escrito por Bianca Briguglio, Fabiana Sanches Grecco, Raquel Oliveira Lindôso e Thaís de Souza Lapa. As autoras percorrem nuances entre formalidade e informalidade e entre os trabalhos considerados produtivos e os trabalhos domésticos e de cuidados, discutindo experiências concretas na indústria metalúrgica, na indústria de confecções, nas cozinhas de restaurantes e no trabalho de catação de materiais recicláveis.
No artigo em questão, defende-se a noção de divisão sexual do trabalho como uma perspectiva metodológica e desenvolvem-se reflexões de maneira coerente com a elaboração que Kergoat e Hirata construíram ao longo de suas trajetórias. Trata-se de analisar a divisão social do trabalho, as diferentes modalidades, espaços e processos de trabalho, percebendo a separação e a hierarquia entre mulheres e homens. Nessa concepção, a divisão social e sexual do trabalho é entendida como a base material das relações de sexo/gênero e é uma proposição fundamental para se compreender experiências concretas de mulheres e trabalho, a partir da articulação entre produção e reprodução numa perspectiva feminista materialista, considerando a diversidade de trabalhos e constituindo-se em uma perspectiva plástica.
O artigo de Flávia Biroli e Débora Françolin Quintela trata da participação das mulheres na política e o gênero da democracia no Brasil. Em uma abordagem original, as autoras observam como a divisão sexual do trabalho é o fundamento dos obstáculos reiterados à participação política das mulheres. A atuação das mulheres na política tende a ser restrita por aspectos materiais e simbólicos, que podem se exprimir no acesso a redes e mesmo apoio na construção de carreiras, além do acionamento de formas racializadas e classistas em que a dominação organiza os empecilhos à participação das mulheres. A complexidade da dinâmica de dominação envolve conflitos em torno da participação feminina, e essa é permeada por resistências e violência. São dinâmicas complexas de reprodução de desigualdades, nas quais o institucional, o estrutural e o simbólico estão imbricados.
Na análise, as autoras mobilizam a categoria da divisão sexual do trabalho como forma de organização política e apoiam-se sobre suas propriedades, a consubstancialidade e a coextensividade. Os princípios da divisão sexual do trabalho, separação e hierarquia, aplicam-se à atividade política e relegam as mulheres, por um lado, ao espaço fora da política, como se essa fosse uma atribuição “natural” dos homens e para além da “vocação” das mulheres (princípio da separação) e, por outro lado, ao adentrarem o mundo da política, as mulheres acabam sendo posicionadas desigualmente (princípio da hierarquia). A partir do aporte teórico de Danièle Kergoat e de Helena Hirata, Biroli e Quintela questionam o dilema paradoxal de que “tudo muda, mas nada muda”, compreendendo que as relações sociais tratam de dinâmicas complexas, nas quais os arranjos e movimentações recolocam conflitos e tensões, redefinindo o próprio horizonte da atuação política.
Pode-se atingir outras camadas de análise, como a indissociabilidade entre gênero, classe e raça, sintetizada no conceito de consubstancialidade. Essa chave de leitura é trabalhada no artigo de autoria de Yumi Garcia dos Santos e Isabel Pauline Hildegard Georges. No artigo, pretende-se identificar a configuração da morfologia dos agentes da execução de programas assistenciais e a forma como essas características afetam o conteúdo de trabalho. A formação do grupo social desses agentes socialmente situados se relaciona com sua forma de engajamento social. A análise das autoras desenvolve-se a partir da comparação de quatro trajetórias profissionais de homens e mulheres, negros e negras, em dois marcos temporais, que são a formação inicial do grupo, no final dos anos 1970, e a profissionalização durante os anos 2000.
A partir de dados empíricos das dinâmicas sociais cruzadas entre transformação institucional e trajetórias socioprofissionais, as autoras objetivam elucidar, à luz da análise consubstancial de gênero, classe e raça, como operam as permanências e as mudanças da situação desses trabalhadores e trabalhadoras. A partir dessa metodologia, que manuseia distintas gerações de profissionais, o artigo traz uma importante contribuição para a abordagem da categoria geração. Na análise empregada pelas autoras, a categoria permite questionar as continuidades e as descontinuidades do modo de engajamento nos serviços dos agentes decorrendo da oferta institucional. Sendo assim, atravessa as categorias que compõem as relações sociais de gênero, classe e raça, dialogando com a abordagem de Danièle Kergoat.
A consequência política, fruto da relação potente entre produção acadêmica e luta feminista, com foco na trajetória de Danièle Kergoat, é abordada por Maria Betânia Ávila e Verônica Maria Ferreira, ambas pesquisadoras e educadoras do SOS Corpo - Instituto Feminista para a Democracia, sediado na cidade de Recife, capital pernambucana. Já nas primeiras pesquisas realizadas nos anos de 1970, que tratava das operárias na França, Kergoat constrói a análise sob o prisma do “sujeito sexuado do trabalho”. Posteriormente, na década de 1980, a discussão a partir da Coordenação das Enfermeiras, apura a análise sexuada do trabalho ao tratar a qualificação e emancipação de forma indissociável do sexo/gênero. Isso significa dizer que, no campo do trabalho, as mobilizações, bem como as reivindicações, formas de luta, qualificação e a passagem do individual para o coletivo têm sentidos e significados segundo o sexo/gênero. Na análise das autoras, o compromisso de teorização da dominação e exploração é expressão da práxis feminista, que atravessa toda a trajetória de pesquisa de Danièle Kergoat.
Para as autoras, a questão da emancipação se coloca a partir da análise crítica que considera a centralidade das práticas sociais e as subjetividades do trabalho. São exemplos disso, o tempo fora do trabalho, as tensões do cotidiano, a divisão sexual do trabalho, a origem e migração, a organização das lutas, os afetos e interpretações dos sujeitos do trabalho. Por fim, as autoras defendem que os achados de pesquisa, bem como o compromisso de teorização numa perspectiva feminista e materialista de Danièle Kergoat, contribuem para pensar a realidade do sul global. A partir das análises imbricadas e consubstancializadas de classe, raça e gênero, em diálogo com a divisão sexual do trabalho, pode-se apreender tanto os processos mais radicais de exploração e precarização quanto os movimentos e redes de apoio que apontem para projetos coletivos de emancipação.
A influência de Hirata e Kergoat na conformação de um campo político feminista e de esquerda no Brasil e seus desdobramentos na constituição de uma agenda contemporânea de lutas antineoliberal – na qual os processos de transformação social são vistos sob a ótica da centralidade do trabalho – são temas abordados no artigo escrito por Nalu Faria Silva, Renata Moreno e Tatau Godinho. A primeira parte do texto trata do processo de consolidação, sob a influência das teorias das autoras, de um campo feminista no Brasil, que entende o trabalho como pilar central da organização das dinâmicas de dominação, desigualdade e exploração. Na segunda parte, o texto discute dissonâncias de orientação política e de agenda de lutas entre feminismos dispostos (ou não) a enfrentar a materialidade das opressões, levando em conta as formas de organização da divisão sexual do trabalho globalizadas.
As análises sobre esse campo feminista de esquerda e a orientação política recente das lutas feministas contra o neoliberalismo são, no artigo, elaboradas a partir da explanação de como parte das experiências do movimento de mulheres brasileiro teve e tem nas contribuições teóricas Helena Hirata e de Danièle Kergoat alguns de seus pilares de sustentação. Destacam-se entre tais contribuições, a compreensão do trabalho como produção do viver, as elaborações sobre a divisão sexual do trabalho e as relações sociais de sexo, sobre o sujeito sexuado que se constrói nas lutas mistas (auto-organização de mulheres em processos políticos de esquerda) e acerca dos caminhos e desafios para visibilizar e enfrentar a precariedade laboral feminina, decorrente dos processos paradoxais de globalização neoliberal.
É nesse sentido que damos ao dossiê, que lança luz sobre a obra de Danièle Kergoat e Helena Hirata, o título de Aventura Coletiva. Essa é uma expressão que remete à introdução do livro “Travail et rapports sociaux de sexe. Rencontres autour de Danièle Kergoat” (DUNEZAT et al., 2010) sobre as pesquisas desenvolvidas por Kergoat em torno do grupo de estudos sobre a divisão sexual do trabalho, nas quais Helena Hirata é sua parceira. Também remete aos estudos de Kergoat sobre o movimento das enfermeiras na França, que permitem à autora estabelecer uma diferenciação entre formações de grupo e formações coletivas: nessas, a ação é definidora. Tomamos o termo de empréstimo para nos referir ao legado teórico e político coletivo das autoras, ao pioneirismo de seus estudos, à amplitude de suas referências nos estudos do trabalho e gênero, no Brasil, e à sua importância na luta das mulheres trabalhadoras.
Referências
DUZENAT, Xavier et al. (org.). Travail et rapports sociaux de sexe. Rencontres autour de Danièle Kergoat. Paris: L´Harmattan, 2010.
HIRATA, Helena. Nova Divisão Sexual do Trabalho? Um olhar voltado para a empresa e a sociedade. São Paulo: Boitempo, 2002.
HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. A classe operária tem dois sexos. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 2, n. 3, p. 93-100, 1994.
HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Paradigmas sociológicos revistos à luz da categoria de gênero. Que renovação aporta a epistemologia do trabalho? Revista Novos Cadernos – NAEA, Belém, v. 11, n. 1, p. 39-50, 2008.
HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Relações sociais de sexo e psicopatologia do trabalho. In: HIRATA, Helena. Nova divisão sexual do trabalho? Um olhar voltado para a empresa e a sociedade. São Paulo: Boitempo, 2002. p. 233-255.
KARTCHEVSKY, Andrée et al. (org.). O sexo do trabalho. Rio de Janeiro: Guerra e Paz, 1986.
KERGOAT, Danièle. O cuidado e a imbricação das relações sociais. In: ABREU, Alice Rangel de Paiva; HIRATA, Helena; LOMBARDI, Maria Rosa (org.). Gênero e trabalho no Brasil e na França: perspectivas interseccionais. São Paulo, SP: Boitempo, 2016.
KERGOAT, Danièle. Lutar, Dizem Elas.... Edições SOS Corpo: Recife, 2018.
1 No contexto francês, “relações sociais de sexo” tem um sentido de desnaturalização. Compreende-se que essas relações são marcadas por tensões fruto de interesses antagônicos.
2 A fotografia, realizada por Heloísa Capasso, trata-se de um registro da fotógrafa sobre o trabalho desenvolvido por mulheres artistas que formam o grupo Mãe da Rua. Esse grupo, gerido por mulheres desde 2014, ocupa ruas e praças de cidades brasileiras com o espetáculo Linha Vermelha, expressando a potência e os desafios das mulheres ao ocuparem o espaço público, seja com seus trabalhos artísticos e culturais, seja apenas ao trafegarem pela Linha Vermelha do metrô da cidade de São Paulo, indo de casa para o trabalho ou para a escola. A mesma imagem foi selecionada pela Mostra o Olhar Feminino que Transforma São Paulo, que foi realizada pelo Museu da Imagem e do Som (MIS) em julho de 2016.
3 As organizadoras também estão vinculadas ao projeto “Trabalho no Brasil e na França: sentido das mudanças e mudanças de sentido”, no âmbito do acordo CAPES-COFECUB (Edital nº. 16/2015).
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 53, Junho/Dezembro de 2020, p. 12-21
ATUALIDADE DA DIVISÃO SEXUAL E CENTRALIDADE
DO TRABALHO DAS MULHERES
RELEVANCE OF SEXUAL DIVISION AND CENTRALITY
OF WOMEN’S WORK
____________________________________
Helena Hirata1*
Danièle Kergoat2**
Resumo
Começamos com as definições de divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo, mostrando a atualidade teórica desses conceitos para pensar a definição do trabalho e sua centralidade, inclusive sob o regime neoliberal, mas também a atualidade política para compreender e analisar os movimentos populares e feministas que se desenvolvem atualmente no mundo inteiro. Apresentaremos em particular a participação das mulheres no movimento dos Coletes Amarelos na França, em 2018 e 2019, e o sentido das suas lutas atuais. Em seguida, mostraremos, a partir do exemplo do trabalho de cuidado, as variabilidades e as permanências da divisão sexual do trabalho: diferenças no espaço da divisão do trabalho entre homens e mulheres, que podemos apreender pela metodologia da comparação internacional e permanências no tempo da divisão sexual, que tem a ver com a correlação de forças entre homens e mulheres na sociedade, isto é, com as relações sociais de sexo. Em contraponto à análise das mulheres participantes do Coletes Amarelos, apresentaremos a mobilização das cuidadoras e auxiliares de enfermagem nas instituições de longa permanência de idosos na França, em 2017 e 2018, que mostram a forte correlação entre política e trabalho.
Palavras-chave: Divisão sexual do trabalho. Relações sociais de sexo. Mobilizações feministas. Trabalho do care.
Abstract
We begin with the definitions of sexual division of labor and sexual social relations, to show the theoretical relevance of these concepts to think about the definition of work and its centrality, including under the neoliberal regime, but also the political relevance to understand and analyze the popular and feminist movements that are developing currently worldwide. We will present particularly the participation of women in the Yellow Vests movement in France between 2018 and 2019, and the meaning of their current struggles. Then we will show, from the example of care work, the variability and permanence of the sexual division of labor: differences in the space of the division of labor among men and women, which we can apprehend through the methodology of international comparison, and the permanence in time of sexual division, which has to do with the correlation of forces between men and women in society, that is, with gender social relations. In contrast to the analysis of women in Yellow Vests, we will present the mobilization of caregivers and nursing assistants in long-term care institutions for the elderly in France, between 2017 and 2018, which show the strong correlation between politics and work.
Keywords: Sexual division of labour. Gender social relations. Feminist movements. Care work.
1* Socióloga. Diretora de pesquisa emérita do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e pesquisadora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da USP. Áreas de pesquisa: trabalho e divisão sexual do trabalho, gênero e globalização, teorias e práticas do cuidado numa perspectiva comparada. Publicações: 1) Nova divisão sexual do trabalho? Um olhar voltado para a empresa e a sociedade. São Paulo: Boitempo, 2002; 2) com LABORIE, F.; LE DOARÉ, H.; SENOTIER, D. (coord.). Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Edunesp, 2009; 3) com PAIVA ABREU, R. de.; LOMBARDI, M. R. (org.). Gênero e trabalho no Brasil e na França. Perspectivas interseccionais. São Paulo: Boitempo, 2016; 4) com GUIMARÃES, N. A. O gênero do cuidado. São Paulo: Ateliê, 2020.
2** Socióloga. Diretora de pesquisa honorária do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e fundadora do Groupe d’Études sur la Division Sociale et Sexuelle du Travail (GEDISST), atual Genre, Travail, Mobilités (GTM). Ela é responsável pela coleção Le genre du monde da Editora La Dispute. Áreas de pesquisa: divisão sexual do trabalho, relações sociais de sexo, operárias, movimentos sociais e emancipação. Publicações: 1) Les ouvrières. Paris: Sycomore, 1982; 2) Les femmes et le travail à temps partiel. Paris: Ministère du travail, de l’emploi et de la formation Professionnelle, 1984; 3) com IMBERT, F.; LE DOARÉ, H.; SENOTIER, D. Les infirmières et leur coordination 1988-1989. Paris: Lamarre, 1992; 4) Lutar, dizem elas...Recife: Ed. SOS Corpo, 2018.
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 53, Junho/Dezembro de 2020, p. 22-34
Retomando as definições de divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo
A problemática da divisão sexual do trabalho e a questão correspondente de relações sociais de sexo têm uma longa história. Elas nascem na França, no fim dos anos 1970, num contexto social e econômico bastante particular: o do movimento feminista da segunda onda e de movimentos sociais então muito fortes, com a emergência de novos atores até então invisibilizados (os jovens, as mulheres, os/as imigrantes). Também se deve lembrar o movimento maciço de assalariamento crescente das mulheres, iniciado nos anos 1960.
Em tal contexto, tratava-se para nós, sociólogas feministas, de destrinchar as velhas conceitualizações em vigor na Sociologia. A partir da afirmação de que o trabalho doméstico era trabalho, no sentido pleno, contestamos a separação entre Sociologia da Família e Sociologia do Trabalho, mostrando que a teorização em termos de papéis sociais era inadequada para pensar a realidade do trabalho. Afirmamos que era impossível falar de divisão social do trabalho ancorando-a na doxa marxista, sem dar um lugar determinante à divisão sexual do trabalho. Falamos, a propósito dessa reconceitualização do trabalho, de “revolução copernicana” (DELPHY; KERGOAT, 1982).
Que definição dávamos e damos ainda hoje? A divisão sexual do trabalho tem por característica a atribuição prioritária das mulheres à esfera reprodutiva enquanto os homens são designados à esfera produtiva. Paralelamente, os homens captam as funções de forte valor social agregado (políticas, religiosas, militares etc.). Quanto à estrutura mesma da divisão sexual do trabalho, trata-se em primeiro lugar da separação entre “trabalho de homem” e “trabalho de mulher”. Todas as sociedades conhecidas operam segundo essa separação. Separação, mas também, e sobretudo, hierarquização: um trabalho de homem vale mais do que um trabalho de mulher, tanto no plano simbólico quanto no plano econômico (KERGOAT, 2000).
Entretanto, se esses princípios organizadores se encontram em todas as sociedades conhecidas, a História e a Antropologia mostraram a variabilidade extrema das modalidades da divisão sexual do trabalho: tal profissão masculina numa sociedade será considerada feminina em outra. A mesma constatação pode ser feita em relação às empresas.
Quanto às relações sociais, elas estão na origem dessa forma de divisão social do trabalho. As relações sociais organizam, isto é, nomeiam e hierarquizam as divisões da sociedade: privado/público, trabalho manual/trabalho intelectual, capital/trabalho, divisão internacional do trabalho etc. As modalidades materiais dessas bicategorizações antagônicas são o que está em jogo (l’enjeu) nas relações sociais: a divisão social do trabalho entre os sexos é o que está fundamentalmente em jogo nas relações sociais de sexo.
Assim como a divisão sexual do trabalho, as relações sociais possuem princípios organizadores. Distinguimos quatro deles: a exploração (extorsão do sobretrabalho de um grupo social por outro), a dominação (ou violência simbólica), a opressão (que recobre todas as formas de violência física), a apropriação (“colocar à disposição ótima do empregador/a que assegura de facto a exposição permanente dos corpos ao trabalho a ser realizado”1). Apenas quando uma relação social acumula essas quatro propriedades, pode-se afirmar que se trata de uma relação transversal e estruturante de toda a formação social considerada. As relações sociais de sexo são uma perfeita ilustração desse esquema.
Conceitualizar outra forma o trabalho
Levar isso centralmente em conta é indispensável para poder elaborar o conceito de trabalho em toda sua extensão. Como já observamos (KERGOAT, 2018), o trabalho é uma “atividade paradigmática” (VINCENT, 1987) no sentido em que ele é central sociologicamente, porque é um mediador privilegiado das relações entre indivíduo e sociedade, e central politicamente, porque é ele que organiza a produção do viver em sociedade (HIRATA; ZARIFIAN, 2000), e é através dele que podemos colocar o problema da emancipação.
Essa centralidade do trabalho parecia evidente quando em torno dele se organizavam a maior parte dos movimentos sociais significativos e o movimento operário era forte na França. Mas a centralidade do trabalho permanece nesses tempos de desemprego, de globalização, de empreendedorismo e de uberização do emprego, pois é segundo essas mediações que a sociedade – tanto francesa quanto brasileira – reconfigura-se atualmente.
Compreender as sociedades atuais e sua evolução passa, portanto, pelo reconhecimento da centralidade do trabalho. Mas não é a partir de qualquer conceitualização do trabalho. Ela necessita levar em conta o “trabalho reprodutivo” (como fizeram as feministas italianas) ou, como teorizou a escola francesa da divisão sexual do trabalho, o “trabalho doméstico”, entendendo que ele recobre tanto o trabalho doméstico quanto o trabalho parental ou o trabalho doméstico de saúde.
Uma digressão se impõe. As duas noções designam sensivelmente a mesma realidade empírica, porque para nós o trabalho doméstico remetia ao conjunto do trabalho reprodutivo, prova disso é o título da coletânea O sexo do trabalho. Estruturas familiares e sistema produtivo (COLLECTIF, 1984). Os conceitos de “trabalho reprodutivo” e “trabalho doméstico”, contudo, foram elaborados em contextos sociais muito diferentes: a maioria da população feminina italiana dos anos 1970 era constituída do que se convencionou chamar “donas de casa”. A situação das francesas era diferente, pois, como lembrávamos no início deste artigo, os anos 1960 tinham visto uma explosão do assalariamento feminino na França.
O que nos importava não era, portanto, descobrir, no contexto político dos anos 1970, na Itália, novos conceitos extraídos de uma leitura exegética da obra de Marx (FEDERICI, 2019), nem uma nova jazida de atores potencialmente revolucionários (DALLA COSTA; JAMES, 1973), mas, sociologicamente, dar um estatuto dinâmico à articulação entre trabalho assalariado e trabalho doméstico, seguindo nisso o espírito do feminismo da segunda onda que afirmava que “o privado é político” e proclamava seu “saco cheio” do trabalho gratuito e invisível, que é o trabalho doméstico. É, portanto, indispensável levar em consideração a divisão sexual do trabalho para pensar a divisão social do trabalho, tanto como conceito quanto como realidade empírica.
Isso porque o período atual passa por uma reestruturação profunda do aparelho produtivo. Como em todos os períodos similares que o precederam, observa-se movimentos muito intensos de redefinição das qualificações e de redistribuição da mão de obra: surgem novas profissões, muitas qualificações se tornaram obsoletas e não podem mais servir de base a uma equivalência “diploma-qualificação-classificação”. Esse movimento é acompanhado de uma bipolaridade acentuada entre trabalho manual e trabalho intelectual.
A divisão sexual do trabalho:
um instrumento poderoso para compreender as mutações do período atual
Simultaneamente, em âmbito mundial, as populações migram – por razões climáticas, econômicas ou políticas –, para tentar encontrar um abrigo, um trabalho, um ganha-pão. Mas, se essas populações conseguem chegar a um país “rico”, elas se encontram diante de um mercado de trabalho degradado, precarizado, uberizado, desregulado e da oferta de trabalho desqualificado. A (super) exploração é renovada nas suas formas e intensificada, sendo uma situação comum aos homens e às mulheres.
É esse o horizonte em que evolui atualmente a divisão sexual do trabalho. Se nesse novo contexto suas modalidades se transformaram, sua estrutura é notavelmente perene. “Trabalho de homem” e “trabalho de mulher” continua sendo uma oposição atual, mesmo se os trabalhos de uns e outros se modificaram (FALQUET, 2006). Pode-se dizer a mesma coisa quanto à hierarquização dos empregos: reconhece-se que o emprego de armas necessita de um mínimo de aprendizagem, a coisa muda totalmente no que diz respeito aos empregos femininos em pleno desenvolvimento nos países do Norte. Pensamos principalmente nos serviços de cuidado ou de limpeza (crianças, pessoas idosas, arrumação das casas e dos locais de trabalho). Essas profissões requerem qualidades que são consideradas inatas (pelo sexo, mas também pela origem étnica), e não adquiridas por uma aprendizagem: são fatos da natureza e não da cultura. Dessa forma, não há necessidade de retribui-las convenientemente. É como se a menina originária de classes populares, por sua educação específica de futura reprodutora e o exercício cotidiano do trabalho doméstico, não precisasse adquirir as qualidades para exercer esses empregos. Assim, essas mulheres não são babás ou diaristas porque não foram formadas ou foram mal formadas pelo aparelho escolar, mas porque elas são bem formadas pelo conjunto do trabalho reprodutivo – que elas devem assegurar dado o seu lugar na divisão sexual do trabalho e, mais amplamente, na divisão social no seu conjunto.
Ao mesmo tempo, a aquisição dos saber-fazer requeridos pelo mercado de trabalho, sendo realizada amplamente fora dos canais institucionais de qualificação e sempre em referência à esfera do privado, aparece-lhes como uma aquisição individual, natural e não coletiva: elas interiorizam a banalização de sua própria qualificação e se encontram, por isso, pouco armadas quando se trata de negociar um salário conveniente. Esse é um dos principais obstáculos à mobilização coletiva dessas mulheres. Mas, como veremos mais adiante, as formas atuais do neoliberalismo se têm de início efeitos opressores para a mão de obra globalizada, têm também efeitos inesperados em termos de mobilização.
Centralidade do trabalho das mulheres: suas mobilizações
É também num outro nível que convém interrogar a realidade. A consideração do trabalho feminino é central para compreender o funcionamento das sociedades desenvolvidas atuais. Como sublinhava Pierre Rimbert em seu artigo O poder insuspeitado das trabalhadoras (RIMBERT, 2019), essas sociedades parariam simplesmente de funcionar se não houvesse o trabalho de todas essas mulheres: professoras, puericultoras, enfermeiras, cuidadoras, trabalhadoras domésticas, diaristas, agentes de limpeza etc.
Os sindicatos têm dificuldade em medir esse fenômeno, pois sua história se construiu a partir da figura do trabalhador operário, masculino, branco, operando nas minas ou metalúrgico. E, consequentemente, não conseguem mensurar o poder subversivo potencial dessas trabalhadoras. Esses empregos, não deslocáveis, são para as mulheres e apenas para elas.
Entretanto emergem movimentos em escala mundial, o que torna urgente levar em consideração as novas formas de conflitualidade. É o que quis testemunhar um livro como Feminismo para os 99%. Um manifesto (ARRUZZA; BHATTACHARYA; FRASER, 2019). No Brasil, na Índia, em Israel, no Líbano, é a luta das trabalhadoras domésticas. Na Espanha, em 2018, cinco milhões de manifestantes desfilaram contra as violências tanto patriarcais quanto capitalistas; é também o movimento mundial de #MeToo. Na França, é a jornada contra as violências às mulheres, no dia 23 de novembro de 2019, que reuniu 49 mil manifestantes em Paris. É também a intensa preparação da greve que acompanhou o 8 de março de 2020 (“Paramos todas”). E é, enfim, a participação maciça das mulheres no movimento dos Coletes Amarelos.
As mulheres no movimento dos Coletes Amarelos
Esse movimento2 incandesceu a França durante muitos meses, sobretudo a partir de 17 de novembro de 2018. Ele colocou o governo em dificuldade em alguns momentos. Tratou-se da radicalização das classes populares, em que se reencontraram lado a lado múltiplas categorias socioprofissionais modestas: empregados assalariados, precários ou não, mas em todo caso com baixa remuneração, pequenos empresários, empreendedores tipo MEI (microempreendedor individual), desempregados, mas também sem-teto, aposentados e aposentadas, pessoas com deficiência etc.
A mídia francesa se referiu a esse movimento quase unicamente através das violências, reais ou supostas, que acompanharam as manifestações, que contaram também com assembleias gerais, realizadas regularmente nas regiões, e com a elaboração de pautas de reivindicações.
As mulheres, como dissemos, foram muito ativas nesse movimento. Não se tratava de mulheres quaisquer, mas de mulheres provenientes das classes populares que se insurgiram contra a precariedade de seus empregos, seus baixos salários, a queda drástica da proteção social, a supressão programada dos serviços públicos, sua condição (no caso das mães solteiras), mas também contra o desprezo do poder pelos pequenos, pela “gentinha”.
Se todas contestam o peso do sistema político face à sua vida profissional (ou à ausência de vida profissional, no caso das desempregadas) e à sua vida privada, algumas foram mais longe, denunciando o aspecto sistêmico das violências exercidas contra as mulheres, a violência das relações sociais de classe e das relações sociais de sexo, a apropriação singular do trabalho das mulheres e de seus corpos através da supressão programada dos serviços públicos
É, portanto, a divisão sexual do trabalho que permite dar conta da mobilização dessas mulheres e de muitas outras no mundo inteiro, bem como das modalidades dessa mobilização.
Divisão sexual do trabalho: permanência e variabilidade
Na segunda parte deste artigo, queremos utilizar outra chave para a compreensão da divisão sexual do trabalho: as variabilidades no espaço e a permanência no tempo da divisão sexual do trabalho, a partir do recurso metodológico das comparações internacionais.
Já tínhamos conceitualizado a permanência e as variabilidades na divisão sexual do trabalho em termos de sincronia e diacronia (HIRATA, 1995). Dizíamos, nesse artigo de 1995, que tanto a variabilidade quanto a persistência da divisão sexual do trabalho podem ser encontradas no tempo e no espaço, mas que a diacronia é a dimensão privilegiada para apreender a permanência, assim como a sincronia para apreender a variabilidade. A comparação de diversos espaços nacionais permite apreender as diferenças entre os sexos, assim como a comparação no tempo permite constatar o que permanece nas relações sociais entre os sexos. Esse paradoxo aparente – persistência na variabilidade – remete à imbricação, na divisão sexual do trabalho, de relações sociais que não são periodizáveis da mesma maneira. As dimensões constitutivas do tempo das relações sociais de sexo (evolução, rupturas e continuidades) não são as mesmas que as dimensões constitutivas do tempo das relações sociais capital-trabalho. Assim, esses dois tempos não são periodizáveis da mesma forma. Poderíamos levantar a hipótese de que as mudanças na divisão sexual do trabalho remetem às conjunturas econômicas e às relações de classe, o que não quer dizer que as correlações de força entre os sexos não desempenhem um papel nessas mudanças, e que as permanências remetem mais às relações sociais de sexo, ou a uma das dimensões temporais dessas relações.
Também no texto citado afirmávamos a importância dos movimentos sociais, e em particular dos movimentos feministas, para a criação de uma correlação de forças que fosse no sentido de uma modificação ou não das relações sociais entre os sexos. A partir de um olhar sobre o que muda na divisão sexual do trabalho, poderíamos dizer que o que parece sobredeterminante é o tipo de correlação de forças entre os homens e as mulheres na sociedade, correlações de forças institucionalizadas ou não, mas que são frequentemente o resultado de amplas lutas sociais, de movimentos sociais e, sobretudo, da existência ou não de movimentos feministas e de atividades conscientes em vista de uma transformação das relações sociais.
Permanência da divisão sexual do trabalho:
a centralidade do trabalho das mulheres no trabalho de cuidado
Uma primeira permanência notável nos três países em que foi desenvolvida pesquisa sobre o trabalho de cuidado é a centralidade do trabalho das mulheres. Elas têm um papel central porque são provedoras de cuidados gratuitos no domicílio e cuidados profissionais em instituições e nas residências fora de sua família. Elas têm um papel central porque a sociedade atribui o trabalho doméstico e de cuidado a um dos sexos, cristalizando, dessa forma, a divisão sexual do trabalho, tanto profissional quanto doméstico, entre homens e mulheres.
O care pode ser definido como um conjunto de práticas materiais, emocionais e psicológicas que dão respaldo às necessidades dos outros. O care, o cuidado, foi exercido e continua a sê-lo no espaço doméstico, na esfera dita “privada”, e realizada “por amor” junto às pessoas idosas, às crianças, aos doentes, às pessoas com deficiências físicas e mentais.
A centralidade do trabalho das mulheres pode ser constatada também no quadro da nova divisão sexual e internacional do trabalho. A análise do trabalho do care confirma a centralidade do trabalho feminino nas instituições e no domicílio, realizado gratuitamente ou a título de atividade remunerada. A despeito das diferenças societais, esse trabalho é realizado pelas mulheres, com algumas exceções a que nos referiremos adiante, e provavelmente continuará sendo, por se tratar de um trabalho precário, com baixos salários, pouco reconhecido e valorizado. A organização social do cuidado (OSC) atribui um papel central à mulher e à família.
Para além das grandes diferenças entre Brasil, França e Japão, tanto pelo seu nível de desenvolvimento econômico e tecnológico, quanto por sua história sociopolítica e cultural, esses três países fazem face ao envelhecimento rápido de sua população e à falta de mão de obra gratuita das mulheres, que nos três países estão cada vez mais presentes no mercado de trabalho e não podem mais se ocupar das pessoas dependentes no seio de sua própria família. É esse duplo fenômeno que engendra o que é chamado de “crise do cuidado”. Ele teve como consequência o desenvolvimento das profissões relacionadas ao cuidado e à mercantilização e externalização crescentes desse trabalho.
A centralidade do trabalho das mulheres é tanto quantitativa, pela inserção maciça das mulheres no mercado de trabalho, quanto qualitativa, pois seu investimento é essencial para o trabalho reprodutivo e pelo fato de que elas estão nas profissões de produção da vida, as profissões do care. Podemos observar a centralidade do trabalho das mulheres tanto realizado gratuitamente quanto como atividade remunerada, nas instituições e nos domicílios.
As principais atrizes e os principais atores do care, além das cuidadoras, o Estado, mercado, família e comunidade, agem em cada país de maneira desigual e assimétrica, mas as mulheres continuam a realizar majoritariamente o trabalho do care e em domicílio. No Brasil, são as trabalhadoras domésticas e as diaristas sem registro; na Europa, as mulheres imigrantes e muitas vezes sem documentos; no Japão são as mulheres que acumulam frequentemente o cuidado em relação aos pais idosos e o trabalho de care remunerado em domicílio. A imbricação das relações sociais se faz diferentemente em cada país (KERGOAT, 2016), mas a organização social do care atribui de maneira constante um papel central às mulheres e à família nos três países estudados.
Variabilidade no espaço da divisão sexual do trabalho:
os homens no trabalho de cuidado no Japão
O grande número de homens que trabalham como cuidadores nas instituições japonesas, shisetsu, é bastante surpreendente, sobretudo, quando se sabe o quanto o care é considerado um trabalho de mulher no espaço doméstico. Na França, pouco mais de 10% dos profissionais de cuidados eram homens nas instituições de longa permanência de idosos. Nas instituições similares no Brasil (ILPI), eles eram menos de 5%. Nos shisetsu do Japão, eles chegavam a quase 40%. Em números absolutos, do total de 265 cuidadoras(es) entrevistadas(os) nos três países, 215 eram mulheres (81%) e 50 homens (19%). No Brasil, foram entrevistadas(os) 82 mulheres e 4 homens; na França, 82 mulheres e 13 homens; no Japão, 51 mulheres e 33 homens. Mais de 95% dos cuidadores no Brasil eram mulheres. Na França, eram quase 90%.
Os homens e as mulheres japoneses entrevistadas(os) consideravam que o ambiente misto é um aspecto positivo de suas atividades. Os depoimentos de alguns deles se assemelham aos ouvidos em pesquisas efetuadas na indústria. “É melhor ter um homem. Existem tarefas que exigem força física. E a atitude dos homens também se modifica quando há mulheres presentes” (trabalhador do care, 42 anos). Mas outras considerações foram menos previsíveis: “De uma maneira geral, é melhor ter os dois, homens e mulheres. Pode-se beneficiar da maneira diferente de ver as coisas” (trabalhador do care, 50 anos). Ou ainda, “pode-se, assim, ter os bons lados de cada um, homens e mulheres” (trabalhador do care, 26 anos). Há um paradoxo evidente nesse investimento feito pelos homens em tarefas consideradas tradicionalmente como femininas – tomar conta de pessoas idosas, dar banho, alimentar, levá-las ao banheiro, vestir, mas também, conversar com elas e interagir –, se levarmos em conta a tradição, ainda muito machista, da divisão do trabalho profissional e doméstico na sociedade japonesa.
Diversas explicações podem ser encontradas para essa variabilidade na divisão sexual do trabalho do cuidado que a comparação internacional revela. A mais importante parece ser a crise econômica que atingiu o Japão com a falência da Lehman Brothers, em 2008, o que provocou desemprego em massa de homens que estavam no setor industrial ou no setor financeiro (bancos e companhias de seguros). O governo japonês propôs a formação gratuita para a profissão de cuidador com garantia de emprego numa instituição de longa permanência de idosos ao final da formação profissional. Trabalhar numa atividade tradicionalmente feminina era uma alternativa melhor do que o desemprego. Entre o não trabalho ou o desemprego e o trabalho no setor do care, a escolha dos homens japoneses foi clara. A despeito das dificuldades e da penosidade ligadas a essa atividade, o emprego nesse setor em expansão abriu perspectivas de carreira e certa estabilidade, frente à terrível experiência do desemprego. Também desde 2000, com a implantação do LTCI (Long Term Care Insurance3) houve, da parte do governo, uma propaganda maciça nas mídias quanto à nova profissão de cuidador de idosos como perspectiva para os jovens formandos de ambos os sexos. Foram as instituições de longa permanência de idosos que acolheram os candidatos homens para desempenhar o trabalho de cuidador, pois no cuidado em domicílio, que requer a realização simultânea do trabalho doméstico e de cuidados, são as mulheres essencialmente que o realizam.
Permanências na divisão sexual do trabalho: “teto de vidro” e desigualdades salariais
Como em pesquisas realizadas nos anos 1980 e 1990 no setor industrial, pudemos constatar que os postos de direção e de supervisão são geralmente ocupados por homens nos três países, e que o fato de as mulheres serem majoritárias entre as cuidadoras não garante a elas o acesso aos postos de “líder” ou de diretoras. A feminização dos postos de direção era mais importante na França do que no Japão ou no Brasil, o que seríamos tentadas a atribuir à força dos movimentos feministas pela igualdade entre os sexos no primeiro país.
Uma segunda permanência notável, apesar das diferenças de tratamento entre homens e mulheres nos países, diz respeito às desigualdades salariais. Se já afirmamos em outros textos a permanência da desigualdade de remuneração entre os sexos a partir de uma perspectiva diacrônica, na temporalidade de um século (HIRATA, 2018), podemos afirmar que as profissionais mulheres do cuidado recebem, nas instituições, salários inferiores aos dos seus homólogos masculinos. Para além das desigualdades salariais entre homens e mulheres, há desigualdades salariais substanciais entre os países: salários maiores no Japão para os dois sexos, salários inferiores no Brasil para os dois sexos, a França ficando numa situação intermediária. Os salários mais altos no Japão se explicam principalmente pela existência do “bônus”: um salário suplementar pago duas vezes ao ano, representando três a quatro salários mensais e beneficiando os assalariados regulares na empresa. Outra desigualdade entre os países que repercute sobre os salários é a prática de horas extras sem remuneração, que é constante no setor de cuidados nos anos 2000, como era usual nos anos 1980 no setor industrial, conforme pesquisa sobre firmas multinacionais no Brasil, na França e no Japão (HIRATA, 2020).
Cuidadoras(es) e percepções do cuidado: similitudes
A partir de um pequeno grupo de entrevistadas(os), podemos levantar alguns pontos sobre as diferenças e similaridades na atividade de cuidado no Brasil, França e Japão. Analisando em profundidade nove entrevistas, seis mulheres e três homens4, três em cada país, encontramos várias semelhanças entre mulheres e homens, e entre os trabalhadores e trabalhadoras dos três países, na maneira de conceber o care e na realização da atividade de cuidado.
Na atividade de cuidado, há uma série de convergências entre a disposição das cuidadoras e cuidadores dos três países. Uma primeira é a ideia de presença associada ao care. Cuidar é estar presente, e a presença é sempre para um indivíduo e não para uma multiplicidade de pessoas. Quando se trata de muitas pessoas, a possibilidade de garantir a presença se esvai. Uma segunda convergência é a diferença na resposta sobre “o que é o cuidado” e “em que consistem suas atividades”. A questão sobre o que é o cuidado remete à disposição e coloca o cuidador na dimensão da ética e do trabalho concreto. O care é pensado em relação a um indivíduo singular, as “atividades” nos põem na presença de um coletivo, à necessidade de cooperação e a níveis de dependência diferentes segundo os indivíduos. A terceira convergência: o care e as “atividades” são pensados como ajuda por três cuidadoras mulheres e por um cuidador homem. A noção de “ajuda” relacionada ao “cuidado” aparece de maneira recorrente. A quarta convergência: as atividades se referem não apenas à dimensão fisiológica, mas também à dimensão psicológica e, entre as disposições, a paciência é necessária para realizar essas atividades.
Embora as diferenças societais entre os três países considerados sejam significativas na definição do que é o cuidado e nas diferentes atividades, tais como elas são expressas pelas trabalhadoras e trabalhadores entrevistadas(os), não foi possível constatar diferenças importantes, mas sim similitudes nas disposições e nas práticas.
Cuidadoras(es) e percepções do salário e dos problemas de saúde: similitudes
As cuidadoras e cuidadores têm a mesma percepção dos salários, considerados baixos nos três países, a despeito das desigualdades salariais entre eles. A ideia de um não reconhecimento do valor monetário do trabalho do cuidado é recorrente no Japão, como na França e no Brasil, e expressa por mulheres e homens. A diferença entre os sexos se encontra no argumento sobre as consequências desses baixos salários: os homens empregados, sobretudo no Japão, consideram que eles não poderiam se casar e fundar uma família com os salários que recebem.
Outro ponto de semelhança é relativo aos problemas de saúde no trabalho, sobretudo, lombalgias e hérnias de disco, declarados como males muito frequentes nos três países, tanto pelas mulheres quanto pelos homens. Não há, da parte da direção dos estabelecimentos, nenhuma prática preventiva para evitar essas dores incapacitantes de que praticamente todos os trabalhadores, homens e mulheres, se queixam.
Divisão sexual do trabalho e mobilizações femininas no setor do cuidado
A variável sindical deve ser levada em conta para explicar a diferença nas mobilizações no setor de cuidado. Quando avaliamos as entrevistas realizadas nos três países, é preciso notar que as respostas das(os) entrevistadas(os) são mais uniformes e padronizadas no Japão. Nesse país, há pouca contestação da organização do trabalho e da atitude da direção. Na França, os sindicatos estão mais presentes e os discursos manifestam mais frequentemente desacordos com a direção.
O setor de cuidado se mobilizou recentemente na França – em 2017 e 2018 – e não constatamos movimentos similares no Japão ou no Brasil. No Japão, não tivemos conhecimento da presença de sindicatos nas instituições pesquisadas. No Brasil, ainda há poucas associações de cuidadoras, e são os sindicatos de trabalhadoras domésticas que representam as cuidadoras. A profissão ainda não é regulamentada, pois o projeto de lei, aprovado pelo parlamento, não foi sancionado pelo presidente da República em 2019 (MORENO, 2019).
Se as mulheres francesas que fazem parte do movimento dos Coletes Amarelos pertencem a vários setores da sociedade que formam as “classes populares”, como assinalamos na primeira parte deste artigo, a mobilização das cuidadoras e auxiliares de enfermagem nas instituições de longa permanência de idosos na França, nos anos de 2017 e 2018, são movimentos que partem de uma categoria socioprofissional. Essas mobilizações foram realizadas contra as restrições orçamentárias do Ministério da Saúde, que provocaram intensificação do trabalho e um cuidado de má qualidade. Que sejam as mulheres o contingente maciço de grevistas não é de estranhar, sendo a categoria composta por quase 90% de mulheres nesse país. Trata-se de uma greve de 117 dias num estabelecimento situado em Foucherans, no leste da França (PELLETIER, 2019, p. 272-280). A reivindicação, que visa diretamente o Estado, foi de conceder financiamentos consequentes ao setor da saúde, para a criação de mais postos de trabalho que permitam às cuidadoras realizarem adequadamente o seu trabalho junto aos idosos (PELLETIER, 2019). A questão do “valor de uso” do seu trabalho remete à análise feita por Danièle Kergoat (KERGOAT et al, 1992) do movimento das enfermeiras na França, em 1988 e 1989, e a emergência de uma “nova figura salarial feminina”. As trabalhadoras do care na França poderiam ser vistas como uma nova emergência dessa figura esboçada no movimento social das enfermeiras do fim dos anos 1980.
Conclusão
Analisamos os conceitos de divisão sexual do trabalho e de relações sociais de sexo com o objetivo de mostrar a sua atualidade, tanto teórica quanto política, tentando pensar através delas movimentos de resistência e de emancipação, como os das mulheres Coletes Amarelos e das cuidadoras de instituições no interior da França. Somos tentadas a considerar atual a reflexão de Hélène le Doaré segundo a qual “as condições respectivas do trabalho dos homens e das mulheres mudam segundo o contexto histórico, cultural, econômico, porém não se transformam – seguem obstinadamente a mesma linha de partilha dos espaços masculinos e femininos” (LE DOARE, 1994, p. 65).
Colocar a divisão sexual do trabalho e as relações sociais de sexo no centro dos dispositivos de análise permite não apenas tornar visíveis um grande número de fenômenos que passariam desapercebidos, mas igualmente dinamizar os conceitos de trabalho e de divisão social do trabalho e abordar de maneira inclusiva os movimentos sociais em toda a sua amplitude e diversidade. Colocar esses conceitos no centro da reflexão cidadã e feminista é uma necessidade 5.
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Recebido em 26/02/2020
Aceito em 21/12/2020
1 Para o conceito de apropriação, ver Guillaumin (1992).
2 Esse movimento apareceu na França em outubro de 2018. Trata-se de um movimento social que começou de forma espontânea contra o aumento do preço da gasolina. Sua origem está nas redes sociais. A partir de novembro de 2018, a visibilidade crescente do movimento apoiou-se, de um lado, numa manifestação todos os sábados em praticamente todas as cidades relativamente importantes da França e, de outro, no bloqueio das estradas e das encruzilhadas nas zonas menos urbanizadas. Nas metrópoles, essas manifestações do sábado eram acompanhadas frequentemente de violências (contabilizou-se muitos milhares de pessoas feridas, na maioria das vezes manifestantes). São essas violências, o caráter esporádico do movimento, seu aspecto espontâneo (a recusa do princípio de delegação) que atraíram a atenção da mídia. Entretanto trata-se de um trabalho militante considerável. Rapidamente, as reivindicações do movimento adquiriram dimensões sociais e políticas. Assembleias gerais foram regularmente realizadas no interior da França e listas de reivindicações foram elaboradas. Deve-se acrescentar que no dia 12 de dezembro de 2020 foi festejado, com manifestações em Paris e em toda a França, o segundo aniversário do movimento.
3 O LTCI (Long Term Care Insurance) ou kaigo hoken é o principal instrumento de políticas públicas do governo japonês, implementado em 2000, para o cuidado de pessoas idosas dependentes. Ele é financiado por um imposto obrigatório para os japoneses ou estrangeiros residentes de 40 anos ou mais e propicia o acesso dos idosos, a partir de 65 anos, a uma instituição ou ao auxílio de uma cuidadora domiciliar.
4 Para uma apresentação detalhada das entrevistas, ver Hirata (2020).
5 Esse artigo foi concebido e discutido pelas autoras. A redação da primeira parte é de Danièle Kergoat; a da segunda parte, que se inicia com “Divisão sexual do trabalho: permanência e variabilidade” foi redigida por Helena Hirata, que é também a tradutora da primeira parte, escrita originalmente em francês.
A TRANSVERSALIDADE DO GÊNERO:
desafiando cânones nos estudos brasileiros do trabalho1
GENDER TRANSVERSALITY:
challenging the canons in Brazilian studies of work
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Nadya Araujo Guimarães*
Resumo
Este artigo se desenvolve ao redor de uma noção, a de “transversalidade do gênero”. Do ponto de vista intelectual, essa categoria ajuda a entender como se realizou no Brasil uma virada metodológica, a que recusava a atribuir à condição de sexo o estatuto de mera variável independente, acionada para explicar a diversidade nos resultados alcançados por homens e mulheres tanto no acesso como na mobilidade e remuneração no trabalho. Isso trouxe, como consequência teórica, assumir que a natureza das relações sociais de sexo nos cotidianos de trabalho seria incompreensível, porque inseparável, da maneira como a divisão sexual do trabalho se constituía no mundo extratrabalho. As protagonistas desse esforço foram estudiosas das interfaces entre gênero, processos e mercados de trabalho, que conseguiram incluir tal debate na agenda da recém-constituída Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), notadamente via os GTs “Processo de trabalho e reivindicações sociais” e “A mulher na força de trabalho”. Inspiravam-nas tanto a literatura feminista como os avanços da história social do trabalho e as novas tendências do marxismo acadêmico. Duas intelectuais sediadas fora do Brasil foram decisivas nesse movimento, Daniele Kergoat e Helena Hirata, “tradutoras” entre mundos acadêmicos diversos. Neste artigo, ao retraçar os caminhos pelos quais suas ideias penetraram o debate brasileiro, podemos acompanhar como se reconfiguraram os estudos do trabalho no Brasil, observando o entrecruze entre histórias pessoais, intelectuais e institucionais.
Palavras-chave: Gênero. Trabalho. Danièle Kergoat. Helena Hirata.
Abstract
This article develops around the notion of “gender transversality”. From an intellectual point of view, this category helps us to grasp how a methodological turn occurred in Brazilian gender studies, which refused the understanding of “sex” as a mere independent variable, triggered to explain the unequal results achieved by men and women in access, mobility and rewards in the labor market. As a theoretical consequence, researchers assumed that understanding social relations among men and women in the workplace required grasping the characteristics of the sexual division of labor outside the workplace. The protagonists of this effort, experts in the interfaces between gender, labor processes and labor markets, succeeded on including this debate in the agenda of ANPOCS, the Brazilian Association of Graduate Studies and Research in Social Sciences, via its working groups on “ Labor process and social demands” and “Woman in the labor force”. Their inspiration was threefold: the feminist literature, the new developments in the social history of work, and the academic Marxism. Two researchers based outside Brazil played a decisive role in this intellectual movement, Danièle Kergoat and Helena Hirata, performing as “translators” between different academic worlds. In this article, by retracing the arrival of their ideas in the Brazilian debate, it is possible to track changes and advances in the studies of work in Brazil, through the lenses of the intersection between personal, intellectual and institutional pathways.
Keywords: Gender. Work. Danièle Kergoat. Helena Hirata.
Entrecruzando histórias intelectuais, institucionais e pessoais
Em 1990, a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS) decidiu testar um novo formato para os seus encontros anuais. Intuía-se que as reuniões assentadas em debates travados nos Grupos de Trabalho (GTs), conquanto nutrissem produtivas controvérsias, mantinham os especialistas e suas ideias aprisionados nos limites das suas próprias “tribos”. Com efeito, os GTs haviam funcionado, até então, como os espaços por excelência de legitimação de temas, os quais tinham sua centralidade avalizada pela existência de um grupo de experts a eles dedicados. Mas eram também espaços de consagração de pesquisadores. Afinal, compor o seleto grupo dos que ali expunham seus trabalhos era um indubitável sinal de reconhecimento acadêmico, que poderia ser transformado em consagração quando se alcançava a honraria de ter o texto veiculado no anuário que reunia o melhor do que circulara entre os grupos mais reconhecidos.
Todavia, o bem-sucedido formato, adotado nos treze primeiros anos de vida da Associação, continha o risco de fragmentar os debates e insular os pesquisadores. As evidências eram desafiadoras. Por um lado, a velocidade com que se multiplicavam os centros, os programas e, em especial, os novos cientistas sociais neles acolhidos mostrava que a “dança de cadeiras” por lugares proeminentes na veiculação de ideias se tornava de difícil gestão. Assim, em 1989, pouco mais que dez anos após a criação da Associação, o número de grupos de trabalho em atividade já se aproximava de quatro dezenas. Por outro lado, assumindo que a agenda das Ciências Sociais brasileiras se refletia no rol de temas contemplados pelos grupos, havia que “oxigenar” esse rol, evitando cristalizá-lo na forma de GT. Em outras palavras, a institucionalização do campo, que marchara a passos largos no país nos anos 1980, punha desafios aos fóruns nacionais de interlocução científica. Havia, portanto, que correr o risco de inovar, elegendo, a cada triênio, alguns poucos temas que fossem não apenas relevantes para o debate, mas que também cortassem transversalmente as temáticas que vinham sendo tratados nos GTs e que, desse modo, reintegrassem “tribos” e renovassem debates. Uma vez “embaralhadas as cartas”, seria possível retomar o jogo em novas bases, com um leque renovado de grupos de trabalho. Assim, em 1990, o 14º Encontro Anual estruturou-se pela primeira vez nos chamados “Seminários Temáticos” (STs) e não nos usuais GTs.
Nesse momento, o campo dos estudos sobre mulher deu um passo importante para consolidar o seu lugar nas Ciências Sociais. Logrou aprovar a realização do Seminário Temático número 11, feito cuja relevância pode ser aferida pelo fato de que foram apenas vinte as propostas selecionadas para inaugurar o novo formato. O tema, de todo significativo para o interesse deste artigo, era precisamente o d’ “A transversalidade do gênero nas Ciências Sociais”. Desse modo, entre 22 e 26 de outubro de 1990, juntaram-se intelectuais que atuavam em campos tão diversos como os do gênero, do trabalho, do sindicalismo e dos movimentos sociais. Desafiava-os o intuito de criar sinergias entre debates que vinham correndo, de certo modo em paralelo, em quatro diferentes GTs: “Movimentos sociais e urbanos” (GT-8), “A mulher na força de trabalho” (GT-12), “Mulher e política” (GT-15), e “Processo de trabalho e reivindicações sociais” (GT-30). Atente-se, contudo, que era no campo dos estudos gênero que se buscava o eixo capaz de cortar transversalmente, integrando, duas outras temáticas-chave, a do trabalho e a da ação coletiva.2
Mas esse era um debate que transcendia a ANPOCS. Simultaneamente, a Fundação Carlos Chagas, com apoio da Ford Foundation, encomendara um conjunto de trabalhos para avaliar o estado da arte e as perspectivas para o desenvolvimento, no Brasil, dos então chamados “estudos sobre mulher”, no que ficou conhecido como “o Seminário de São Roque” (localidade em São Paulo onde ocorreu o evento). Era o mesmo ano de 1990 e os grupos mobilizados nos dois eventos se enlaçavam, seja pela sobreposição entre algumas das participantes, seja pela recorrência entre alguns dos textos apresentados (em outubro, em Caxambu, e em novembro, em São Roque). Num como no outro caso, o centro do interesse estava na trajetória e nos desafios desse domínio de estudos.
Ora, não são carentes de significado, por um lado, a multiplicidade de instituições envolvidas e, por outro, a convergência no tempo e nos alvos. Tudo isso está a documentar, para tomar as palavras de Albertina Costa e Cristina Bruschini (COSTA; BRUSCHINI, 1992, p. 6), que “Na década de 80, a visibilidade do tema é nítida e a vitalidade da produção acadêmica sobre mulher é invejável”. Por isso mesmo, concluíam,
A necessidade de uma avaliação se fazia sentir agudamente em razão do acelerado processo de expansão da área, ocorrido na última década. As batalhas de legitimação acadêmica foram travadas e vencidas na década de 70, quando o tema emergiu da invisibilidade sob o impacto da mobilização feminista. (COSTA; BRUSCHINI, 1992, p. 6, grifo nosso).
Com efeito, a década de 1970 estabelecera as bases para a constituição do campo no Brasil, no entrecruzamento entre trajetórias pessoais, intelectuais e político-institucionais. A Primeira Conferência Mundial sobre a Situação da Mulher, realizada em 1975, na Cidade do México, durante o “Ano Internacional da Mulher”, chamara a atenção do mundo para a persistência da discriminação. Metas e objetivos assentados no tripé equidade-desenvolvimento-paz foram fixados para os Estados participantes, e o Brasil era um deles. Passavam a estar na ordem do dia alvos como assegurar equidade de direitos no que concerne à educação, oportunidades de emprego, participação política e acesso a serviços sociais básicos, como saúde, habitação, nutrição e planejamento familiar. Uma resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas estabelecera, inclusive, que os dez anos subsequentes (1976-1985) seriam a “Década da Mulher”, prazo em que as metas deveriam ser monitoradas.
A preparação da participação brasileira na conferência, conduzida pelo governo do general Ernesto Geisel, havia sido objeto de intensas críticas e mobilizações para garantir a presença de feministas engajadas que, embora excluídas da delegação oficial, lutaram para se fazer presentes na Tribuna Alternativa, que corria em paralelo à conferência oficial. Isso porque, no bojo da chamada “política de distensão”, múltiplos movimentos sociais vinham ganhando fôlego e se organizavam nas frestas do sistema político. Alvarez (1990, p. 83-109) documentou, com riqueza de evidências, como movimentos de mulheres e movimentos feministas se multiplicaram no Brasil urbano da segunda metade dos anos 1970.
According to most observers and movement participants, 1979 through 1981 were the peak mobilizational years of the contemporary Brazilian women´s movement. Feminist groups multiplied, numbering close to one hundred by 1980-1981. And dozens of new neighborhood women´s associations blossomed in Brazil´s urban periphery. (ALVAREZ, 1990, p. 110).
Eram movimentos que davam vazão às pressões por democracia e direitos, nutridas pela emergência de novos personagens na cena política (SADER, 1988), os “novos sujeitos sociais” pelos quais, não sem razão, se interessava o ST-11 sobre “A transversalidade do gênero nas Ciências Sociais” em sua primeira mesa de debates. Dentre esses personagens há que ter em mente também o papel desempenhado pelas intelectuais feministas, que retornaram ao Brasil ou restabeleceram seus elos com o país a partir da anistia em 1979. Como destacaram Alvarez (1990) e Ricoldi (2017), elas traziam tanto a familiaridade com o pensamento feminista europeu e/ou norte-americano, quanto a experiência com a organização de mulheres brasileiras no exílio, temperada pela vivência das práticas militantes nos países que as acolheram. Lena Lavinas, membro do “Círculo de Mulheres Brasileiras em Paris”, a quem antes referi como uma das proponentes do ST-11, era um desses casos. Em entrevista à revista Mouvements, Helena Hirata, ela própria exilada em Paris e anistiada em 1979, assim se refere ao tema (ACHIN, 2013, p. 143):
M. : Pouvez-vous revenir un peu sur votre découverte du féminisme ?
H. H. : Je vous parlais du fait que je n’étais pas féministe avant de rencontrer des groupes de Françaises féministes (…) À l’époque il y avait ici en France le « Cercle des femmes brésiliennes à Paris » (Círculo de mulheres brasileiras). C’était des femmes exilées, arrivées ici en tant que réfugiées politiques, plutôt d’extrême gauche et qui ont commencé un groupe de femmes vers 1976-1977. (...)
M. : Dans ce cercle que vous avez rejoint en 1976-1977, est-ce qu’il y a des noms qu’on connaîtrait aujourd’hui ?
H. H. : Oui, Lena Lavinas, elle a fait partie du laboratoire Cultures et Sociétés Urbaines (CNRS) à une époque (…)
Retomando as palavras de Oliveira e Bruschini (1992, p. 6), nos anos 1970, o tema emergira da invisibilidade, sob o impacto da mobilização feminista. Mas, e ao mesmo tempo, essa foi também a década em que se vencia a batalha pela legitimação acadêmica desse campo. Os fatos são eloquentes. Assim, tão logo se constituiu a ANPOCS, em 1977, foram instituídos dois GTs, unicamente dedicados a estudos sobre a mulher: o Grupo “Mulher na Força de Trabalho” e o Grupo “Mulher e Política”, além de um terceiro voltado a um domínio conexo, “Família e Sociedade”. 3 Desde 1978, o tema já se fazia presente também na agenda da Associação Brasileira de Estudos Populacionais (ABEP); e, em 1982, constituiu-se na Associação Brasileira de Antropologia (ABA) o GT “Identidade Feminina”. Ademais, entre 1978 e 1988, a Fundação Carlos Chagas, com o patrocínio da Ford Foundation, concedeu nada menos que 108 financiamentos de pesquisa no campo.4 Não sem razão, na década de 1980, testemunhamos a crescente institucionalização desses estudos nas principais universidades brasileiras, onde foram criados sete núcleos de pesquisa apenas nos primeiros dez anos (RICOLDI, 2017), número esse que alcançaria 20 até o final dos anos 1980 (COSTA; BRUSCHINI, 1992).
Em suma, quando, em 1990, a comunidade de pesquisadoras decide se debruçar sobre a trajetória e os desafios postos a esse campo, seja encarando-os “desde dentro” (como no “Seminário de São Roque”), seja buscando suas sinergias com campos afins (como no ST-11), era chegada a hora de dar um salto de qualidade:
A sinalização de uma nova preocupação teórica foi dada pela introdução das temáticas de gênero e relações de gênero, respectivamente, nas reuniões de 1988 e 1990 da ABA, e da temática da transversalidade do gênero no 14º Encontro da ANPOCS. Esses conceitos, que nomeavam grupos de trabalho, vinham em substituição à temática da mulher na ANPOCS e da identidade feminina na ABA. (OLIVEIRA; BRUSCHINI, 1992, p. 7).
Várias autoras sublinharam como o movimento de passagem dos “estudos da mulher” para os “estudos das relações de gênero” importara um esforço de renovação teórica que, no Brasil, teve lugar nesse momento (OLIVEIRA; BRUSCHINI, 1992; HEILBORN, 1992; LAVINAS; CASTRO, 1992; SORJ, 1992). Nas seções subsequentes, tratarei de explorar um argumento complementar. Pretendo sugerir que tal movimento trazia embutido um ponto de partida metodológico, que se assentava na noção de “transversalidade de gênero”. Não sem razão, esse foi o nome escolhido para o ST-11. E não foi à toa que, passado o 14º Encontro, e “embaralhadas as cartas” dos antigos GTs, constitui-se, em 1991, um novo (e único) Grupo de Trabalho, que passa a ter como objeto de sua reflexão o tema das “Relações sociais de gênero”.
Interessante notar que o nome escolhido para o GT era uma conciliação teórica encontrada, à época, para as duas grandes influências dos estudos feministas, isto é, a teoria anglófona do Gender (associada principalmente à Joan Scott) e a das Relações Sociais de Sexo, das pesquisadoras francesas, associada especialmente a Danièle Kergoat, com um papel importante de Helena Hirata como elo entre Brasil e França (RICOLDI, 2017, p. 11).
Nas duas seções subsequentes tratarei de explorar antecedentes e desdobramentos desse movimento, tomando como fio da meada o papel dessas duas autoras, que foram, ao mesmo tempo, pontes e tradutoras entre dois mundos intelectuais distintos. Para melhor organizar minha reflexão, usarei duas portas de entrada, aqui separadas apenas por clareza expositiva, mas perfeitamente imbricadas na vida social. Numa seção, pensarei o tema da transversalidade observando a constituição do campo de estudos sobre gênero e processos de trabalho. Noutra, farei o mesmo esforço tomando como ponto de partida os estudos sobre gênero e mercados de trabalho.
A transversalidade do gênero observada a partir dos locais de trabalho
Assumir o partido metodológico da transversalidade do gênero, importou em recusar a mera inclusão da condição de sexo como mais uma dentre as variáveis que explicariam a diversidade nos resultados alcançados por homens e mulheres no que respeita ao acesso, mobilidade e remuneração nos postos de trabalho. Propugnava-se, antes, que a dimensão das relações sociais de sexo era constitutiva do modo como se estabeleciam as “relações sociais na produção”, antes que um determinante a elas externo. Indo ainda mais longe, assumia-se que o modo como essas relações se teciam nos cotidianos de trabalho era incompreensível, porque inseparável, da forma como a divisão sexual do trabalho e as relações sociais de sexo se teciam no mundo extratrabalho. Essa perspectiva punha em questão categorias centrais aos campos da Sociologia do Trabalho em particular, e dos estudos do trabalho de maneira mais geral; a começar pela própria noção de trabalho e, por consequência, as de trabalhador, de relação de trabalho, de qualificação, carreiras, gestão e controle. Isso porque ela impunha não perder de vista os elos entre os domínios da produção e da reprodução, via de regra tratados, até então, de modo dissociado.5
Curioso notar que, conquanto a categoria de “transversalidade do gênero” tivesse ganho relevo com o Seminário Temático de 1990, esse entendimento já se fazia presente, para dizê-lo de algum modo, em estado prático, desde os anos 1980. Isso transparece tanto no Grupo de Trabalho voltado aos estudos do “Processo de Trabalho e Reivindicações Sociais” (GT-30, da ANPOCS), quanto no Grupo de Trabalho voltado aos estudos sobre “A Mulher na Força de Trabalho”.
No primeiro, desde 1982, vinham se reunindo especialistas brasileiros no campo dos chamados “estudos do trabalho”. Um domínio fortemente multidisciplinar, onde era marcante a presença de pesquisadores provenientes da Sociologia, Antropologia, Psicologia, Gestão e Engenharia de Produção. A unificá-los o interesse pelos estudos das relações sociais tal como estabelecidas e negociadas nos cotidianos, maiormente (conquanto não exclusivamente) de natureza fabril. Sobre o objeto e a novidade do grupo, diria Alice Abreu em um balanço dos trabalhos apresentados quando do 7º e 8º Encontros da ANPOCS (ocorridos, respectivamente, em 1983 e 1984):
(...) os estudos que enfocam mais diretamente o processo de trabalho agregam algo realmente novo na literatura sociológica. Ao inverter a perspectiva tradicional, abandonando o sistema político como ponto de partida para a percepção do movimento operário e privilegiando a análise da experiência cotidiana de subordinação na esfera fabril, essa nova perspectiva enfatiza o processo de trabalho “como um dos elementos cruciais através do qual a classe se constitui, ou seja, as formas de subordinação e resistência no contexto fabril passam a ser um elemento central para a compreensão da formação e trajetória da classe trabalhadora” (Sorj, 1983). (ABREU, 1986, p. 84).
As inspirações para tais formulações refletiam o vigor com que nos chegava um marxismo renovado, seja pela história social inglesa (do que dá testemunho o recurso às noções de “experiência” e “formação de classe”, emprestadas de E.P. Thompson), seja pelo valor das observações das relações sociais na produção flagradas nos cotidianos de trabalho (ao modo da opção metodológica por etnografias em contextos fabris, propugnadas por M. Burawoy).
Essas inspirações darão acolhida a formulações sobre a necessidade de se entender as relações de produção – mesmo em suas formas mais imediatas e concretas expressas nos processos de trabalho – como estando determinadas por fatores de ordem mais ampla, relacionados a contextos históricos, políticos, culturais e ideológicos específicos (ABREU, 1986, p. 85). Nas palavras de Abreu, isso abre espaço
(...) para perceber que as relações de produção atualizam, muitas vezes, relações de poder que não emanam diretamente da esfera produtiva. Abre-se portanto todo um amplo espectro de análise onde a cultura, a questão do gênero e das relações familiares, das representações e percepções da realidade vivida ocupam um espaço tão significativo como o espaço usualmente atribuído a fatores de ordem política, econômica e tecnológica. (ABREU, 1986, p. 85-86).
O GT “Processo de Trabalho e Reivindicações Sociais” deixa entrever, nesse entendimento, o peso de uma outra inspiração significativa, a saber, a dos estudos sobre o trabalho que vinham realizando as feministas francesas capitaneadas por Danièle Kergoat, num pequeno e ativo grupo por ela criado, nos anos 1970, no Centre de Sociologie des Organisations (CSO), em Paris, voltado para estudar a divisão social e sexual do trabalho (DSST). Convencida da indissociabilidade entre o trabalho assalariado e o trabalho doméstico, Danièle fará desse elo um dos focos de interesse do grupo e veiculará seus achados em textos que marcaram o debate na virada dos anos 1970 a 1980 (KERGOAT, 1978, 1982; KERGOAT; ODILE, 1981) e que ecoaram fortemente no debate brasileiro, como veremos.
A esse pequeno grupo se integra, em 1977, a brasileira exilada Helena Hirata. Inicialmente na condição de trabalhadora temporária, Helena ganha, em 1980, o estatuto de pesquisadora (“Chargeé de Recherche”) do CNRS (Centre Nationale de la Recherche Scientifique), associada ao grupo de Kergoat (ACHIN, 2013). Rememorando esse período, numa entrevista concedida em 2013, dirá Hirata:
La question de la division sociale et sexuelle du travail était centrale. Il est certain que, quand on regardait les filiales et les maisons mères des firmes multinationales françaises et japonaises au Brésil, il sautait aux yeux que le traitement des femmes salariées n’était pas le même que celui des hommes : les procédés de recrutement et de sélection, de formation professionnelle, les salaires et les carrières étaient inégaux, et même, au Japon, très inégaux (ACHIN, 2013, p. 146).
A anistia lhe permitiu voltar ao Brasil, em 1979, para uma conferência na Bahia e para por a andar o projeto CNRS a que se refere acima, que consistia em comparar filiais e matrizes de empresas multinacionais japonesas e francesas implantadas no Brasil. Vários estudos de caso foram, então, conduzidos, recobrindo setores como têxtil, eletrônico, vidro, agroalimentar e petroquímica. Múltiplas faces do taylorismo foram flagradas, em seu modo de realização bastante diverso entre os dois países. As culturas (nacionais, de empresa e operárias), tanto quanto as políticas sexuadas de gestão da mão de obra eram determinantes para se entender tal diversidade.
Nesse sentido, e como reconheceria Hirata anos depois (2002, p. 18):
(...) a adoção de uma problemática em termos de divisão sexual do trabalho significou uma ruptura teórica e epistemológica fundamental com a tradição da sociologia do trabalho francesa, centrada na figura arquetípica do operário qualificado, de sexo masculino, da grande empresa industrial, considerado universal.
Tal ruptura, como ela própria reconhece (HIRATA, 2002), impôs a adoção de novos pontos de partida em suas análises. Com eles, Hirata influenciaria o curso da Sociologia brasileira do trabalho, notadamente (mas não exclusivamente, como logo veremos) nos estudos sobre os processos e a organização do trabalho. Assim, ao imbricar produção e reprodução, trabalho doméstico e trabalho profissional, ela sublinhou a importância das relações entre homens e mulheres para a eficácia produtiva. Do mesmo modo, mostrou que o estudo dos novos paradigmas de organização industrial carecia ser enriquecido com um enfoque que valorizasse a dimensão da subjetividade no trabalho; isso porque, somente pondo em relevo como sofrimento e prazer se enlaçam nos cotidianos se tornaria possível compreender como virilidade/feminilidade se expressavam, eram interpretadas, negadas ou exploradas nos cotidianos das firmas (HIRATA, 2002, p. 19).
A sua capacidade de interligar universos se expressaria tanto na produção de achados de pesquisa, por meio dos seus inúmeros estudos comparativos internacionais, como na animação de uma viva interlocução intelectual. Traspassando mundos (teóricos e empíricos), Hirata também os integrava. Essa sua virtude aproximou a academia brasileira da reflexão inovadora de Danièle Kergoat no que concerne ao tema da divisão sexual do trabalho. Em comunicação veiculada em 1984, por ocasião do 8º Encontro Anual da ANPOCS, a autora assim apresentava suas ideias sobre os elos entre qualificação e divisão sexual do trabalho, por ela discutidos a partir do caso francês:
Meu trabalho terá como objeto a qualificação do trabalho, e se referirá ao sexo dos trabalhadores em questão, para que situações profundamente diferentes não sejam ocultadas sob uma falsa uniformidade.
A noção de qualificação remete habitualmente a um duplo nível de análise: a qualificação dos empregos e a qualificação dos trabalhadores. Meu objetivo será de efetuar inicialmente uma análise crítica desse quadro conceitual mostrando suas insuficiências para, em seguida, propor um enfoque da qualificação operária em têrmos de divisão sexual do trabalho. (KERGOAT, 1984, p. 1)
Antes mesmo dessa primeira estadia de Kergoat, as suas ideias já circulavam nos meios intelectuais brasileiros, fazendo-se presentes nos trabalhos de autoras brasileiras como Cheywa Spindel (1984), Edna Castro (1984) e Maria Noemi Brito (1984), apresentados nesse mesmo evento. E não sem razão. Trocas intelectuais prévias haviam culminado no engajamento de brasileiras na rede intitulada “Articulation du système productif et des structures familiales: méthodologie des approches comparatives hommes-femmes”, liderada por Danièle Kergoat e Dominique Fougeyrollas. A rede ganhou corpo no X Congresso da International Sociological Association (ISA), realizado na Cidade do México, em 1982, congregando, além de pesquisadoras francesas, intelectuais do México, Canadá, Itália, Argélia e também do Brasil. Elisabeth Souza-Lobo, Leda Gitahy e Rosa Moises ali apresentaram a comunicação “La pratique ‘invisible’ des ouvrières”, enquanto Cheywa Spindel expôs a comunicação “L’allaitement maternel: un fait biologique, un acte social’.
Mas, a perspectiva da transversalidade de gênero também perpassa, mesmo se ainda em um estado prático, os debates que o GT-12 “A Mulher na Força de Trabalho” conduziu ao longo dos anos 1980, de certo modo prenunciando o Seminário Temático que se encarregou de colocar o conceito, de forma explícita, no centro da reflexão das Ciências Sociais, por ocasião da ANPOCS de 1990. Com efeito, em seu balanço da produção brasileira sobre mulher e trabalho nos anos 1980, Lavinas e Castro (1992) destacaram que o tema da divisão social e sexual do trabalho se constituiu num dos focos principais de interesse do grupo. Estudos de caso em indústrias do vestuário (ABREU, 1979, 1981; SPINDEL, 1980; CAULLIRAUX, 1981), farmacêutica e cosméticos (MOYSES, 1985), eletroeletrônico (MOURA et al., 1984) voltaram-se para entender os princípios que regiam tal divisão por sexo, caracterizando as relações de trabalho que se estabeleciam. Salientaram, ademais, a dimensão de dominação sexual presente na subordinação ao processo de trabalho; uma opressão que poderia passar pela disciplina do corpo, pela difusão de métodos de contracepção, pela impossibilidade de ascensão profissional para as mulheres, dentre outros. A fábrica recriaria, nesse sentido, a mesma forma de hierarquia social característica do patriarcado, no qual as mulheres se encontram sob o domínio direto dos homens (LAVINAS; CASTRO, 1992, p. 221).
Os trabalhos de Danièle Kergoat e do grupo de pesquisas sobre relações sociais de sexo, Atelier Production-Reproduction (APRE), constituído em 1982, são reconhecidos por Lavinas e Castro como “balizadores tanto metodologicamente (a análise concomitante das práticas sociais de homens e mulheres na esfera fabril) quanto na conceituação teórica” (LAVINAS; CASTRO, 1992, p. 221). Com efeito, o livro O Sexo do Trabalho circularia intensamente entre nós, tão logo veiculado em 1984 na França, graças à presença intelectual de Kergoat e Hirata no debate que era travado no Brasil e ao engajamento de brasileiras na articulação montada quando do X Congresso da ISA no México, de cuja agenda resultara a coletânea. A sua rápida tradução ao português (KARTCHEVSKY-BULPORT, 1987) dá conta do quanto essas ideias fertilizavam o nosso meio intelectual.
Por isso mesmo, a temática da divisão sexual do trabalho se constituía, no dizer de Lavinas e Castro (1992), numa das matrizes paradigmáticas definidoras do campo nesse momento. Não por acaso, no 8º Encontro da ANPOCS, em 1984, Kergoat se desdobrou, multiplicando a sua participação entre os grupos de estudos voltados ao tema dos elos entre sexo e trabalho. Assim, ao tempo em que se fez presente no GT-30, com o texto acima referido sobre qualificação e divisão sexual do trabalho, Kergoat também participou dos debates no GT-12, com uma comunicação sobre divisão social e sexual do trabalho (KERGOAT, 1984a). Nela, salientava o equívoco de uma extensão mecânica à produção dos princípios da divisão sexual do trabalho existentes no âmbito da família. Já no texto apresentado ao GT-30, sobre qualificação feminina e divisão sexual do trabalho, Kergoat ecoava o fértil argumento que esgrimira originalmente em um manuscrito de 1978, recuperado em recente estudo de Maria Abreu (2020, p. 38).
… toute approche du travail féminin doit être faite conjointement à l’analyse du statut et de la place des femmes dans l’univers de la reproduction ; temps de travail salarié et temps de travail domestique, apprentissage social par la petite fille de son rôle de future femme et déqualification féminine, absentéisme et temps total de travail (salarié et domestique), valeur-travail salarié mais aussi valeur-travail domestique... sont à analyser de pair. Ce travail reste à faire (Kergoat, 1978, p. 20).
Em sua intervenção no GT-12, o pensamento de Kergoat convergia com o que estava sendo simultaneamente posto sobre a mesa por Lobo (1984), ao salientar a estreita conexão existente entre divisão sexual e divisão social do trabalho, e o valor heurístico do estudo das práticas sociais, domínio onde se pode vir a flagrar a maneira como, em cada caso, combinavam-se as representações culturais sobre virilidade/feminilidade e as formas concretas de existência.
Pensando retrospectivamente, Danièle Kergoat demarcaria, em texto de 2014 (GALERAND; KERGOAT, 2014), os dois principais momentos no curso dessa reflexão feminista de corte materialista, capitaneada pela intelectualidade francesa de então. O primeiro seria marcado pela teorização acerca das relações sociais de sexo enquanto relações de produção ou de exploração, irredutíveis ao capitalismo. Nessa via de entendimento, o trabalho doméstico era caracterizado como trabalho explorado, o que conduziria a uma ruptura com as conceptualizações dominantes de “trabalho” e de “exploração”. O segundo momento seria caracterizado pela teorização acerca do “sexo do trabalho assalariado”, a qual conduziria às noções de divisão sexual do trabalho e de transversalidade e, consequentemente, à de consubstancialidade das diferentes relações sociais de exploração.
A noção de relações sociais de sexo fará o enlace (analítica e politicamente essencial) entre as diferenças e hierarquias que se traduzem em práticas que ligam o mundo doméstico e o mundo assalariado, família e trabalho, vida privada e vida profissional.6 Vejamos.
O mercado de trabalho sob o prisma das relações sociais de sexo
As várias gerações que realizavam a sua formação e/ou atuação profissional entre as décadas de 1970 e 1990 tiveram o privilégio de viver um momento dos mais férteis e desafiadores na história da produção acadêmica das Ciências Sociais, no que concerne aos estudos sobre o trabalho e o seu mercado. Pelo menos dois grandes bastiões na construção institucional desses estudos foram então desafiados. O primeiro deles foi a economia do trabalho de corte neoclássico, por vezes também chamada “ortodoxa”, a qual, por longo tempo, proporcionou as bases teóricas que formaram os quadros profissionais que, nesse domínio, viriam a atuar tanto no mainstream da academia, como no da gestão da política econômica. O segundo desses bastiões nos foi legado pelos organismos internacionais, particularmente a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Ela foi a responsável por estabelecer, para dizê-lo de algum modo, as “regras de método”, fixando os modos de discernir e computar, de maneira internacionalmente comparável, os dados sobre o mercado de trabalho, assentados no consenso formado pelas burocracias dos vários governos nacionais, mediados supranacionalmente. Assim, definiram-se fronteiras centrais ao conhecer e ao agir, à academia e à política. O que é “trabalho” e o que é “inatividade”; o que é “emprego” e o que é “desemprego”; o que são “rendimento”, “salário”, “benefícios extrassalariais”.
Naqueles anos, várias dessas categorias estavam sendo postas em xeque, redefinindo as fronteiras para o pensamento.
A começar, como já vimos na seção anterior, pelo que era considerado “trabalho”: que atividades, dentre as múltiplas e cotidianamente desempenhadas por homens e mulheres, poderiam ter o privilégio de ser abarcadas por essa categoria (e, assim sendo, serem medidas, comparadas, estudadas, teorizadas, mas também visibilizadas, retribuídas e protegidas)?
E a terminar pela própria noção de “mercado de trabalho”: como delimitá-lo? Como entender a sua dinâmica: como e quando nele se ingressa e como nele se transita ao longo da vida? Como se constroem as instituições do trabalho e do seu mercado, (re)construindo modos de agir, de pensar e de sentir a experiência vivida no trabalho e no mercado? Como se tecem e se transformam as relações sociais estabelecidas no mercado de trabalho (tanto nas situações de emprego, como nas situações de desemprego e de procura de trabalho)? E, sobretudo, como tais relações se integram com as experiências e práticas dos sujeitos trabalhadores em situações outras que não aquelas que entendemos como “de trabalho” ou “de mercado”?
Esse turbilhão de interrogantes foi sem dúvida devedor de alguns catalizadores. Tal como antecipado, o pensamento feminista foi um deles, ao interpelar o campo das Ciências Sociais do trabalho, reorganizando o caleidoscópio dos seus temas, de modo a recompor a sua agenda sob um prisma diverso, assentado nas duas categorias que, como vimos, se mostraram seminais: divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo.
Os estudos sobre os elos entre trabalho, extratrabalho, desemprego e inatividade podem ser tomados como um exemplo precioso para ilustrar tais desafios, bem como os caminhos analíticos trilhados para superá-los. As análises sobre o caso brasileiro, por seu turno, nos colocavam diante de uma realidade especialmente interessante. Não sem razão, o Brasil foi, pouco depois, referido por proeminentes autores europeus como uma sorte de “antiexemplo”. Beck (2000) chegaria a cunhar a palavra “brasilianização” para referir-se a um risco que se avizinharia das modernas sociedades do trabalho – o de “brasilianização do Ocidente”, para usar as suas palavras. A tendência à “multiatividade nômade” (outra imagem que usa para aludir ao caso brasileiro) seria o resultado da dissolução das regras e instituições sobre as quais haviam se erigido os mercados de trabalho na Europa.
Mas o que havia de brasileiro na chamada “brasilianização” dos mercados de trabalho, e como o feminismo nos ajudou a desvendá-lo? Algumas contribuições intelectuais produzidas à época, como a traçada por Helena Hirata ao redor do tema do desemprego, exemplificam uma forma refinada, nuançada e sólida de encarar o tema, sem carecer do recurso a metáforas retumbantes. Assim, muito antes do escrito de Beck, ainda nos anos 1980, Hirata debruçara-se sobre esse domínio, numa série de trabalhos pioneiros, conduzidos em parceria com John Humphrey, e realizados na cidade de São Paulo (HIRATA; HUMPHREY, 1984, 1985, 1987, 1987a, 1989, 1989a, 1992). A emergência de um movimento sindical pujante, com as greves metalúrgicas de 1978 e 1979 no ABC Paulista, a anistia e a eleição de governadores abertamente oposicionistas em 1982 (o principal deles no estado de São Paulo) eram alguns dos sinais de que a ditadura cívico-militar chegaria ao fim.
Entretanto o revigoramento da política pela sociedade civil convivia com a expansão do desemprego no contexto de uma importante crise econômica e levaria a formas que não veríamos mais, no Brasil, de organização de desempregados (grades do Palácio de Governo chegaram a ser derrubadas, em São Paulo, em movimentos de massa no ano de 1984). Ecoando as demandas políticas dos trabalhadores, uma crítica às medidas do desemprego ganhou fôlego e levou o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese) a produzir uma estatística alternativa para o desemprego, desafiando a medida governamental, que o subdimensionava. A métrica da OIT deixava escapar as múltiplas formas do desemprego, evidentes em países onde o emprego assalariado formal não se generalizara e onde a proteção social ao desemprego inexistia. Essas formas se ocultavam no trabalho precário, tornando fluida a fronteira entre ocupação e desemprego; mas se ocultavam também no desalento, estendendo a mesma fluidez à fronteira do desemprego com a inatividade. Ademais, na ausência de um sistema de proteção assentado em políticas do Estado, era na família e nas redes pessoais que se encontravam os meios para vencer as vicissitudes.
Hirata e Humphrey puseram em prática uma estratégia metodológica em tudo inovadora para capturar a dimensão transversal do gênero em ação na produção das desigualdades no mercado de trabalho: uma pesquisa de campo em fábricas, no ápice da crise econômica em 1982, e um levantamento domiciliar na saída dessa, em 1986. Essa combinação se encarregou de por em xeque ao menos três dentre as mais respeitáveis formulações em voga na academia: a de que as mulheres seriam parte de um exército de reserva; a de que as famílias agiriam estrategicamente alocando seus membros no mercado, “estratégias de sobrevivência” assentadas em uma rationale puramente econômica/de resposta à crise; e a de que o desemprego desorganizaria as famílias.
O feminismo permitia fazer a crítica do seu “outro significativo”, o marxismo. Pari passu, reelaborava-se igualmente o legado da chamada “Sociologia da Família”, que se tornara estranha aos estudos do trabalho, especialmente em sua vertente funcionalista, que dominara a academia até os anos 1970. Longe estavam, Hirata e Humphrey, de buscar fatores explicativos alternativamente do lado da família (que constrangeriam o emprego das mulheres) ou do lado do trabalho profissional (que explicaria a inclusão/exclusão dos homens). Para usar suas palavras, esse era um détour pouco habitual na Sociologia Industrial e na Sociologia do Trabalho (HIRATA; HUMPHREY, 1989a) que pouca atenção prestara, seja à observação do domicílio, seja ao estudo das trajetórias de operários e operárias.
Para Hirata, ao contrário, havia que articular sistemas produtivos e estruturas familiares, trabalho e família, trabalho e extratrabalho, público e privado. A intercomplementariedade entre as teorizações sobre mercados e processos de trabalho era reivindicada e praticada (HIRATA, 2002, p. 18), estando assentada no que Hirata e Humphrey denominavam uma teoria do sujeito sexuado. Assim, quando se tratava de entender o mercado de trabalho e, nesse, os movimentos da mão de obra feminina, eram igualmente insuficientes – sempre quando tomados em separado – os determinantes vindos da dinâmica econômica conjuntural, os efeitos das mudanças técnico-organizacionais e os fatores relativos à subjetividade das trabalhadoras.
Nesse sentido, um enfoque da dinâmica do mercado de trabalho que privilegiasse o ponto de vista das relações de gênero teria que assumir que o problema do emprego não se esgotava apenas na consideração do que se passava no mercado de trabalho. Haveria que lançar mão de um enfoque assentado na transversalidade do gênero para dar conta da assimetria fundamental entre o (des)emprego e o trabalho, duas situações de natureza diferentes quando declinadas no masculino ou no feminino.
Interligando mundos e construindo uma nova Sociologia do Trabalho no Brasil:
uma aventura coletiva
Ao longo deste artigo, procurei tecer um argumento: mirando em retrospecto, poder-se-ia dizer que, nos anos 1980-1990, produziu-se uma virada teórico-metodológica no campo dos estudos brasileiros sobre o trabalho. Esta virada, em larga medida, resultou de uma aventura coletiva, sustentada numa colaboração transnacional que integrou especialmente intelectuais brasileiras e francesas – e o fez de maneira muito estreita.
Ao flexionar a minha última frase no feminino, quis aludir não apenas ao fato de que tal movimento consolidou a presença de acadêmicas na cena intelectual brasileira, mas que ela foi devedora do diálogo que se estabeleceu entre o que então se denominava como “os estudos do trabalho” e “os estudos da mulher”. Um diálogo que oxigenou a agenda de debates, mas não sem dificuldades, posto que interpelava categorias caras ao marxismo, abordagem que então provia a armadura teórica hegemônica no campo. “Força de trabalho”, “exército de reserva”, “valor”, “exploração” – e até mesmo “trabalho” – eram noções que precisavam ser repensadas (algumas delas foram mesmo abandonadas) quando se tomava a perspectiva epistemológica que reconhecia as diferenças nas experiências laborais de homens e mulheres como fundantes da vida em sociedade.
Essa crítica da crítica (então em voga) acerca da natureza das relações de trabalho sob o capitalismo vinha talhada numa experiência tão militante quanto a daqueles a quem se criticava, a experiência do feminismo. Teorizando o modo como relações sociais de sexo permeavam todas as esferas da vida em sociedade – aí compreendida a esfera do trabalho, imbricando-se de modo consubstancial à dinâmica das relações de classe – essas autoras demandavam uma nova arquitetura teórica, capaz de enlaçar a experiência privada e a pública, a vida doméstica e a vida mercantil, o trabalho e o extratrabalho, trazendo para a frente da cena categorias como “experiência” e “subjetividade”, centrais para desvelar “práticas (tornadas) invisíveis”.
Disso resultava a necessidade de confrontar o desafio da interdisciplinaridade. A Sociologia do Trabalho não poderia se contentar apenas em ser a cereja do bolo de uma economia das relações mercantis. Havia que dialogar com a nova História Social do Trabalho, entender a psicodinâmica das relações de trabalho, refletir sobre a performatividade das teorias de gestão, penetrar o mundo de significados e representações construídos pelos sujeitos e que pautam as suas práticas, ancorando as interações nos cotidianos em que o trabalho se exerce, seja ele socialmente reconhecido e valorado como tal, ou não.
Múltiplas foram as avenidas pelas quais o enfrentamento desse desafio ganhou consequência. Neste artigo, procurei valorizar apenas um dentre esses itinerários, aquele que se assentou na perspectiva da “transversalidade do gênero”. Do ponto de vista intelectual, tal perspectiva nos ajuda a entender como se realizou a virada metodológica – que veio oxigenando o campo dos estudos do trabalho no Brasil ao longo dos trinta últimos anos –, assentada na recusava a atribuir à condição de sexo o estatuto de mera variável independente, acionada para explicar a diversidade nos resultados alcançados por homens e mulheres tanto no acesso como na mobilidade e remuneração profissionais. Isso trouxe, como consequência teórica, assumir que a natureza das relações sociais de sexo nos cotidianos de trabalho seria incompreensível uma vez dissociada da análise sobre as formas pelas quais a divisão sexual do trabalho se constituía no mundo extratrabalho.
As protagonistas desse esforço foram estudiosas das interfaces entre gênero, processos e mercados de trabalho, que conseguiram incluir tal debate na agenda da recém-constituída Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), notadamente via os GTs “Processo de trabalho e reivindicações sociais” e “A mulher na força de trabalho”. Vemos, então, como (e não por acaso) dois cursos se entrelaçam: o da reconfiguração dos estudos do trabalho e o da institucionalização das Ciências Sociais no Brasil. Uma verdadeira aventura coletiva.
Duas intelectuais sediadas fora do Brasil foram decisivas nesse movimento, Daniele Kergoat e Helena Hirata. “Tradutoras”, por vezes, “pontes”, em outras ocasiões, elas interligaram e fertilizaram reciprocamente mundos acadêmicos diversos, chamando nossa atenção para o valor heurístico de uma sociologia da circulação das ideias e intelectuais. Assim, ao retraçar os caminhos pelos quais suas ideias penetraram o debate brasileiro, foi possível acompanhar, neste artigo, não apenas como se reconfigurava um campo de estudos, mas como se institucionalizavam, nos nossos domínios disciplinares, novos espaços, regras e rituais de reconhecimento e consagração na vida intelectual. O partido analítico que assumi nos permitiu acompanhar o delicado entrecruzamento entre histórias pessoais, intelectuais e institucionais.
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Recebido em 02/04/2020
Aceito em 26/11/2020
1 Agradeço a leitura e comentários recebidos da consultoria ad hoc da Revista, bem como de Alice Rangel de Paive Abreu, Antonio Sergio Alfredo Guimarães, Mariana Chaguri e Helena Hirata.
* Doutora em Sociologia pela Universidad Nacional Autónoma de México. Professora Titular Sênior do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo e pesquisadora I-A do CNPq associada ao Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). E-mail: nadya@usp.br
2 Não sem razão, a proposta de ST foi coordenada por duas reconhecidas feministas, Lena Lavinas e Lourdes Bandeira, a indicar a proeminência desse campo na tessitura do evento. Expunham seus resultados intelectuais que provinham de diversas afiliações temáticas, teóricas e disciplinares, como: Maria Celia Paoli, Heleieth Saffioti e Luis Antonio Machado da Silva (em mesa sobre novos sujeitos sociais e reapropriação do conhecimento); Antonio Sergio Guimarães, Roque Aparecido da Silva, Elizabeth de Souza Lobo e Magda Neves (em mesa sobre práticas discursivas e dispositivos de controle); Celi Pinto, Albertina Costa, Jacqueline Pitanguy (em mesa sobre poder, institucionalização e marginalidade); Lena Lavinas, Mary Castro, Eleonora Menicucci de Oliveira e Lourdes Bandeira (em mesa sobre a trajetória da produção acadêmica sobre gênero nas Ciências Sociais). Na condição de comentaristas, somaram-se ainda Alice Abreu, Ricardo Antunes e Fernando Azevedo.
3 Segundo Ricoldi (2017) o GT “A mulher na força de trabalho” teria sido criado já no ano seguinte, em 1978, mesmo ano em que teria surgido o GT “Família e sociedade”. Costa e Bruschini (1992), entretanto, datam a criação do primeiro em 1979. Quanto ao GT “Mulher e Política”, também há controvérsias; conforme Ricoldi (2017), para algumas pesquisadoras teria sido em 1978, enquanto para outras em 1982. De qualquer modo, chama a atenção o fato de que, nos quatro anos que se seguem à fundação da principal entidade acadêmica nacional das Ciências Sociais, nada menos que três grupos de trabalho já se haviam constituído nesse domínio.
4 Para um cuidadoso estudo sobre a contribuição dos programas de pesquisa da Fundação Carlos Chagas para o desenvolvimento do campo dos estudos de gênero no Brasil ver Bruschini e Unbehaum (2002).
5 Tal como documentaram Abramo e Abreu (1998), esse movimento também tem lugar entre autoras latino-americanas atuantes no campo de estudos de gênero e trabalho.
6 Para uma análise rica em documentação primária sobre esse momento, remeto ao refinado estudo de Maira Abreu, que vem realizando uma sócio-história do conceito de “relações sociais de sexo” (ABREU, 2020).
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 53, Junho/Dezembro de 2020, p. 35-52
EVIDÊNCIAS DA PLASTICIDADE E ATUALIDADE
DA DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO
A PARTIR DE QUATRO MODALIDADES CONCRETAS
EVIDENCE OF THE PLASTICITY AND TOPICALITY
OF THE SEXUAL DIVISION OF LABOR
FROM FOUR CONCRETE MODALITIES
____________________________________
Bianca Briguglio1*
Fabiana Sanches Grecco2**
Raquel Oliveira Lindôso3***
Thaís de Souza Lapa4****
Resumo
Neste artigo, partimos de quatro diferentes modalidades concretas de trabalho: na indústria metalúrgica; na indústria de confecções; nas cozinhas de restaurantes; e no trabalho de catação de materiais recicláveis, para evidenciar a divisão sexual do trabalho, conforme as sociólogas do trabalho, feministas materialistas, Helena Hirata e Danièle Kergoat, a compreendem: como expressão da base material das relações de gênero na sociedade capitalista, regida pelos princípios de separação e de hierarquia, que organizam a divisão social do trabalho entre os gêneros e distribui desigualmente os trabalhos produtivos, domésticos e de cuidados. Com isso, reafirmamos essa concepção de divisão sexual do trabalho como uma chave de leitura teórico metodológica atual, com caráter plástico e comparativo.
Palavras-chave: Divisão sexual do trabalho. Catação de materiais recicláveis. Indústrias metalúrgica e de confecções. Cozinhas profissionais.
Abstract
In this article, we departure from four different concrete work modalities: work in the metallurgical industry, in the clothing industry, in restaurant kitchens, and in the collecting recyclable materials work, to highlight the sexual division of labor, as the sociologists of labor, feminist materialists, Helena Hirata and Danièle Kergoat, understand it: as the material basis expression of gender relations in capitalist society, governed by the principles of separation and hierarchy, which organize the social division of labor between genders and unevenly distribute productive, domestic and care work. With that, we reaffirm this conception of sexual division of labor as a current methodological reading key, as a plastic and comparative feature.
Keywords: Sexual division of labor. Collection of recyclable materials. Metallurgical and confection industries. Professional kitchens.
1* Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp). E-mail: biancabrig@gmail.com
2** Doutora em Ciência Política (IFCH-Unicamp). E-mail: fasgrecco@gmail.com
3*** Doutoranda em Ciências Sociais (IFCH-Unicamp). E-mail: raquel.lindoso@yahoo.com.br
4**** Doutora em Ciências Sociais (IFCH-Unicamp). Professora do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: thais_lapa@yahoo.com.br
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 53, Junho/Dezembro de 2020, p. 53-71
Introdução
Esses princípios [separação e hierarquia] são válidos para todas as sociedades conhecidas, no tempo e no espaço. Isso não significa, no entanto, que a divisão sexual do trabalho seja um dado imutável. Ao contrário, ela tem uma incrível plasticidade: suas modalidades concretas variam bastante no tempo e no espaço (HIRATA; KERGOAT, 2008, p. 266-267).
A formulação de um instrumento analítico para examinar as relações de trabalho de modo sexuado na “teoria geral” do trabalho é uma das contribuições centrais da produção teórica de Danièle Kergoat e Helena Hirata. A reafirmação dessas autoras a respeito da centralidade do trabalho traz uma contribuição de perspectiva materialista à produção da teoria feminista. A compreensão de “divisão sexual do trabalho”, evidenciada como uma categoria metodológica por ambas, é certamente a elaboração teórica das autoras que mais se espraiou e foi utilizada em diversas pesquisas, seja meramente descrevendo a separação e a hierarquia em distintos processos de trabalho ou, de maneira ampliada, compreendendo a divisão sexual do trabalho social como um todo.
A compreensão de Kergoat e Hirata envolve, de um lado, a implosão da noção de que o trabalho assalariado se restringe à atividade produtiva do trabalhador masculino, qualificado, branco. De outro lado, incorporou a reivindicação do caráter de trabalho das atividades realizadas no âmbito doméstico. Pretendeu-se radicalizar a análise do trabalho ao produzir novos conceitos e perspectivas analíticas que, entre outras coisas, problematizam os limites das análises dualistas (formal/informal, produção/reprodução, público/privado).
As autoras empenharam esforços na análise articulada das dimensões da produção e reprodução, desafiando as teses mais consolidadas no campo do trabalho e, sobretudo, alargando a compreensão sobre o trabalho. Tratou-se de não apenas compreender a condição de uma categoria de sexo (a mulher) no trabalho, mas de empreender análises em termos de relações sociais, articulando as relações de classe e de sexo. Isto é, em tal formulação de divisão e organização do trabalho, as relações de exploração e opressão são vistas de modo articulado.1
A ampliação da categoria trabalho é, portanto, uma teorização fundamental na elaboração das autoras. O conceito defendido por elas abrange o não assalariado, não remunerado, não mercantil e informal. Para Hirata (HIRATA; ZARIFIAN, 2009), a noção de trabalho doméstico trouxe novas questões analíticas não compreendidas pelo debate sobre o assalariamento, como as relações afetivas e as dificuldades de sua mensuração. É a partir dessa problemática que a autora debate em termos de “produção do viver”, extrapolando os limites de uma conceituação meramente economicista de produção. Essa noção compreende o trabalho para além de sua concepção moderna, incorporando o doméstico, sem, contudo, desconsiderar a centralidade do trabalho como um todo.
A conceituação de divisão sexual do trabalho tem duas acepções: uma mais descritiva – da divisão sexual do trabalho diferencial entre os sexos no mercado de trabalho e como ela se associa à repartição desigual no âmbito doméstico – e outra, sustentada por Kergoat e Hirata, que remete à produção sistemática de desigualdades ocasionada pela divisão sexual, produzindo hierarquias não só das atividades, mas dos sexos, constituindo um sistema de gênero (HIRATA; KERGOAT, 2008, p. 263).
Assim, a definição de divisão sexual do trabalho, segundo as autoras, está ancorada em dois princípios. O princípio de separação, no qual haveria trabalhos convencionalmente femininos e masculinos, e o princípio de hierarquia, no qual os trabalhos masculinos teriam maior valor e prestígio do que os femininos.
Segundo a formulação de Kergoat (2009, p. 71), a divisão sexual do trabalho tem o status de enjeu, isto é, do que está em disputa, nas relações sociais de sexo. Compreendido como espaço de conflito de interesses entre os grupos de sexo, o trabalho e suas divisões (social, sexual, étnico-racial) constitui, para as duas autoras, uma das bases materiais centrais das relações hierárquicas entre os sexos.
Partindo dessas elaborações teórico-metodológicas, analisaremos, neste artigo, diferentes modalidades concretas da divisão sexual do trabalho em quatro setores com diferentes graus e sobreposições de formalização e informalidade, organizados sob diferentes processos de trabalho. As pesquisas que subsidiam as reflexões aqui expostas foram realizadas pelas autoras no âmbito da pós-graduação. Elas partem das referências conceituais da divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo e manuseiam procedimentos metodológicos qualitativos e quantitativos, como, por exemplo, o uso de entrevistas, banco de dados estatísticos (RAIS-MTE, IBGE-PNAD) e relatórios técnicos. Apesar de seguir a mesma base teórico-metodológica, essas diferentes pesquisas têm especificidades, que se reverberam na exposição de seus resultados por cada uma das pesquisadoras.
A análise da catação de materiais recicláveis expressa prioritariamente a lógica da informalidade, estejam esses trabalhadores vinculados a formas de trabalho coletivo (associações/cooperativas) ou não.2 A modalidade de trabalho domiciliar no ramo da produção de confecções também expressa a informalidade (facções e oficinas de costura) e permanece estruturada na associação entre costureira e máquina de costura.3 O trabalho em cozinhas abarca tanto o emprego formal – ainda que submetido às condições precárias comuns ao setor de comércio e serviços – quanto informal, seja no trabalho por conta própria ou na ausência de registro em carteira.4 A atividade industrial em manufaturas metalúrgicas, embora sob proteções relativas ao emprego formal, revela diferentes níveis de penosidade em seus segmentos e ocupações.5
Ancoradas nessas diferentes formas concretas de trabalho, pretende-se evidenciar a plasticidade e atualidade da divisão sexual do trabalho enquanto categoria teórico-metodológica desenvolvida por Kergoat e Hirata. A noção de plasticidade quer significar que há mudanças nas fronteiras da divisão sexual do trabalho, pois a divisão, ela mesma, continua existindo. Portanto a plasticidade refere-se, ao mesmo tempo, à apreensão das mudanças na reorganização do trabalho profissional (assalariado), doméstico e de cuidados, e à criação e coexistência de novos modelos de conciliação entre trabalho e família. A plasticidade assume um caráter metodológico, a partir da perspectiva comparativa entre teses e abordagens teóricas, períodos históricos, setores, lógicas produtivas etc.6
A catação de materiais recicláveis e suas conexões
com os trabalhos domésticos e de cuidados
A catação de materiais recicláveis corresponde a um trabalho informal, desprotegido, precário, estigmatizado, invisibilizado e desvalorizado, mantido como base de uma cadeia de produção. O desenvolvimento da indústria da reciclagem é resultado do processo de produção, consumo e descarte massificados. Trata-se de tornar as mercadorias descartadas como lixo em matéria-prima para a produção de novas mercadorias. No Brasil, na base da cadeia produtiva dessa indústria estão as trabalhadoras e os trabalhadores catadores de materiais recicláveis, que constituem a maior parte de toda força de trabalho desse processo industrial.7
As etapas de catar, separar, compartimentar e vender os materiais se desdobram em uma série de outros processos de trabalho que variam de acordo com os tipos de materiais com que se trabalha e com o tipo de organização do trabalho. Há os trabalhadores que se vinculam a empresas, cooperativas ou associações. Há aqueles que trabalham de maneira autônoma e há ainda os trabalhadores para os quais a catação divide espaço com outros trabalhos. Todas essas diferenças na organização e processos de trabalho de catação, contudo, são separadas e hierarquizadas entre mulheres e homens.
Propomos, portanto, analisar a catação de materiais recicláveis tendo como base a noção de divisão sexual do trabalho proposta por Danièle Kergoat e Helena Hirata, considerando o debate sobre a informalidade e uma leitura crítica sobre os dados estatísticos. Essa análise permite constatar desigualdades de gênero na catação e compreender as conexões do trabalho das mulheres catadoras com o trabalho doméstico e de cuidados, mas, além disso, a maneira como isso se coloca como oportuno para a reprodução ampliada do capital, pois como coletivo de trabalho, as trabalhadoras e os trabalhadores catadores são força de trabalho explorada pelo capital, ainda que seu processo de trabalho não esteja imediatamente subordinado a um processo de valorização, como a forma tipicamente capitalista de produção está.
Uma pesquisa realizada na cidade de Araçatuba (SP), por exemplo, demonstrou que na organização coletiva do trabalho de catação de materiais recicláveis, em uma associação de catadores, se reproduzem os princípios de separação e hierarquia, tal como Hirata e Kergoat os apresentaram. Os homens são predominantemente designados para as tarefas nas quais a força física é considerada indispensável: empurrar os carrinhos pelas ruas, prensar os materiais e carregar os caminhões com os fardos de materiais. Mas eles também são designados para as tarefas em que a força física é dispensável, mas que permanecem sendo considerados trabalhos masculinos, como dirigir o caminhão.
Enquanto as mulheres são predominantemente atribuídas às tarefas em que a separação dos materiais exige atenção redobrada e trabalho minucioso: a separação de “papel branco”, a fragmentação de papéis oficiais sigilosos advindos de repartições públicas, manter atualizada a caderneta de balanço das vendas de materiais e distribuir as remunerações, além das tarefas historicamente designadas às mulheres, como organizar o cotidiano das associações, preparar as refeições dos trabalhadores e atender ao público (GRECCO, 2014).
Para além dessa descrição da separação e hierarquia de tarefas constatadas na organização coletiva do trabalho de catação, há especificidades na participação das mulheres na catação que revelam nuances mais profundas de desigualdades de gênero nesse segmento. Uma leitura crítica das estatísticas sobre esse segmento de trabalho, baseada na noção de divisão sexual do trabalho, possibilita essa análise mais aprofundada.
Do ponto de vista estatístico, as mulheres correspondem a menor parcela de trabalhadores na catação de materiais recicláveis. Elas são apenas 28% do contingente total de catadores (ANUÁRIO DA RECICLAGEM, 2019).8 Nos Empreendimentos Econômicos Solidários (EES) do segmento da reciclagem, as mulheres correspondem a 39% dos associados (IPEA, 2013)9 e representam 43,6% de todo o quadro social dos EES. No entanto estima-se que sua participação no trabalho de catação seja subestimada por esse tipo de dado, na medida em que parte do contingente de mulheres catadoras consideraria a catação como trabalho complementar e declararia realizar outros tipos de trabalho como atividade principal, como ser dona de casa ou empregada domésticas (IPEA, 2013).
Além disso, a remuneração pelo trabalho das mulheres catadoras seria cerca de 32% menor em relação aos homens (IPEA, 2013).10 Entre os grupos informais de EES, as mulheres são maioria, somando 63,2% deles (IPEA, 2016)11, e quanto menor o EES, maior a participação das mulheres (ARAÚJO; DURÃES, 2010). Isto é, as mulheres estão concentradas nas maneiras ainda mais precárias e informais de organização desse trabalho, dificultando seu alcance pelas pesquisas estatísticas, especialmente se forem lidas de maneira superficial.
Esses motivos pelos quais a participação das mulheres no trabalho de catação é subestimada pelas estatísticas – considerar a catação como trabalho complementar e se concentrar em maneiras extremamente precárias e informais de organização desse trabalho – evidenciam o quão entranhada a divisão sexual do trabalho e o nexo opressão-exploração estão na organização social do trabalho e na relação dinâmica entre os trabalhos produtivos e os trabalhos domésticos e de cuidados. Para muitas mulheres, a catação é percebida como uma extensão de seu trabalho com a limpeza, além de uma maneira de complementar a renda. A responsabilização exclusiva das mulheres pelos afazeres domésticos e de cuidados, a insuficiência do Estado no provimento desses serviços e a consequente necessidade das mulheres de flexibilidade da jornada de trabalho, pode ser uma das causas dessa situação precária em que as mulheres catadoras se encontram, cujas pesquisas estatísticas, lidas de maneira rasa, não conseguem captar.
Uma pesquisa realizada na cidade de Marília (SP), por exemplo, demonstrou a complementaridade entre os trabalhos de catação e de limpeza nos cemitérios. Mulheres e seus filhos oferecem aos donos de jazigos a faxina nos túmulos de seus familiares, que são realizadas uma única vez ou periodicamente. Além da limpeza dos túmulos, essas trabalhadoras fazem o trabalho de catação de materiais recicláveis nos próprios cemitérios. Recolhem vasinhos e flores de plástico, restos de metais, restos de velas, entre outros materiais que tenham valor na reciclagem industrial da região. Esses materiais são acomodados em um canto do cemitério e são recolhidos pelas catadoras nos momentos em que percorrem a cidade com os carrinhos, catando materiais pelas ruas (GRECCO, 2014).
Esses resultados de pesquisa sobre a catação de materiais recicláveis elucidam a indissociabilidade entre os trabalhos produtivos e reprodutivos (domésticos e de cuidados), na medida em que essa dinâmica influencia a maneira como o trabalho das mulheres catadoras se diferencia do trabalho dos homens catadores. Fazem refletir sobre o quanto as conexões dos trabalhos das mulheres com os trabalhos domésticos e de cuidados, a desvalorização desses trabalhos e, por extensão, a manutenção das mulheres em formas mais precárias e informais de trabalho, são fundamentais para a expansão do capital, tendo em vista que essas desvalorização e manutenção são fundamentais para o sucesso da geração de lucro industrial.
A indústria de confecções pela lente da divisão sexual do trabalho:
articulando produção e reprodução
O trabalho domiciliar é conceitualmente impreciso12, visto que corresponde a uma enorme variedade de atividades laborais. Essas atividades abrigam diferenças significativas entre si, sobretudo acerca do processo de trabalho que repercutem no grau de autonomia das(os) trabalhadoras(es) domiciliares. É importante destacar que o incremento tecnológico reverberou no trabalho domiciliar criando novas modalidades de trabalho, como, por exemplo, o teletrabalho (home office13) e as plataformas online.
Apesar da imprecisão conceitual, é possível afirmar que desde a década de 1990 o trabalho domiciliar transformou-se e ampliou-se significativamente. As estratégias de redução de custos da produção por meio da externalização, subcontratação e terceirização são exemplos muito objetivos de como tanto o crescimento quanto as mudanças no trabalho domiciliar estão associadas ao novo padrão de acumulação capitalista, que produziu novas formas de gestão e organização do trabalho.
Hirata (2015) observa que as mudanças contemporâneas do trabalho no contexto neoliberal (privatização, externalização e desproteção social) operam de maneira desigual segundo o gênero/sexo. Nas palavras da autora: “As dinâmicas de classe, de raça e dos movimentos migratórios não podem ser compreendidas sem a perspectiva de gênero. O gênero é um organizador-chave da globalização neoliberal” (HIRATA, 2015, p. 1).
No caso dos setores tradicionais da produção industrial têxtil, confecções e calçadista, o trabalho domiciliar é largamente utilizado mesmo antes das transformações apontadas acima. A novidade, portanto, diz respeito à compreensão de que o trabalho domiciliar é atravessado pelas tendências globais de ampliação da extração de valor por meio da intensificação do trabalho precário, informal e desprotegido executado majoritariamente pelas mulheres. Daí estabelece-se o nexo opressão-exploração expresso na gestão do trabalho informal e precário que articula desigualdades de classe e sexo/gênero.
A produção têxtil e confeccionista é o segundo ramo industrial mais relevante no mercado brasileiro. Esse ramo industrial reúne 33 mil empresas, com perfil predominante de empresas de micro e pequeno porte. O setor gera emprego para 1,5 milhões de pessoas em todo o país, com maior concentração nas regiões Sudeste (43,6%) e Sul (30,2%). No entanto a produção da região Nordeste (22,3%) vem crescendo nas últimas duas décadas, especialmente a produção de confecções e vestuário. Uma das principais características desse ramo industrial no Brasil é a completa integração da cadeia produtiva (fiação, tecelagem, malharia, beneficiamento e confecção). Também é característica do setor a presença majoritária de mulheres na ponta da cadeia produtiva, ou seja, na produção de confecções (73%), realizada, quase sempre, em oficinas de costura e facções (IEMI, 2016, 2017).
Apesar dos investimentos na “modernização” do setor (tecnologia, instalação e treinamento/qualificação, especialmente) a produção desse segmento industrial permanece assentada no binômio máquina de costura e costureira, marcadamente informal e precário (ABREU, 1986). O trabalho no ramo da produção têxtil, confecções e vestuário tem passado por um conjunto de transformações, dentre as quais a mais significativa consiste no fato de que as cadeias de produção se tornaram globalizadas. Como consequência dessa globalização, tem-se a divisão internacional do trabalho, que concentrou a concepção dos modelos e coleções têxteis nos países desenvolvidos, além da costura nos países e regiões onde a força de trabalho é mais barata e flexível e as atividades são realizadas em regime familiar e domiciliar (OLIVEIRA, 2013).
A cadeia regional de produção de confecções no Polo de Confecções do Agreste de Pernambuco que, embora possua características da região Nordeste, tais como o alto grau de informalidade decorrente dos padrões de acumulação nacional-regional, é atravessada por essas mudanças globais. A precariedade dessa modalidade de trabalho se expressa, inclusive, na invisibilidade das estatísticas. Os itens a seguir objetivam visibilizar o processo de trabalho e as condições de trabalho nesse setor, levando em conta a divisão sexual do trabalho, ou seja, a articulação entre produção e reprodução.
Trabalho em domicílio e Divisão Sexual do Trabalho: entre jornadas, isolamento, qualificação e desproteção
1 - Jornadas de trabalho intensivas, extensivas, intermitentes, simultâneas e o isolamento:
A divisão sexual do trabalho é crucial para a compreensão do trabalho em domicílio no ramo da produção de confecções, já que as fronteiras entre trabalho profissional e o trabalho doméstico e de cuidados são borradas, bem como as margens entre público e privado. Essa zona embaralhada produz um cotidiano de trabalho bastante complexo e precário. As jornadas de trabalho são organizadas de maneiras intensivas, extensivas, intermitentes e simultâneas, que variam entre 10h e 18h de trabalho. Como, por exemplo, disse uma das interlocutoras em entrevista realizada em 2017: “Não tem folga não. Não tem feriado, nem fim de semana. O trabalho é muito”.
A garagem, sala e/ou cozinha, cômodos da casa, agora transformados pela produção faccionada, oferecem pouca ou nenhuma qualidade para o exercício da costura. A iluminação é falha e as cadeiras não são ergonômicas. Outro fator bastante importante é o nível de isolamento que essa modalidade de trabalho impõe. As mulheres passam dias, às vezes semanas, sem sair de casa. E, na maioria dos casos, o isolamento é rompido apenas quando as costureiras necessitam ir até o armarinho comprar linhas e botões, e/ou quando a máquina de costura precisa de consertos.
A máquina de costura, muitas vezes localizada nas cozinhas, disputa espaço com o fogão e a mesa de jantar, transformando o cotidiano e subordinando o tempo da reprodução da vida ao tempo do trabalho na produção de confecções. A maneira como as costureiras vivenciam o espaço da casa é traduzido em expropriação e sofrimento, revelado na fala de uma interlocutora, em entrevista concedida em 2017: “A minha casa é uma bagunça e sofro com isso”. As condições precárias de trabalho, e as jornadas intensivas, extensivas, intermitentes, simultâneas, bem como a instabilidade e os prazos rígidos para entrega da mercadoria e o isolamento, produzem, entre outras coisas, processos de adoecimento físico e psíquico. Esse adoecimento é visível nos relatos das informantes, em entrevista realizada em 2018: “Aqui rivotril é jujuba14” e “Tomo remédio para não enlouquecer”. As informantes descrevem com naturalidade o uso frequente de medicação para depressão, síndrome do pânico e ansiedade como suporte para o sofrimento provocado pelo ritmo intenso de trabalho, na percepção delas.
2 - Qualificação e o ofício da costura:
Às mulheres coube o peso da obrigatoriedade com o trabalho doméstico e de cuidados, que inclui as tarefas de cuidar, ensinar, servir, atender, limpar, costurar, enfim, ocupações consideradas como “trabalho de mulher” e “lugar de mulher” e, por isso mesmo, socialmente desvalorizadas. Desse modo, a qualificação é uma expressão importante da divisão sexual do trabalho visto que, para o mundo do trabalho, os homens possuem qualificação enquanto as mulheres dispõem de qualidades (HIRATA, ٢٠٠٢). A atividade de costureira encaixa-se bem nessa definição, já que o aprendizado técnico, o manuseio da máquina de costura e o conhecimento do aviamento são, quase sempre, transmitidos entre as mulheres da família. Nas conversas com as informantes da pesquisa é comum ouvi-las falar do aprendizado que se inicia na infância e/ou adolescência, expressado na entrevista realizada em ٢٠١٩: “Aprendi a costurar com 13 anos. Minha mãe me ensinou”.
O trabalho de costurar e ajustar roupas em casa (costureiras autônomas, por exemplo) foi, ao longo do tempo, associado ao espaço doméstico e privado. E, portanto, essa presença das mulheres na produção de confecções, no contexto da externalização, tem a ver com essa qualificação sexuada instrumentalizada por esse ramo industrial. E essa diferenciação da qualificação entre homens e mulheres é produzida no âmbito das relações sociais de sexo.
3 - Desproteção social, vulnerabilidade e insegurança:
O trabalho domiciliar, para as mulheres costureiras, apresenta-se como a oportunidade de “conciliar” o trabalho profissional, o trabalho doméstico e de cuidados. Isso é verificado no relato da informante da pesquisa, produzido em 2019: “Eu costuro, olho a panela no fogo e cuido do menino”.
A consequência desse modelo de conciliação15 desses trabalhos, para as costureiras, é traduzida em negação de direitos (previdência social, por exemplo), instabilidade (os contratos de trabalho são meramente verbais e os prazo para a entrega da costura é definido pelo contratante), baixo ou baixíssimos salários (equivalente a até dois salários-mínimos), longas e penosas jornadas de trabalho (entre 10h e 18h diárias), e adoecimentos (ortopédico e psíquico, sobretudo).
Para as mulheres mais jovens, somam-se também formas contemporâneas de autoassalariamento ou assalariamento disfarçado por meio da modalidade de trabalho autônomo, microempreendedor individual (MEI) e pessoa jurídica (PJ). Essas modalidades têm sido utilizadas pelos empregadores objetivando mistificar o vínculo de trabalho, ao mesmo tempo em que buscam baratear os custos da produção e força de trabalho. Aqui enquadra-se, também, o repertório empreendedor mobilizado pelo empresariado local e as jovens costureiras e designers de moda da região.
Outra importante consequência do modelo de conciliação é a delegação a outras mulheres do cuidado das crianças e limpeza da casa. É bastante comum encontrar mulheres mais velhas e/ou doentes (sofrimento mental, por exemplo) que executam o trabalho de cuidados, seja no domicílio das costureiras, seja na casa da vizinha transformada em uma pequena creche improvisada. A negociação entre trabalho doméstico e de cuidados e o trabalho profissional atualiza e retroalimenta os modelos de conciliação ao mesmo tempo em que confunde formas de exploração e amparo/ajuda. Refere-se aqui à ajuda, pois entre essas mulheres não há o grau de hierarquia retratado na literatura que analisa a relação entre as mulheres executivas e com postos de responsabilidade e empregadas domésticas, por exemplo.
A segregação por sexo em cozinhas profissionais
As cozinhas são um espaço interessante de observar como a divisão sexual organiza o trabalho, hierarquiza as atividades e coloca homens e mulheres em relação de permanente tensão (relações sociais de sexo), definindo performances e comportamentos profissionais.
Os princípios da separação e hierarquia se fazem presentes com muita clareza e organizam o trabalho que ocorre nesse espaço. Para além da separação entre a cozinha doméstica e a cozinha profissional, em que a primeira faz parte do trabalho doméstico e, portanto, é associada ao trabalho feminino, desvalorizado e invisibilizado, e a segunda constitui o trabalho visível, de prestígio e masculino, tal divisão também se expressa dentro da cozinha profissional.
No caso da cozinha doméstica, em anos recentes – na medida em que transformações sociais têm se operado paulatinamente, principalmente em função do movimento feminista que tem procurado dar visibilidade ao trabalho doméstico enquanto trabalho, mesmo quando não remunerado – há uma pressão crescente para que os homens assumam a parte que lhes cabe nesse conjunto de atividades. Bruschini e Ricoldi (2012) observaram que a contribuição masculina para o trabalho doméstico aparece na forma de “ajuda”, o que denota, por um lado, que esse trabalho continua sendo atribuição principal das mulheres e, por outro, que os homens realizam as tarefas que sobram, ou as que escolhem fazer. À medida que a cozinha vai se tornando gastronomia, e cada vez mais associada a uma arte, a um talento, a um trabalho positivo, mesmo a cozinha doméstica vai se masculinizando.
Na cozinha profissional, de restaurantes e outros estabelecimentos de comida preparada, há uma separação de trabalhos de homens e de mulheres, em que as mulheres estão associadas à cozinha fria e à confeitaria, e os homens associados à cozinha quente, à grelha, à chapa, aos fornos, à carne, assim como ao trabalho de chef. Há uma hierarquia clara entre três ocupações: auxiliar ou assistente, que é a ocupação mais baixa ou com menos experiência, um cargo de entrada, que geralmente trabalha junto a um(a) cozinheiro(a) e faz o trabalho de mis-en-place16, limpeza e higienização; o(a) cozinheiro(a) que faz o trabalho de preparo, cozimento e montagem; e o(a) chef, a pessoa com mais autoridade na cozinha, que precisa ser cozinheiro(a), mas é, sobretudo, um(a) administrador(a).
O princípio da hierarquia se expressa na concentração das mulheres nas funções de auxiliar de cozinha e cozinheira, enquanto os homens majoritariamente ocupam o cargo de chef17 , apesar de as mulheres serem a maioria dos empregados no setor18. O trabalho do(a) chef é gerir os funcionários da cozinha, administrar os insumos, controlar tudo que entra e sai dos estoques, a relação com os clientes, responsabilidade sobre o cardápio e, em última instância, sobre a identidade do estabelecimento, sobre o tipo de comida que vai ser servida.
A hierarquia do trabalho baseia-se na autoridade do(a) chef. Principalmente na hora do serviço, uma pressão forte se exerce sobre os funcionários e todos precisam cumprir seu papel. Por remeter a uma hierarquia militar, a posição de chef tem características masculinas, como a voz de comando, a liderança e certo grau de agressividade — pois cabe ao(à) chef manter o ritmo do trabalho da cozinha como um todo, portanto é ele(a) que exerce a pressão. O princípio da hierarquia se expressa numa atribuição de características para o trabalho de liderança que são condicionadas por elementos do gênero masculino. Cabe às mulheres que chegam a esses postos de liderança criar estratégias para poder exercer autoridade.
Há uma separação entre “trabalhos de homens” e “trabalhos de mulheres”, em que os trabalhos de homens têm mais valor e prestígio do que o das mulheres. Muito associado à força física e à vitalidade, o preparo de carnes e o manuseio de grandes partes dos animais, que remete a um passado cavernícola de domínio da natureza, é um trabalho desempenhado, sobretudo, pelos homens (BRIGUGLIO, 2020).
As mulheres são mais direcionadas para a cozinha fria, em ocupações como garde manger (legumes, saladas, frutas), a praça de entradas (pratos menores e mais simples) e a confeitaria (bolos, doces e sobremesas). O trabalho feminino na cozinha é associado a menos demanda de força física (o que na prática não é exatamente verdade, uma vez que os legumes e frutas precisam ser transportados e carregados em sacos ou caixas pesados), mas muita delicadeza, precisão e atenção aos detalhes. A diferenciação entre homens e mulheres no mundo profissional pode ser explicada por uma série de razões, entre as quais Hirata (2015, p. 8) destaca o tipo de emprego (setor de atividade, contrato de trabalho) e “a construção social das mulheres como sendo tecnicamente incompetentes”.
Os papéis de gênero e a associação de características “naturalmente” femininas fazem com que as mulheres se sintam frequentemente obrigadas a provarem que têm tanto mérito e capacidade quanto os colegas homens, que elas também merecem estar lá. Cabe às mulheres se adaptarem ao ambiente de trabalho e, caso não consigam, elas são consideradas o problema.
Todavia essa categorização de “feminilidade” associada ao trabalho delicado e monótono está associada às necessidades produtivas, já que toda essa delicadeza atribuída às mulheres, que as tornaria incapazes de trabalhos pesados e insalubres, desaparece e elas passam a ser consideradas aptas para esses nos momentos em que os setores produtivos demandam. Souza-Lobo (2011) questiona os critérios de presença/ausência de força na organização da divisão sexual do trabalho ao reivindicar as comparações intersetoriais, mostrando que, no Brasil, quando se necessita das mulheres como cortadoras de cana, por exemplo, os critérios de delicadeza e trabalho leve desaparecem.
Carregar peso e transportar caixas são atividades que podem comprometer a saúde tanto dos homens quanto das mulheres, e oferecem risco à saúde de ambos. Ainda que novas tecnologias possam aliviar esse tipo de trabalho (como carrinhos, roldanas e elevadores), o uso da força física é visto como uma característica muito positiva, como um rito de passagem pelo qual quem deseja trabalhar na cozinha precisa passar. Nesse sentido, muitas mulheres preferem se esforçar para carregar peso em vez de pedir ajuda, por compreenderem que isso pode ser interpretado como uma fraqueza, como algo que poderá ser usado contra elas.
Como observaram Kurnaz, Selçuk Kurtulus e Kiliç (2018, p. 128), é necessário que as mulheres chefs trabalhem mais e mais duro que os homens, assim como é importante que elas “amem” o trabalho para criarem mais espaço para elas mesmas nesse setor dominado por homens. “Embora elas sejam bem-sucedidas em existir em um campo dominado pelo masculino, elas sentem a obrigação de serem aceitas pelos homens”.
Há uma trama de poder por trás da naturalização das atividades femininas e masculinas, sendo as masculinas mais valorizadas. Em um ambiente como as cozinhas profissionais, onde há muita pressão, onde o poder se exerce sobre os(as) subalternos(as) na forma de gritos, de ameaças e de outras agressividades, onde as jornadas e o cotidiano do trabalho são extenuantes e muito exigentes, constrói-se a ideia de que apenas resistem a esse trabalho os que são mais fortes. Às mulheres que pretendem sobreviver nesse espaço só lhes resta se tornarem mais fortes, em alguma medida, se masculinizarem, sob pena de sofrerem assédio ou serem demitidas.
A tensão que permeia as relações entre homens e mulheres nesse ambiente e nas relações de trabalho nesse setor não se limita a características pessoais ou conflitos entre indivíduos, mas como alertaram Kergoat e Hirata, são relações de tensão social entre os grupos de mulheres e homens. A ideia de que as relações sociais de sexo se estruturam em torno de um enjeu, em função de algo que está em disputa, fica evidente nas relações de trabalho nas cozinhas, onde os princípios da divisão sexual do trabalho se expressam de forma clara.
Leveza, peso, técnica e penosidade em questão:
a divisão sexual do trabalho industrial
A composição da força de trabalho industrial metalúrgica no Brasil é hegemonicamente masculina. Embora o trabalho em tais indústrias seja caracterizado pela formalidade de contrato, não há uniformidade das condições de emprego em seus segmentos e esses possuem diferentes configurações de divisão sexual do trabalho. O segmento automotivo, de baixa presença feminina, tem salários mais altos e empregos mais protegidos, enquanto o eletroeletrônico19 tem participação feminina mais significativa e remuneração média inferior. Esses são os dois segmentos nos quais se alcançou maior participação feminina dentro do setor metalúrgico20.
Tais atuais fronteiras da participação do trabalho fabril feminino repõem o “princípio da separação”21, por meio do qual atribui-se a homens ou mulheres trabalhos socialmente entendidos como femininos ou masculinos, e a partir de onde constroem-se, também, valorações distintas dos trabalhos segundo o sexo de quem os efetua.
Discutir os estereótipos sobre as capacidades e limitações femininas é uma das formas de abordar a construção da segregação e a hierarquia dos sexos no trabalho. Apesar de serem frequentemente desacreditadas em fábricas pouco feminizadas, como as montadoras automotivas, mulheres alcançam postos considerados masculinos e neles demonstram plena capacidade técnica e física de desempenharem seus trabalhos – situação que ajuda a questionar a dita e naturalizada “incapacidade feminina”. De outra parte, no segmento eletroeletrônico, cuja fabricação de equipamentos de informática e de celulares utiliza trabalho eminentemente feminino, existe uma pressuposta compatibilidade entre trabalhos que requerem delicadeza e minúcia e as mulheres.
Duas das justificativas para o lugar ocupado pelas mulheres na produção de bens, segundo as operárias e operários que trabalham nas indústrias automobilística e eletroeletrônica paulistas, bem como de seus representantes sindicais, remetem às questões das habilidades e qualificações necessária para o trabalho, que giram em torno do binômio força versus delicadeza e da relação com os instrumentos de trabalho, reiterando a tendência ao afastamento de mulheres da operação de máquinas.
Autoras como Kergoat (2018) e Souza-Lobo (2011) desenvolveram estudos questionando justificativas criadas para a alocação (e segregação) de mulheres em determinados postos das fábricas. Como discute Kergoat, associar o trabalho das operárias à uma ideia de feminilidade que rima com fragilidade e delicadeza ocasiona dificuldade de reconhecimento (e a compensação) do caráter penoso das suas condições de trabalho nos postos repetitivos que comumente ocupam. Segundo a autora, “a força física é remunerada, mas não a destreza manual, a minúcia ou a resistência nervosa”, isso sob argumento de que “tais qualidades não seriam adquiridas através de uma formação, mas inerentes ao sexo feminino” (KERGOAT, 201822, p. 33). Assim, reproduz-se uma visão restrita de que trabalho pesado ou penoso – e que merece compensações – é apenas o que requer força (real ou no plano das representações).
Há, no segmento eletroeletrônico, uma predominância absoluta das mulheres nas atividades de montagem manual dos menores equipamentos, cujos principais requisitos são a delicadeza, minúcia e agilidade. Tais atividades carregam consigo, ainda hoje, a representação de “leves”. A penosidade ocultada de seu trabalho não reside unicamente no fato de que se realizam operações minuciosas, repetitivas, em ciclos curtos, em ritmo acelerado, constante e imposto (uma fábrica investigada produzia um notebook por minuto, 3 mil por hora e 24 mil por dia). Diz respeito, também, ao fato de que há postos que requerem, sim, o uso de força para o carregamento de pesos (de caixas, de equipamentos, de carrinhos com peças, o dia todo) – conforme relatado por operárias. Sendo em razão da repetitividade ou em razão do real carregamento de pesos, há nesses trabalhos o requisito de esforço físico que o distancia da alcunha de “leve”.
Outra justificativa para a divisão sexual nas fábricas que se evidencia falaciosa é a pressuposta inabilidade feminina para trabalhos considerados demasiadamente “técnicos” ou que demandam operar máquinas. O fato de as mulheres serem as primeiras a ocupar certos postos de fábricas automotivas do ABC em plenos anos 2000 e 2010 – como eletricista de manutenção, operadora de empilhadeira ou soldadora no setor de armação – quebra, na prática, embora de forma tardia, o argumento da incapacidade. A frase repetida por trabalhadoras entrevistadas: “não é força, é jeito”, “não é força, é habilidade”, entre outras variações, mostra que há alternativas para que mulheres menos fortes trabalhem nas fábricas. Ao mesmo tempo, a presença de homens menos fortes em postos como o de estamparia, reconhecido como um posto penoso, revela que o que acaba sendo colocado em operação não é o critério da presença ou ausência de força ou de habilidade técnica, mas o critério do gênero de quem trabalha.
A problemática da necessidade de força para a realização das operações nas fábricas não pode ser ignorada, tampouco absolutizada. Há recursos técnicos que podem diminuir a necessidade de força em diversos postos, como a automatização de certos postos “duros”, a exemplo do que se conquistou em uma das fábricas com a mecanização de uma operação de transporte de pneus que antes precisavam ser carregados “no braço”. Há também técnicas ensinadas por colegas a operárias de montadoras de veículos para, por exemplo, carregar grandes peças, como portas de caminhões (“eu já tinha o jeito(...)você já pegava ela, colocava no trilho e ia empurrando. (...) enquanto você não tem essa experiência, vai se esforçar mais”). Há inclusive trabalhadoras que desenvolvem seus próprios macetes, para evitar pedir ajuda para homens e serem consideradas inaptas para seu trabalho, como a adaptação de instrumentos com alavancas que permitem maior aplicação de força, pois, segundo uma delas, “nem sempre você precisa executar com a força do corpo”. Tais exemplos favorecem o argumento de que cada vez menos a força física pode ser considerada um impedimento para que mulheres realizem funções nas fábricas automotivas.
Há de se discutir, também, critérios para alocação dos homens na divisão sexual dos postos. No segmento eletroeletrônico, conforme relata Liliane23, havia um tipo de “negociação” de operários da linha com os líderes, que criavam vínculos entre si fora do ambiente de trabalho (por exemplo, jogavam futebol juntos), o que resultava em livrá-los dos postos mais duros, nos quais as operárias acabavam predominando em algumas linhas: “a maioria dos homens faziam as coisas mais leves. (...) tinha umas partes que a gente via homens que pegavam peso mesmo, mas tinha parte que a gente via uns rapazes fortes, altos, pegando etiqueta, enquanto só mulher pegava peso. Então, ia falar alguma coisa, aquele cara lá era amigo do líder”. Essa problemática remete ao identificado em outras pesquisas, sobre haver alocação de mulheres nos postos mais duros da fábrica, rejeitados por outros operários homens.
No segmento automotivo, conforme relata Catarina24, há trabalhos que homens em geral “não conseguem fazer”, como o de dar pontos de solda menores e mais numerosos no setor de armação de veículos: “Não sei se é porque eles não querem trabalhar lá, mas eles dão ponto em lugar errado, aí solta. Eles não ficam olhando se o ponto está solto”.
A esse respeito, Souza-Lobo (2011) constatara, em suas pesquisas sobre operárias do ABC nos anos 1980, que os homens “não são muito hábeis para determinadas tarefas”, explicando que “eles não querem aprender justamente porque se trata de tarefas penosas” (SOUZA-LOBO, 2011, p. 86-87). A autora analisa que “os homens podem recusar alguns constrangimentos. Homens e mulheres podem resistir quando querem. A resistência masculina é descrita como uma afirmação de poder, a das mulheres como negligência, irresponsabilidade, falta de interesse” (SOUZA-LOBO, 2011, p. 87).
Assim, é relevante compreender que a presença concentrada de mulheres em determinadas funções da indústria metalúrgica (como a montagem manual) não decorre somente dos atributos “femininos” – como minúcia, destreza etc. –, mas é também consequência do impedimento de seu acesso a outros postos menos penosos e mais bem remunerados. Deste modo, é preciso compreender a posição das mulheres no processo produtivo não somente como “gueto feminino”, mas também como “residual” do trabalho que homens não querem fazer25.
A divisão sexual do trabalho na indústria se mostra, assim, como um ponto de observação relevante de justificativas questionáveis sobre o estereótipo do feminino e do masculino de trabalhadores(as), assim como provoca a questão de que se trata de relações sociais de sexo/gênero desiguais, nas quais homens, quando podem, escapam de trabalhos repetitivos e penosos, que acabam relegados para mulheres. Essa situação se revela tanto em atividades masculinizadas e mais bem remuneradas, como a da montagem automotiva, como em atividades feminizadas e mais mal remuneradas, como a montagem eletroeletrônica. À qualificação não reconhecida das operárias e à penosidade ocultada de sua atividade, que redundam em sub-remuneração feminina, soma-se o impedimento de que operárias acessem postos mais bem remunerados e menos penosos. Tais constatações trazem elementos para a compreensão das particularidades da exploração do trabalho feminino, submetido aos ditames do capital conjugados aos da divisão sexual.
Breves considerações
Os resultados de pesquisa aqui apresentados se entrecruzam com a finalidade de demonstrar a atualidade do conceito de divisão sexual do trabalho para os estudos do trabalho contemporâneos e como a conceituação feita por Hirata e Kergoat o torna uma chave de leitura metodológica.
Nas quatro “modalidades concretas” discutidas aqui, os princípios de separação e de hierarquia do trabalho entre os sexos revelam uma série de desigualdades, como a invisibilidade, adoecimentos, isolamento, jornadas de trabalho intensivas, extensivas, intermitentes, simultâneas, o não acesso aos direitos sociais associados ao trabalho, o não reconhecimento da qualificação feminina, as distorções na atribuição/retribuição de trabalhos penosos, a desigualdade de remuneração, a extensão dos trabalhos domésticos e de cuidados – historicamente atribuídos às mulheres.
As desigualdades entre mulheres e homens na organização social do trabalho contemporâneo são constatadas de maneira mais imediata no trabalho industrial, tipicamente capitalista, em que, desde sua concepção, utiliza o trabalho de mulheres e crianças como uma maneira de aprofundar a exploração e demonstra a reprodução de justificativas questionáveis sobre o estereótipo do feminino e do masculino de trabalhadores(as), como nas indústrias automobilística e eletroeletrônica. Já o trabalho nas cozinhas, que historicamente se estruturou como trabalho designado às mulheres em sua dimensão doméstica tradicional, em âmbito mercantil explicita a tensão que permeia as relações sociais de sexo.
No mesmo sentido, a modalidade do trabalho na confecção, concebida como trabalho industrial tipicamente capitalista e feminino, em sua dimensão contemporânea é atravessado por diversas mudanças globais e se estrutura em intensa informalidade, sendo permeado por tensões relativas ao trabalho em domicílio, que incidem de maneiras diferentes entre as trabalhadoras e os trabalhadores. Por fim, a catação de materiais recicláveis recoloca a maneira típica de organização do trabalho fabril ao mesmo tempo em que se organiza de maneira conectada à dinâmica reprodutiva do trabalho das mulheres, tanto como uma extensão quanto como justificativa para a informalidade e a precariedade.
Essas análises permitem, também, estender a compreensão da divisão sexual do trabalho para além do entendimento moderno de trabalho, da centralidade do trabalho assalariado, da lógica econômica, ao percorrer as nuances entre maneiras formais e informais de organização do trabalho e direcionar a análise para o conjunto de relações sociais que atravessam o campo social. Apesar dessa extensão da noção de trabalho, o compreendemos como central no enfrentamento às desigualdades sociais, assentado em uma agenda feminista democrática, que pressupõe a construção de ações e formas de resistência coletivas.
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Recebido em 09/03/2020
Aceito em 17/12/2020
1 No contexto de Kergoat e Hirata (KERGOAT, 2009), a noção de “relações sociais de sexo” tem o sentido de desnaturalizar as relações de gênero, que expressam interesses antagônicos.
2 Pesquisa realizada entre os anos 2009 e 2014, com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). As investigações foram realizadas com catadores de materiais recicláveis autônomos e vinculados à associação de reciclagem nas cidades de Araçatuba (SP) e Marília (SP), e fez uso de técnicas de pesquisa qualitativas: etnografia, entrevista e observação participante. Para este artigo, houve uma atualização dos dados estatísticos.
3 A pesquisa desenvolve-se no âmbito do doutoramento em Ciências Sociais (Unicamp-IFCH), com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Na investigação, foram realizadas a observação participante e entrevistas etnográficas com costureiras e costureiros, entre os anos de 2017 e 2019, nas cidades de Caruaru, Toritama e Santa Cruz do Capibaribe, no Agreste de Pernambuco.
4 A pesquisa sobre a divisão sexual do trabalho em cozinhas profissionais baseou-se em entrevistas realizadas com homens e mulheres que trabalhavam como auxiliares, cozinheiros(as) e chefs nas cidades de São Paulo e Paris, assim como em dados do Relatório Anual de Informações Sociais (RAIS), do Ministério do Trabalho e Emprego. Foi realizada entre 2015 e 2020 com apoio da Capes.
5 A pesquisa sobre o setor metalúrgico foi desenvolvida entre 2015 e 2019 com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Capes. Baseou-se em dados da RAIS, em documentos técnicos setoriais e em entrevistas semiestruturadas – realizadas entre 2016 e 2018 com trabalhadores(as) e representantes sindicais ligados(as) a seis empresas dos ramos automotivo e eletroeletrônico instaladas no ABC e interior paulista (LAPA, 2019, p. 44-53).
6 Além disso, a plasticidade da noção de divisão sexual do trabalho envolve a repercussão do alargamento das fronteiras do conceito de trabalho, informado na consubstancialidade e coextensividade das relações sociais de classe, raça e gênero, assim como das experiências oriundas do espaço rural e dos povos tradicionais. Embora este artigo não avance nesta direção, é importante destacá-la como possibilidade.
7 O Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) estima que esse processo recrute cerca de 800 mil trabalhadores em todo o Brasil (MNCR, 2009).
8 Segundo dados de 2017 e 2018 da Associação Nacional dos Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis (ANCAT).
9 Dados Sies/Senaes, 2013.
10 A média de remuneração mensal seria em torno de um salário-mínimo, aproximadamente R$ 975,00 (ANUÁRIO DA RECICLAGEM, 2019). Em 2013, essa média seria em torno de R$ 500,00 (IPEA, 2013).
11 Dados Sies/Senaes, 2013.
12 Para saber mais sobre as imprecisões conceituais, visitar Lavinas e Sorj (2000) e Enoque (2011).
13 Sobre o trabalho home office com foco no gênero, consultar Castro (2017).
14 Rivotril é o nome comercial dado a Clonazepam, uma droga usada no tratamento de síndrome do pânico e controle de ansiedade.
15 Para a análise das mudanças dos modelos de conciliação, ver Hirata (2015).
16 Mis-en-place: do francês, literalmente, colocar no lugar. É o trabalho de pré-preparo dos alimentos, que consiste em tarefas como lavar, higienizar, descascar, cortar, porcionar, entre outras, antes de cozinhar, de fato.
17 De acordo com dados da RAIS (2017), no Brasil, do total de empregados formalmente como chefs, 59,7% são do sexo masculino.
18 Ainda segundo a RAIS (2017), eram 476.104 trabalhadores formalmente empregados no Brasil em restaurantes e outros estabelecimentos de alimentação e bebidas, serviços de catering, bufê e outros de serviços de comida preparada, sendo 67,2% mulheres.
19 Trata-se de indústrias, sobretudo transnacionais estrangeiras, instaladas no Brasil, país para o qual se deslocam operações específicas de suas cadeias globais de produção, o que remete a um debate sobre a conjugação entre divisão internacional e sexual do trabalho na conformação atual desses segmentos, conforme desenvolvido em Lapa (2019, p. 56-62).
20 A participação máxima de mulheres no setor metalúrgico brasileiro já alcançada foi de 19,14%, e está em queda desde então (DIEESE, 2017). No segmento automotivo, elas são quase um quinto (19,8%) da força de trabalho, e no eletroeletrônico, elas são cerca de um terço (34,47%). É nesses mesmos segmentos que se verifica a inferioridade salarial feminina mais alta entre todas da indústria metalúrgica: no automotivo é de 28,28%, enquanto no eletroeletrônico, é de 36,3%, demonstrando uma tendência à maior desigualdade salarial nos segmentos mais feminizados (LAPA, 2019, p. 127).
21 Que se expressa na proporção de homens e mulheres nas principais regiões de concentração dos segmentos automotivo e eletroeletrônico: há apenas 8% de mulheres no segmento automotivo do ABC Paulista, enquanto elas são 56% da força de trabalho no eletroeletrônico do interior paulista, conforme dados levantados junto à RAIS em 2019 (LAPA, 2019, p. 108-109).
22 Texto publicado pela primeira vez em 1978, em francês.
23 “Liliane” (nome fictício), 44 anos, operária na montagem de computadores. Entrevistada em 2018.
24 “Catarina” (nome fictício) 51 anos, operária na armação de veículos. Entrevistada em 2018.
25 Como analisou Tabet (2005), mesmo em profissões que se constroem como tradicionalmente femininas, não existem atividades exclusivamente femininas, havendo uma tendência de os homens assumirem as funções ligadas à operação de máquinas maiores/instrumentos mais complexos, excluindo as mulheres desses postos e relegando-as às atividades a serem cumpridas sem instrumentos (manualmente) ou com instrumentos simples (TABET, 2005, p. 68).
DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO, SEPARAÇÃO E HIERARQUIZAÇÃO: contribuições para a análise do gênero das democracias
SEXUAL DIVISION OF LABOR, SEPARATION AND HIERARCHY:
contributions to the analysis of the gender of democracies
____________________________________
Flávia Biroli1*
Débora Françolin Quintela2**
Resumo
Danièle Kergoat e Helena Hirata definem a divisão sexual do trabalho como fundamento das relações sociais de sexo. Informado pela produção das autoras, este artigo analisa como os princípios regentes dessa divisão, o da separação – existem trabalhos de homens e de mulheres – e o da hierarquia – trabalhos de homens possuem maior valor social – produzem a dualidade entre esfera pública e doméstica. Observa-se, especialmente, a relação entre a divisão sexual do trabalho e a participação das mulheres na política, esfera ainda predominantemente masculina. São centrais para esta análise os conceitos de consubstancialidade e coextensividade, assim como o entendimento das autoras de que deslocamentos nas relações intersubjetivas não apontam necessariamente para processos de emancipação – os quais são necessariamente coletivos. Partindo dessas compreensões, a divisão sexual do trabalho e o gênero das democracias são analisados também por dados do contexto brasileiro. O artigo conclui que a) a divisão sexual do trabalho tem sido atualizada e não superada; b) ela é o fundamento dos obstáculos reiterados à participação política das mulheres; c) os conflitos em torno das demandas por participação permitem analisar a complexidade da dinâmica de dominação, composta por resistências e violência. Este trabalho corrobora a necessidade de se superar o “paradoxo de que tudo muda, mas nada muda”, analisando os “nós” da dominação em termos de gênero, classe e raça e evidenciando seu caráter móvel e conflitivo. Em um contexto de politização das desigualdades de gênero, os conflitos, resistências e renegociações, que constituem a dominação, se movem e se recolocam.
Palavras-chave: Divisão sexual do trabalho. Relações sociais de sexo. Participação política. Democracia.
Abstract
Danièle Kergoat and Helena Hirata define the sexual division of labor as the foundation of social relations of sex. Informed by the authors’ production, this article analyzes how the governing principles of that division, that of separation - there are men and women jobs - and the hierarchy - men jobs have greater social value - produce the duality between public and domestic spheres. It is highlighted the relationship between the sexual division of labor and the participation of women in politics, a still predominantly male sphere. The concepts of consubstantiality and coextensivity, as well as the authors’ understanding that shifts in intersubjective relationships do not necessarily point to emancipation processes - which are necessarily collective – are central to this analysis. Based on them and informed by data from the Brazilian context, the sexual division of labor and the gender of democracies are analyzed. The article concludes that a) the sexual division of labor has been updated, not overcome; b) it is the foundation of the repeated obstacles to women’s political participation; c) the conflicts over the demands for participation allow us to analyze the complexity of the domination dynamics, composed of resistance and violence. This work corroborates the need to overcome the “paradox that everything changes, but nothing changes”, analyzing the “knots” of domination in terms of gender, class and race and highlighting its mobile and conflicting character. In a context of politicization of gender inequalities, conflicts, resistances and renegotiations, which constitute domination, move and replace themselves.
Keywords: Sexual division of labor. Sex social relationships. Political participation. Democracy.
1** Professora associada do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (IPOL-UnB) e pesquisadora do CNPq. E-mail: flaviabiroli@gmail.com
2** Doutoranda do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (IPOL-UnB). Mestra em Ciência Política pela mesma instituição. E-mail: deborafrancolin@gmail.com
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 53, Junho/Dezembro de 2020, p. 72-89
Neste artigo, nos dedicamos a pensar a divisão sexual do trabalho com foco em suas implicações para a participação política das mulheres, numa perspectiva que coloca as desigualdades de gênero no centro da análise sobre as contradições das democracias liberais. Nós o fazemos recorrendo às contribuições de Danièle Kergoat e Helena Hirata. Para essas autoras, a divisão sexual do trabalho é o fundamento das relações sociais de sexo. Trata-se de um modo de organização social do trabalho que estabelece uma cisão entre as esferas pública e privada, entre produção e reprodução social. E isso ocorre de modo que amplia ou restringe a autonomia das pessoas em função de seu sexo.
As posições de mulheres e homens e as relações de trabalho em que estão envolvidos têm variado sem que os princípios que regem a divisão do trabalho se alterem – e essa é, aliás, uma das principais contribuições das autoras para se pensar o que elas próprias definem como o paradoxo de que “tudo muda, mas nada muda” (HIRATA; KERGOAT, 2007, p. 600).
Esses princípios, que permanecem ativos, são os da separação – “existem trabalhos de homens e trabalhos de mulheres” – e da hierarquia – “um trabalho de homem ‘vale’ mais que um trabalho de mulher” (HIRATA; KERGOAT, 2007, p. 599). Sua dimensão ideológica também permanece relevante para a reprodução das formas de dominação e de desigualdade que assim se estabelecem: a fusão entre gênero e sexo biológico permite justificá-las pelo recurso à natureza.
Na França ou no Brasil, não vivemos como as nossas avós. Nem deixamos de viver nossas relações e construir nossas trajetórias em um sistema de sexo e gênero em que as atribuições e competências são separadas e hierarquizadas de acordo com os mesmos princípios que justificaram a domesticidade. Nele, a divisão sexual do trabalho produz o gênero em contextos específicos de racialização e das relações de classe.
A pergunta específica que fazemos neste artigo é: como esses princípios se expressam na política institucional? Sabemos que a política é uma das atividades historicamente atribuídas aos homens. As fronteiras da política são mais espessas para as mulheres (separação) e, quando são capazes de atravessá-las, candidatando-se ou elegendo-se, são posicionadas desigualmente (hierarquia).
Para responder a essa pergunta, seguimos a dupla aproximação indicada por Danièle Kergoat (2009, p. 73): abordamos a divisão sexual do trabalho como problema epistemológico e como problema político. Queremos entender “como as relações sociais tomaram corpo nas instituições e legislações”, mas, também, quais são “as novas tensões geradas na sociedade”, que nos possibilitariam compreender deslocamentos nas normas e representações.
Partindo das contribuições teóricas de Kergoat e Hirata, produzidas no campo da Sociologia do Trabalho, voltamos nosso olhar para o caráter de gênero das democracias. Nos deslizamentos que propomos entre a Sociologia e a Ciência Política, beneficiamo-nos da potência dos estudos das autoras, em suas dimensões teóricas e empíricas. Mas, claro, caminhamos por nossa conta e risco para discutir problemas que não foram objeto de análise específica por parte delas.
Na primeira seção, discutimos as noções de consubstancialidade e coextensividade. Interessa-nos mobilizar, a partir das autoras, uma abordagem que contempla, simultaneamente, a constituição das relações sociais e a constituição dos sujeitos coletivos. Assim como a primeira é dinâmica e contraditória, feita de “nós” que só são desatados no nível analítico, a segunda é da ordem da atividade política e não de identidades que possam ser previamente determinadas. Dominação, mas também subversão, são apreendidas na dinâmica complexa de produção da alteridade em contextos históricos determinados.
A coprodução do gênero, da classe e da raça nas relações de trabalho pode ser, assim, discutida em sua complexidade. O caráter conflituoso das relações sociais não se explica por uma dessas categorias isoladamente e as controvérsias relativas à predominância de um ou outro sistema de dominação nos parecem pouco produtivas. A segunda seção analisa a divisão sexual do trabalho, buscando nas autoras uma chave conceitual, mas também um modelo para se pensar a mudança – e, claro, as permanências que, paradoxalmente, a moldam.
Uma terceira seção realiza de maneira mais direta o deslizamento da Sociologia do Trabalho para a Ciência Política. É nela que procuramos responder à pergunta sobre como a divisão sexual do trabalho se expressa na política. Entendemos que se trata de um problema epistemológico e político incontornável para a análise e o fortalecimento da democracia. Os obstáculos à participação das mulheres, a divisão sexual do trabalho político e a violência contra as mulheres na política constituem dinâmicas complexas de reprodução de desigualdades, nas quais o institucional, o estrutural e o simbólico estão imbricados. Vemos no processo de democratização e consolidação democrática das últimas quatro décadas, no Brasil, variações significativas na organização das relações de sexo, instaurando tensões que não podem ser confundidas, no entanto, com a superação dos princípios da separação e da hierarquia. Finalizamos o artigo com uma breve conclusão sobre as contribuições de Kergoat e Hirata para a análise das relações sociais de sexo como problema político e desafio para as democracias.
Consubstancialidade e coextensividade
Danièle Kergoat e Helena Hirata estão entre as principais autoras a colocar a classe e a raça no centro do debate sobre a divisão sexual do trabalho. Uma das principais controvérsias contemporâneas dos estudos de trabalho e gênero, segundo Hirata (2014), é justamente sobre a melhor forma de conceituar a imbricação entre as relações sociais de gênero, classe e raça.
Ao menos desde suas publicações da década de 1980, Kergoat mobiliza os conceitos de consubstancialidade e coextensividade para apreender de forma não mecânica as práticas sociais de homens e mulheres em face da divisão sexual do trabalho. Trabalhando inicialmente com as relações de classe, gênero e origem (Norte ou Sul globais), ela, assim como Hirata, mais tarde incorporaria também a raça como terceira dimensão fundamental para a compreensão dessas práticas, junto a gênero e classe (HIRATA, 2016; KERGOAT, 2010).
É fundamental para a perspectiva da consubstancialidade e coextensividade o reconhecimento de que noções geométricas, ou fixas, da conjunção entre relações sociais não são as mais adequadas, posto que, argumentam as autoras, essas inter-relações são ambíguas e móveis. Nessa perspectiva, relações sociais são relações conflituosas. Constituem-se de “relação antagônica entre dois grupos sociais, instaurada em torno de uma disputa” (KERGOAT, 2010, p. 94).
A noção de consubstancialidade remete ao fato de que as relações sociais (relações de classe, gênero e raça) são conectadas por meio de “nós”, os quais não são passíveis de serem desatados no nível empírico das práticas sociais, mas apenas no nível da análise sociológica. As relações sociais que formam o nó, assim como ele mesmo, não são pré-determinadas ou permanentes, mas estão sujeitas a um constante movimento, ainda que o “nó” entre elas mantenha-se atado. Já a coextensividade refere-se ao entendimento de que essas relações se desenvolvem, se reproduzem e se coproduzem mutuamente.
Trabalhar com uma metáfora geométrica como a da intersecção produziria uma interpretação das relações sociais como sendo categorias fixas e não como relações móveis e historicamente determinadas (DORLIN, 2005, apud KERGOAT, 2010). Por isso, o conceito de consubstancialidade é preferido ao de interseccionalidade, cuja origem remonta ao feminismo negro da década de 1970, em sua crítica ao feminismo branco, de classe média e heteronormativo (HIRATA, 2014). Hirata e Kergoat reconhecem a importância analítica e política desse conceito e, claro, do feminismo negro para a teoria feminista e para as teorias do “ponto de vista”1, de modo mais amplo. Trata-se, assim, de uma escolha e uma crítica ancoradas no potencial analítico dos conceitos.
Os trabalhos de autoras negras promoveram a crescente sensibilização “às relações de poder ligadas à dimensão racial e práticas racistas” (HIRATA, 2014, p. 63) e demonstraram que a raça constitui uma modalidade de experiência de classe, tal qual a classe sexual e a classe social (KERGOAT, 2010, p. 97). A experiência da raça relatada por mulheres negras aponta ao mesmo tempo para a dominação e para a resistência, a revolta e a emergência de novos movimentos sociais. Ademais, ao falarem a partir de suas perspectivas de mulheres, negras e, muitas vezes, advindas de classes populares, as feministas negras permitiram avançar no conceito de interlocking system, ou seja, de um sistema de entrelaçamento das relações sociais de gênero, raça e classe.
O problema central é, no entanto, o quanto uma determinada categoria analítica é capaz de reconhecer o caráter dinâmico e multifacetado das relações sociais. Para Kergoat (2010, p. 98), os sujeitos estão posicionados em relações que “estão em perpétua evolução e renegociação”. Em sua perspectiva, a abordagem da intersecção poderia fixar e, com isso, invisibilizar dinâmicas de resistência e de renegociação que são características das relações sociais. Ou seja, a interseccionalidade não seria capaz de captar “as relações sociais fundamentais (sexo, classe, raça) em toda sua complexidade e dinâmica” (HIRATA, 2014, p. 65).
Outra resistência, menos explícita, de Kergoat com o conceito de interseccionalidade, segundo Hirata (2014), advém do entendimento de que tende a destacar as imbricações entre raça e gênero em detrimento da classe social. Para Hirata, o cerne da diferença entre consubstancialidade e interseccionalidade é que, enquanto Kergoat privilegia as “três relações fundamentais” (gênero, classe e raça), a interseccionalidade se constituiria de uma “geometria variável”, podendo incluir outras relações sociais como sexualidade, idade e religião (HIRATA, 2014, p. 66). Conforme Kergoat (2010, p. 99), as relações de gênero, classe e raça são fundamentais para a análise por corresponderem a relações de produção, nas quais se entrecruzam exploração, dominação e opressão. Esse não seria o caso para as relações de idade nas nossas sociedades, por exemplo.
Para Kergoat, como mencionado anteriormente, é a partir da compreensão da existência de um “nó” móvel entre a dominação de classe, raça e gênero que se torna possível explicar o aparente paradoxo das relações sociais de sexo: o de que “tudo muda, mas tudo permanece igual”. As relações de gênero não se definem isoladamente. O paradoxo surge justamente do fato de que, apesar disso, sejam assim interpretadas. “O suposto paradoxo aponta para a imbricação, na própria gênese da divisão sexual do trabalho produtivo e reprodutivo, de diferentes relações sociais, e de relações sociais que não podem ser abordadas da mesma maneira” (KERGOAT, 2010, p. 94).
Por outro lado, o paradoxo do “tudo muda, mas tudo permanece igual” também se deve à fusão de “dois níveis distintos da realidade”: o das relações intersubjetivas, entre indivíduos localizados, e o das relações sociais, abstratas e caracterizadas pela disputa. Mudanças na realidade concreta de casais, em relação à divisão do trabalho doméstico, por exemplo, não correspondem a alterações nas relações sociais de gênero, as quais têm um caráter coletivo. Daí a relevância atribuída à organização coletiva das trabalhadoras, que transformaria resistências individuais em práticas de combate e contestação (GALERAND; KERGOAT, 2017).
Divisão sexual do trabalho
Homens e mulheres formam dois grupos sociais distintos, engajados em uma relação social especifica, a de sexo (KERGOAT, 2009). Essa relação envolve antagonismo, dominação e exploração, assim como resistências e negociações. Como é próprio das relações sociais, a relação social de sexo tem uma base material, no caso, o trabalho, a qual é expressa na divisão social do trabalho entre homens e mulheres: a divisão sexual do trabalho (KERGOAT, 2009, p. 67). A divisão sexual do trabalho produz o gênero (BIROLI, 2018a), mas o faz de maneira que classe e raça constituem as relações de dominação e exploração, assim como as de resistência e renegociação. Sua historicidade é um desafio central: analisar as transformações e tensões não suspende a necessidade de compreender como seus princípios permanecem. Os “nós” móveis em que se reproduzem a dinâmica de separação – existem trabalhos de homem e de mulher – e de hierarquização – o trabalho de homem “vale mais” (HIRATA; KERGOAT, 2007) – são também aqueles em que práticas de contestação se estabelecem. Faz diferença, como mencionado, se elas se dão no nível inter-individual ou com base em formas coletivas de organização, quando podem apontar para um horizonte emancipatório, em que as relações de força entre as classes de sexo se desestabilizam (GALERAND; KERGOAT, 2017, p. 52).
A plasticidade dos princípios da separação e da hierarquia nas relações de sexo pode ser percebida nos dados disponíveis sobre participação de mulheres e homens na força de trabalho, na renda desses grupos, assim como no tempo dedicado ao trabalho não remunerado doméstico e de cuidado.
Segundo relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2018), o gap na participação de mulheres e homens com mais de 14 anos na força de trabalho se reduziu em apenas 2% nos últimos vinte anos, sendo globalmente de 48,5 pontos percentuais entre as mulheres e 75 entre os homens, em 2018. Vale observar que nesses mesmos 20 anos, elas tiveram maior acesso à educação, as taxas médias de natalidade se reduziram e a relação entre ciclos de vida e trabalho se alterou. O relatório mostra, também, que existe uma reposição geracional dessa separação. Considerando-se o universo dos jovens que não trabalham nem estudam, que correspondem a 20% das pessoas nessa condição, dois terços são mulheres.
Ao mesmo tempo, as mulheres permanecem sendo as principais responsáveis pelo trabalho doméstico e de cuidado, o que conecta o princípio da separação ao da hierarquização, uma vez que o trabalho não remunerado se define em continuidade com o trabalho remunerado “de mulheres”.
Conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) de 2015 (IBGE, 2016), entre a população brasileira com 16 anos ou mais, 52,6% dos homens afirmam se ocupar de afazeres domésticos, contra 89,9% das mulheres. Essa média apresenta pequena variação entre a população negra e branca. Entre os homens, 53% dos brancos e 52,2% dos negros desempenham essas tarefas. Entre as mulheres, 88,1% das brancas e 91,5% das negras. Como é de se esperar, a população ocupada cuida dos afazeres domésticos em menor proporção que a desocupada. Ainda assim, 90,5% das mulheres ocupadas responderam que exercem esses afazeres, contra 52,8% dos homens. Ou seja, não há relação significativa entre ocupação e responsabilização pelas tarefas reprodutivas, mas entre essas tarefas e o gênero. As mulheres são responsabilizadas pelo trabalho reprodutivo, de menor valor social (HIRATA; KERGOAT, 2007), independentemente de estarem empregadas.
Os dados sobre uso do tempo nos dão uma chave relevante para a compreensão do que se passa. Ainda segundo a PNAD, a média de dedicação semanal dos homens a essas tarefas é de 10,8 horas, menos que o dobro das 24,4 horas dedicadas pelas mulheres (IBGE, 2016). De novo, a variação é pequena em termos raciais e os homens são liberados das tarefas domésticas, enquanto as mulheres, brancas e negras, se ocupam prioritariamente delas. Contudo, quando se considera a renda, esse quadro se modifica. Aqui parece estar o “nó” principal, conectando as experiências interpessoais à dimensão estrutural e expondo uma dinâmica em que as relações de gênero se repõem ou se deslocam em relação complexa com outras – consubstancial e coextensivamente.
Quanto maior a renda, menor o tempo que as mulheres dedicam ao trabalho doméstico. Assim, embora seja como parte de um grupo de sexo que se é liberado ou não desse trabalho, quanto dele uma mulher assume varia segundo sua possibilidade de atribuir o mesmo trabalho a outras mulheres, com menor renda e situação estrutural de maior vulnerabilidade. Nesse sentido, a divisão sexual do trabalho persiste ou se modifica de modo coextensivo – complementar ou conflitivo – às relações sociais de classe, podendo levar a sentidos distintos para o próprio exercício do trabalho e diferenciando as mulheres de acordo com as formas de precariedade que vivenciam, conceito que retornaremos mais adiante.
Na faixa de renda mais alta, em que a renda do trabalho principal é maior que 8 salários-mínimos, 79,6% das mulheres brancas e 79,2% das negras cuidam dos afazeres domésticos, representando uma queda de 10% em relação à média das mulheres na população total, que é de 89,9%. Os homens mais ricos, por sua vez, dedicam-se mais a esses afazeres que os de menor renda, embora a diferença em relação à média da população masculina em geral seja menor que para as mulheres. Nesse caso, na mesma faixa de renda, 54,5%% dos homens brancos e 57,4% dos negros se ocupam de tarefas domésticas, em contraste com os 52,5% da média masculina em geral (IBGE, 2016). Esses dados confirmam uma tendência de rearranjo das tarefas entre setores profissionalizados e de maior renda, já observada em outros países (ESPING ANDERSEN, 2009). Essa tendência, todavia, precisa ser analisada em conjunto com informações sobre as rotinas de trabalho remunerado de mulheres e homens desse grupo social, isto é, com base em informações sobre as condições materiais em que a atribuição e divisão do trabalho são negociadas.
Apontando diretamente para um fator que corresponde a contextos de profundas desigualdades, os dados mostram também que contar com uma empregada doméstica morando no domicílio reduz a proporção de homens que desempenham tarefas domésticas em 15% (de 52,6% para 37,4%) e a das mulheres em 40% (de 89,9% para 49,8%) (IBGE, 2016). Vale observar que em 2015, de um total de 6.275.592 pessoas que se ocupavam do trabalho doméstico remunerado no Brasil, 91,7% eram mulheres. Dessas, 34,8% eram brancas e 65% eram negras (IBGE, 2016). Fica claro, assim, que o fator fundamental é a atribuição do trabalho doméstico a outras mulheres, destacando mais uma vez a dinâmica de coextensividade nas negociações relacionadas ao trabalho doméstico. Gênero, raça e classe constituem a dinâmica das alternativas e dos conflitos.
Os “paradoxos das relações de gênero” se explicam, assim, como alertam Danièle Kergoat e Helena Hirata em suas obras (HIRATA; KERGOAT, 2007; KERGOAT, 2010), pela distinção artificial entre o trabalho doméstico não remunerado e o remunerado, assim como entre o trabalho reprodutivo e produtivo. É essa separação que faz parecer que haveria, ao mesmo tempo, mudança e permanência. O que há é, na realidade, a permanência de princípios que não se explicam se tomamos o gênero isoladamente, como mencionado. Ao mesmo tempo, o leque de alternativas experimentado individualmente, como liberação por algumas mulheres, não pode ser confundido com o processo coletivo de resistência e com a produção de alternativas coletivas voltadas para a emancipação enquanto grupo.
Sem categorias analíticas que permitam essa compreensão, os dados apresentados poderiam nos levar a concluir que famílias em cujo domicílio mora uma empregada doméstica representam uma divisão sexual do trabalho doméstico mais igualitária, já que a diferença entre homens (37,4%) e mulheres (49,8%) que o desempenham é bem menos expressiva que nos dados da população total. Nessas relações, no entanto, o trabalho desvalorizado de mulheres pobres e negras, em muitos casos vulneráveis devido a migrações internas ou globais, não é um universo à parte da liberação daquelas com maior renda. O que se observa não é uma transformação estrutural na divisão sexual do trabalho, mas a bipolarização dos empregos femininos (BRUSCHINI; LOMBARDI, 2000; HIRATA, 2011). As ocupações mais valorizadas e o “passe livre” das tarefas de cuidado (TRONTO, 2013) se tornam possíveis para mulheres devido ao privilégio de classe. Isso não as iguala aos homens, como demonstram dados referentes à ocupação, à renda e ao uso do tempo, mas as situa numa relação de dominação e exploração com outras mulheres, em que classe e raça são significativas nas redes de conflito e nas renegociações dos papeis.
Com foco nessa dinâmica e atenção a seu contexto estrutural e institucional, é relevante trazer à análise a dimensão da regulação do trabalho no capitalismo neoliberal, em seus padrões recentes. A ampliação das garantias para trabalhadores e trabalhadoras, na segunda metade do século XX, permitiu, para parte da população, diferenciar o tempo do trabalho e do não trabalho de forma relativamente previsível, com a redução de jornadas, o direito a licenças e férias remuneradas e os seguros em caso de desemprego. Nos casos em que se estabeleceu alguma variável do Estado de bem-estar social, ela foi acompanhada de políticas distributivas, da universalização do acesso à educação e à saúde, mitigando os efeitos da exploração e as desigualdades estruturais. Embora desde os anos 1980 o neoliberalismo venha se transformando em política de Estado e a capacidade dos Estados nacionais se veja restrita no contexto global de financeirização da economia, a agenda neoliberal de austeridade passou a cobrar um preço ainda mais alto após a crise de 2008 (DUMENIL; LÉVY, 2014; Hirata, 2011). No capitalismo “flexível” e de endividamento, as garantias se reduzem, a exploração do trabalho se intensifica e as incertezas se ampliam (CROUCH, 2011; LOREY, 2015; STREECK, 2018).
Com isso, as relações sociais de sexo são, mais uma vez, movidas e tensionadas. As demandas incontornáveis por cuidado se manifestam em novos padrões de crise, expondo as contradições da reprodução social no capitalismo financeirizado (FRASER, 2016, p. 99). Ao mesmo tempo, o imperativo do trabalho “fluido” e as subjetividades de autoinvestimento (BROWN, 2015), que tomam forma nesse período histórico, ressaltam a inventividade e a autonomia individuais. Em um contexto em que as mulheres compõem a força de trabalho em contingentes maiores do que há algumas décadas e as famílias se transformaram (ONU MULHERES, 2019), os novos “nós” na dominação, no conflito e na reação, precisam ser situados analiticamente nos padrões atuais do capitalismo patriarcal.
É nesse ponto que a noção de precariedade, mencionada rapidamente antes neste texto, nos parece uma chave conceitual relevante, que se soma às discussões anteriores. Para recorrer à teoria da precariedade de Isabell Lorey (2015), a fragilidade humana é algo que compartilhamos, mas a precariedade está relacionada às formas estruturais de dominação e opressão. E a responsabilização desigual pelo cuidado, assim como a definição de alguns (e não de outros e outras) como merecedores de cuidado e proteção, organiza as relações de sexo e o capitalismo. Há uma terceira forma do precário, segundo Lorey, que é característica da ordem neoliberal: a aposta política na insegurança, isto é, em formas de regulação que induzem a precariedade. Nesse contexto, as mulheres são especialmente atingidas pela precarização social, constituindo a maioria dos trabalhadores informais e parciais, o que aponta para uma divisão sexual da precariedade (HIRATA, 2009).
Dessa perspectiva, a fragilidade humana é a base sobre a qual a crítica às relações de trabalho e à política neoliberal é feita: “corpos são precários”, dependem do cuidado de outros, e o cuidado é uma dimensão do viver conjuntamente (LOREY, 2019). A distinção artificial entre reprodução e produção corresponde à separação e hierarquização nas relações de sexo, de forma consubstancial e coextensiva, mas também à erosão do viver conjuntamente.
O gênero da democracia
A divisão sexual do trabalho, portanto, corresponde à “designação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a apropriação pelos homens das funções com maior valor social adicionado (políticos, religiosos, militares etc.)” (HIRATA; KERGOAT, 2007, p. 599). É a forma com que o trabalho social se divide em decorrência das relações sociais entre os sexos, organizando-se segundo os princípios da separação e da hierarquização em diferentes dimensões da vida.
A política é uma delas. Tem sido, como apontam as autoras, tradicionalmente, uma esfera predominantemente masculina. Expressa as relações sociais de sexo, ao mesmo tempo em que permite reproduzir o controle dos homens, como grupo, sobre recursos econômicos e simbólicos. Mais uma vez, é nos “nós” em que classe e raça constituem essas relações que a política masculina se define. Não é qualquer homem2, mas são os homens como grupo social que têm detido os instrumentos para a normatização dos corpos e a diferenciação entre o que é entendido como politicamente relevante ou de foro privado e íntimo.
Os dados são inequívocos. As mulheres são 25% do conjunto de parlamentares, globalmente (IPU, 2020)3. As Américas são a região do mundo com o maior percentual de mulheres parlamentares, que é de 31,8%. No Brasil, embora desde 1997 exista uma lei de cotas que determina que 30% das candidaturas nas listas eleitorais partidárias devem ser de mulheres, esse percentual é de 13,5% (IPU, 2020).
Como podemos compreender essa dimensão da separação e da hierarquização, que situa a divisão sexual do trabalho como forma de organização política? Historicamente, ela está relacionada à divisão entre público e privado e às oposições a ela correspondentes entre o masculino e o feminino, o universal e o doméstico, a lei e a natureza. Permitiu delimitar a cidadania em termos de sexo sem, nesses termos, ferir o princípio liberal da universalidade (ELSHTAIN, 1981; FEDERICI, 2017; OKIN, 1989; PATEMAN, 1985, 1988). Conforme Kergoat (2009, p. 68), os princípios da separação e da hierarquização se tornam aplicáveis graças a um processo de legitimação baseado em uma ideologia naturalista que equivale gênero a sexo biológico e entende as práticas sociais como “papéis sociais” sexuais destinados naturalmente a cada sexo, e não como resultados de construções e relações sociais.
A domesticidade não significou, como se sabe, o mesmo para mulheres brancas e negras (CARNEIRO, 2011; GONZALEZ, 1984; COLLINS, 1995, 2009). A dualidade entre o público e o doméstico se entrecruza, ainda, com processos de colonização que evidenciam a tensão entre modos distintos de organização da vida cotidiana, do econômico e do político (SEGATO, 2016); mas, combinada à divisão sexual do trabalho dela decorrente, é a matriz epistemológica e política da separação e hierarquização do trabalho e das competências de mulheres e homens. À análise dessa matriz moderna, adiciona-se o desafio de compreender de que modo as mudanças incidiram sobre as relações, mas não “desativaram” os princípios das relações sociais de sexo.
A responsabilização prioritária das mulheres pelo trabalho doméstico já foi discutida. Nosso argumento é que ela está diretamente relacionada ao domínio masculino na política, se tomamos os dois fenômenos em sua forma estrutural e coletiva – que pode diferir de como as pessoas os percebem individualmente. Esse domínio permanece mesmo diante de inúmeras mudanças sociais e dos deslocamentos da domesticidade como norma de gênero. Nas últimas décadas, houve mudanças significativas de caráter socioeconômico e demográfico, como o acesso ampliado das mulheres à educação e à profissionalização, assim como a sua incorporação à força de trabalho em posições mais diversas e transversais às ocupações – ainda que aquelas relacionadas ao cuidado e ao trabalho doméstico permaneçam predominantemente femininas –; o aumento da idade média ao casar-se e a redução do número de filhos; as mudanças na moral sexual e nas expectativas em relação às trajetórias das mulheres.
Houve, também, uma intensificação das pressões sobre as instituições políticas nas décadas recentes, tendo como referência a igualdade de gênero e, como contexto, os deslocamentos na dualidade entre o público/masculino e o privado/feminino. A atuação dos movimentos de mulheres e feministas levou à incorporação da agenda da igualdade de gênero pelas organizações internacionais, com marcos relevantes na segunda metade do século XX, como a “Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher” (CEDAW), aprovada em 1979 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, e a Declaração e a Plataforma de Ação de Pequim, resultantes da Conferência Mundial sobre as Mulheres, que ocorreu naquela cidade em 1995. Nas Américas, a “Convenção Interamericana para prevenir, sancionar e erradicar a violência contra a mulher” (Convenção de Belém do Pará), adotada pela Organização dos Estados Americanos (OEA), em 19 de junho de 1994, tornou-se um instrumento legal com incidência em toda a região.
As convenções e declarações internacionais, e de modo mais difuso o processo de politização das relações de gênero no âmbito do sistema internacional de direitos humanos, foram mobilizadas pelos movimentos feministas nos espaços nacionais, com efeitos variáveis na legislação e nas políticas públicas. Nesse quadro, a temática da sub-representação das mulheres na política também ganharia maior centralidade. A primeira lei de cotas eleitorais para mulheres no continente americano foi a da Argentina, de 1991. Com ela, inicia-se um ciclo de adoção de políticas de cotas para mulheres no mundo, que atingiria seu ponto mais alto após a Conferência de Pequim, em 1995, resultando na adoção de algum tipo de cota para mulheres por 57% dos países do mundo (DAHLERUP, 2018, p. 1423) e na inclusão de três países latino-americanos – Cuba, Bolívia e México – entre os cinco com maior representação feminina no parlamento no mundo.
A politização das relações sociais de sexo também mudaria a maneira como pensamos a democracia, que não poderia mais ser colocada acima da diferença sexual, tendo que ser “reconceitualizada com essa diferença firmemente considerada” (PHILLIPS, 1991, p. 149). Sistemas eleitorais, relações entre poderes, partidos políticos, elites e carreiras políticas, para citar alguns temas tradicionais da Ciência Política, passariam a ser repensados numa perspectiva de gênero, embora isso ainda se dê numa franja da disciplina (BIROLI et al. 2020).
Os processos de construção democrática do pós-guerra – e, na América Latina, a democratização que ocorre com a erosão das ditaduras instauradas nos anos 1960 e 1970 – permitiram que as desigualdades de gênero e a sub-representação feminina na política, mais especificamente, fossem definidas como déficits das democracias. Isso significa que o trânsito entre o específico (o que atingiria as mulheres como grupo de classe) e o geral (o que é da ordem das instituições e da comunidade política nacional, configurando normas e políticas “universais”) se deu politicamente. Algumas pesquisadoras falam mesmo em processos de despatriarcalização do Estado (MATOS; PARADIS, 2014), referindo-se ao Brasil da primeira década do século XX4.
Como, então, fugir ao aparente paradoxo de que “tudo muda, mas nada muda”? Parece-nos que é, mais uma vez, importante vislumbrar o problema na continuidade entre o trabalho reprodutivo e produtivo, situando-o como dinâmica correspondente à divisão sexual do trabalho. Além disso, é relevante lembrar que tensões e renegociações ultrapassam os conflitos entre os grupos de sexo também nesse caso, assim como evitar a confusão entre o individual e o coletivo.
Para situar brevemente a dinâmica de mudanças e permanências no caso brasileiro, trazemos, brevemente, o processo de implementação das cotas nas candidaturas. Nosso objetivo não é uma análise das cotas e de seus efeitos, mas destacar deslocamentos, renegociações e reações, que se dão em uma rede de relações. Revelam, também, diferentes dimensões do problema: a divisão sexual do trabalho se apresenta no espaço das instituições (na seletividade do acesso à política, mas também na divisão do trabalho político no espaço institucional), manifesta-se nas disputas simbólicas e também nas formas de violência que atravessam as relações de sexo na política5.
No Brasil, a introdução da lei de cotas em âmbito nacional, a Lei 9.504/97, se deu em 1997 e, desde então, se aplica aos cargos proporcionais em nível nacional, estadual e municipal – deputado federal, deputado estadual e vereador. O sistema eleitoral brasileiro é de listas eleitorais abertas (eleitoras e eleitores podem escolher a pessoa em que vão votar), sem posicionamento definido, o que restringe os efeitos de uma legislação que reserva um percentual de candidaturas na lista eleitoral partidária. Assim, desde o início, a ação política se dá em sentidos conflitivos: uma nova lei para garantir a participação é aprovada, seus efeitos são neutralizados pelo desenho institucional.
A ação política se dá não apenas em tensão com esse desenho, mas também como forma de reafirmar o domínio masculino, reproduzindo-o. Ao ser implementada a legislação, houve um aumento de 150% no universo total das candidaturas que poderiam ser registradas. Ao mesmo tempo, os partidos políticos, que colocam em ato a dominância histórica masculina, interpretaram que não era necessário preencher os 30% determinados pela lei, mas apenas reservá-los (isto é, bastava não ocupá-los com candidaturas de homens), o que só se modificou com uma alteração no parágrafo 3 do artigo 10 da Lei Geral das Eleições, em 2009, em que passou a constar a redação “cada partido preencherá o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo”, em vez de reservará. Com isso, em 2010, o percentual de candidaturas ultrapassou pela primeira vez o patamar de 20%, chegando a 30% apenas nas eleições de 2014, quando uma interpretação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tornou os partidos que não preenchessem esses 30% de candidaturas passíveis de punição.
O desenho institucional e a determinação legal do comportamento dos atores políticos encontram, também, um terceiro elemento, o dos recursos econômicos. As candidaturas dependem de investimentos e ele continuaria a ser disponibilizado de forma seletiva. Em 2018, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que 5% do fundo eleitoral partidário deveria ser direcionado à formação de mulheres, sendo seguida de resolução do TSE que determinava que 30% dos recursos do fundo eleitoral partidário e o mesmo percentual do tempo de propaganda eleitoral gratuita deveriam ser destinados à candidatura feminina. Nas mesmas eleições de 2018, com a validade dessas regras, o percentual de eleitas para a Câmara dos Deputados brasileira ultrapassou pela primeira vez o patamar dos 10%, chegando a aproximadamente 15%.
Nesse quadro de politização das desigualdades de gênero na política, as reações ficaram evidentes. Destaco a politização como conflito: ela se apresenta em ações que têm diferentes sentidos, como mencionado, e em deslocamentos, renegociações e no reforço, inclusive violento, das relações de dominação. A violência política nos parece, assim, um tema-chave para se pensar a separação e a hierarquização, com foco na participação na política institucional.
A violência política contra as mulheres se apresenta justamente na medida em que as demandas por participação ganharam forma institucional – com as cotas e mais mulheres candidatando-se – e difusa, com as campanhas por maior participação e o espraiamento da crítica ao monopólio masculino. Como reação à politização de que falávamos, a violência política está enraizada em valores, práticas e instituições sexistas e coloca em xeque não apenas as mulheres que participam das disputas eleitorais, mas o próprio pertencimento das mulheres, como grupo, aos espaços políticos (BIROLI, 2018b; KROOK; SANIN, 2016). Esse tipo de violência tem sido considerada uma “estratégia para manter posições de poder” (ALBAINE, 2015, p. 151), afetando potencialmente a participação política de todas as mulheres e, assim, a própria democracia (KROOK, 2016).
No Brasil, as chamadas “candidaturas-laranja” são um exemplo de como essas dinâmicas se dão, conectando as dimensões estrutural, institucional e simbólica das relações de sexo. Trata-se das práticas dos partidos políticos para driblar a legislação de cotas quando ela é incrementada e os partidos passam de fato a ser obrigados a atendê-la – e, principalmente, a partir de 2018, a reservar recursos em correspondência à reserva de candidaturas para as mulheres nas listas eleitorais. A reação se dá pelo registro de candidaturas femininas de fachada ou recusando às mulheres, efetivamente, repasses de recursos registrados como destinados a suas candidaturas (BARBIERI; RAMOS, 2019). Há, ainda, denúncias que demonstram que a violência política ocorre em diferentes dimensões: assédio, ameaça de ou efetiva violência física, violência econômica, violência psicológica e violência simbólica6.
Na engrenagem de reprodução da divisão sexual do trabalho na política, mantê-la como esfera separada – masculina – e tornar espessas as bordas diante das pressões por participação feminina requer a ativação da dualidade público/masculino e privado/feminino, assim como a naturalização das hierarquias que dela decorrem. A título de ilustração, em fevereiro de ٢٠١٩, em reação a denúncias de “candidaturas-laranja” no Partido Social Liberal (PSL), que havia eleito o presidente da República do país em ٢٠١٨, o então presidente do partido, Luciano Bivar, disse ser contra as cotas e justificou: “política não é muito da mulher”. Segundo ele, “tem que ir pela vocação. Se os homens preferem mais política do que a mulher, tá certo, paciência, é a vocação. Se você fizer uma eleição para bailarinos e colocar uma cota de 50% para homens, você ia perder belíssimas bailarinas, porque a vocação da mulher para bailarina é muito maior que a do homem”7.
Discursos que remetem à “vocação” como destino natural atrelado a cada sexo biológico servem de reforço à separação entre público e privado e masculino e feminino, ao mesmo tempo em que obscurecem como a divisão sexual do trabalho distancia as mulheres das atividades mais valoradas socialmente, como é o caso da política. De início, a mulher que decide desafiar o princípio da separação e o que seria o seu papel social de gênero, cuidar do âmbito doméstico, e se envolver com política, precisa lidar com julgamentos e pressões que não são impostos aos homens, para quem a política é entendida como atividade natural. Além disso, a atividade política exige uma disponibilidade de tempo e de recursos cujo acesso é dificultado às mulheres, em decorrência da sobrecarga que vem da responsabilização prioritária pelo cuidado e pelo trabalho doméstico (BIROLI, 2016). O “passe livre” dos cuidados (TRONTO, 2013) não é para as mulheres uma prática social corrente como para os homens, em relação aos quais o entendimento social é de que se dediquem à participação no mundo público, não doméstico. Aspectos materiais e simbólicos convergem restringindo o acesso a redes de contato e o suporte na construção de uma carreira na política. Em conjunto, esses fatores incidem nas diversas etapas que constituem o acesso das mulheres à participação política, da socialização e surgimento da ambição política até a construção de candidaturas e as chances de sucesso nas eleições (MIGUEL; BIROLI, 2010). Também aqui, é de forma racializada e classista que a dominação organiza os obstáculos à participação, assim como a organização coletiva das resistências.
Ainda, quando falamos da relação entre divisão sexual do trabalho e política, é relevante notar a existência de uma divisão sexual do trabalho político e o reforço para que as – poucas – mulheres que conseguem acessar essa esfera se conformem ao papel social esperado do gênero feminino. Nesse sentido, um argumento corrente em defesa da participação política das mulheres remete à ideia de que elas são dotadas de uma moral superior, a qual engrandeceria as práticas políticas (ELSHTAIN, 1981). Nessa perspectiva, há um reforço ao que seriam características femininas inatas (sempre considerar interesses alheios, evitar conflitos e buscar a harmonia, entre outras), as quais justificariam a inclusão das mulheres na política. Assim, a defesa de um “pensamento maternal” representa a transposição da divisão sexual do trabalho e dos papeis sexuais para a política. Com efeito, na prática, essa divisão é observada quando mulheres que conseguem acessar a política se associam à imagem “maternal” e aos estereótipos de gênero, mas, principalmente, pelo fato de serem relegados a elas nichos no campo político considerados adequados às “inclinações femininas”, aqueles dotados de menor prestígio (MIGUEL, 2001). Desse modo, o princípio da separação se revela na ideia de que na política também existem atividades femininas e masculinas, e a hierarquização atribui aos homens as consideradas de maior valor.
Conclusão
Muito tem se modificado, mas a mudança é delimitada pelo fato de que os princípios das relações de sexo permanecem. Eles são ativados em relações dinâmicas, no entanto. Seus efeitos podem variar se consideramos as mulheres numa perspectiva em que gênero, classe e raça constituem as relações de poder, isto é, a dominação em sua forma dinâmica, que inclui resistências e deslocamentos.
A fuga individual da divisão sexual do trabalho, a renegociação nos espaços domésticos e a redefinição simbólica do papel das mulheres são circunscritas por relações sociais de trabalho nas quais permanecem a distinção por sexo entre os domínios da vida, ocupações e “aptidões” (separação), e a desvalorização do trabalho “feminino”, com efeitos mais agudos para aquelas que não têm acesso à profissionalização e às ocupações mais valorizadas. O contraponto dessa valorização é a manutenção do predomínio masculino nos espaços mais valorizados socialmente, em que o controle sobre os recursos e sobre os corpos se estabelece. A política é um desses espaços. Nele, é possível acessar recursos, determinar sua alocação, estabelecer normas de controle sobre os corpos, circunscrever os conflitos socioeconômicos com medidas coletivas – de distribuição e de repressão.
Se a possibilidade de desafiar a divisão sexual do trabalho está aberta a poucas, o acesso aos espaços da política institucional atende à mesma dinâmica. Ainda que algumas mulheres possam atravessar as barreiras estruturais, institucionais e simbólicas, candidatando-se e elegendo-se, isso não significa que o façam em condições de igualdade com os homens ou que desloquem as relações de modo que suspende as desvantagens existentes para as mulheres como grupo, e para mulheres em posições sociais menos privilegiadas, dentro desse grupo. A violência política contra as mulheres mostra, ainda, que os custos para a atuação política são desiguais.
Embora as pesquisas específicas sobre os obstáculos institucionais à participação sejam valiosas para a análise de como eles se reproduzem e das alternativas para sua superação, as análises da Sociologia do Trabalho e, especificamente, a abordagem teórica de Danièle Kergoat e de Helena Hirata nos ajuda a evitar o “paradoxo” de que tudo muda, mas nada muda, compreendendo que se trata de dinâmicas complexas, nas quais os deslocamentos recolocam os conflitos, reposicionam os atores, redefinem mesmo o horizonte possível para a emancipação. A aposta clara, teórica e politicamente, na dimensão coletiva nos afasta, ainda, do risco de tomar as transformações intersubjetivas ou a trajetória de algumas mulheres como se fossem, elas próprias, o signo da mudança nas relações sociais de sexo. Por fim, o foco no trabalho e a abordagem do trabalho reprodutivo e produtivo tecendo juntos dominação e possibilidades de resistência são fundamentais para a crítica aos processos atuais de precarização, assim como às formas assumidas pela violência política em um momento de erosão das democracias, no qual os feminismos são reposicionados como inimigos por políticos e movimentos autoritários.
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Recebido em 25/03/2020
Aceito em 24/11/2020
1 Standpoint theories.
2 Para os dados da composição da Câmara dos Deputados brasileira, que deixam claro quem são os homens e a quem é possível chegar a esses espaços, ver DIAP (2019).
3 Essa taxa considera a média das duas casas legislativas nos sistemas bicamerais e os dados são de março de 2020.
4 Na argumentação das autoras, é central o fato de que a chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) ao Governo Federal, com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para a presidência em 2002, tenha tornado o Estado brasileiro mais permeável aos movimentos sociais, entre eles o movimento feminista.
5 Para algumas análises valiosas com foco institucional, conferir Araujo (2005), Araujo e Alves (2007), Krook e Mackay (2011) e Lovenduski (2011, 2015).
6 A esse respeito, ver https://oglobo.globo.com/brasil/ministerio-publico-denuncia-ministro-do-turismo-por-candidaturas-laranja-do-psl-em-minas-23996667 e https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/04/deputada-relata-ameacas-de-morte-por-ministro-apos-denunciar-laranjal-do-psl.shtml
A FORMAÇÃO DE UM GRUPO PROFISSIONAL :
entre permanências e mudanças das agentes de execução de programas sociais sob o prisma de gênero, classe e “raça”
THE FORMATION OF A PROFESSIONAL GROUP:
between permanences and changes of the social programs careworkers
from the standpoint of gender, class and “race”
____________________________________
Yumi Garcia dos Santos1**
Isabel Georges2**
Resumo
Este artigo discute como as categorias gênero, classe e “raça” interferem (ou não) na formação de certos grupos profissionais, configurando a sua morfologia, a partir da análise de um estudo sobre agentes de execução de programas assistenciais brasileiros. É com base no conceito de consubstancialidade de gênero, classe e “raça” de Danièle Kergoat que é possível compreender as permanências e as mudanças que atravessam esse grupo profissional, que se encontra em baixa posição na hierarquia dos serviços públicos na saúde e na assistência contemporâneos. Numa abordagem inspirada no estudo das instituições do interacionismo norte-americano, a pesquisa propõe, por um lado, a análise das transformações da oferta institucional, assim como, pelo outro, das trajetórias socioprofissionais que a atravessam. São quatro agentes cujas experiências se apoiam em três contextos distintos da construção da política social: o primeiro, no final dos anos 1970, baseado no engajamento militante e comunitário de uma ex-agente sanitária ; o segundo, que se insere no processo de construção nacional da política de saúde voltada para as famílias no início de 2000, com o caso de duas agentes comunitárias de saúde. Uma delas carrega a herança da forma de trabalho comunitário e militante, e a outra se insere nesse mercado por motivos “instrumentais” para sobrevivência. O terceiro, por fim, um homem jovem, negro, se junta em nossa análise para compreender o sentido que ele atribui a esse trabalho fortemente feminizado, realizado num âmbito terceirizado e submetido a imperativos de produtividade.
Palavras-chave: Consubstancialidade de gênero, classe e “raça”. Agentes de execução de programas assistenciais. Grupo profissional. Formas de engajamento.
Abstract
This article discusses how the categories gender, class and race interfere (or not) in the formation of certain professional groups, configuring their morphology, based on the analysis of a study on Brazilian street-level careworkers of assistance programs. It is based on Danièle Kergoat’s concept of consubstantiality of gender, class and “race” that it is possible to understand the permanences and changes that this professional group is going through, which is in the low position of the hierarchy of public services in contemporary health and assistance systems. In an approach inspired by the study of institutions of North American interactionism, the research proposes, on the
1* Professora associada do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde leciona teoria sociológica, metodologia qualitativa, Sociologia do Gênero, desigualdades sociais, Sociologia Urbana, entre outras disciplinas. É membro permanente do PPGS e coordena o Grupo de Estudos Biográficos (GBIO). Suas pesquisas são voltadas para os temas: relações de gênero, desigualdades sociais, trabalho, políticas sociais, migrações e trajetórias. E-mail: yumigarciasantos@gmail.com
2** Socióloga, pesquisadora do Institut de Recherche pour le Développement. Vice-coordenadora da UMR 201 Développement et Sociétés (IRD-IEDES – Paris I), docente credenciada permanente do PPGS, pesquisadora associada do departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e pesquisadora colaboradora da USP-FFLCH-Cenedic. Ocupou várias cátedras nas universidades públicas do estado de São Paulo (Brasil) e tem experiência na área de Sociologia Política, do desenvolvimento e do trabalho. E-mail: isabel.georges@ird.fr
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 53, Junho/Dezembro de 2020, p. 90-111
one hand, the analysis of the transformations of the institutional offer, as well as, on the other, of the socio-professional trajectories that cross it. There are four agents whose experiences are based on three different contexts of the construction of social policy: the first, in the late 1970s, based on the militant and community engagement of a former health agent; the second, which is part of the national construction process of health policy aimed at families in the beginning of 2000, with the case of two community health agents. One carries the legacy of the community and militant form of work, and the other inserts herself in this market for “instrumental” reasons for survival. Third, a young black man joins our analysis to understand the meaning he attributes to this highly feminized work, carried out in the context of the practice of outsourcing and subjected to productivity imperatives.
Keywords: Consubstantiality of gender, class and “race”. Assistance program careworkers. Professional group. Forms of engagement.
Introdução
Este artigo discute – dialogando com a noção de “consubstancialidade” de Danièle Kergoat – em que medida as dimensões de gênero, classe e “raça” interferem (ou não) na formação de certos grupos profissionais, através de duas contribuições que essa noção presupõe: 1) na configuração de sua morfologia (HALBWACHS, 1972), ou seja, em suas características “consubstanciais” permanentes ; 2) na forma como essas características afetam o conteúdo de trabalho e a forma de engajamento desse grupo profissional, a partir da análise de um estudo de caso dos agentes de execução de programas assistenciais brasileiros. Em termos metodológicos, comparamos o momento de formação inicial desse grupo no final dos anos 1970, assim como a sua profissionalização durante os anos 2000. Numa abordagem inspirada no estudo das instituições do interacionismo norte-americano (HUGHES, 1957), a pesquisa propõe, por um lado, a análise das transformações da oferta institucional, assim como, pelo outro, das trajetórias socioprofissionais que a atravessam1. Como se efetua o encaixe entre o contexto da oferta institucional em termos de condições de trabalho, de um lado, e o horizonte de seus trabalhadores potenciais, formando um grupo profissional com determinadas propriedades sociais de gênero, classe, idade e “raça”, de outro ? E como, em articulação com a esfera privada, se constituem as suas subjetividades e práticas ?
Uma das peculiaridades dos programas assistenciais que tem se desenvolvido no Brasil com a implementação do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) é o trabalho social executado pelos agentes comunitários de saúde (fazendo parte da equipe da Estratégia Saúde da Família2) e agentes de programas assistenciais – do extinto Programa Ação Família (PAF), formato anterior ao Serviço de Assistência Social às Famílias (SASF), ofertado pelo município de São Paulo3 – junto às famílias cadastradas, em sua grande maioria compostos por mulheres pobres e negras. Trata-se de uma forma de trabalho do care, uma atividade tributária da disposição ao cuidado às pessoas, o que pode explicar a grande proporção de mulheres entre esses agentes (GEORGES ; SANTOS, 2012 ; GEORGES, 2017), sendo também parte de um fenômeno mais amplo da concentração feminina em ocupações nas áreas da saúde, da educação, do serviço social e do emprego doméstico (BRUSCHINI, 2007; GEORGES, 2014).
Quando políticas públicas são instituídas, as mulheres são recrutadas massivamente para exercerem o trabalho social, pois, por causa dos efeitos da socialização baseada na divisão sexual do trabalho e a disposição para o cuidado dali proveniente, elas respondem de maneira “eficiente” aos objetivos dos serviços assistenciais (MOLYNEUX, 2006; GEORGES; SANTOS, 2016). Essa inserção feminina no mercado assistencial, contudo, é fortemente naturalizada e pouco se tem refletido sobre como é dada a construção desse grupo social. Inspiradas por uma vertente da Sociologia do Trabalho francesa (e também brasileira) que estudou a emergência de certos grupos profissionais do setor terciário, como, por exemplo, o setor bancário (GRAFMEYER, 1992; SEGNINI, 1998) ou, de forma mais ampla, de novos grupos sociais, como os empregados (HALBWACHS, 1972; CHENU, 1990), a ideia é de entender os processos sociais mais amplos em termos de mobilidade social que podem ter levado ao “encaixe” entre certos grupos sociais e tipos de trabalho, levando, desta maneira, à formação de novos grupos profissionais.
Esse grupo profissional majoritariamente feminino e de baixa instrução/qualificação é selecionado pelo poder público (e as instituições parceiras no caso estudado) para se dedicar ao cuidado da população pobre da qual as próprias trabalhadoras fazem parte. Para compreender o que está em jogo nessa relação entre as instituições e a(o)s trabalhadora(e)s, e a(o)s trabalhadora(e)s e a(o)s usuária(o)s, desenvolvemos nossa análise à luz do conceito de consubstancialidade de gênero, classe e “raça” definido pela socióloga francesa Danièle Kergoat4.
Kergoat (2010) desenvolveu inicialmente, no final dos anos 1970, o conceito de consubstancialidade5 de sexo e classe em contraposição às abordagens que analisavam os fenômenos sociais empregando essas categorias de modo isolado, trazendo, assim, a perspectiva materialista e histórica das relações sociais. As categorias não são hierarquizadas e, conforme especifica Hirata (2014), trata-se de pensar classe de modo sexuado (ou, no uso mais recente, generificado), como a perspectiva trazida por Souza-Lobo (2011) no seu livro A classe trabalhadora tem dois sexos; e, também, analisar sexo (gênero) de modo a diferenciar por classe social, o que permitiu engendrar a noção de “bipolarização do trabalho feminino” (HIRATA; LE DOARE, 1998; HIRATA; KERGOAT, 2007). A categoria “raça” foi, segundo Kergoat, posteriormente adicionada para ser tratada estrategicamente da mesma forma que as outras duas, socialmente construídas, como conceito político, cultural e social (KERGOAT, 2010). Para a autora, não basta pensar de modo “geométrico” (interseccionado6, principalmente), pois, quando as categorias são colocadas em relação, há uma coprodução dinâmica e complexa das relações sociais que resultam da inerente assimetria do poder. Assim,
as relações sociais são consubstanciais ; elas formam um nó que não pode ser desatado no nível das práticas sociais, mas apenas na perspectiva da análise sociológica ; e as relações sociais são coextensivas : ao se desenvolverem, as relações sociais de classe, “raça” e gênero se reproduzem e se co-produzem mutuamente (KERGOAT, 2010, p. 94).
As relações sociais são dinâmicas e mudam conforme o tempo histórico, mas sua coextensividade aponta para a permanência estrutural da dominação e da assimetria do poder, mesmo que passe por mudanças de forma. Assim, é fundamental compreender “as invariantes nos princípios de funcionamento das relações sociais”, como a divisão sexual do trabalho, que, apesar das suas formas variarem no tempo e no espaço, mantém os dois princípios organizadores da desigualdade de gênero: “o princípio da separação” (distinção entre trabalho feminino e trabalho masculino) e “o princípio da hierarquia” (o trabalho dos homens é mais valioso do que o trabalho da mulher) (KERGOAT, 2010, p. 8).
Se gênero e classe são as categorias original e intrinsicamente relacionadas na construção teórica de Kergoat, em nosso estudo, realizado no Brasil, a categoria “raça” se entrelaça com “classe” de modo substancial para se compreender as relações sociais. Ou seja, no Brasil, a posição social dos indivíduos encobre, estruturalmente, uma dimensão racial no sentido de que ser pobre significa, em muitos casos, ser negro, apesar das diferenças regionais. Todavia os sujeitos de nossa pesquisa – sendo na maioria pretos e pardos pobres – não necessariamente se apropriam dessa categoria para formular tanto algum pertencimento identitário quanto alguma reivindicação ou problema de inserção social. Também, em certas situações, os indivíduos podem apropriar-se do estigma sofrido reconhecendo-o e posicionando-se diferentemente do esperado (GOFFMAN, 1975). Indicamos as características raciais dos sujeitos de nossa pesquisa a partir da forma como se aparentam (e se apresentam) em nossa observação participante.
A partir dessas diversas características sociais dos sujeitos, o nosso objetivo é identificar quais os marcadores sociais operantes conforme os contextos e situações, evitando, desta forma, a essencialização de suas experiências com base em gênero, classe e “raça”. Essas experiências podem variar ao longo do tempo e conforme as interações (que formam identidades múltiplas), dimensões cuja análise é privilegiada pela pesquisa de longa duração e a relação construída com nós pesquisadoras, mulheres de classe média, brancas e estrangeiras. Nesse sentido, nossa análise se faz em duas perspectivas, a subjetiva – o que é dito nas entrevistas, ou afirmado pelos sujeitos de pesquisa em conversas informais – e a objetiva – o que se percebe por meio da observação participante.
Geração é considerada em nossa análise não como uma das categorias que compõem as relações sociais, mas como indicador de um modo de operacionalização dos serviços decorrendo do contexto institucional, ou seja, da oferta institucional. Assim, procuramos entender as morfologias desses grupos profissionais que se constituíram por meio da coprodução das relações sociais de gênero, classe e “raça” entre a oferta institucional (no caso, a administração municipal e suas entidades terceirizadas) e as trajetórias de suas trabalhadoras, em contextos distintos de condições de realização da atividade concreta.
Apresentamos as trajetórias de agentes assistenciais de três gerações – a geração pioneira, como a de Glória, a geração de transição, a de Esperanza e Fernanda e a que se insere no contexto da gestão terceirizada consolidada, a de um homem jovem negro, Caio – para entender como se fez o encaixe entre a oferta institucional historicamente distinta e um certo tipo de grupo social, os de agentes de execução dos serviços públicos assistenciais. A partir dessas trajetórias, procuramos elucidar, à luz da análise consubstancial de gênero, classe e “raça”, como operam as permanências e as mudanças da situação desses trabalhadores. Entendemos por permanências as dimensões estruturais da desigualdade social, porém com suas especificidades temporais, e as mudanças nas suas formas de engajamento no trabalho e de subjetividades, resultantes da transformação da organização do trabalho da oferta institucional. Assim, o primeiro grupo tem como norteador do seu trabalho a dimensão da militância e da liderança comunitária, e o segundo, a da instrumentalização do trabalho. Talvez possamos chamar de novidade a inserção de homens, principalmente negros, no trabalho assistencial, como uma das características de uma terceira geração. Nesse sentido, como se dão as formas de apropriação do trabalho pelos membros desse grupo profissional, na medida em que observamos uma continuidade das desigualdades sociais, mas uma descontinuidade das condições de realização do trabalho, por sua terceirização?
As trajetórias analisadas são de agentes comunitárias de saúde e de agentes assistenciais de rua com base na pesquisa de campo realizada em parte da zona leste do município de São Paulo (área referida como “periferia”) principalmente entre os anos de 2008-20127, com base nas entrevistas aprofundadas e na observação participante multiescalar entre os diversos níveis hierárquicos de instituições e profissionais da execução dos serviços assistenciais, desde os gestores das organizações terceirizadas até as usuárias, passando pela gerência e os profissionais de nível médio, como as enfermeiras, as técnicas de enfermagem e assistentes sociais8. Nossos principais interlocutores e guias no trabalho de campo foram, contudo, as agentes de execução dos serviços/programas (agentes comunitárias de saúde e agentes de proteção social) e as usuárias, havendo, por vezes, agentes masculinos, notadamente no programa de proteção às famílias, no setor de assistência social, no período mais recente.
A oferta institucional: da gênese da categoria dos agentes de execução
da assistência até a sua profissionalização
Uma das questões biopolíticas brasileiras do século XX foi (se ainda não é) o controle da mortalidade materno-infantil no momento do parto e nos primeiros anos de vida da criança. As regiões de maior taxa de mortalidade desse tipo tem sido o Norte e o Nordeste do país, onde iniciativas populares de educação sanitária, em articulação com agentes religiosos católicos –Pastoral da Saúde e a Caritas brasileira, vinculadas à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) –, foram pioneiras e se tornaram referência nacional. A partir dessas mobilizações realizadas em nível regional, o governo Collor (1990-1992), sendo o ministro da saúde Adib Jatene, instituiu o Programa Agente Comunitário de Saúde (PACS) em 1991, e o governo Itamar Franco, o Programa Saúde da Família (PSF), em 1994. Em 2006, o PSF tornou-se um serviço, passando a ser chamado de Estratégia Saúde da Família (ESF), junto com o Pacto em Saúde.
O médico Ítalo9, branco, de aproximadamente 50 anos de idade, participante de uma das nossas entrevistas com gestores da saúde, informou a origem nordestina, popular e comunitária do serviço. Mas é no relato de Glória, moradora da zona leste do município de São Paulo, de origem piauiense, que é possível conhecer, ainda que não no contexto do PACS, o modo de intervenção comunitária exercido por mulheres no norte do país com fins de compreensão sobre o trabalho mobilizado pelo engajamento comunitário – nesse caso, em Teresina, nos anos 1970.
Nascida em 1955, no interior do Piauí, se autodefinindo como parda, se mudou para Teresina com seu marido, jardineiro, seu primogênito e sua mãe separada de seu pai. Ela trabalhou como professora do horário noturno, agente sanitarista e educadora do Mobral10, tendo apenas o diploma do curso primário, porém com a condição de seguir um curso preparatório para o magistério – no bairro para onde acabara de se mudar, uma área loteada para casas populares após uma enchente que teria ocorrido em 1974.
A população não tinha banheiro, não tinha água encanada, não tinha rede de esgoto, não tinha nada disso; só tinha casinha pra gente morar. Aí a gente tinha que se virar fazendo um poço, no chão, pra ter a água, privada no chão também, e a gente cuidava para jogar soda cáustica, água sanitária nem sei se existia, eu lembro da soda. A gente limpava fossa, a gente chamava o limpa-fossa... principalmente na minha casa, minha mãe, sempre muito limpa também, então a gente cuidou muito bem da saúde. Aí eu lecionei, fiquei com a vaga, andava nas ruas para pegar aluno, nas casas, pegava nome de alunos que não sabiam ler e escrever, eu sei que consegui a minha turma, eu fui a primeira professora noturna do bairro Alfa de Teresina (Glória, 2011).
Enquanto professora e agente sanitária, Glória deu aulas de alfabetização durante os dias úteis e de educação sanitária aos sábados, recebendo meio salário mínimo por cada atividade; não era protegida pela CLT, tampouco tinha função estatutária, mas realizava um trabalho pastoral (FOUCAULT, 1978) buscando aluno por aluno para formar sua turma, visitando de casa em casa para fornecer orientação sanitária. Segundo ela, tinha acesso fácil à secretária da primeira-dama do governo do Estado, que intervinha diretamente no programa. “Agente sanitário lutava para regularizar o que hoje é o SUS”, recorda. Na época tinha acesso à saúde apenas quem tinha registro em carteira de trabalho. “Tinha que saber quem possuía a fossa na comunidade, quem tinha água encanada, poço, tinha que ensinar o modo de cuidar do poço, tampá-lo, conhecer o produto para manter a água, conseguia filtro tudo de graça”.
Por iniciativa própria, buscou registrar as crianças que não possuíam certidão de nascimento, fenômeno comum no bairro e no interior (ela mesma regularizou sua documentação quando se casou, aos 15 anos). Levou o caso à primeira-dama e recebeu o aval para realizar o levantamento de crianças sem registro. Assim, afirmou que “além de eu ser agente sanitária e professora, já entrei como agente social, da assistência social, fiz tudo isso”. Foi também catequista, dando aulas aos domingos. Como não havia igreja em seu bairro, organizava missa na escola, chamando um padre de outra paróquia. Pressionada por seu marido (que não gostava que ela mantivesse as atividades fora de casa) para escolher entre o casamento e o trabalho, optou por se separar em prol do trabalho: “pois eu escolho ser professora: entre marido e trabalho eu escolho meu trabalho”. Com o aumento da família, Glória abandonou o Mobral e se tornou cobradora de ônibus e depois vendedora em farmácia, até partir para São Paulo em busca de melhores oportunidades de trabalho (por volta de 1980, com mais ou menos 25 anos).
Nos anos 1980, São Paulo foi cenário das mobilizações comunitárias femininas da periferia da cidade a exemplo das mulheres da zona sul (organizadas nos Clubes de Mães) e as iniciativas de profissionais de saúde (SADER, 1995), igualmente relatado por Ítalo. Em meados dos anos 1990, como gestor da saúde da zona leste conheceu Irmã Teresa, branca e também médica, que havia chegado do Canadá, em 1994. Irmã Teresa tornou-se coordenadora do atendimento básico da saúde da OS Trinidade11, motivo da nossa entrevista. Segundo a Irmã, a Secretaria de Saúde do estado possuía, desde 1988, um programa denominado Médico de Família, inspirado no modelo cubano, mas em via de extinção. Com o encontro entre ela e Ítalo, formaram, em 1996, as primeiras equipes médicas de atendimento às famílias, concretização de uma parceria entre o Ministério da Saúde, o estado de São Paulo e o Hospital Trinidade. A estrutura física, como as unidades básicas de saúde, foram aproveitadas do programa anterior, assim como novas unidades foram construídas. Esse programa estadual, sob o governo tucano de Mário Covas (1995-2001), cujo secretário da saúde foi Dr. José da Silva Guedes, se chamou Qualidade Integral em Saúde (Qualis) – que se contrapôs ao PAS, das gestões municipais Maluf e Pitta – e durou até 2001, com a municipalização e a implementação do SUS no município a partir de 2002 e, consequentemente, do PSF. Com base no que foi explicado pela Irmã, o programa estadual foi capaz de funcionar graças às ACSs, apesar da excassez de médicos nas equipes e de as enfermeiras serem raras.
Mesmo depois das mudanças de modalidades, e das vagas serem abertas a ambos os sexos, permaneceu a ideia de que o trabalho de ACS é o de uma mulher liderança comunitária. Como afirmou Ítalo, “tem-se a ideia de essa agente ser uma liderança que já cuidava das questões de uma comunidade, quem está ligada ao cuidar em geral é a mulher, que o homem está em outra atividade”. Já Irmã Teresa levantou uma questão que passa pela interação entre os sexos no trabalho do cuidado voltado para as mulheres enquanto pessoas de referência nas famílias:
É mais complexo, a gente tem poucos homens, e nos poucos homens a gente teve algumas dificuldades. Como o agente comunitário tem que acompanhar as prioridades, dentro das prioridades tem criança menor de um ano e gestante, tem muito mais intimidade quando é uma mulher, quando você tem que falar de amamentação, orientação, é mais difícil pra um homem fazer isso (Irmã Teresa, 2011).
O trabalho de ACS é caracterizado por uma série de ambivalências ligadas ao trabalho das pessoas menos qualificadas formalmente, como do care. Especificamente nesse caso dos agentes, uma das ambiguidades é de se situar na fronteira entre as esferas pública e privada, porque sua qualificação inicial provém de sua própria esfera privada, assim como de sua posição na comunidade, e por precisar transitar entre essas esferas de forma permanente, no âmbito do seu trabalho. Além disso, esses agentes não possuem caráter estatutário, sendo ligados apenas por contratos temporais, necessitam obrigatoriamente morar no território de atuação, sendo desligados da função quando se mudam da área, e possuem, de um lado, trabalho que propicia status na comunidade e, de outro, estão situados na mais baixa hierarquia da equipe médica do serviço, inclusive do ponto de vista salarial (LIMA ; MOURA, 2005; GEORGES, 2011 ; GEORGES; SANTOS, 2016). São, ainda, ao mesmo tempo agentes morais (que abrange desde a normatização das condutas da população no que concerne à saúde até a sua gestão emocional, seja por questões pessoal ou familiar, de saúde ou não) e objeto de controle social (por parte dos usuários, além dos membros da equipe médica), o que descarta uma relação hierárquica clássica entre agentes do Estado e a população assistida (GEORGES; SANTOS, 2016). Não obstante diz respeito a um trabalho do cuidado que ganha contornos particulares enquanto serviço público, cuja maioria dos usuários no caso brasileiro faz parte da classe econômica e socialmente vulnerável, produzindo um “trabalho do cuidado que se exerce entre iguais” (GEORGES; SANTOS, 2014; GEORGES; VIDAL, 201212, p. 26). Observamos que a relação estabelecida entre provedor e usuário do cuidado da mesma classe social se baseia no repertório mobilizado pelos próprios agentes para fazer face às demandas e insatisfações da própria vizinhança13, relação que se distingue daquela tecida entre cuidadoras e usuários nos serviços particulares, ou na experiência europeia descritas por Molinier (2014), na França, e Debert (2012), na Itália, por exemplo.
Danièle Kergoat (2010) vê no trabalho do cuidado algo paradigmático para compreender a dinâmica que ela chama de “co-produção das relações sociais de classe, gênero e “raça”14” (KERGOAT, 2010, p. 94). A afirmação é dada a partir do fenômeno considerado relativamente novo na França se referindo ao surgimento do trabalho do cuidado principalmente fornecido pelas imigrantes (documentadas e indocumentadas) às pessoas dependentes como crianças e idosos, que acompanha a profissionalização das mulheres de classe média e a externalização do trabalho do cuidado. No Brasil, sabemos que esse trabalho é antigo, e sob o capitalismo moderno é reproduzido enquanto atividade das mulheres pobres racializadas cujas condições de trabalho nunca foram regulamentadas como direitos trabalhistas plenos (sendo o caso mais emblemático o das empregadas domésticas15, mas também o das agentes comunitárias de saúde16).
Em 2007, cinco anos depois que o SUS foi implementado e o Programa Saúde da Família instituído no município de São Paulo (sob o Prefeito Kassab) foi assinado o contrato de gestão entre a prefeitura e a Organização Social Trindade em algumas regiões da zona leste, culminando em uma franca gestão da saúde terceirizada. Significou um marco na organização do trabalho das ACSs, muitas delas tendo nos relatado sobre seus efeitos na relação com as famílias usuárias, que se dava sob pressão de realização quantitativa do trabalho, se tornando, assim, não somente mais técnico, mas exaustivo, para atingir as metas quantitativas, e contra as expectativas com relação ao trabalho, que supunha o fortalecimento dos vínculos sociais (GEORGES; SANTOS, 2016).
Se o tipo de participação que teve Glória como agente sanitária e educadora social no final dos anos 1970 realizando um trabalho comunitário abrangente (desde a educação, o cuidado à saúde e à infraestrutura, até a assistência e a organização religiosa católica) permanece no imaginário da liderança feminina popular, a “geração PSF” – cujo objeto de intervenção não é mais a comunidade, mas a família – formava agentes de execução a partir de uma ética familista com o objetivo de fortalecer os vínculos familiares. Há, desse modo, uma redução da sua atuação para dentro das quatro paredes da moradia das famílias atendidas e, com a terceirização da gestão da saúde na região, as ACSs de São Paulo se viram repentinamente obrigadas a se adaptar a uma definição produtivista do trabalho, tendo o tempo para a visita domiciliar reduzido. De forma paralela, a assistência às famílias se desenha, a partir de 2005, via contratação do serviço da prefeitura com as ditas entidades da sociedade civil, sendo no caso do nosso estudo uma parceria realizada com a entidade evangélica que denominamos Fundação Paixão. Nesse contexto de processo de mudança da oferta institucional, ocorrido em meados dos anos 2000 no município, como se deram as experiências desses profissionais ? Qual o significado desse trabalho? Como a noção de consubstancialidade de gênero, classe e “raça” pode ser explicativa na construção de suas trajetórias socioprofissionais?
Examinamos a seguir dois casos de agentes de execução da assistência que atravessam os dois momentos de ofertas institucionais, tendo iniciado a ocupação de ACS desde o início da implementação do PSF, mas com perfis distintos: Esperanza, mulher negra, tendo sido inserida nas mobilizações coletivas numa perspectiva mais política e participativa, herdando a forma militante e coletiva, e Fernanda, parda, agindo de modo mais “instrumental”, obtendo o emprego “por acaso”, para a sobrevivência familiar. No terceiro momento, apresentamos o caso de Caio, um homem negro exercendo o trabalho de agente de proteção social do Programa Ação Família, para compreender suas escolhas dentro de atividades tipicamente feminizadas, no contexto da oferta assistencial terceirizada.
As trajetórias das agentes que atravessam a instituição
As trajetórias profissionais das duas agentes de execução da assistência, Esperanza e Fernanda, começaram, no início dos anos 2000, no Programa Saúde da Família. Elas compõem a geração que se situa no cruzamento da mudança institucional, entre mobilização política e profissionalização, instrumentalização e diversificação na saúde e na assistência às famílias.
A mudança da política de saúde municipal não raramente foi vivida pelas ACSs como contraditórias às suas convicções deontológicas e limitadoras das margens de ação na execução do seu trabalho, tendo marcado um turning point (HUGHES, 1957) em suas carreiras ocupacionais. Isso é visto na trajetória de Esperanza, que iniciou sua carreira em programas assistenciais como ACS, mas migrou para a de agente de proteção social do Programa Ação Família. A legitimidade profissional de Esperanza está fundada principalmente na inserção no ambiente do trabalho social local, que associa uma diversidade de atores de orientações religiosas, militantes e profissionais.
Esperanza é agente de proteção social, negra, nascida em 1966 no Rio de Janeiro, de pai operário da Petrobrás e, posteriormente, da construção civil, e de mãe sem profissão declarada. Ela tinha 46 anos em 2012, no momento da entrevista. Possui um irmão que nasceu em 1967, igualmente no Rio de Janeiro, que continua a viver nessa cidade. Em 1972 – quando ela tinha 6 anos – os pais se separam e Esperanza foi morar na região de São Paulo, vivendo com a avó materna em um terreno ocupado na zona norte17, juntamente com seu irmão e sua mãe. Em seguida, em Guarulhos, sua mãe trabalhou como empregada doméstica em casa de família e igualmente em empresas de limpeza industrial (com carteira assinada). Em 1975, ela tinha 9 anos, e sua mãe, que estaria novamente casada, teve outro filho. No ano seguinte, Esperanza deixou de frequentar a escola (após terminar o ensino fundamental). Em 1978, nasceu o irmão caçula (deficiente físico que permaneceria em São Paulo, onde ocupa vários empregos como operador de telemarketing, em 2012); Esperanza tinha 12 anos. Em 1980, aos 14 anos, conquistou o seu primeiro emprego em uma gráfica, primeiramente de modo informal e, depois, com carteira assinada. Foi sua mãe quem encontrou esse emprego para obter ajuda financeira da filha, além de auxílio na educação dos irmãos mais novos.
Em 1985, aos 19 anos, Esperanza se casou; seu marido nasceu no ano de 1955, em Recife, sendo à época morador do mesmo bairro, em Guarulhos. No ano seguinte, nasceu o primeiro bebê do jovem casal, que mudou para o bairro onde mora atualmente, em São Paulo. O marido começou a trabalhar em uma empresa de transporte, um emprego com carteira assinada como motorista de caminhão, que durou 20 anos. Esperanza retomou os estudos e terminou o segundo grau em 1988, aos 22 anos. Em 1990 nasceu o segundo filho.
Em 1996 – ela estava com 30 anos – seu marido pediu demissão na empresa para sacar o fundo de garantia e abrir um comércio no bairro, onde igualmente trabalhava o cunhado mais novo de Esperanza. Eles construíram a casa em um terreno ocupado e aderiram a um movimento para o acesso à moradia. Em 1997, nasceu o terceiro filho e, em 1999, o casal se separou, pois o marido fundou outra família. Esperanza ficou com a casa (sem documentação) e se desdobrou sozinha, trabalhando, no período da manhã, como empregada doméstica e vendedora ambulante de iogurtes e, à tarde, como voluntária do Movimento de Alfabetização para Jovens Adultos (Mova). Lá, ela pode levar seus filhos (na época com 15, 11 e 4 anos). Através dessas diversas atividades na comunidade de base da Igreja Católica e na “Pastoral da Criança”, ela ouviu falar do Programa de Assistência à Saúde (PAS). Ela foi recrutada em virtude de seu engajamento comunitário e passou a integrar o Programa Saúde da Família (PSF) desde sua implantação no bairro, em 2002, quando estava com 35 anos.
A gente viu o comunicado na comunidade e aí a gente estava engajada nessas questões sociais, politicamente também falando, já estava envolvida nessa questão de moradia. [...] Por muito tempo era uma questão também de sobrevivência, eu ia ganhar um salário, ia ter sustento, então juntou o prazer do que eu já fazia [o trabalho como voluntária] com o poder de ter essa sobrevivência, de manter minha família com meu trabalho (Esperanza, 2012).
Ela pediu demissão em 2008, aos 42 anos, após um conflito em razão do tipo de atendimento prestado a uma pessoa idosa, com o qual ela não concordou. Ela permaneceu desempregada por alguns meses, mas em 2009, aos 43 anos, recomeçou a trabalhar no setor da assistência, desta vez como APS, no âmbito do Programa Ação Família, em uma das ONGs locais (contratada pela Fundação Paixão), na qual fora convidada a atuar pela gerente cuja família inteira estava envolvida na militância. Em 2012, aos 46 anos, no momento da entrevista, ela continuou a trabalhar em uma unidade da mesma ONG, no mesmo programa, agora denominado Serviço de Assistência às Famílias (SASF), desde 2011. Comparando sua atividade como agente de rua com aquela de enfermeira – uma formação que ela poderia ter seguido – ela comentou: “Lidar com uma profissão dessa, tem que gostar, eu gosto do trabalho de rua, pra mim, estar atendendo, não é comigo”. E sobre sua atividade atual:
É legal quando consegue, chega e fala: “olha eu consegui”, fiz os documentos, consegui uma consulta, consegui a vaga na escola. Isso é muito legal, eu sinto que fiz um pouquinho, mas eu consegui e aquela pessoa encaminhou: “olha, eu fui lá, fulano deu certo”. Por isso, para nós, é gratificante. Tinha pouco, é que nem eu te falei, eu acho que não deveria ser assim também a distribuição da Renda, do Bolsa [Família], tinha que ter mais educação, mais trabalho, mas infelizmente não é assim o sistema, mas já que o sistema existe, vamos fazer direito para o sistema funcionar, o mínimo que a gente pode. É bem por aí.
Atualmente, ela mora na casa para a qual conseguiu obter o título de propriedade, juntamente com seus três filhos crescidos. No caso específico de Esperanza, é possível definir o sentido de sua atividade profissional e a construção de sua trajetória por meio da íntima associação entre maneiras individual e coletiva de responder às necessidades imediatas, tais como: a habitação, a escola e a guarda das crianças fora do horário escolar. A circulação entre as diferentes atividades sociais, religiosas (Teologia da Libertação18) e militantes está aparentemente orientada não somente pela aspiração a uma forma de mobilidade social (horizontal), mas pela preocupação em garantir a própria sobrevivência e em fazer sua parte para assegurar a dos outros. Na falta de outras formas de reconhecimento social, e também por opção (à semelhança de Glória), a utilidade social imediata de sua atividade acaba ganhando prioridade. Na rotina da execução do trabalho de rua, na saúde ou na assistência, ela se apoia no que é palpável, as conquistas sociais dos usuários que lhes são gratificantes e significantes. Há, em sua escolha ocupacional, uma orientação pautada pelas convicções políticas, traduzida por “lidar com uma profissão dessa, tem que gostar”, que a fez mudar de setor, mas permanecendo como agente de execução em detrimento de uma carreira na enfermagem.
Fernanda faz parte das atrizes sociais de nossa pesquisa que chamamos de “geração mais nova”, sua contratação enquanto ACS tendo ocorrido circunstancialmente (em 2002), por acaso, atendendo à sua necessidade de sustentar a família enquanto mãe chefe de família monoparental. Tivemos a oportunidade de entrevistá-la em duas ocasiões temporalmente distantes, a primeira sendo em 2005, quando estava com 28 anos e três anos de contratação como ACS, e a segunda, seis anos depois, já com 34 anos, com nove anos de experiência de trabalho integrando a equipe da ESF.
Fernanda é a segunda filha de uma família de 4 filhos, de pai motorista e mãe diarista (que havia por quase vinte anos trabalhado como empregada doméstica, porém sem carteira registrada). Ela contou que não “curtiu muito” a adolescência porque engravidou do primeiro namorado. Com 19 anos teve seu filho (que na época da entrevista estava com nove anos). Um ano depois, engravidou da filha maior (que estava com oito anos no momento da entrevista). Mas o que a fez parar de estudar na primeira vez, aos 15 anos (oitava série), não foi a gravidez, e sim o trabalho como empregada doméstica, com intermediação da mãe. Depois retomou os estudos, mas logo interrompeu para ter o bebê. Fernanda estudou de modo intermitente: “um ano eu estudava, outro ano eu parava”. Foi somente pouco antes da entrevista (em 2005) que Fernanda terminou o ensino médio (via supletivo noturno), depois de ter se tornado agente comunitária de saúde.
Fernanda e o primeiro companheiro se instalaram em um cômodo cedido pelo sogro. O rapaz passou a “fazer coisas erradas” e o relacionamento não deu certo, o que a fez morar com os pais no distrito onde mora atualmente, no mesmo prédio que eles. Ela teve seu filho depois dessa separação, sozinha, no hospital coberto pelo SUS. Alguns dias depois do parto tentou se reconciliar com o pai da criança e, durante esse “vai e volta”, engravidou da segunda filha. A separação definitiva se deu em menos de um ano, e ela e os filhos não se encontraram mais com ele. “Vai e volta, vai vem, mas teve uma hora que eu acordei para a vida”, disse.
Quanto ao trabalho, depois de ter trabalhado como empregada doméstica, atuou alguns meses em uma fábrica de chocolate grávida ainda do seu primeiro filho. Depois de se mudar para o atual distrito, passou a trabalhar em um mercado, como atendente. Afirmando que não tem “vergonha de falar”, foi uma das poucas oportunidades de trabalho, mesmo que tenha passado por situações humilhantes. Por não ter sido registrada, disse ter perdido três anos de trabalho formal. No mesmo estabelecimento, Fernanda viu um cartaz anunciando o recrutamento de ACS, o que permitiu sua mudança para um emprego melhor, com mais estabilidade: “Aí surgiu a inscrição, eu falei, vou fazer. Sem saber o que era, que tipo de serviço que era, e aí deu certo”.
Atuando como ACS há 4 anos, Fernanda é desde então responsável por 260 famílias, quase todas residindo em sua rua. Quando não consegue atingir a meta e/ou há campanhas de vacinação, é necessário trabalhar nos finais de semana. Sua frustração é que a equipe médica do posto de saúde não fornece as informações precisas aos pacientes, deixando a profissional angustiada, pois se sente pressionada a lhes dar uma satisfação.
Durante o processo de contratação no posto de saúde, Fernanda conheceu o pai da terceira filha (na época com um ano de idade) que trabalhava como segurança em teatro. Viveram mais ou menos um ano juntos, mas o relacionamento se rompeu devido às agressões verbais e físicas dele. Quando Fernanda teve a filha, os dois haviam se separado pela primeira vez; tentaram reatar o relacionamento quando a filha tinha 5 meses, mas 2 meses depois se separaram definitivamente. Depois de uma briga envolvendo a guarda da filha, Fernanda o processou para obter pensão alimentícia e a guarda da criança. O juiz definiu que ela tenha a guarda e que o pai pague a pensão e tenha direito de visita a cada 15 dias. Ele convive desde então com a filha dois dias por semana, em seus dias de folga. Ela tentou complementar sua renda solicitando o Programa Bolsa Família, mas não foi contemplada.
Quanto à moradia, Fernanda tomou uma atitude arriscada: “invadiu” o apartamento da COHAB (Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo), que estava em processo de reintegração de posse, e negociou com a instituição para obter o contrato de financiamento do imóvel por 20 anos. A síndica do prédio a alertou que não daria certo, pois a Cohab não aceitaria sua permanência no apartamento, mas Fernanda pagou o condomínio e tentou a negociação, tendo sido bem-sucedida. Na época, ela pagava uma prestação de 90 reais por mês.
Pode-se dizer que depois das difíceis relações com os pais de seus filhos, a contratação como ACS permitiu à Fernanda reorganizar sua vida. Concluiu o ensino médio nove anos depois da última interrupção de seus estudos, aos 19 anos, e no momento dessa entrevista almejava fazer curso de técnica de enfermagem. Fernanda disse preferir não se abrir mais a outros relacionamentos, priorizando os cuidados com os filhos e os estudos, como um pacto consigo mesma. Numa fala bem pausada ela lamentou: “Ah meu Deus; envergonhada, na verdade, porque eu tive a oportunidade de estudar, de ter uma profissão hoje e eu joguei essa oportunidade pra cima por conta de coisas do mundo, as quais eu sei que não me levam a nada.” Algumas coisas “não derem certo” (segundo sua expressão), como os relacionamentos conjugais que ela considera “coisas do mundo” e o não benefício dos programas sociais (“nunca fui contemplada”), mas obtém frutos de suas mobilizações por moradia depois da “invasão” e as negociações com a Cohab, a qual ela atribuiu a Deus. Foi na mesma época que conseguiu o emprego como ACS que passou a congregar na igreja evangélica local, fonte de suas forças para aguentar o trabalho e conciliar com a família e os estudos.
Seis anos depois da primeira entrevista, os filhos de Fernanda estavam com 15, 14 e 7 anos de idade. Ela ingressou, depois de quatro tentativas, no tão almejado curso técnico de saúde bucal, instituição situada no mesmo distrito, o que possibilitava ir a pé: “Foi uma luta pra eu conseguir entrar”. Com duração de três semestres, ela estava no segundo semestre do curso noturno. Nessa época, ela fez também trabalho de faxina nos finais de semana para auxiliar no seu orçamento mensal. Nos nove anos de experiência como ACS, Fernanda sintetizou que “o serviço de agente comunitário não é pra qualquer um”.
As pessoas vêem a gente assim, pensam que é mamão com açúcar, não é. É um serviço que vai muito além, não é só ir na casa fazer uma visitinha não, é muito além, a gente acaba sabendo das coisas assim, que impressiona, a gente acaba até se envolvendo muitas das vezes, e se você não tiver responsabilidade, compromisso com aquelas pessoas, você não fica (Fernanda, 2011).
As repetidas interações com as usuárias fez com que Fernanda se tornasse uma profissional capaz de lidar com cada situação distinta e responder à demanda de cada uma, dependendo do perfil, da faixa etária e das necessidades específicas, por vezes com pessoas envolvidas com práticas ilegais, como o uso de drogas. Sobre uma mulher cujo filho é usuário de drogas, mas não toca no assunto com Fernanda, ela mantém a discrição apesar do mal-estar que sente quando realiza visita domiciliar a essa família, que disse já conhecer há anos:
Igual hoje mesmo a gente entrou numa casa que a mãe não tenta passar qual é a realidade da casa, como se fosse tudo normal, e a gente sabe que não está tudo normal. Ela tem problemas com o filho, que o filho é envolvido com drogas, e ela não é clara assim de falar – olha meu filho está envolvido, hoje ele teve que assinar o LA (liberdade assistida) dele (Fernanda, 2011).
Indagada pela entrevistadora se haveria uma orientação específica para tal tipo de situação, respondeu:
O que a gente pode ajudar é o que o paciente relata. A gente não pode oferecer um serviço, nem falar faz isso porque está acontecendo isso, eu sei, mas a gente tem que ouvir do paciente – estou com uma dificuldade assim, não estou conseguindo lidar com essa situação; aí a gente consegue intervir, mas enquanto ele não relata, fica difícil (Fernanda, 2011).
A situação é levada à reunião de equipe médica para discutir uma estratégia para que a usuária possa “se abrir”. Mas há outras interações mais francas, apesar de saber que se trata de práticas ilícitas:
Então dependendo da casa, a gente fala às claras mesmo, e eles recebem assim numa boa. Teve uma menina mesmo que eu falei pra ela – olha você sabe que quando usa cocaína que vocês usam um instrumento pra por a cocaína pra vocês cheirarem você pode contrair uma doença? Ela não sabia, e ela aceitou a informação assim numa boa. E depois ela falou pra mim – Fernanda, foi tão bom você ter me falado aquilo porque agora eu estou tomando cuidado assim, assim, não faço mais assim, assim. (Fernanda, 2011).
Fernanda se queixou de estar trabalhando no limite do cansaço físico e mental. Descreveu seu trabalho como algo que a faz mal mas que não pode parar, pois seus filhos dependem dela.
Eu venho trabalhar porque eu tenho que vir, eu bato nas portas porque eu tenho que bater, mas eu estou no meu limite; no meu limite não, o meu limite já estourou. Eu ainda não surtei aqui dentro não sei nem como. Sabe quando dá vontade de jogar tudo pra cima e sair? Sabe quando você vê a cadastrada, e você quer desviar do caminho porque você sabe que ele vai vir te perguntar alguma coisa relacionada ao serviço no seu final de semana? (Fernanda, 2011).
Executar por nove anos o trabalho de ACS que “não é pra qualquer um” implica – além da descrição do trabalho feita por Fernanda sobre o dia a dia das visitas domiciliares – realizar um trabalho emocional (HOCHSCHILD, 2012) e do cuidado que extrapola as esferas do público e do privado, e aceitar um baixo salário (“não recebo mais que 720,00”, afirmou Fernanda, em 2011), não havendo perspectiva de carreira nessa função e sendo obrigada a permanecer no mesmo endereço. O curso técnico na área da saúde, visando à contratação futura pela mesma instituição (OS Trindade) é um dos “planos de carreira” das/os ACSs do distrito, como foi visto em outras entrevistas com ACSs e ex-ACSs que estavam tentando a sorte numa ocupação extremamente concorrida. A filiação religiosa é o que parece sustentar sua rotina, auxiliando-a a se conformar com a sua condição de trabalho: “é o que ajuda”.
A “saída” encontrada no serviço assistencial por um jovem homem negro
O mundo dos serviços assistenciais terceirizados, que se ampliou no fim da década de 2000, pode se tratar de uma alternativa para alguns homens jovens negros que encontramos tanto na saúde como na assistência, como uma forma de ação pró-ativa para escapar ao destino de muitos dos seus pares, público-alvo potencial de violência policial19.
Para Caio, o emprego de agente de proteção social constitui uma saída virtuosa para se destacar frente aos colegas portadores do estigma de ser um homem negro jovem. É notável que, em pouco tempo, Caio se vale da via associativa e do emprego público para se formar a fim de pensar em fundar uma família.
Caio, que estava com 27 anos em 2010, no momento da primeira entrevista, é agente de proteção social (APS) numa “antena”20 da ONG Fundação Paixão, na periferia da zona leste de São Paulo. Segundo filho de quatro (dois irmãos e uma irmã nove anos mais velha que Caio, do primeiro relacionamento da mãe), negro, filho de uma dona de casa, diarista, com 61 anos em 2010, viúva. O pai, pedreiro, faleceu ainda novo, em 1992, com 49 anos, quando Caio tinha 9 anos, de ataque cardíaco. Era originário de Minas Gerais, cresceu na roça, e foi a São Paulo antes de completar 20 anos, no início dos anos 1960. Sua mãe é do interior do estado, assim como os avós, agricultores, que migraram para São Paulo nos anos ١٩٣٠. O avô, budista, era artista plástico e vivia disso, em parte, graças à avó. A mãe criou os quatro filhos sozinha (tinham 18, 11, 9 e 5 anos quando faleceu seu marido).
A família morou na zona leste, até 1988 num apartamento alugado e, quando eles foram sorteados, mudaram-se para um apartamento da COHAB. Caio tinha 5 anos. Família espírita, enquanto os filhos eram pequenos, quando faltava alguma coisa em casa no orçamento apertado da família, sua mãe os levava para uma instituição assistencial espírita para receber ajuda e buscar algum tipo de acompanhamento. Ela chegou a ajudar ocasionalmente. É sua mãe que insiste para os filhos estudarem e realizarem diversas atividades extraescolares. Segundo Caio, “[Minha mãe] fez até a quarta série do fundamental. Mas, é engraçado que é assim, ela fez até quarta série e só fica em cima da gente pra gente estudar – tem que fazer, tem que fazer”. Dessa forma, em 1991, com 8 anos, Caio frequentava a escola estadual do bairro na parte da manhã e ingressou na ONG Projeto Circo, onde realizou diversas atividades durante a tarde (atividades circenses, mas também artes plásticas, informática etc.). No ano seguinte, em 1992, com o falecimento do pai, a relação de Caio com a ONG se estreitou, local onde ele passou grande parte da infância e da adolescência.
Eu estudei bastante, porque era assim, eu saía da escola, eu já ia pro circo. De certa forma, eu tenho uma gratidão muito grande lá em cima por causa que até no momento difícil da minha vida, que foi quando meu pai faleceu, eu tinha quase 9 anos eu estava lá dentro daí o suporte que eu tive foi todo lá (Caio, 2010).
Com 18 anos, em 2001, ele realizou um curso de iniciação ao trabalho da ONG Projeto Circo, no qual foi, no final, indicado para fazer um estágio na creche da ONG como auxiliar de manutenção, durante 2 meses, ainda frequentando a escola à noite, até finalizar o ensino médio no mesmo ano.
Trabalhou com serviços gerais através de cooperativas, mas por pouco tempo. Em 2003, ele ficou desempregado e fez cursos complementares de informática, na parte da manhã, e de técnicas administrativas, à noite, em outra ONG nas redondezas : “tudo que tem de graça por aqui, eu fiz”. Em 2005, começou a fazer um trabalho voluntário na parte de informática, na ONG que lida com crianças ligada ao Projeto Circo, onde ele mesmo tinha feito o primeiro curso de informática por insistência da mãe. No ano seguinte, em 2006, com 23 anos, ele conseguiu se encaixar em outro trabalho voluntário, no projeto educacional ligado ao sistema de ensino básico do município, pois conhecia a coordenadora, para dar aula de música nos finais de semana (trabalho reservado aos beneficiários de uma bolsa do ProUni, como contrapartida). Ao mesmo tempo, trabalhou numa cooperativa de crédito, de cobrança, em um outro bairro da zona leste da cidade, como diarista.
Em 2007, trabalhou como autônomo num ateliê de bijuteria, recebendo por produção e realizou trabalho voluntário à tarde no instituto para crianças acima citado. Estava trabalhando como autônomo, em cooperativa, como ajudante geral de manutenção, recebendo cerca de 800 reais, quando ouviu falar, através do Projeto Circo, sobre o emprego como APS pela Fundação Paixão. Estava com 24 anos quando aprovado. Em 2009, fez um curso de agente de desenvolvimento local, junto com dois outros APSs, promovido pelo SENAC (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial) da zona leste. Em 2010, ano de realização da entrevista na ONG, continuou trabalhando como APS, recebendo 733 reais. Seu objetivo era ingressar no curso de Serviço Social da UniMaster, faculdade particular da região. Essa inserção era entendida como meio para lhe garantir uma forma de legitimidade profissional e, portanto, de fala. Em suas palavras,
Aquelas vezes que eu estou mais quieto, não é por causa disso que eu não sei as coisas, sabe, mas você não concorda com a forma que são levadas as coisas, mas como você é subordinado, você vai levando. Ainda não me formei, ainda não estou nem estudando, depois que eu me formar eu vou poder falar mais. A gente vai levando, não pode abaixar a cabeça (Caio, 2010).
Como horizonte de vida mais geral, contava com o trabalho: “Eu preciso ter meu dinheiro tudo certinho, eu tenho que constituir uma família legal, eu não posso chegar, viver de momentos, eu não posso, agora eu tenho dinheiro, o mês que vem já não tenho, eu preciso ser mais focado”. Oferecia aula de música remunerada (violão), mas sempre tocou também guitarra e contrabaixo:
[Dou aula] uns dois dias por semana, inclusive até estou vendo se eu consigo parar um pouco porque o objetivo agora é a bolsa da faculdade, meu objetivo é estudar, eu gosto demais da música, mas eu tenho que deixar um pouco de lado, daqui a pouco eu estou com 30, 40 anos não casei, não fiz nada e é complicado (Caio, 2010).
Já foi jogador de basquete semiprofissional e podia ter prosseguido com a carreira como fez um amigo seu, mas interrompeu pois “não rende dinheiro no Brasil”. Mesmo ganhando pouco, Caio diz que se encontrou no trabalho dele:
Acho que essa necessidade, estar trabalhando com ONG, estar sempre auxiliando de certa forma, acho que vem um pouco com isso, do espiritismo sim, ajudou também o budismo [do avô]. E depois eu fui ver que é assim, eu gosto bastante dessa parte política socialista também ajudou bastante, aí quando eu fui ser voluntário, não tem noção como que é, você ajudar um pouquinho que seja, mas você vê aquela mudança está...nossa! Parece que é melhor do que tomar-se um balde de dinheiro na sua mão, bem mais gratificante (Caio, 2010).
No momento da entrevista, Caio morava com sua mãe e seus dois irmãos, além dos três filhos da sua irmã que ficavam frequentemente na sua casa.
Para Caio, desde pequeno, as associações e ONGs do assim chamado “terceiro setor”, de diversas origens religiosas (espírita, católica etc), constituem o meio social no qual ele foi criado, levado inicialmente pela mãe, que já antes do falecimento do pai costumava recorrer a essas entidades em caso de necessidade. Quando viúva, criou os filhos com ajuda delas, em particular o “Projeto Circo”, onde passavam boa parte do dia. Chegando à adolescência, junto com certo interesse político e a vontade de “compartilhar o que recebeu” (fazer algo para os outros), Caio continuou na via associativa. Ele encontrou os primeiros empregos por esse meio e também mobilizou esse recurso para tentar ingressar na universidade e para se fortalecer em termos de acesso ao saber, para adquirir uma base que considera suficiente para dar-se “o direito de falar”. Nesse sentido, a interiorização da dominação (racial) informa a maneira com a qual ele se coloca nas interações e a explicita durante as discussões em campo. Ele se apropria do estigma racial, em interação com a pesquisadora que o entrevistou (branca e estrangeira), mobilizando-o como chave de leitura de sua própria trajetória em comparação com os seus “parceiros de destino” (GOFFMAN, 1975). Nota-se que a terceirização do serviço para a Fundação Paixão lhe permitiu atuar no mercado da assistência sem um diploma de educação superior, atividade que serve também para a proteção contra a violência policial graças ao uso do jaleco de agente de proteção social. A contrapartida é a adesão aos princípios valorativos da organização21. Um trabalho embrionário para uma eventual carreira no Serviço Social que o protege da instabilidade econômica, da interrupção de fazer projetos e da estigmatização sofridas pelos homens negros no Brasil.
À guisa de conclusão
Procuramos elucidar, neste texto, como as dinâmicas sociais cruzadas entre transformação institucional e trajetórias socioprofissionais interferem no modo de engajamento no trabalho dos agentes de execução de programas assistenciais. A análise sob o prisma da consubstancialidade de gênero, classe e “raça” aponta para a permanência desse grupo social (configurado por tais características) nas ocupações associadas ao cuidado com baixo prestígio e reconhecimento social, cada qual se apropriando do trabalho em diferentes graus de discricionalidade e margem de manobra, dependendo dos recursos acessíveis. É nesse “encaixe” que aparecem as formas de coerção por parte da instituição, mas essa orientação se constitui como uma “saída” (CABANES et al., 2011) para um grupo social que se encontra numa situação de alternativas escassas, cujas trajetórias permitem suportá-las, ou encontrar um sentido ressignificando o seu trabalho (e/ou sua vida).
A morfologia social – ou as características sociais do grupo socioprofissional dos agentes – imbricada na consubstancialidade de gênero, classe e “raça” permanece em diferentes contextos da construção política, ao longo do tempo, apesar das formas de reorganização do trabalho, com algumas reconfigurações, como, por exemplo, a emergência de homens negros jovens no grupo profissional da assistência. Nesse sentido, esse grupo social é constituído de forma predominante por mulheres pobres e racializadas, mas não necessariamente essas características – ou uma delas de forma predominante – estão sendo problematizadas pelas próprias interessadas. Na perspectiva do capitalismo neoliberal, a ideia da ameaça da perda do emprego e da chantagem permanente para quem tem pouca escolha para assegurar a sobrevivência no mercado de trabalho é presente como elemento unificador de suas experiências. Para fazer face aos desafios e adversidades, elas e eles mobilizam a religião, a militância, seus projetos profissionais e familiares futuros ou outros recursos e estratégias, como forma de apropriação do trabalho e construção de si (DUBAR, 2015).
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Recebido em 17/11/2020
Aceito em 15/02/2021
1 Nessa abordagem da instituição ancorada no interacionismo norte-americano, trata-se de uma análise que parte das práticas dos diversos indivíduos sob distintas situações, que definem os contornos da instituição que não pré-existe a esses. Ou seja, são as trajetórias socioprofissionais dos seus trabalhadores (ou carreiras, nessa mesma abordagem, que podem ser profissionais, morais, etc.) que atravessam uma organização de forma mais ou menos reconhecida por ela, que definem suas fronteiras. Em particular, estas fronteiras dependem do nível de profissionalização dos usuários da instituição, isto é, de sua distância ou integração relativa.
2 A ESF é um serviço do Ministério da Saúde, descentralizado em nível municipal, que promove a prevenção e a identificação de doenças, assim como a educação sanitária. O formato voltado para as famílias com uma equipe médica iniciou como Programa Saúde da Família (PSF), em 1994 – antecedido pelo Programa Agente Comunitário de Saúde (PACS), formado por uma enfermeira e Agentes Comunitários de Saúde (ACS). O serviço é oferecido nas Unidades Básicas de Saúde por meio de equipes médicas constituídas por um médico, um enfermeiro, dois auxiliares de enfermagem e cinco ou seis agentes comunitários de saúde (MINISTERIO DA SAÚDE, 2001). No caso do município de São Paulo, o serviço é terceirizado para organizações sociais (OS) e entidades filantrópicas. Na região pesquisada, houve um repasse da gestão do atendimento para uma OS em 2007, o que modificou a dinâmica de trabalho das ACSs.
3 O Programa Ação Família (PAF) foi um programa de assistência às famílias do município de São Paulo que durou entre 2005 e 2011, tomando como modelo operacional o programa chileno Chile Solidário e a Estratégia Saúde da Família. Em 2011, foi reformulado como Serviço de Assistência Social às Famílias (SASF) – pelo então Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) – para que a assistência social paulistana fosse executada conforme as diretrizes do Serviço de Atenção Integral às Famílias (PAIF), integrado no Suas. Em ambos os modelos, a prefeitura do município de São Paulo realiza parcerias com as entidades da sociedade civil tradicionalmente atuantes nas áreas de implementação do PAIF para fornecer serviços assistenciais de baixa complexidade, de modo complementar (ou paralelo) aos Centros de Referência à Assistência Social (CRAS). Nota-se que os processos de terceirização do serviço de saúde, bem como o da assistência, se dão em épocas similares nas gestões Serra-Kassab (2005-2010).
4 O uso da expressão relações sociais de gênero na Sociologia francesa se deu tardiamente, as feministas demonstrando preferência para a manutenção do uso das relações sociais de sexo, pois a substituição do sexo por gênero desviaria da referência à relação de dominação e de opressão (MATHIEU, 2000).
5 Segundo Kergoat (2010, p. 94) o termo “consubstancialidade” encontra sua origem na teologia cristã, significando “unidade de substância” (entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo).
6 O conceito de interseccionalidade, que também parte da epistemologia feminista, tem sua origem no feminismo negro norte-americano, teorizado por Kimberlé Crenshaw (1989), que procurou visibilizar as demandas específicas das mulheres negras e problematizar sua não representatividade. A noção de interseccionalidade ganhou terreno global a partir dos anos 1990 e tem reavivado uma discussão com relação ao conceito de consubstancialidade, o que levou Kergoat a se posicionar reafirmando a adequação desse último por privilegiar a análise em termos de relações sociais, contrapondo o “caráter fragmentado” da interseccionalidade (KERGOAT, 2010). De fato, são abordagens cujos contextos e epistemologias são distintos (marxiana, sociológica e francesa, de um lado, e originado do feminismo negro militante estadounidense e do Direito, de outro), e seu uso como instrumento de análise depende dos objetos e dos objetivos científicos e políticos (de um lado as relações de poder nas relações de produção e de reprodução e, de outro, a hegemonia da representação nas políticas antidiscriminatórias). Mais fundamentalmente, no primeiro caso, trata-se de uma conceitualização científica de relações de dominação múltiplas; no segundo, o objetivo é de ordem política e de reivindicação de reconhecimento das mulheres negras norte-americanas. Nesse sentido, consideramos que interseccionalidade não significa ignorar as relações sociais, mas desvendar a singularidade e a independência das demandas sociais, sendo consequência da imbricação entre sexo, classe e “raça” (CRENSHAW, op. cit.). O livro recente de Jules Falquet (2019) questiona a forma como essas categorias se imbricam nas formas de mobilização de mulheres latino-americanas em diversos movimentos sociais, e dá preferência ao uso do termo “imbrication” (imbricação), invés de consubstancialidade. Em todo caso, consideramos a prevalência do ponto de vista das próprias interessadas para definirem suas identidades múltiplas.
7 A pesquisa de campo foi realizada conjuntamente pelas autoras, cada qual inserida em projetos e instituições distintos. A pesquisa mais ampla resultou no livro “As novas políticas sociais brasileiras na saúde e na assistência. Produção local do serviço e relações de gênero” (2016).
8 Em nossa abordagem, a metodologia multiescalar implica a análise dos diversos níveis de terceirização dos serviços públicos.
9 Todos os nomes próprios são fictícios, inclusive os nomes dos bairros.
10 Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral), instituído em 1968, pela ditadura militar, cujos objetivos, além do aprendizado de conteúdo curricular, incluíam a educação comunitária de saúde, entre outros programas complementares. O programa foi extinto em 1985.
11 Entidade filantrópica que gerencia a Estratégia Saúde da Família no distrito estudado.
12 Comparamos, em artigo anterior, as diferenças em termos de relação de classe, entre provedor e destinatário de serviço do cuidado, realizado para com iguais (agentes) ou desiguais (trabalhadoras domésticas), cf. Georges e Vidal (2012, p. 26) : “ Leurs activités supposent toutefois toujours un travail relationnel invisible, que ce soit lorsque les travailleuses domestiques servent des familles ou quand les ACS et les APS s’ emploient à rendre des services à des personnes du même milieu social que le leur.”
13 Demanda que as próprias ACSs incentivaram a expressar, uma das injunções contraditórias do seu trabalho cf. Lancman et al., 2007.
14 Para Kergoat (2010, p. 94) “raça” está entre aspas “dada a carga social e histórica da palavra”, indicando ser “uma categoria socialmente construída, resultado de discriminação e produção ideológica” (GUILLAUMIN apud KERGOAT, 2010).
15 Trata-se, no caso das trabalhadoras domésticas, de uma categoria profissional muito heterogênea internamente (GEORGES, 2008).
16 São trabalhadoras do cuidado que estão mais expostas ao risco da pandemia do COVID-19 e negligenciadas quanto à sua proteção. No que concerne os ACSs, o negacionismo do governo federal com relação ao risco da pandemia e a consequente extinção da política de saúde teria ofertado limitados treinamentos e equipamentos de proteção pessoal (EPPs), cuja segurança tem dependido das diretrizes de cada município, muito diferentes entre si. Outra questão, reflexo desse lugar subalternizado desses profissionais, é o fato de não serem considerados profissionais de saúde (LOTTA et al., 2020).
17 Trata-se de áreas ocupadas, e a mudança para Guarulhos foi negociada com o poder público, à época do Prefeito Paulo Maluf (١٩٩٣-١٩٩٦), para um terreno pertencente à COHAB (Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo)
18 A Teologia da Libertação, muito ativa no Brasil entre os anos 1960 e a segunda metade dos anos 80, é uma vertente materialista da Igreja Católica, fazendo a “opção pelos pobres” (BOFF, 1985).
19 Conforme o atlas da violência de 2020, jovens entre 15 e 29 anos representaram 53,3% do total de homicídios, 75,7% das vítimas de assassinatos no país são negras (ATLAS DA VIOLÊNCIA, 2020).
20 Denominação das instituições executoras do Programa Ação Família, subcontratadas pela entidade gestora do programa, nesse caso a Fundação Paixão.
21 Sobre tais valores (com base religiosa pentecostal), ver o artigo de Georges e Santos (2013).
REFLEXÕES ACERCA DA CONSTITUIÇÃO SEXUADA
DO SUJEITO EM DANIÈLE KERGOAT
REFLECTIONS ON THE CONSTITUTION
OF THE SEXED SUBJECT IN DANIÈLE KERGOAT
____________________________________
Maria Betânia de Melo Ávila1*
Verônica Ferreira2**
Resumo
Neste artigo, analisa-se a questão da “mobilização” e a sua relação com a questão da emancipação das mulheres trabalhadoras em Kergoat, isto é, a “passagem do eu para o nós” que, segundo a autora, constitui o “fio condutor que atravessa o conjunto das minhas pesquisas” (KERGOAT, 2018, p. 95). O artigo discute as elaborações de Kergoat baseadas em suas pesquisas empíricas realizadas nos anos 1970, apresenta suas premissas e categorias fundamentais, bem como suas contribuições teórico-políticas para a reflexão contemporânea sobre a constituição das mulheres como sujeito do trabalho e a questão da emancipação considerando as relações sociais de sexo, classe e raça. Como síntese, a incursão no pensamento de Kergoat nos permite pensar a constituição das mulheres como um sujeito no trabalho como uma dimensão que está diretamente relacionada à capacidade das mulheres de se organizarem como coletivo portador de um projeto feminista de igualdade e emancipação.
Palavras-chave: Divisão Sexual do Trabalho. Relações Sociais. Lutas. Emancipação.
Abstract
This article analyzes the issue of “mobilization” and its relation to the issue of working women’s emancipation in Kergoat, that is, the “passage from the self to the we”, which, according to the author, constitutes the “guiding thread that crosses the whole of my research” (KERGOAT, 2018, p. 95). The article discusses Kergoat’s elaborations based on his empirical research carried out in the 1970s, presents his fundamental premises and categories, and presents his theoretical-political contributions to contemporary reflection on the constitution of women as a subject of work and the issue of emancipation considering the social relations of sex, class and race. As a synthesis, the incursion into Kergoat’s thinking allows us to think of the constitution of women as a subject at work as a dimension that is directly related to the ability of women to organize themselves as a collective with a feminist project of equality and emancipation.
Keywords: Sexual Division of Labor. Social relations. Struggles. Emancipation.
Introdução
Por que as pessoas se revoltam e por que lutam? Como explicar sua resiliência? Como explicar que não sejam completamente dominadas? De onde tiram a força, a energia, a potência de agir? Como esta última se cria? Individualmente e/ou coletivamente? Tudo isto é muito enigmático (KERGOAT, 2018, p. 171).
Danièle Kergoat se destaca como teórica do feminismo materialista pela sua contribuição na elaboração dos conceitos de divisão sexual do trabalho, relações sociais de sexo e consubstancialidade e coextensividade das relações sociais. Como socióloga e feminista, contribuiu para levar essas problemáticas para o campo acadêmico e trouxe para a ação do movimento feminista e de mulheres trabalhadoras teorias e análises empíricas fundamentais para a sustentação do projeto desses sujeitos coletivos aos quais ela está, incontornavelmente, ligada. Isso se expressa com força na sua declaração: “a revolta contra as relações de classe, de sexo e de raça estruturou minha vida e orientou minhas pesquisas” (KERGOAT, 2012, n.p.), como também na escolha do título para a antologia de sua obra teórica: “Lutar, dizem elas...”.
Neste artigo, trataremos da questão da “mobilização” e da sua relação com a questão da emancipação das mulheres em Kergoat, isto é, da “passagem do eu para o nós” que, segundo a autora, constitui o “fio condutor que atravessa o conjunto das minhas pesquisas” (KERGOAT, 2018, p. 95). A autora discute sobre a dinâmica por meio da qual se constituem as reivindicações das mulheres como sujeito sexuado para, justamente, contra-arrestar sua negação como sujeito do trabalho. Nessa “passagem”, afirma-se a experiência particular, sexuada, das mulheres no mundo do trabalho e da política. Nessa elaboração radica uma contribuição decisiva para a teoria sociológica: o questionamento do sujeito universal do trabalho e do sujeito único da emancipação.
Faz-se necessário, para analisar essa questão, tratar de sua influência sobre os estudos, pesquisas e ação política das mulheres no Brasil e abordar desafios do contexto atual. Ao mesmo tempo, é mister precisar o contexto de sua elaboração original e o percurso de seu desenvolvimento, levado adiante e enriquecido pela pesquisa e análise sobre o trabalho das mulheres em outros contextos e realidades, feita por um sem número de autoras influenciadas por sua obra e com as quais Danièle Kergoat e Helena Hirata mantêm sólidas relações de colaboração.
O SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia é parte dessa rede de interlocução e criação, que tem feito o pensamento feminista fazer e fazer-se nessa travessia transoceânica e ancorada, no Brasil e no Nordeste, em particular, pela relação de engajamento desse coletivo com a organização das mulheres trabalhadoras no interior do movimento sindical, em movimentos autônomos de mulheres trabalhadoras, da cidade e do campo, e com as lutas relacionadas ao trabalho no âmbito do movimento feminista no qual fazemos nossa militância, a Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB). É parte, portanto, de um movimento coletivo que vem se concretizando há, pelo menos, quatro décadas, uma experiência de internacionalismo feminista na produção da elaboração crítica, através do “cruzamento de trajetórias individuais de mulheres feministas de diferentes gerações que se encontram no território comum da produção do conhecimento e do engajamento nas lutas feministas emancipatórias” (ÁVILA; FERREIRA, 2018, p. 10). Nesse movimento, engajam-se pesquisadoras de diferentes campos de criação em um processo que se fez, desde a origem, interdisciplinar.
O paciente trabalho de pesquisa de Danièle Kergoat revela uma miríade de relações de colaboração e o cuidado permanente em cultivá-las: nos grupos de pesquisa, nos movimentos sociais em que se dá seu engajamento, com orientandas, discentes e colaboradas mundo afora. A colaboração e a interlocução coletiva como práticas de pesquisa e elaboração são dimensões essenciais da trajetória de Danièle Kergoat. Como expressa em entrevista
Essa é uma coisa em que acredito fortemente: não existe trabalho científico sem trabalho coletivo. É a primeira coisa. Aliás, eu tinha sólidas posições anti-hierárquicas, advindas de minha passagem na empresa privada (vivi com muita dificuldade meu status de chefe de serviço), que, ao contrário, reforçou meu gosto pelo coletivo. Enfim, tínhamos um sentimento muito forte de pertencimento ao movimento feminista (éramos todas mulheres) e vinha daí, mais uma vez, o sentido do coletivo. Deve-se igualmente evocar o problema da interdisciplinaridade, que era indispensável para a construção do nosso objeto: a divisão sexual e social do trabalho (KERGOAT, 2018, p. 174).
Essa não nos parece uma questão menor, mas própria da práxis feminista, no contraponto ao contexto em que o individualismo neoliberal se incrusta na prática acadêmica e é, em grande medida, incentivado pelas políticas de produtividade das quais as condições objetivas para pesquisar dependem, pelo menos no contexto brasileiro.
Daniéle Kergoat desenvolve suas primeiras pesquisas, nos anos 1970, no contexto fabril, marcado, ainda, pelo quadro de um forte movimento sindical e do Estado de bem-estar em seu país, a França. Nesse contexto, analisa as reivindicações operárias a partir dos sujeitos sexuados, homens e mulheres, para tratar dos elementos objetivos – donde a divisão sexual do trabalho, a reprodução e o trabalho doméstico ganham relevância – e subjetivos, os afetos, magistralmente teorizados na sua análise e que conformam a “passagem do individual ao coletivo”. Apreender o contexto dessa elaboração nos parece uma condição necessária para pensar as relações de trabalho e as modalidades contemporâneas da divisão sexual do trabalho, tanto no que essas elaborações revelaram como chaves heurísticas, categorias sociológicas e tendências do mundo do trabalho que se tornam hoje predominantes, assim como para fazer avançar a análise sobre a constituição das reivindicações e lutas em um contexto de relações e organização do trabalho fortemente transformado.
A afirmação “a classe operária tem dois sexos” (HIRATA; KERGOAT, 1994), síntese de sua elaboração com Helena Hirata, dá-se, de maneira primordial, na investigação sobre a constituição dos processos de reivindicação operária que se faz nos seus primeiros achados de pesquisa: a constituição da revolta, das reivindicações e das lutas e os níveis de combatividade dos sujeitos, no campo do trabalho, se dão de forma diferenciada entre as mulheres e os homens. O que hoje parece óbvio não era, naquele contexto, evidente. Essa diferenciação não se revelava pelas perspectivas até então dominantes no âmbito da elaboração sobre a formação da classe “para si”, no sentido marxiano: a classe tomada como um todo homogêneo que respondia, também de maneira unívoca, à exploração.
É importante precisar, portanto, para fins do objetivo deste artigo, duas dimensões: a centralidade de sua análise se dá sobre a constituição sexuada da “reivindicação operária”, isto é, do sujeito sexuado do trabalho (e das lutas no campo do trabalho) na forma de coletivo de operárias e, posteriormente, da Coordenação das Enfermeiras; segundo, o contexto de sua elaboração remete ao quadro histórico ainda marcadamente fordista ou do trabalho salarial regulamentado, nos anos 1970 e 1980, no contexto europeu: a demarcação e partilha de um espaço de trabalho (a fábrica, o hospital), o assalariamento, um movimento sindical fortemente organizado. Suas análises se adensam nos anos 1980 com a investigação sobre a Coordenação Enfermeira, a partir da qual se formula a interrogação “sobre o sexo do movimento social, como e em que condições as mulheres se mobilizam e o que significa a hegemonia das mulheres no movimento da Coordenação Enfermeira na França nos anos 80” (HIRATA, 2018, p. 18).
O sujeito, portanto, são as mulheres trabalhadoras; a forma de organização, por excelência, o coletivo; o cerne da elaboração, a “passagem do individual ao coletivo” por meio do estudo e da investigação sobre as “práticas reivindicativas”. Kergoat coloca no foco de sua análise as tensões que emergem nas práticas reivindicativas entre dominação e resistência, levando, nos distintos campos de suas pesquisas, à interrogação sobre as relações e processos que levam à tomada de consciência de gênero e de classe, às práticas objetivas e às rupturas subjetivas que subjazem a passagem da dominação à resistência das mulheres e sua conversão em sujeitos de reivindicações e lutas no campo do trabalho.
A constituição do sujeito sexuado no trabalho: impasses e potência
A relação entre dominação e resistência é um fio condutor dos processos de pesquisa empírica e elaboração teórica de Danièle Kergoat. Em suas próprias palavras, ao se referir ao seu próprio trabalho, ela afirma: “o que me interessou, desde o início, foi exatamente a dialética entre dominação e lutas, e eu queria trabalhar com ela tanto de maneira concreta quanto teoricamente” (KERGOAT, 2002, p. 236). Como bem analisa Helena Hirata, no prefácio à edição brasileira de “Lutar, dizem elas”,
Dominação e resistência sempre foram indissociáveis no pensamento de Danièle. Contra todas as formas de determinismo, ela sempre postulou a existência de um espaço de liberdade para o exercício da capacidade de ação ou da potência de agir – agency – dos explorados, oprimidos, dominados. Exploração, opressão e dominação são dimensões indissociáveis para Danièle Kergoat (1978, 2012) na França, assim como para Heleieth Saffiotti no Brasil (1976, 1984) (HIRATA, 2018, p. 14).
Kergoat ao desvelar os processos de exploração e dominação das mulheres no mundo do trabalho, desvendando os seus mecanismos de reprodução e, ao mesmo tempo, os movimentos cotidianos de tensão nas práticas cotidianas de trabalho, constrói uma análise crítica que possibilita a compreensão dessa realidade, aportando, assim, uma base analítica importante para a ação dos sujeitos do trabalho na reflexão sobre o vivido individualmente e o problema coletivo, que só através da reflexão e da ação coletiva pode avançar, no sentido de criar o movimento da sua própria emancipação. É exatamente nesse sentido que a relação entre indivíduo e coletivo é foco central da sua análise crítica.
A questão da emancipação se coloca, em Kergoat, na investigação sobre a construção dos processos reivindicativos e na atenção primordial ao que se passa no nível das práticas sociais e na dinâmica em que as reivindicações coletivas se forjam. A primeira condição para essa apreensão se dá pela necessidade de atentar para o que se passa “fora da fábrica”, na esfera da reprodução. Kergoat lança seu olhar sobre dimensões não consideradas nos estudos sobre trabalho e, ainda mais, naqueles sobre os processos de luta e resistência da classe operária: a dimensão subjetiva, o tempo fora do trabalho, a origem (quando a migração não era tratada com toda a relevância) e o sexo do trabalho, expresso na sua forma de organização (a divisão sexual do trabalho) e na constituição do sujeito da luta salarial. Como sintetiza a autora,
Articular, no seio de uma problemática coerente, produção e reprodução é para mim da ordem da necessidade. Necessidade que se impôs à medida que avançava em meu primeiro campo de pesquisa: a gênese da reivindicação operária. (...) Foi assim que se evidenciou que em posições semelhantes na estrutura produtiva (operários imigrantes, sem qualificação, de mesma nacionalidade, mesma faixa etária, ocupando os mesmos postos de trabalho) a diferença nos patamares de combatividade – modalidade e intensidade – era enorme. Essas diferenças só adquiriam sentido quando se abandonava o esquema pavloviano segundo o qual a combatividade seria uma resposta (mediada não pelo grau de consciência) às condições de exploração para lhe substituir um raciocínio em termos de práticas sociais, isto é, de um conjunto coerente (mas não necessariamente consciente) de comportamentos e atitudes observáveis no conjunto da vida quotidiana (conjunto que as relações sociais tornam coerente) (KERGOAT, 1986, p. 79).
A relevância dada por Kergoat à questão da subjetividade é outra dimensão fundamental da sua teorização, calcada na pesquisa empírica no mundo do trabalho e no diálogo da troca permanente entre pesquisadores(as) de diferentes campos disciplinares como, por exemplo, no campo da psicopatologia do trabalho, o que a levou, a partir do diálogo com Christophe Dejours e outros(as) pesquisadores(as), a uma elaboração sobre a relação entre sofrimento, prazer e trabalho. O que se coloca é a transformação de si, em um para si, baseado na consciência crítica que se constrói na experiência do coletivo.
Creio que poderíamos afirmar que o processo emancipatório passa por uma consciência de gênero, de classe, de raça e por um processo de luta contra a exploração, a opressão e a dominação e, portanto, por uma tomada de consciência que é, ao mesmo tempo, teórica e prática e esse processo emancipatório tem na centralidade do trabalho a referência dinamizadora por excelência. O trabalho entendido no sentido amplo, enquanto trabalho profissional e trabalho doméstico, enquanto trabalho formal e trabalho informal, enquanto trabalho remunerado e não remunerado (HIRATA, 2018, p.14).
A dimensão subjetiva diz respeito aos modos como os(as) dominados(as) vivem (e sentem e interpretam e subvertem) a classe, a raça e o gênero (KERGOAT, 2012), pois, como afirma Kergoat, os caminhos da emancipação não podem ser antecipados pelos resultados das práticas da pesquisa sociológica e, nem mesmo, da pesquisa sociológica feminista, mas essas podem tornar visíveis as condições, considerando a relação espaço-tempo, nas quais a “potência do agir” pode se materializar concretamente. Ou seja, é preciso, através da pesquisa sociológica feminista, conhecer as condições concretas de vida dos sujeitos, mas também os movimentos que mobilizam uma relação dialética indivíduo e coletivo, e as condições em que se torna possível a passagem de uma ação repetitiva do que está dado para a tomada de consciência crítica e a ação questionadora.
A questão dos afetos como dimensão dos processos de construção da subjetividade no trabalho e como impasse na construção das reivindicações e lutas é trazida fortemente por Kergoat já nas primeiras pesquisas sobre operários e operárias especializados(as) na França. Na observação da cotidianidade e dos discursos, emerge a questão das invejas femininas como obstáculo à passagem do individual ao coletivo, que a autora sintetiza como o silogismo do sujeito sexuado (KERGOAT, 2018). Os afetos são tomados como expressão da mediação entre relações sociais e práticas sociais concretas e, portanto, como reveladores dos mecanismos de reprodução das relações sociais no trabalho e do modo como isso se produz de maneira diferenciada entre homens e mulheres – reveladores, portanto, das relações sociais de sexo e de seus mecanismos próprios de opressão e dominação.
É “o processo da aquisição de uma consciência de gênero que se dá na passagem do eu ao coletivo, sempre em movimento” (KERGOAT, 2018, p. 109) que Kergoat busca apreender nas lutas da Coordenação Enfermeira. No caso das enfermeiras, o “silogismo” é superado no processo individual e coletivo no qual se toma consciência das relações sociais de sexo, da divisão sexual do trabalho por meio da questão da qualificação. Nesse processo, se dá também uma politização e reconfiguração, determinada por elas mesmas, como coletivo da própria profissão. O que Kergoat encontra no estudo das enfermeiras é que a recusa politizada e coletiva da vocação significa seu reconhecimento como mulheres, não mais do ponto de vista de uma condição homogênea e naturalizada, mas da sua negação política como tal, através do desvendamento das mulheres como categoria sócio-histórica. Diferentemente do silogismo, as relações de sexo não se traduzem em barreira para a construção do coletivo.
Não se trata apenas de vender melhor a força de trabalho, mas igualmente de reivindicar que essa força de trabalho que se exerce de maneira útil seja reconhecida e sancionada como tal. De fato, os problemas que elas colocam são novos precisamente porque são articulados de maneira inédita. Existe sexuação do personagem salarial (KERGOAT, 2018, p. 111).
Para Kergoat, o que constrói a possibilidade de tomada de consciência de gênero não é o reconhecimento de uma identidade como mulheres, mas, antes, o desvendamento no processo de reflexão coletiva sobre a naturalização dessa condição e a consequente reivindicação da qualificação profissional que é, a um só tempo, a negação da “vocação” e do dom. A reivindicação salarial é, propriamente, “a morte da vocação”: no processo da passagem do individual ao coletivo, e da tomada da consciência de gênero, as enfermeiras reivindicam a qualificação ao passo em que recusam a vocação; reivindicam a sua condição de classe e recusam aquela naturalizada de mulheres que, individualmente, são dotadas da “graça” da vocação. Aqui a consciência de gênero e de classe se conjuga na medida em que se desvia da naturalização nos quais a “vocação” as mantém, afastando-as, a um só tempo, do reconhecimento de sua condição profissional e da possibilidade de reivindicação da qualificação e sua tradução em condição salarial.
A portadora de mudança é a passagem do grupo para o coletivo sexuado e não a constituição de uma identidade mulher, pois subversiva não é afirmação “nós somos mulheres”, mas a constituição concreta de um coletivo que dê conta dos lugares ocupados e as faça trabalhar nas relações sociais enquanto produtoras e enquanto mulheres (KERGOAT, 2018, p. 106).
A identidade mulher, que encontramos referenciada no senso comum sob a expressão essencialista do “ser mulher”, não carrega em si nenhum potencial subversivo: é no processo da tomada de consciência, que se dá na passagem do individual ao coletivo, que essa potência se revela, na medida em que se reconhece uma experiência social. Essa passagem se dá, não mais nem menos, que no processo da luta, da reivindicação, e é tão mais forte a depender do tempo em que essa luta sobrevive, ao passo que é condição fundamental para a sobrevivência da luta, nos termos da autora. Para Kergoat, a desnaturalização da categoria sexo permite a tomada de uma consciência de gênero e a formação de um coletivo. Mas é, precisa e dialeticamente, porque existe o coletivo que essa consciência de gênero pode se traduzir concretamente em reivindicações, práticas discursivas, em processo de individuação e autonomia.
Essa premissa é particularmente importante de ser resgatada no contexto atual, em que a enunciação de identidades individuais – descolada do questionamento das relações sociais que a forjam e fora do quadro de uma construção coletiva – ganha força e, em grande medida, é obstáculo, não somente à passagem do individual ao coletivo, como também à necessária articulação das lutas para fazer frente a situações de exploração, dominação e opressão forjadas pela imbricação das relações sociais de gênero, classe e raça.
No que diz respeito à questão da emancipação, trata-se de analisar criticamente os contextos e as dinâmicas de reprodução da dominação e da exploração através da análise crítica das práticas sociais e não de definir os caminhos e os modos que os sujeitos devem adotar ou seguir na luta. Essa é a perspectiva de Danièle Kergoat que, indo além, afirma que só os sujeitos podem, nas suas práticas de luta e resistência, definir esses caminhos. Portanto, o que a análise sociológica feminista pode aportar como suporte à luta emancipatória das mulheres e para luta geral é o desvendamento crítico da realidade social.
O que Danièle nos coloca de forma contundente é a afirmação do sujeito coletivo como base indispensável para os processos de transformação social, não só no sentido objetivo de transformar as condições materiais de vida, mas também para transformação subjetiva dos indivíduos que formam o coletivo e neles se transformam em sujeitos políticos; isto é, se constroem como sujeitos da luta e como sujeitos que agem na vida cotidiana e nela já se inserem com algum grau de dissidência com a ordem que lhes é imposta. Em outras palavras, a passagem do individual ao coletivo e as consequências da transformação subjetiva ou da consciência crítica vai impactar várias dimensões da vida dos sujeitos, na vivência do cotidiano e das relações de trabalho, familiares, etc. – dimensões da vida social que se movem como tensões determinadas pelas relações sociais.
Trata-se de não permanecer na análise da pura dominação, mas de levantar o problema da resistência e do surgimento dos movimentos sociais. É assim que ela opõe a metáfora da espiral ao círculo vicioso de dominação, a dialética da reprovação/subversão a um entendimento fixista centrado na reprodução incessante de relações sociais. Kergoat está interessada em contradições, falhas, lacunas, alavancas de emancipação”. (DUZENOT; GALERAND, 2010, p. 32-33).
Segundo a autora, “as relações sociais não tomam a forma de um movimento circular fechado, mas sim de um movimento circular em espiral, o que significa que não é possível a previsibilidade dos seus desdobramentos futuros” (KERGOAT, 2002). Em síntese, é a relação indivíduo/coletivo na perspectiva da emancipação, cujo sentido geral, do nosso ponto de vista, repousa sobre o pressuposto do pensamento marxiano, isto é, aquele a partir do qual a emancipação individual é indissociável da emancipação coletiva. Portanto o projeto político emancipatório do feminismo é um processo que está inextricavelmente inserido no projeto mais geral de transformação social sem, no entanto, perder sua dimensão própria e, ao mesmo tempo, considerando que essa dimensão própria está em relação dialética com outras dimensões de outros projetos políticos de outros sujeitos coletivos que, no seu conjunto, estão permanentemente enfrentando as contradições no interior da totalidade do sistema, capitalista, patriarcal e racista. Essa totalidade, contudo, não é uma realidade fechada, pois está sempre em movimento contraditório dado pelos antagonismos nas relações sociais e, a um só tempo, enfrentando os conflitos inerentes à ação coletiva transformadora levada por uma constelação de movimentos sociais/políticos.
Divisão sexual do trabalho, relações sociais e a emancipação
As análises feministas sobre as mulheres no mundo do trabalho têm contribuído para alargar e aprofundar as problematizações em torno dessa dimensão estruturante da organização da vida social e têm trazido muitos desafios para a formulação teórica e metodológica das pesquisas nessa área. Consideramos importante trazer aqui questões apresentadas por Danièle Kergoat a esse respeito. A autora afirma que recusou a referência predominante ao discurso do modelo masculino (KERGOAT, 2012) por essa não ser operacional para explicar as diferenças entre as práticas de homens e mulheres de uma mesma classe. Mas propôs uma questão: como poderia tratar essas diferenças na ausência de aparato conceitual para organizá-las?
Um problema, então, apresentou-se para ela, uma vez que a impossibilidade de relacionar as diferenças de atitudes e práticas observadas a uma análise materialista da exploração e dominação, de maneira a não abrir terreno para interpretações dessas diferenças a partir de uma suposta natureza feminina (KERGOAT, 2012). A autora tratou, então, de realizar uma análise materialista da condição operária sexuada, que tem como síntese a afirmação de que não se pode definir a trabalhadora como o feminino de trabalhador (KERGOAT, 2012). A ideia contida nessa síntese final da autora, na nossa visão, supera de maneira radical – no sentido de alterar os seus fundamentos – uma concepção do masculino como a referência do feminino, numa relação dialética entre dimensão material e simbólica, e evidencia a visão de construção de subjetividades diferentes a partir das diferentes práticas de trabalho de mulheres e de homens. Traz, por fim, na nossa compreensão, a questão do sujeito sexuado. As teóricas e pesquisadoras feministas desse campo não só insistem na centralidade do trabalho nesta sociedade, como também produziram uma reestruturação desse conceito.
O conceito de trabalho ao longo do tempo referia-se apenas ao trabalho produtivo. Assim foi tratado pelas Ciências Sociais e pela Economia, nos planos de desenvolvimento das políticas nacionais e dos organismos internacionais. O trabalho reprodutivo ou trabalho doméstico, assim definido no contexto da sociedade capitalista patriarcal, esteve fora do conteúdo que dava significado ao conceito de trabalho até muito recentemente. A reestruturação desse conceito para alcançar as duas esferas do trabalho é parte de um processo político e de uma prática de produção do conhecimento que se constroem a partir do movimento feminista em uma relação dialética. A reestruturação do conceito de trabalho implica considerar mulheres brancas, negras e de diversas etnias, e homens brancos, negros e de diversas etnias, como sujeitos do trabalho, rompendo com uma representação do sujeito universal do trabalho baseada na particularidade do trabalhador homem e branco, inserido em relações de trabalho formais. Ao considerar essa pluralidade do sujeito do trabalho e as relações sociais nas quais estão inseridos, deve-se considerar que as experiências coletivas e individuais e a produção das subjetividades, no mundo do trabalho, são forjadas nas imbricações dessas relações.
A dimensão subjetiva é um aspecto muito importante a ser explorado nas pesquisas sobre trabalho. Segundo Alves,
o processo de precarização do trabalho no capitalismo global atinge a “objetividade” e a “subjetividade” da classe dos trabalhadores assalariados. O eixo central dos dispositivos organizacionais (e institucionais) das inovações organizacionais do novo complexo de reestruturação produtiva é a “captura” da subjetividade do trabalho pela lógica do capital (ALVES, 2011, p. 111).
Kergoat considera a divisão sexual do trabalho como o elemento estruturante das relações sociais de sexo/gênero. A divisão racial do trabalho e a divisão sexual do trabalho constituem dimensões fundamentais da divisão social do trabalho como um todo, o que nos leva à questão da imbricação das relações de classe, raça e gênero; estas, segundo Daniele Kergoat, são relações consubstanciais e coextensivas.
Consideramos fundamental para a perspectiva crítica em que nos inserimos a abordagem ancorada nos conceitos de consubstancialidade e coextensividade das relações sociais elaborada por Kergoat (2009). Segundo a autora,
as relações sociais são consubstanciais; elas formam um nó que não pode ser desatado no nível das práticas sociais, mas apenas na perspectiva da análise sociológica; e as relações sociais são coextensivas: ao se desenvolverem, as relações sociais de classe, gênero e “raça” se reproduzem e se coproduzem mutuamente (KERGOAT, 2010, p. 94).
Compreendemos, como Kergoat (1986), que o raciocínio em termos de relações sociais é repleto de desafios, tendo em vista o caráter abstrato do conceito e, ainda, o uso intercambiável e corrente de relações sociais para referir-se às relações interindividuais (que são uma mediação, mas não as relações sociais elas mesmas). Com efeito, no plano das relações entre indivíduos, que corresponde ao plano das práticas sociais, as relações de dominação-exploração-apropriação ganham forma: a violência doméstica dos homens contra as mulheres, os preconceitos sobre a vivência da sexualidade feminina sob diferentes formas, materiais e simbólicas de controle, a sobrecarga com o trabalho doméstico não remunerado e a própria “afetividade” e a carga “moral” envolvida na realização desse trabalho que tornam, em muitas situações, tão difícil que as mulheres se rebelem contra ele. A partir da investigação dessas expressões cotidianas, podemos apreender as mediações que sustentam as relações sociais entre homens e mulheres não mais como indivíduos, mas como grupos sociais, e que se reproduzem, também, quando os sujeitos da dominação não estão individualmente presentes (SAFFIOTI, 2004), por exemplo, por meio das instituições.
O conceito de divisão sexual do trabalho é fundamental para uma reinterpretação do mundo do trabalho, ao mostrar a divisão hierárquica entre trabalho produtivo e trabalho reprodutivo – sendo o primeiro atribuído aos homens e o segundo às mulheres. Danièle Kergoat é uma das responsáveis pela sua elaboração e, com especial contribuição, revela a sexuação imposta ao mundo do trabalho, como elemento central na formação das relações sociais de sexo e, portanto, estruturante dos processos de exploração do trabalho para a acumulação da riqueza no sistema capitalista, patriarcal e racista.
Nessa divisão, que atribui às mulheres o trabalho reprodutivo, torna-se invisível o fato de que a jornada de trabalho das mulheres trabalhadoras é formada de trabalho produtivo e reprodutivo. Por trás dessa concepção, há uma realidade sócio-histórica que sustentou a construção do trabalho doméstico como propriedade constitutiva das mulheres como gênero feminino, que relaciona corpo, reprodução biológica e trabalho reprodutivo doméstico como parte de uma natureza humana na qual estão enquadradas as mulheres. A análise materialista da divisão sexual do trabalho nos desvenda um aspecto fundamental para a questão da relação trabalho-emancipação, que é a relação entre tempo de trabalho e tempo livre, uma dimensão emancipatória tanto do ponto de vista das práticas de trabalho concretas e cotidianas como também uma dimensão da luta histórica da classe trabalhadora.
Como afirma Kergoat, o trabalho doméstico deve ser colocado no centro da reflexão quando pensamos sobre a emancipação. A compreensão de que as mulheres só são vistas como sujeito do trabalho a partir do trabalho produtivo tem como consequência uma visão de sujeito partido, na qual a tensão entre dominação e resistência tem uma dimensão ocultada. Estando oculto o trabalho doméstico, ela é negada como trabalhadora e sujeito na esfera doméstica, já que o que faz é considerado um não trabalho. No Brasil, a luta das trabalhadoras domésticas remuneradas e organizadas tem, na sua afirmação como classe trabalhadora, uma estratégia e uma prerrogativa em defesa de ter direitos. Isso é algo importante a ser resgatado no debate sobre trabalho doméstico e sujeito político.
Isso nos leva à relação entre formação dos coletivos, precarização e fragmentação do mundo do trabalho, que na realidade brasileira se aprofunda, embora tenha sido sempre estruturalmente precária. Do ponto de vista filosófico, político e sociológico, revelam-se os desafios para a constituição dos sujeitos do trabalho quando uma grande maioria de trabalhadoras e trabalhadores não é portadora de direitos, vista como indivíduos atomizados e destituídos de cidadania e, em muitos casos, desterritorializados(as) ou submetidos(as) a trabalho escravo.
Partindo das relações sociais e, portanto, das contradições, antagonismos e relações de poder entre os grupos sociais, a questão da emancipação recoloca o sentido dos processos de luta e resistência coletiva como caminho irredutível para sua busca como processo transformador de si e da realidade social. Ademais, reafirmar a questão da emancipação, nesta perspectiva, se contrapõe às propostas de filiação funcionalista e neoliberais como, por exemplo, a noção de empoderamento, calcada em uma busca individual e patrocinada por agentes externos e desprovida de sentido coletivo e de relações de poder, o que sugere uma integração consciente ou uma adesão ao sistema dentro das suas regras. O poder de atração dessa proposição de empoderamento pode ser tributária justamente da promessa fácil de alcançá-la, ao mesmo tempo em que oculta as relações de dominação e exploração que estruturam as relações de poder.
Ter a emancipação como horizonte a partir da teorização de Kergoat sobre relações sociais de sexo – e sua consubstancialidade com as relações sociais de raça e classe e da relação indivíduo coletivo como movimento incontornável e dialético na formação do sujeito –, nos exige repensar a questão da emancipação de forma mais objetiva, isto é, tomando em consideração as estruturas de dominação e exploração, as relações e as práticas sociais. Ao mesmo tempo, é fundamental retomar a emancipação em sua historicidade, o que nos coloca o desafio de desconstruir o seu sentido messiânico e heroico, próprio do sistema capitalista, patriarcal e racista.
Para Kergoat, não existe um sujeito único e unívoco portador da emancipação: é nas relações sociais, e a partir delas, da tensão entre dominação e resistência, que se forjam sujeitos coletivos e lutas que exigem, sim, para o processo de emancipação coletiva, a sua articulação, de maneira a enfrentar as desigualdades produzidas pela imbricação das próprias relações. E esse movimento tem nas práticas sociais sua dinâmica viva e no campo do trabalho seu “centro dinamizador” por excelência.
De acordo com Dunezat e Galerand (2010), falando a partir de suas experiências de trabalho com Kergoat
e trabalhando seu quadro teórico nos respectivos campos, nossa compreensão de opressão das mulheres é fortemente deslocada, à medida que passamos de uma leitura truncada dessa opressão à análise em termos de consubstancialidade-coextensividade das relações sociais. Com essa passagem, nós temos, também, o sentimento de ter progressivamente deslizado de uma sociologia centrada sobre a reprodução do sistema de sexo a uma sociologia que busca teorizar a emancipação (DUZENOT; GALERAND, 2010, p. 25).
Para Kergoat:
o que é importante na noção de relação social – definida pelo antagonismo entre grupos sociais – é a dinâmica que ela introduz, uma vez que volta a colocar a contradição, o antagonismo entre os grupos sociais no centro da análise, e que se trata de contradição viva, perpetuamente em via de modificação e de recriação (KERGOAT, 2002, p. 244).
O que a autora coloca – e consideramos relevante – é que se tomarmos em conta apenas as estruturas, isso nos levará a um raciocínio que negaria a possibilidade da existência dos sujeitos, como se os indivíduos agissem somente a partir da ação das formas exteriores. Para ela, relações sociais implicam antagonismos, tensões e resistência.
Essa visão de sistema “dominante”, como aquilo que não é “totalmente determinante”, constrói uma abertura para entender o movimento de subversão à ordem, que constitui o sujeito, e para enxergar as dinâmicas individuais e coletivas que formam as tensões e revelam as contradições que engendram a vida social. É uma perspectiva que leva a perceber as mudanças nas práticas sociais presentes nos espaços do trabalho e em outros espaços da organização da vida social. E seguindo na sua elaboração, Kergoat nos diz que
as relações sociais não são para mim o determinismo, mas, ao contrário, uma maneira de pensar e de trabalhar a liberdade. Mas uma verdadeira liberdade, não colocada a priori, mas que se desenvolve entre as tramas do determinismo sociais. A verdade é que, para pensar essa liberdade, preciso ainda ter certeza de que foram trabalhadas todas as modalidades de relações sociais. (KERGOAT, 2002, p. 244).
O processo de elaboração sobre as práticas sociais nos possibilita uma base concreta para sustentar a construção sobre o sujeito e o processo políticos dialeticamente relacionados com as contradições reais, a partir das quais esses sujeitos emergem e forjam os processos de luta com base na realidade do vivido. Entrar no coletivo, nesse ato de passagem do “indivíduo ao coletivo”, é, para Kergoat (2018), ter a consciência crítica e se colocar em confronto com as relações de exploração e dominação, colocando-se na resistência coletiva, em um momento emancipatório, pois a escolha de luta coletivamente contra a opressão é em si um ato de liberdade.
O que depreendermos como dinâmica emancipatória na elaboração de Danièle Kergoat, a partir da relação indivíduo/coletivo, nos traz também a possibilidade de pensar sujeito e emancipação como processo permanente e, nessa dinâmica, a participação na ação coletiva de reflexão e de luta se reflete também na vivência concreta do sujeito individual, nas suas práticas de trabalho no cotidiano. A consciência crítica, nesse rumo, faz perceber a relação de exploração e dominação constitutivas da relação de trabalho e materializadas na sua própria vivência.
A proposição da consubstancialidade e coextensividade das relações sociais na concepção de Danièle Kergoat é incontornável para uma análise que ponha em conexão dialética os sistemas de exploração e dominação – base fundamental para pensar do ponto de vista da ação de resistência a necessidade estratégica das práticas e dos caminhos emancipatórios no enfrentamento das contradições e percepção dos antagonismos.
Para essa autora, a análise em termos de consubstancialidade de relações sociais possibilita uma nova abordagem para a questão da emancipação, o que abre o cominho para uma crítica ao sujeito abstrato e a ideia do coletivo como algo encantado ou fundido no qual o sujeito individual desaparece. Para ela, o sujeito político não se constitui por uma série de adições aportadas pela relação indivíduo/coletivo, mas a partir da pluralidade intrínseca a sua formação, que não está concebida por contradições consideradas principais e secundárias, mas por uma relação dialética entre sujeito individual/coletivo e as causas que mobilizam e constroem as lutas dos sujeitos políticos que se expandem e se confluem em movimentos sociais em antagonismos à ordem social estabelecida.
Pensar “os caminhos da emancipação” desde o Sul do mundo e em contextos precários
Para Kergoat, o trabalho sociológico que coloca em foco a emancipação tem por condição obrigatória o trabalho de campo e a observação in situ. Essa é uma afirmação que cada vez mais adquire importância metodológica para a produção do conhecimento crítico da realidade social e dê sustentação aos processos de organização e luta dos sujeitos políticos. Essa relevância se aprofunda em um contexto social no qual o mundo do trabalho foi profundamente reconfigurado para intensificar a exploração do trabalho e o desapossamento cada vez mais agudo e garantir uma acumulação de riquezas em um grau cada vez maior. As novas tecnologias da informação são usadas como instrumento estratégico para esse fim.
O que se revela é que, sem os estudos feministas sobre o mundo do trabalho, e suas categorias fundamentais – a divisão sexual do trabalho, a consubstancialidade e a imbricação das relações sociais – dificilmente se poderia apreender os mecanismos da superexploração no sistema patriarcal, capitalista e racista, forjado por relações sociais imbricadas e coextensivas de sexo, classe e raça e os mecanismos que sustentam a exploração hoje. E para isso, a contribuição de Danièle Kergoat e Helena Hirata – e das(os) pesquisadoras(es), grupos e movimentos que elas inspiraram e estão em permanente parceria – é, sem dúvida, crucial, particularmente para nós, no Brasil. E crucial não somente para o avanço nos estudos e pesquisas, mas em profunda articulação com as lutas no campo do trabalho e a organização dos sujeitos coletivos de mulheres trabalhadoras e feministas, que seguem defendendo a relevância e a centralidade das lutas no campo do trabalho para o projeto de emancipação das mulheres.
Com a flexibilização das relações de trabalho e a descentralização das formas de produção – e ainda das formas de trabalho geradas pelas tecnologias da informação, que invisibilizam e fragmentam os processos de criação e realização das tarefas da produção e dos serviços – se coloca ainda mais a necessidade e o desafio de pensar a relação entre indivíduo coletivo que, mesmo na abordagem crítica e materialista, estava pensada à parte de um lócus de trabalho clássico do capitalismo, em que a organização do trabalho estava feita em um local no qual a multiplicidade de trabalhadores(as) se encarregavam de diferentes e completares tarefas, formando um coletivo de trabalho. Se essa era uma forma hegemônica de organizar o processo produtivo, nunca foi, no entanto, a única, nem mesmo nos países considerados industrializados e modernos do Norte. No que diz respeito ao trabalho reprodutivo remunerado, sua fragmentação é incontornável à sua própria estruturação e às determinações que lhe constitui na organização do mundo do trabalho, nesse sistema capitalista, patriarcal e racista.
Em uma forma de organização social em que dependemos da venda da nossa força de trabalho, sob formas cada vez mais plurais de contratos ou de ausência deles, o trabalho se mantém como um lócus a partir do qual a transformação da vida social pode ser pensada como possibilidade de emancipação coletiva e, por consequência, de emancipação individual.
No contexto atual, de extrema precarização, quando a relação salarial nos moldes fordistas se desvanece no contexto europeu, a fábrica se desterritorializa, a classe se fragmenta e a emergência dos serviços individualizados colocam desafios à constituição do grupo e do coletivo; uma vez que os indivíduos estão atomizados, novos desafios emergem para pensar os processos de constituição sexuada do sujeito, de suas reivindicações, de suas lutas. Kergoat (2018, p. 97) reconhece que, se hoje retornasse ao contexto fabril, a antiga divisão entre operárias qualificadas e não qualificadas poderia dar lugar à divisão entre trabalhadoras precarizadas e com direitos.
Tendências que hoje prevalecem na organização do mundo do trabalho puderam ser apreendidas a partir da contribuição da elaboração feminista que, no lastro das últimas quatro décadas, afirmou a necessária articulação entre produção e reprodução social, a atenção à dimensão subjetiva e à relação com o trabalho – e com “os lugares ocupados na divisão sexual do trabalho” –, notadamente, à não homogeneização da classe trabalhadora.
Nos primeiros estudos de Danièle Kergoat, a atenção sobre o que se passava fora do espaço do trabalho remunerado já estava dada. Com o acirramento da exploração capitalista, o que hoje prevalece como forma própria da superexploração é a “conversão de todo tempo de não trabalho em tempo de trabalho”, como o demonstra a investigação de Abílio (2014) sobre as precarizadas revendedoras de cosméticos da empresa Natura. As características típicas do trabalho feminino se espraiam hoje para o conjunto da classe trabalhadora. A captura das subjetividades também emerge como um mecanismo central da dominação-exploração capitalistas que exponencia os processos de exploração, rompendo as fronteiras objetivas que limitam jornadas de trabalho e mantendo a atenção e a tensão permanentes dos indivíduos que trabalham, cada vez mais, entregues à sua própria sorte, fora dos vínculos e de qualquer proteção social ou inseridos precariamente na relação salarial.
Em um contexto de profundas transformações, se mostram como fundamentais as categorias sociológicas e o percurso metodológico traçado por Kergoat: a ênfase nas práticas e a atenção às dimensões subjetivas e objetivas, o olhar ampliado para além do contexto de trabalho remunerado, a atenção aos processos de reivindicação e ao processo de sua constituição (para além do conteúdo reivindicado) e as tensões que emergem nas práticas sociais e carregam o potencial de subversão das relações sociais. Em síntese, a negação de uma classe trabalhadora homogênea e, consequentemente, de um sujeito coletivo homogêneo.
Entre 2013 e 2015, realizamos uma pesquisa sobre trabalho produtivo e reprodutivo em contextos de trabalho precário e pudemos constatar que a precariedade que as trabalhadoras enfrentam se conforma na tensão entre trabalho produtivo e reprodutivo ao longo das trajetórias de vida e nas relações de trabalho atuais. Nesse sentido, podemos afirmar que se a organização do trabalho produtivo está baseada na superexploração e na precariedade, a organização do trabalho reprodutivo segue ancorada na apropriação ilimitada do tempo de vida dessas trabalhadoras no interior das famílias, sendo agravada pela precariedade de estrutura social para responder às demandas desse campo, o que termina por retroalimentar sua condição precária de inserção no trabalho remunerado.
Os mecanismos que sustentam a divisão sexual do trabalho – separação e hierarquia (KERGOAT, 2009) – expressam-se de maneira concreta nos três arranjos de trabalho investigados, produzindo desigualdade salarial entre homens e mulheres, nos três contextos de pesquisa. Para as mulheres, a divisão sexual do trabalho, materializada em suas vidas cotidianas como um movimento contínuo entre trabalho reprodutivo e trabalho produtivo de maneira intermitente e, em muitos casos, de maneira simultânea, é em si um fator de precarização.
Nos contextos de trabalho nos quais realizamos essa pesquisa31, a organização coletiva das trabalhadoras como um sujeito político não existe como uma prática concreta e nem como uma definição de suas prioridades para melhorias das condições de trabalho e de vida. É como se o esforço individual fosse o único meio de garantir qualquer conquista nesse sentido – apesar de que não foram poucas as referências feitas aos direitos das mulheres, já conquistados e desejados. Mas são outras as mulheres que lutam, em algum lugar que elas não identificam e parece que não diz respeito a suas possibilidades. O que podemos dizer é que ali a questão da relação entre dominação/exploração e resistência nos foi evidenciada pela ausência de um desses termos, justamente o da resistência, como luta do sujeito político. A resistência, se assim podemos chamá-la, é a forma de manter ou superar pelo esforço individual e por cooperação entre elas os desafios das jornadas de trabalho produtivo e reprodutivo. No entanto duas questões emergem fortemente: o valor do trabalho remunerado como elemento que lhes confere poder, sentimento de autonomia e valor como ser humano, mesmo que essa remuneração possa apenas, na maioria dos casos, sustentar de maneira precária a si e a seu grupo familiar. A outra diz respeito justamente à importância dessa relação de cooperação e solidariedade entre elas, que mesmo não ultrapassando os limites do apoio mútuo, indica que é a partir do coletivo que se pode construir resistência.
Como síntese, podemos afirmar que a incursão no pensamento de Kergoat nos permite pensar a constituição das mulheres como um sujeito no trabalho como uma dimensão que está diretamente relacionada à capacidade das mulheres de se organizarem como coletivo portador de um projeto feminista de igualdade e emancipação. Individualmente, as mulheres trabalham, adquirem graus diferenciados de autonomia, formam redes e coletivos de apoio ao trabalho produtivo e reprodutivo e, dessa forma, podem mudar aspectos de sua vida pessoal e conseguir pequenas margens de manobra nos esquemas de trabalho, de acordo com sua inserção de classe e raça. A construção do sujeito individual se faz nas dinâmicas coletivas que, por sua vez, estão determinadas pelas relações e práticas inscritas nas relações sociais de sexo, classe e raça. A constituição do sujeito individual, todavia, não transforma as estruturas e as relações de dominação e exploração, isto é, não produz rupturas que alterem a ordem das coisas que conformam as relações de trabalho. Ambas as dimensões só são possíveis com a constituição de processos coletivos.
Retomar os aportes teóricos de Kergoat sobre a constituição do sujeito sexuado, no contexto europeu dos anos 1970, recoloca, para a teoria sociológica, a questão da constituição das mulheres como sujeito coletivo no contexto atual, marcado pela precarização e formas de trabalho atomizadas, nas quais sobreviver é a meta, e que se expandem cada vez mais como realidade global. No horizonte da política, emerge como desafio a necessária imbricação entre as formas de resistir para se manter viva, para mudar a vida individual e coletiva e para transformar o mundo, abrindo veredas para a construção de sujeitos coletivos, práticas de revolta e luta. Esse é, certamente, um desafio para as pesquisas e, incontornavelmente, para os movimentos feministas e de mulheres trabalhadoras.
Referências
ABÍLIO, Ludmila Costhek. Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos. São Paulo: Boitempo, 2014.
ALVES, Giovanni. Trabalho e subjetividade: o espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório. São Paulo: Boitempo, 2011.
ÁVILA, Maria Betânia; FERREIRA, Verônica. Apresentação à edição brasileira. In: KERGOAT, Danièle. Lutar, dizem elas… Recife: Edições SOS Corpo, 2018. p. 9-12.
ÁVILA, Maria Betânia; ARANTES, Rivane; FERREIRA, Verônica. Trabalho e autonomia econômica das mulheres: uma análise crítica. Recife: Edições SOS Corpo, 2016.
DUZENAT, Xavier; GALERAND, Elsa. Un regard sur le monde social. In: DUZENAT, Xavier et al. (coord.). Travail et rapports sociaux de sexe. Rencontres autor de Danièle Kergoat. Paris: L´Harmattan, 2010. p.23-33.
HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. A classe operária tem dois sexos. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, n. 3, p. 93-100, 1994. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/16291/14832 >. Acesso em: 10 dez. 2020.
HIRATA, Helena. Centralidade do trabalho, subjetividade e relações sociais. Pesquisar com Danièle Kergoat. In: KERGOAT, Danièle. Lutar, Dizem Elas... Recife: Edições SOS Corpo, 2018. p.13-22.
KERGOAT, Danièle. Em defesa de uma sociologia das relações sociais. Da análise crítica das categorias dominantes à elaboração de uma nova conceituação. In: KARTCHEVSKY-BULPORT, Andrée et al. O sexo do trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. p. 79-93.
KERGOAT, Danièle. Se battre, disent-elles...Paris: La Dispute, 2012.
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KERGOAT, Danièle. Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais. Novos estudos CEBRAP, São Paulo, n. 86, p. 93-103, mar. 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002010000100005&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 27 jan. 2021.
KERGOAT, Danièle. Percurso pessoal e problemática da divisão social e sexual do trabalho. In: HIRATA, Helena. Nova divisão sexual do trabalho? Um olhar voltado para empresa e a sociedade. São Paulo: Boitempo, 2002. p. 236-247.
Recebido em 13/03/2020
Aceito em 15/12/2020
1* Pesquisadora do SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia. Doutora em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Integra o Grupo de Trabalho Feminismos, Resistências e Emancipação do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO). É militante feminista da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) e Articulação Feminista (Marcosur). E-mail: betania@soscorpo.org.br
2** Pesquisadora e Educadora do SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia. Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e estágio pós-doutoral no mestrado em Serviço Social, Trabalho e Questão Social, da Universidade Estadual do Ceará (UECE), com bolsa da Capes. Integra o Grupo de Trabalho Feminismos, Resistências e Emancipação do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO). É militante feminista da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) e Articulação Feminista (MARCOSUR). E-mail: veronica@soscorpo.org.br
31 Pesquisa realizada no período de 2013 a 2015, sobre os fatores objetivos e subjetivos que favoreciam ou limitavam a autonomia econômicas das mulheres inseridas em contextos precários de trabalho em setores considerados de forte crescimento econômico. A pesquisa foi realizada na cidade de Toritama, no interior de Pernambuco, com mulheres inseridas no setor de confecções; na grande São Paulo, na construção civil; e no polo industrial e siderúrgico de Barcarena, no Pará (ÁVILA; ARANTES; FERREIRA, 2016).
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 53, Junho/Dezembro de 2020, p. 112-128
TRABALHO COMO PRODUÇÃO DO VIVER:
consequências políticas para o feminismo
WORK AS THE PRODUCTION OF LIFE:
political consequences for feminism
____________________________________
Renata Moreno1*
Tatau Godinho2**
Nalu Faria3***
Resumo
Situadas em uma perspectiva feminista materialista e libertária, as formulações teóricas de Danièle Kergoat e Helena Hirata têm sido pensamento inspirador de um feminismo de esquerda e popular, em que a centralidade do trabalho na organização das dinâmicas e relações de dominação e desigualdade é tema fundante. Este texto apresenta uma interpretação sobre os vínculos entre elaborações teóricas e suas consequências políticas em contextos situados. Para isso, lançamos o olhar para a influência do pensamento destas duas autoras em um campo do feminismo no Brasil enraizado no movimento popular e sindical, influência, esta, evidenciada nas agendas feministas de enfrentamento ao neoliberalismo, em que o trabalho como produção do viver (e as trabalhadoras) tem centralidade.
Palavras-chave: Feminismo. Produção do viver. Divisão sexual do trabalho. Neoliberalismo.
Abstract
Framed in a materialistic feminist perspective, the theoretical formulations of Danièle Kergoat and Helena Hirata have been an inspiring thinking of a left-wing and grassroots feminism in which the centrality of work in the organization of dynamics and relationships of domination and inequality is a founding issue. This article presents an interpretation of the links between theoretical elaborations and their political consequences in situated contexts. To this end, we look at the influence of these two authors’ thinking in a feminist field in Brazil rooted in the popular and trade union movement, an influence that is evident in the feminist agendas of confronting neoliberalism, in which work as the production of life (and women workers) is central.
Keywords: Feminism. Production of life. Sexual division of labour. Neoliberalism.
1* Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo, integra a equipe da Sempreviva Organização Feminista (SOF) e a coordenação nacional da Marcha Mundial das Mulheres. E-mail: tica@sof.org.br
2** Doutora em Ciências Sociais pela PUC-São Paulo, autora de artigos sobre áreas da temática feminista, em especial sobre participação política e políticas públicas voltadas às mulheres. Junto com Gustavo Venturi, organizou o livro Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Públicos e Privados – Uma década de mudanças na opinião pública, publicado em 2013, pelas Edições Sesc/Fundação Perseu Abramo. E-mail: tataugodinho@gmail.com
3*** Psicóloga, especialista em Psicodrama Pedagógico (Getep) e em Psicologia Institucional (Sedes Sapientiae). Coordenadora-geral da SOF, atua desde 1986 na organização, onde desenvolve atividades de assessoria, articulação e formação feminista. Integra a Rede Latino-americana Mulheres Transformando a Economia (REMTE) e o comitê internacional da Marcha Mundial das Mulheres. E-mail: nalu@sof.org.br
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 53, Junho/Dezembro de 2020, p. 129-143
Introdução
No Brasil, as ideias de Helena Hirata e Danièle Kergoat circulam muito além dos espaços acadêmicos, inspirando a militância feminista nos movimentos sociais. Em diferentes espaços de formação e debate do movimento, a compreensão da materialidade da opressão das mulheres pela divisão sexual do trabalho organiza a intervenção de gerações de militantes. São esses espaços e processos que norteiam a discussão apresentada neste texto.
Buscamos abordar a centralidade do trabalho como produção do viver na luta feminista, vinculando a elaboração, os conceitos e debates teóricos com suas consequências políticas, ou seja, buscamos identificar como eles se concretizam na construção de sujeitos e agendas. Para isso, lançamos o olhar para a influência do pensamento das duas autoras em um campo do feminismo no Brasil enraizado no movimento popular e sindical, influência essa evidenciada nas agendas feministas de enfrentamento ao neoliberalismo, em que o trabalho (e as trabalhadoras) tem centralidade.
Muitas são as contribuições de Hirata e Kergoat para esse campo do feminismo no Brasil, assim como são muitas as lembranças de militantes ativas nessa construção sobre os caminhos por onde tais contribuições apareciam e circulavam. Nos anos 1980, os textos datilografados e fotocopiados, resultados de pesquisas de Helena Hirata e John Humphrey sobre trabalho e famílias operárias, desemprego e crise econômica, circulavam com frequência entre as militantes do movimento sindical, do Partido dos Trabalhadores e pesquisadoras inseridas no movimento. A presença ativa de Helena em diálogos e espaços de formação do movimento sindical, além de seu esforço de articulação de traduções e publicações, garantia o acompanhamento, no Brasil, das elaborações do Groupe d’Etudes sur la Division Sociale et Sexuelle du Travail (GEDISST) em torno da problemática da divisão sexual do trabalho. Em arquivos de organizações como a Sempreviva Organização Feminista (SOF), por exemplo, podem ser encontrados exemplares de apostilas de cursos de formação feminista para o movimento popular de saúde e sindical, na virada dos 1990, com o texto de Daniele Kergoat, “Da divisão do trabalho entre os sexos”, publicado em dossiê da Revista Tempo Social sobre a divisão capitalista do trabalho, organizado por Helena Hirata em 1989.
As contribuições dessas duas autoras, sociólogas e militantes feministas, estiveram em diálogo com a elaboração, muito vinculada aos processos de organização e luta, de personagens fundamentais no pensamento feminista sobre o trabalho e as práticas sociais das mulheres em movimento no Brasil. Entre elas, destacamos Beth Lobo (Elizabeth Souza-Lobo) como uma referência fundamental, profundamente comprometida com o pensamento crítico e a organização das mulheres trabalhadoras.
Os debates realizados nos processos de auto-organização das mulheres, por sua vez, também produziam saberes e pensamento crítico, gerando sínteses políticas na construção de um feminismo de esquerda enraizado e ativo nas lutas sociais no Brasil.
Retomamos contribuições fundamentais de Hirata e Kergoat para esses processos. Em primeiro lugar, a demonstração da materialidade das relações sociais de sexo, ancorada na divisão sexual do trabalho. Essa formulação explicita diferenças substantivas entre perspectivas teóricas, bem como se relaciona com suas consequências políticas no âmbito da agenda feminista e da esquerda de forma geral. Questiona tanto o isolamento das relações de gênero das outras relações sociais quanto o predomínio das relações sociais de classe sobre as demais. A noção de coextensividade/consubstancialidade das relações sociais de classe e de sexo (KERGOAT, 1989) e, posteriormente com a incorporação das relações sociais de raça (KERGOAT, 2010; HIRATA, 2014), se constituiu como uma ferramenta para enfrentar, no movimento, a oposição entre lutas gerais e específicas. Ainda que não seja uma questão superada no âmbito da esquerda, que a representa sobre novas roupagens tentando restringir a ação das mulheres ao cultural/simbólico, essa formulação efetivamente tem contribuído para a construção de agendas políticas feministas orientadas a transformação estruturais, anticapitalistas.
Neste campo do feminismo, sobre o qual nossa reflexão se debruça, e nos marcos do enfrentamento ao neoliberalismo, identificamos uma síntese potente entre a perspectiva da divisão sexual do trabalho e da coextensividade das relações sociais com a elaboração da economia feminista. Especialmente a reconceitualização do trabalho como produção do viver (HIRATA; ZARIFIAN, 2003) e a perspectiva de sustentabilidade da vida (CARRASCO, 2003) produziram sínteses políticas que impulsionaram agendas concretas e amplos processos de organização e mobilização desse campo do feminismo no Brasil. O questionamento à invisibilização dos nexos entre produção e reprodução e a reivindicação de reorganização do trabalho doméstico e de cuidado passam a ter lugar destacado na agenda e nas propostas feministas de transformação da economia, o que é evidenciado, por exemplo, em campanhas pela valorização do salário-mínimo, na crítica às políticas de ajuste que se apoiam no trabalho não remunerado das mulheres ou em processos de construção de alternativas feministas e agroecológicas para a autonomia econômica das mulheres (MORENO, 2014).
Esse artigo está dividido em duas partes, além dessa introdução. Na primeira, retomamos caminhos da construção de um campo do feminismo de esquerda no Brasil, desde o período da redemocratização e, na segunda, são abordadas lutas desse campo do feminismo contra o neoliberalismo. Pretendemos, com isso, demonstrar como, nos processos de construção de sujeitos políticos situados, a compreensão do trabalho como produção do viver se concretiza em agendas políticas feministas, processos de luta e transformação. Ao final, elencamos pistas para seguir e desafios enfrentados por esse campo do feminismo.
A análise apresentada é situada em experiências coletivas de construção do feminismo. Por isso, explicitamos, de partida, a vinculação das autoras do artigo a processos políticos concretos1 ainda pouco sistematizados e reconhecidos em toda sua extensão (incluindo presença do feminismo no Brasil, desde o período final da ditadura, com o processo de redemocratização, a reorganização política e a forte presença dos movimentos sociais). O artigo pretende contribuir, ainda que pontualmente, para a necessária recuperação da memória do feminismo de esquerda no Brasil, oferecendo uma interpretação sobre os vínculos entre elaborações teóricas e suas consequências políticas em contextos situados.
Caminhos de um feminismo de esquerda
Buscando identificar as influências do pensamento inspirador de Helena Hirata e Danièle Kergoat na construção do feminismo no Brasil, lançamos o olhar para os processos organizativos das mulheres trabalhadoras no feminismo e nos movimentos sociais. Pretendemos, com isso, indicar caminhos de continuidade e desdobramentos de parte das experiências organizativas e processos coletivos com origem nos anos 1970. Essa breve recuperação se justifica porque, muitas vezes, os processos organizativos das mulheres trabalhadoras não são suficientemente reconhecidos e visibilizados quando é contada a história do feminismo no Brasil. É justamente nesses processos, situados no campo da esquerda, que encontramos, além de uma importante recepção e circulação das contribuições teóricas de Hirata e Kergoat, sínteses e concretizações de tais contribuições na construção de agendas políticas feministas.
Vale lembrar que, no Brasil sob ditadura militar, o fim dos anos 1970 e início dos anos 1980 foram marcados por um ascenso da organização da classe trabalhadora2. Tanto no movimento sindical como no movimento popular, começam a surgir processos organizativos das mulheres, enquanto mulheres. No cenário dos novos movimentos sociais, o movimento de mulheres é visto como uma novidade (SOUZA-LOBO, 2011), assim como a intensa mobilização e organização do movimento negro e, dentro dele, das mulheres negras (LEITE, 2008). Eram constantes as relações de aliança e militância comum do movimento sindical e das lutas populares nos bairros. E, nessa relação, também se insere a militância feminista (DELGADO, 1998). São expressões desses processos de mobilização e organização, ainda nos anos 1970, o movimento contra o custo de vida e o movimento de mulheres pelo direito à creche. A mobilização das mulheres nos bairros era vinculada a reivindicações por políticas e infraestruturas básicas, tendo como referência a reprodução social e as condições de vida das famílias.
Alguns elementos são comuns em leituras sobre o início da segunda onda do feminismo no Brasil. Há um reconhecimento da influência da militância de mulheres das organizações de esquerda, marxistas, na conformação do movimento feminista no país. Cynthia Sarti (1988) destaca a heterogeneidade da composição do movimento de mulheres, estabelecendo uma relação entre a composição social do movimento e a agenda política levada à frente. Segundo essa autora, a hegemonia das tradições de esquerda contribuiu para que a “mulher trabalhadora” fosse a expressão do sujeito político do feminismo naquele período.
Em plena luta contra a ditadura e pela democratização, a unidade das mulheres no enfrentamento ao autoritarismo foi uma marca do movimento, e as agendas comuns eram priorizadas, evitando polêmicas como as relacionadas às reivindicações em torno da sexualidade e do aborto (SARTI, 1988).
Situa-se na virada dos 1980 e no processo de redemocratização uma mudança nessa dinâmica. A agenda do combate à violência contra as mulheres ganha espaço com a organização de serviços como os SOS Mulher, a partir da sociedade civil (SARTI, 1988). As disputas em torno de projetos de Estado e sociedade – com destaque para a entrada (imersa em polêmicas) de feministas no Estado a partir dos conselhos (GODINHO, 1998) – reconfiguram a representação do que é o feminismo (tanto os sujeitos como as agendas).
Conforme recuperam Araújo e Ferreira (1998), a priorização de outros temas, para além das condições de vida e trabalho, se deu na medida em que grupos críticos à perspectiva marxista ganharam força nos anos 1980. Portanto, mais do que um “desenvolvimento natural” do movimento, a dispersão temática de agendas é uma consequência de visões políticas que ganharam espaço com a democratização.
Tal dispersão temática relaciona-se com a fragmentação e institucionalização do movimento, mas também reforça uma diferenciação política entre o que seria o movimento feminista e um movimento amplo de mulheres, afastando sujeitos. Havia uma ambiguidade entre muitas mulheres dos grupos de base: apesar de, no início, não se identificarem como feministas, ao participar dos espaços, debates e encontros se dava um processo de ampliação dessa autoidentificação das mulheres como feministas, como exemplificam Araújo e Ferreira (1998) ao retomar a trajetória de militantes sindicalistas. Do lado do que aparecia como movimento feminista, essa separação/diferenciação se manteve, conformando uma narrativa particular sobre o feminismo que, generalizada, tende a invisibilizar dinâmicas e sujeitos com agendas diversas daquela que se institucionalizava. Ao olhar para a centralidade do trabalho na luta feminista, retomando processos da construção de movimento, assumimos a perspectiva de que feminismo e movimento de mulheres não devem ser considerados campos distintos, mas que o “feminismo é a ideologia e a prática que orienta, que conforma, que constrói o movimento de mulheres” (GODINHO, 2008, p.18). Essa perspectiva, obviamente, não desconsidera as diferentes visões e projetos políticos em disputa no feminismo, ao contrário: trata-se justamente do reconhecimento de campos políticos com projetos de sociedade muitas vezes contraditórios3.
Como vimos, a circulação de ideias feministas se dava nos processos organizativos e formativos que envolviam grupos de mulheres nos bairros, por meio dos jornais feministas, e de instrumentos construídos pelas mulheres nos lugares em que atuavam, como no movimento sindical. Coincidindo com uma ampliação da participação das mulheres no mercado de trabalho, o crescimento da taxa de sindicalização das mulheres ao longo dos anos 1970 foi muito superior à dos homens (DELGADO, 1998). A participação delas em mobilizações e greves foi se desdobrando para uma atuação nos sindicatos, não sem tensões e obstáculos. As mulheres sindicalistas começam a ter participação direta nos espaços feministas, assim como iniciam, no interior dos sindicatos, a organização de comissões de mulheres. Também no meio rural, as mulheres se organizavam enquanto mulheres, reivindicando, nos anos 1980, seu reconhecimento como trabalhadoras, o direito ao título de posse da terra e a participação sindical (SARTI, 1988).
No processo de formação da Central Única dos Trabalhadores, a participação das mulheres foi intensa. Araújo e Ferreira (1998) analisam esse processo, destacando as estratégias e caminhos coletivos e individuais percorridos pelas sindicalistas e por sindicatos. Nessa retomada, destacam que a conformação da Comissão Nacional da (Questão da) Mulher Trabalhadora, na CUT, foi um passo fundamental para o avanço da organização de suas agendas. Nos textos de Beth Lobo (2011), encontramos análises e questões sobre as novas práticas sociais das mulheres sindicalistas em seus processos de luta e afirmação. Para Delgado (1998, p. 214), esses processos organizativos identificados com o feminismo contribuíram para arranhar, “em alguma medida, o modelo de trabalhador homem, branco, operário, predominante no imaginário do movimento sindical.”
Ambas as autoras destacam que as formulações em termos de divisão sexual do trabalho contribuíram para uma passagem importante: do reconhecimento da presença das mulheres no sindicalismo à organização de uma agenda das mulheres trabalhadoras para a sociedade e para os sindicatos. Assim, não se tratava apenas da participação das mulheres num espaço constituído a partir dos homens, mas de uma ampliação da visão política e da agenda, de novas práticas e da compreensão de um sujeito sexuado (KERGOAT, 2018). As reivindicações de creches nos encontros e de cotas de participação nas instâncias de direção, bem como a aprovação pela CUT de reivindicações como a legalização do aborto, são expressões desse processo.
Os espaços de auto-organização e de formação política, identificados como feministas4, foram fundamentais nesse processo de construção e, neles, as noções elaboradas por Kergoat e Hirata tiveram muita influência. O debate a partir de tais elaborações, em torno do trabalho como produção do viver e da divisão sexual do trabalho, trazia com prioridade o lugar das mulheres como sujeitos – tanto da luta, como da produção de bens e serviços necessários à reprodução social. A centralidade do trabalho nas relações sociais de gênero evidenciava, assim, os nexos entre capitalismo e patriarcado, contribuindo para um horizonte de transformação contraposto à perspectiva (liberal) de que as mulheres se igualem, em direitos, aos homens. Trata-se, portanto, da reivindicação de políticas capazes de alterar os mecanismos de distribuição de responsabilidades, de renda e que incidam nas dinâmicas de exploração e opressão das relações sociais.
Além dos textos, a participação de Helena Hirata, como sujeito ativo desse intercâmbio teórico e político, é destacada. Ilustrativo dessa presença ativa é o relato de uma sindicalista, entrevistada por Araújo e Ferreira (1998), que conta como, em uma palestra de Helena Hirata, o feminismo passou a fazer sentido em sua trajetória como mulher sindicalista. Também é interessante, nesse relato, o reconhecimento dessa dirigente sindical de que havia um trabalho coletivo das mulheres em seu sindicato, ao qual ela passou a se somar após esse momento.
Esse não foi um processo apenas no interior da CUT, mas da conformação de um campo do movimento de mulheres, ainda que minoritário, incluindo militantes nos movimentos populares, no movimento negro, no movimento de trabalhadoras rurais e camponesas e de militantes partidárias, no PT. Desde o início, esse campo conviveu e enfrentou a tensão entre as lutas gerais e específicas – tanto no movimento de mulheres como na esquerda (SARTI, 1988; SOUZA-LOBO, 2011). As formulações que integram o feminismo nos projetos de transformação social não foram plenamente incorporadas nas organizações do movimento sindical, em particular (DELGADO, 1998), e da esquerda, em geral. Essa é uma tensão que hoje se reapresenta, atualizada; a ela voltaremos no decorrer do artigo.
Retomando: a organização das mulheres no movimento sindical e das trabalhadoras rurais no campo da esquerda é uma continuidade e um desdobramento do período inicial de organização da segunda onda do feminismo no Brasil, ainda que muitas vezes essa parte da história seja contada em paralelo.
Seus acúmulos são visíveis, relevantes e nas duas últimas décadas se expressam na capacidade de mobilização da Marcha das Margaridas e de organização das mulheres no Movimento dos(as) Trabalhadores(as) Rurais Sem Terra, o MST, assim como na Marcha Mundial das Mulheres. Mesmo enfrentando as contradições dos anos 1990, esses processos permitem percorrer os fios que costuram a centralidade do trabalho na agenda feminista, neste campo caracterizado pela auto-organização das mulheres em processos políticos de esquerda, muitas vezes mulheres inseridas em movimentos sociais mistos. A movimentação recente de reconhecimento desses processos organizativos das mulheres trabalhadoras como feministas nos convida a ampliar o olhar e análise sobre eles, um esforço que ultrapassa o escopo deste artigo.
As elaborações em torno da articulação de gênero e classe, e a construção de agendas políticas que apontam para superação de limites anteriores podem ser destacadas como fios de continuidade. Uma mudança significativa tem sido a capacidade de compreender trabalho não como um tema ao lado de outros como corpo, violência e sexualidade, mas como processo social em torno do qual se constrói a identidade política de classe, das mulheres enquanto sujeito político coletivo e, simultaneamente, se dá uma disputa fundamental na sociedade capitalista, racista e heteropatriarcal. Mesmo entre movimentos populares, majoritariamente compostos por mulheres inseridas precariamente no mercado de trabalho, ou mulheres não assalariadas, a visão do trabalho como conjunto das atividades necessárias para a produção do viver (HIRATA; ZARIFIAN, 2003) se concretizava em uma ação política orientada a transformações estruturais.
Dessa forma, essa perspectiva se distancia da dispersão que acontecia de forma geral com o feminismo no mesmo período, quando violência, saúde e sexualidade se tornavam agendas especializadas. E se diferencia, ao mesmo tempo, de agendas que pretendiam integrar a dimensão de gênero nos debates “gerais”, como desenvolvimento e democracia, vinculados à relação com o Estado e os organismos internacionais, sem perspectiva antissistêmica. Vale lembrar que, nos anos 1990, o ciclo de conferências sociais da ONU organizou agendas e canalizou as atenções, num momento em que o neoliberalismo se expandia para diferentes esferas da vida (FARIA, 2005). Conforme a análise de Sonia Alvarez (2014), é possível identificar relações entre as agendas feministas e as diferentes fases de implantação do neoliberalismo na América Latina, o que também se aplica ao caso brasileiro.
No campo do movimento que destacamos aqui, a centralidade do trabalho se vinculou com a construção de uma visão global de transformação, expressa no enfrentamento da base material das desigualdades de gênero, raça e classe. Frente à expansão do neoliberalismo, essa visão teve como consequência política a crítica feminista e as lutas das mulheres nos marcos do que se conheceu como movimento antiglobalização, impulsionando novas dinâmicas no feminismo, em que convergem diferentes sujeitos políticos coletivos, sendo a Marcha Mundial das Mulheres5 uma referência (HIRATA, 2003; FARIA; NOBRE, 2003).
As lutas feministas contra o neoliberalismo
O neoliberalismo colocou novos desafios para o feminismo de esquerda. Enquanto direitos eram declarados em arenas internacionais, sem caráter vinculante, o mercado reorganizava a vida das mulheres em cada país (FARIA, 2005). O questionamento feminista à globalização neoliberal e seus instrumentos, como os tratados de livre comércio, marcaram perspectivas políticas e alianças entre diferentes organizações e movimentos sociais (PÉREZ OROZCO, 2017). Em texto publicado em 2003 no Brasil, Helena Hirata revelava paradoxos da globalização para a vida das mulheres. O crescimento do emprego feminino, em quase todo o mundo, ampliou as condições de autonomia econômica das mulheres, porém em modalidades precarizadas e flexíveis (HIRATA, 2003). Nos países do norte, trabalho em tempo parcial, nos países do sul, informalidade. Ao mesmo tempo, a autora complexificava a análise sobre a globalização, trazendo a questão para o âmbito da disputa e da correlação de forças, apontando a efervescência de um movimento antiglobalização no qual se destacava a Marcha Mundial das Mulheres (HIRATA, 2003). Sua análise rigorosa sobre a divisão sexual do trabalho na globalização questionou os determinismos econômicos, destacando a capacidade de luta e construção de força dos movimentos sociais, com forte participação das mulheres, que no mesmo período questionavam a narrativa do fim da história (representada pela sigla TINA “não há alternativas”, em inglês).
Da mesma forma, a noção de consubstancialidade das relações sociais (KERGOAT, 2003), exemplificada pela dualização do emprego feminino e a análise sobre o surgimento de uma camada de mulheres profissionais com interesses frontalmente opostos aos da maioria das mulheres trabalhadoras – precarizadas e mal remuneradas – reforçou e atualizou a compreensão teórica sobre as relações entre gênero e classe, bem como suas consequências políticas. Para compreendê-las, não se pode separar o debate sobre a agenda da constituição do sujeito político. Especificamente, a construção de alianças entre as mulheres de movimentos sociais e populares possibilitou o posicionamento dessas como sujeitos do debate econômico, apresentando propostas políticas que foram além dos direitos individuais e articularam uma perspectiva antissistêmica. Este campo político, que recentemente se afirma como feminismo popular, integra a classe trabalhadora na sua diversidade, inserida na luta por um projeto político de transformação da sociedade – necessariamente, e de forma indissociável, anticapitalista, antirracista e antipatriarcal (BEZERRA, 2020).
Cabe refletir, brevemente, sobre as dinâmicas de trabalho e emprego no Brasil, as mudanças verificadas no neoliberalismo e os desafios teórico-políticos que esses significam. O fato de que o trabalho escravizado tenha ocupado boa parte da história do país, a partir da colonização, tem implicações estruturais na organização do trabalho no neoliberalismo. Após uma abolição sem reparação, o mercado de trabalho se fundou em uma lógica profundamente racista, sendo impossível colocar o trabalho com centralidade para o pensamento e ação feminista desconsiderando a imbricação das relações de classe, raça e gênero (DAVIS, 2016). Seja como trabalhadoras domésticas (GONZÁLEZ, 2018) ou em comércios nas ruas (LANDES, 2002), o trabalho das mulheres negras é de extrema importância nessa história, indicando fios de continuidade entre diferentes momentos da história do país, e a ausência de direitos/informalidade como uma característica anterior ao neoliberalismo. Essa dinâmica de continuidade se reflete na forma como a bipolarização do emprego feminino se verifica no Brasil, tendo a figura da trabalhadora doméstica como elo entre o polo de mulheres inseridas em profissões com prestígio social e aquelas – maioria – de mulheres cuja inserção laboral é marcada pela precariedade (BRUSCHINI; LOMBARDI, 2000).
Os paradoxos da globalização, incluindo na análise a bipolarização do emprego feminino como convergência tanto no Norte como no Sul, fizeram parte de diferentes visões na construção de agendas feministas diante do neoliberalismo. Na perspectiva de articular a divisão sexual do trabalho com a divisão internacional do trabalho e seu motor colonialista e racista, o campo feminista anticapitalista denunciava que as mulheres não eram apenas impactadas diferencialmente pelo neoliberalismo e os tratados de livre comércio (BARRETO; CARRAU; PARADIS, 2017). As políticas de ajuste estrutural se sustentavam na intensificação do trabalho das mulheres – amortecedor dos impactos de tais políticas sobre as condições de vida (MORENO, 2014). Assim, as desigualdades engendradas pelas relações sociais de gênero, raça e classe estão no coração desse sistema (FARIA; MORENO, 2015). Em consequência, a agenda política, nesse campo, não se direcionava a uma remediação de impactos negativos do neoliberalismo na vida das mulheres, mas a um enfrentamento à lógica de acumulação, portanto, a um feminismo anticapitalista.
Retomamos a perspectiva de Kergoat (2003), segundo a qual a forma como as relações sociais são analisadas (isoladas/hierarquizadas ou como consubstanciais) tem implicações teóricas e políticas. Correlatas são as implicações da análise sobre a divisão sexual do trabalho, em termos de vínculo social ou de relações sociais (HIRATA, 2002). A forma como são conceitualizadas tais questões orienta visões políticas gerais e, portanto, tem consequência na forma como se organizam determinadas agendas na ação feminista.
Os debates e propostas em torno do trabalho doméstico e de cuidados são exemplares dessa discussão. Atualmente, a expressão “divisão sexual do trabalho” é muito utilizada em análises descritivas sobre a situação das mulheres no mercado de trabalho, assim como a questão do cuidado tem ganhado muito espaço (HIRATA, 2010). Tais expressões e questões são abordadas muitas vezes de forma isolada, e a indissociabilidade entre trabalho doméstico e trabalho profissional (HIRATA; KERGOAT, 2007) se apresenta reduzida e reconfigurada em agendas que abordam a “conciliação entre trabalho e família” ou mesmo a “igualdade de oportunidades”, restritas, porém, à perspectiva liberal dos direitos individuais. Nos referimos, especialmente, aos discursos de organismos internacionais e seus mecanismos políticos e econômicos para o estabelecimento de agendas. Em outras palavras, em um contexto de precarização da vida e desmantelamento das possibilidades de garantia de direitos e justiça social, trata-se de uma reatualização da equiparação de direitos individuais como horizonte máximo, sem pretender incidir no conflito distributivo e/ou uma reorganização global dos trabalhos, tanto da produção como da reprodução.
No âmbito das lutas por condições de trabalho das mulheres, em uma perspectiva de transformação social, o foco seria menos a luta contra o teto de vidro e mais contra os solos pegajosos (ou areia movediça), que mantêm as mulheres negras e mais empobrecidas da classe trabalhadora em uma condição de precariedade generalizada – ou seja, uma perspectiva de mudanças articuladas nas estruturas de produção e reprodução, enfrentando a materialidade das relações sociais de classe, gênero e raça. A campanha da Marcha Mundial das Mulheres e da Rede Economia e Feminismo, em torno da valorização do salário-mínimo, no início dos anos 2000, é exemplar da concretização dessa visão em um processo de elaboração e articulação política, formação feminista e organização coletiva em torno de uma agenda feminista para transformar a economia6. Lutas sociais no sentido da igualdade substantiva deveriam, nesse sentido, englobar uma reorganização do paradigma da sustentabilidade da vida: articulando, assim, mudanças na produção, nos tempos e ritmos de trabalho, na responsabilização pelo cuidado da vida, assim como o fim do trabalho alienado.
Colocamos esse questionamento – aos termos e perspectivas teórico-políticas que orientam agendas feministas em torno do trabalho – em diálogo com a análise de Nancy Fraser (2009), segundo a qual o neoliberalismo incorpora discursos do feminismo (liberal) para expandir suas fronteiras. Os ideários de emancipação feminista são, assim, “capturados e desviados pelo liberalismo triunfante” (KERGOAT, 2014, p. 14). Também no caso brasileiro, termos e expressões do feminismo são atualizados e encapsulados em discursos individualistas que ecoam a racionalidade neoliberal, e convivem com um conservadorismo familista para a maioria da população/mulheres.
Podemos ampliar os termos da análise sobre bipolarização do emprego feminino para problematizar as agendas feministas a partir dos sujeitos políticos que as organizam. “Quando o feminismo não é constitutivamente antipatriarcal, antirracista e anticapitalista, suas reivindicações não apenas invisibilizam a maioria das mulheres, mas também são incorporadas às custas dessa maioria, ampliando a exploração sobre elas.” (FARIA; MORENO, 2017, p. 8)
A lógica da acumulação capitalista é incompatível com a sustentabilidade da vida. A ampliação da precariedade do trabalho e da vida em si consolida uma precariedade sistêmica. O neoliberalismo não é apenas uma política econômica, mas cada vez mais uma racionalidade que orienta a vida, as relações, a sociedade (BROWN, 2016).
Cada vez mais, isso tem significado um modelo segundo o qual indivíduos se tornam “capital humano”, como se cada um fosse uma empresa. Essa racionalidade neoliberal tem consequências na produção do viver, nos processos que sustentam a vida. Não por acaso, entre as mulheres, a experiência de ser “empreendedora de si” é cada vez mais frequente, identificada com a necessidade de ter flexibilidade e possibilidade de “conciliar” trabalho remunerado e responsabilidades com o cuidado. Enquanto esse discurso se prolifera, a produção do viver vai sendo invisibilizada e despolitizada quando cada indivíduo é capital humano, num cenário de escassez ou desmantelamento de serviços públicos de apoio à reprodução da vida.
Com a ampliação do feminismo extrapolando os sujeitos coletivos e organizados no movimento de mulheres, esses desafios são atualizados (FARIA, 2019). Para as agendas feministas, nesse contexto, se apresenta o risco de convergência entre a lógica da meritocracia, característica da racionalidade neoliberal, e o discurso do empoderamento individual, dissociado, uma vez mais, das dinâmicas das relações sociais. Nesse sentido, a análise de Kergoat (2014, p. 21) sobre o processo emancipatório das mulheres como dependente da “combinação entre a consciência de gênero, a consciência de classe e a consciência de raça” é particularmente inspiradora:
a emancipação coletiva existe apenas se há emancipação individual, a capacidade de agir, quando ela existe, desenvolve-se simultaneamente no nível das individualidades subjetivas e do coletivo composto por essas individualidades (KERGOAT, 2014, p. 21).
Essa perspectiva permite ampliar o escopo da atuação feminista para além do reconhecimento e das representações, ou seja, no sentido de questionamento sobre o conjunto das dinâmicas geradoras das desigualdades.
A centralidade do trabalho como produção do viver, para as lutas contra o neoliberalismo, se coloca como um desafio – e, em nossa perspectiva – uma exigência não apenas para o feminismo anticapitalista, mas para toda a esquerda. A aceleração da precarização do trabalho está profundamente vinculada com uma derrota da classe trabalhadora. Não se trata apenas do retrocesso de direitos – ou de direitos nunca conquistados/efetivados –, mas de uma negação e um ocultamento de que esse sistema só se sustenta com trabalho, com trabalhadoras e trabalhadores. A perspectiva da consubstancialidade das relações sociais contribui, nesse sentido, para recuperar a dimensão de classe na constituição de sujeitos políticos, para fazer frente ao aprofundamento do neoliberalismo e alterar a correlação de forças, condição para construir alternativas.
Pistas e desafios
Inspiradas no pensamento de Hirata e Kergoat, elencamos pistas e desafios para a construção de agendas feministas de esquerda, tomando como centralidade o trabalho como produção do viver. Queremos chamar a atenção para a consequência política de seus aportes teóricos, em diálogo com os desafios atuais para o feminismo frente à hegemonia neoliberal.
Em diferentes partes do mundo, e particularmente no Brasil, o feminismo enfrenta o crescimento de forças de extrema direita. As lutas anticapitalistas hoje compreendem diversos sujeitos políticos, organizados em defesa da natureza e contra o acaparamento dos territórios pelas corporações transnacionais, ou nas cidades contra a precarização generalizada da vida, contra a violência racista do Estado e a privatização dos serviços públicos. Hoje, como antes, a expansão do capital esbarra na resistência das mulheres, justamente porque essa expansão ataca as condições de vida delas. Na resistência e rechaço à lógica de acumulação capitalista, se abrem possibilidades para a construção de alternativas que coloquem a sustentabilidade da vida no centro. Um desafio é que as novas práticas e alternativas econômicas sejam capazes de se desenvolver sem dissociar produção e reprodução, ou melhor, construindo novos equilíbrios entre essas esferas da vida. São muitas as experiências e processos que caminham nesse sentido, politizando a reprodução no movimento de economia solidária e nas lutas por soberania alimentar, concretizadas na agroecologia feminista como ferramenta (NOBRE, 2013).
A perspectiva da sustentabilidade da vida, tal qual trabalhada por sujeitos concretos, apresenta o potencial de reconectar as diferentes esferas da vida – por exemplo, alimentação, trabalho remunerado, cuidado com as pessoas, com o corpo e a saúde, proteção das sementes e produção do que é preciso para viver – e os debates feministas sobre os tempos de vida e os tempos de trabalho têm muito a contribuir.
Retomamos o desafio de superar a dicotomia que se recoloca, atualizada, entre luta geral e luta específica. Apesar do crescimento do feminismo e das lutas antirracistas, novamente a primazia da classe aparece em discursos da esquerda, tentando reduzir o feminismo ao enfrentamento da violência e o movimento negro ao identitário. Em outras palavras, classe no econômico e patriarcado e racismo no cultural. Mas ao pretender transformar as dinâmicas de produção e reprodução articuladas, o feminismo anticapitalista e antirracista se apresenta como parte de um projeto para transformar toda a engrenagem do sistema, e não só a cultura.
Isso significa que a transformação social necessariamente implica outra forma de organizar o conjunto dos trabalhos que produzem o viver. Novamente está colocado o desafio de reconstituição de programas e projetos de transformação capazes de ter feminismo e antirracismo como princípios que estruturam as visões e as práticas.
No âmbito do feminismo, se coloca o desafio de construir agendas que almejem transformações sistêmicas, as quais não se reduzem a conquistar uma condição melhor para algumas mulheres nesse sistema, que continua explorando o trabalho e a vida da maioria. Uma consequência política, nesse sentido, é o uso de termos, noções e conceitualizações em sua integralidade, substantivamente, e não apenas como enunciados. Como já foi mencionado, tem havido uma incorporação fragmentada de expressões e reivindicações forjadas pela organização das mulheres por setores do mercado que hoje se apresentam com identidade feminista (MORENO, 2020). Para ser coerente com as formulações teóricas da divisão sexual do trabalho – da centralidade do trabalho como produção do viver e da consubstancialidade das relações sociais de classe, raça e sexo – a construção de agendas políticas feministas devem ter como horizonte transformações estruturais. Ou seja, se situam no campo das propostas anticapitalistas e não podem ser reduzidas a perspectivas liberais de direitos individuais.
Uma pista para lidar com esse desafio é a não dissociação das agendas políticas dos sujeitos sociais que as elaboram e colocam em marcha, o que se conecta à consequência política da consubstancialidade das relações de raça, sexo e classe, privilegiando as mulheres da classe trabalhadora, as mulheres negras como sujeitos fundamentais do feminismo. As convergências e identidades políticas não se dão pela afirmação de um ser mulher abstrato, genérico e universal, mas pelos processos que constroem identidades políticas entre mulheres que estão em luta em torno de um projeto comum. A essencialização de interesses comuns a todas as mulheres oculta a bipolarização, deslocando classe e raça.
As perspectivas da consubstancialidade das relações sociais e da sustentabilidade da vida iluminam horizontes de transformação e posições políticas, colocando o desafio de serem refletidas na construção de sujeitos políticos em luta, nas práticas coletivas de transformação. Esses são alguns desafios para a imaginação política neste momento que exige o enfrentamento ao conflito do capital contra a vida e a construção de condições para que a vida ganhe, vidas que valham a pena viver.
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Recebido em 26/03/2020
Aceito em 21/12/2020
1 Por exemplo, na atuação com articulação e formação feminista para o movimento sindical e popular, desde a década de 1980, na Comissão de mulheres da CUT, no Partido dos Trabalhadores e, a partir dos anos 2000, na militância na Marcha Mundial das Mulheres.
2 A fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), em 1980, e da Central Única dos Trabalhadores (CUT), em 1983, são marcos desse ascenso.
3 Assinalar contradições e disputa nos parece importante, inclusive, para construir convergências e alianças em processos de lutas comuns.
4 Destaca-se o coletivo de gênero do Instituto Cajamar que, de 1990 a 1996, realizou uma série de cursos sobre gênero e trabalho direcionados para militantes de todo o país. O coletivo era composto pelo próprio instituto, pela Sempreviva Organização Feminista (SOF) e pela CUT, posteriormente sendo integrado pela FÉ Menina e Elisabeth Lobo Assessoria (DELGADO, 1998).
5 Expressão disso é a representação brasileira, composta pela secretária de mulheres da CUT e por uma integrante da SOF, no Encontro Internacional, em 1998, que organizou a convocatória para a Marcha Mundial das Mulheres. Após uma adesão ampla a essa convocatória, em 2000, as organizações que decidiram construir esse movimento de forma permanente no Brasil foram, por exemplo, CUT, Contag, SOF, Cf8.
6 Para uma recuperação da Campanha pela Valorização do Salário-Mínimo, ver Moreno (2014).
Artigos
ATITUDES E COMPORTAMENTOS DOS TRABALHADORES
FACE ÀS TRANSFORMAÇÕES DO MUNDO DO TRABALHO SEGUNDO O MARXISMO ANALÍTICO OU INDIVIDUALISMO METODOLÓGICO
ATTITUDES AND BEHAVIORS OF WORKERS IN RELATION
TO THE TRANSFORMATIONS OF WORLD OF WORK ACCORDING
TO THE ANALYTICAL MARXISM OR METHODOGICAL INDIVIDUALISM
____________________________________
Noêmia Lazzareschi1*
Resumo
Este artigo tem como objetivo demonstrar que as atitudes e os comportamentos políticos, isto é, as estratégias de ação política dos trabalhadores para a defesa de seus interesses e a realização de suas expectativas, em todos os países industrializados do Ocidente, expressam clara compreensão do contexto histórico no qual surgem novas condições objetivas de trabalho e novas condições materiais de vida. Pretende-se, portanto, demonstrar, com fundamento na extensa bibliografia nacional e internacional sobre o mundo do trabalho e, especificamente, sobre o movimento sindical, que os trabalhadores elaboram formas de resistência que resultam de uma análise racional das condições dadas e das possibilidades de realização de seus objetivos e expectativas pessoais ou coletivos, a partir da qual tomam decisões estratégicas que definem o rumo de sua própria história. Assim, trata-se de se acompanhar, tal como indica o seu título, as atitudes e comportamentos dos trabalhadores face às transformações do mundo do trabalho que tipificaram as últimas décadas do século XX e estão revolucionando as primeiras décadas deste século, graças à utilização da inteligência artificial, blockchain, big data e profusão de aplicativos para a satisfação de um sem número de necessidades sociais, com a finalidade de indicar que resultaram sempre de uma escolha racional alternativas existentes, definindo a configuração da estrutura social da qual são os sujeitos.
Palavras-chave: Atitudes e comportamentos políticos. Estratégias de ação política. Formas de resistência. Escolha racional.
Abstract
This article aims to demonstrate that political atitudes and behaviors, that is, the strategies of political action of workers to defend their interests and realize their expectations, express a clear understanding of the historical context in which new working conditions and new material conditions of life arise. It is intended, therefore, to demonstrate that workers develop forms of resistance that result from a rational analysis of the given conditions and the possibilities of achieving their personal or collective objectives and expectations, from which they make strategic decisions that define the course of theis own history. Thus, it is a question of accompanying, as its title indicate, the atitudes and behaviors of workers in the face of the transformations of the world of work that typified the last decades of the twentieth century and are revolutionizing the first decades of this century, thanks to the use of artificial intelligence, blockchain, big data and the profusion of applications to satisfy a number of social needs, in order to indicate that they resulted from a rational choice of existing alternatives, defining the configuration of the social structure of which the subjects are.
Keywords: Political attitudes and bevahiors. Interests and expectations of workers. Forms of resistance. Rational choice.
Introdução
A análise do tema proposto parte do pressuposto de que as transformações das condições objetivas de trabalho e das condições materiais de vida dos trabalhadores, como também as transformações mundiais, alteram as percepções subjetivas da realidade vivida e fundamentam, em decorrência, novos comportamentos políticos, isto é, novas estratégias de ação política. Por isso, pretende-se acompanhar a introdução de novas tecnologias e de novas técnicas de gerenciamento do processo de trabalho que revolucionam as formas de organização da produção e da prestação de serviços e fazem surgir novas formas, individuais e coletivas, de resistência dos trabalhadores, para compreendê-las como fruto do estabelecimento das devidas conexões entre condições objetivas de trabalho e perspectivas de realização dos interesses individuais e coletivos que perseguem.
No entanto não se abraça aqui a tese do determinismo tecnológico. Ao contrário. O simples fato de se querer conhecer as formas de resistência do trabalhador frente as novas condições de trabalho já é o bastante para reafirmar que a tecnologia não é neutra e, portanto, a base material do capitalismo é capitalista. A intenção deste estudo é, pois, a de considerar determinadas condições tecnológicas como uma das variáveis mais importantes na determinação do comportamento político dos trabalhadores, dentro e fora das unidades produtivas, exatamente pelo fato de se constituírem no fator mais imediatamente perceptível pelo trabalhador para a identificação do grau de intensidade do poder de resistência que detém em suas mãos e, daí, no fator decisivo do modo de elaboração de suas práticas reivindicativas e do significado mesmo de sua condição social.
Uma outra preocupação deste estudo é a de abordar o desenvolvimento tecnológico e as técnicas de gerenciamento do processo de trabalho, o modo de sua utilização no processo produtivo e da prestação de serviços, isto é, a organização do trabalho, as formas de gestão da força de trabalho e as formas de resistência dos trabalhadores, tal como as demais variáveis que entram na determinação da totalidade do social, como resultado de uma escolha pensada e efetivada pelos sujeitos históricos dentre o conjunto de alternativas que o processo histórico, fruto de estruturas de escolhas anteriores e estrutura de escolhas futuras, a cada momento torna possíveis.
Assim, a configuração do interior das unidades de trabalho e a orientação política dos movimentos sindicais serão tratados como resultado de decisões elaboradas a partir do desenvolvimento de uma análise racional das condições dadas e das possibilidades, nessas condições, de realização dos interesses das partes envolvidas. Com isso, pretende-se afastar da análise todos os tipos de determinismos que têm obstaculizado a compreensão da história, ao fornecer explicações que imputam a entidades abstratas – a estrutura, o capital, a tecnologia – a sua produção, impossibilitando a identificação de seus sujeitos.
E, no entanto, este é um fato inelutável: indivíduos, seres humanos, pessoas, com suas motivações, interesses, preferências, crenças, atitudes e comportamentos são os produtores da história. Produzem-na, é verdade, em condições dadas: nas condições produzidas e legadas por outros indivíduos, a partir das quais deliberam acerca de suas próprias vidas, criando novas condições de acordo com as escolhas de alternativas que puderam efetivar. Esquecer desse “detalhe” significa sobrepor a investigação e o conhecimento das necessidades ou imperativos da estrutura das condições objetivas à investigação e conhecimento das ações dos homens na estrutura, por eles mesmos produzida e, em consequência, para parafrasear Thompson, enveredar-se “num planetário de erros” – como indica o título de seu trabalho “A miséria da teoria ou um planetário de erros”, de 1978 –, dentre eles o determinismo tecnológico inerente ao determinismo econômico e a todos os tipos de reducionismo.
Isso tudo significa que neste estudo a apresentação das formas de resistência dos trabalhadores às condições de trabalho e de vida tem como fundamento o esquema teórico desenvolvido por Olson, Cohen, Elster, Roemer, Adam Przeworski e que se convencionou denominar de individualismo metodológico ou marxismo analítico. Pelos seus pressupostos, o marxismo analítico ou individualismo metodológico permite estabelecer as relações entre estrutura e sujeito na história e sociedade humana e, em especial, permite demonstrar que a parceria ou colaboração capital/trabalho, impensável segundo o esquema teórico marxista, a não ser como fruto do processo de imposição da ideologia da classe dominante e, portanto, como alienação, é resultado de decisões estratégicas de ambas as partes na busca da realização de seus interesses e aspirações enquanto indivíduos e enquanto grupos de interesses, apesar de, no limite, esses interesses coincidirem, após uma avaliação racional das alternativas de escolhas de comportamento nas condições dadas.
As relações sociais estabelecem estruturas de escolhas segundo as quais as pessoas percebem, avaliam e agem. As pessoas consentem quando escolhem determinadas linhas de ação e quando seguem na prática essas escolhas. Os assalariados dão seu consentimento à organização capitalista da sociedade quando agem como se fossem capazes de melhorar suas condições materiais dentro dos limites do capitalismo. Mais especificamente, consentem quando agem coletivamente como se o capitalismo fosse um jogo de soma positiva, ou seja, quando cooperam com os capitalistas ao escolher suas estratégias (PRZEWORSKI, 1989, p. 175).
Em outras palavras, a estrutura social se mantém se puder oferecer às pessoas, enquanto indivíduos e enquanto membros de vários grupos, alguma garantia de que seus interesses, pelo menos parcialmente, serão realizados, o que implica afirmar que o consentimento e a colaboração são sempre provisórios porque a avaliação racional das condições dadas em função das possibilidades de realização de interesses é permanente.
Assim, as decisões são estratégias de ação política de cujos resultados não só dependem a realização dos objetivos e expectativas pessoais ou coletivos dos trabalhadores, como também a configuração da estrutura social da qual são os sujeitos. Isto é: esta perspectiva de análise enfatiza a capacidade de os indivíduos procederem a escolhas racionais dentre as alternativas oferecidas pelas condições dadas, do mesmo modo produzidas pelas gerações anteriores, de acordo com a “experiência”, no sentido de Thompson, que dela tem e da qual nascem as suas crenças, motivações e interesses por cuja realização se luta na história. Lembre-se que para Thompson (1978, p. 15),
...experiência – uma categoria que, por mais imperfeita que seja, é indispensável ao historiador, já que compreende a resposta mental e emocional, seja de um indivíduo ou de um grupo social, a muitos acontecimentos inter-relacionados ou a muitas repetições do mesmo tipo de acontecimento.
Transformações na organização do processo de trabalho
e movimento sindical nos países industrializados do Ocidente
Os sindicatos só puderam garantir a sua existência institucionalizada como organizações livres e soberanas de representação dos interesses, tanto da classe trabalhadora quanto da classe patronal, nas democracias políticas da Europa, apenas na segunda metade do século XIX. São frutos da consolidação do modo de produção capitalista do qual emerge o conflito de classes, e do Estado Moderno, que se fundamenta na igualdade jurídica de seus cidadãos, na liberdade de expressão e na liberdade de associação para a representação de seus interesses, seja em sindicatos, seja em partidos políticos, que disputam o poder e garantem a sua alternância.
Os sindicatos do século XIX nasceram revolucionários, pois lutavam pelo fim da propriedade privada dos meios de produção, ou seja, contra o regime de produção capitalista e, em consequência, para libertar os trabalhadores dos grilhões da economia de mercado, isto é, da exploração do trabalho pela extração da mais-valia. Nasceram, portanto, com orientação ideológica socialista e comunista, como organizações espontaneamente criadas e sustentadas por seus filiados.
Na Europa, os primeiros sindicatos eram constituídos de trabalhadores profissionalmente qualificados, ex-artesãos, que perderam a propriedade de seus instrumentos de trabalho e dos frutos de seu trabalho e tornaram-se assalariados das grandes oficinas. Eram marceneiros, pedreiros, pintores etc. e fundaram os sindicatos de ofício com grande poder de barganha, pois detinham o controle do processo de trabalho em seus locais de trabalho.
Trabalhadores não qualificados ou semiqualificados pertenciam aos sindicatos formados por setor de produção, isto é, por ramo industrial, dando origem ao sindicalismo de indústria. Na Inglaterra, trabalhadores não qualificados filiavam-se aos sindicatos gerais que agrupavam várias profissões ou ramos industriais e que, segundo Eric Hobsbawn (1964, p. 179),
preencheram, às vezes simultaneamente, três funções bastante diferentes: como “sindicatos de classe” (class-unions), tentaram unir todos os empregados contra os empregadores, geralmente sob inspiração socialista ou revolucionária. Como “sindicatos de trabalhadores não qualificados” (labourers unions) tentaram oferecer uma efetiva organização para trabalhadores sem condições de integrar o sindicalismo de ofício ortodoxo, ou dele excluídos. Como “sindicatos residuais” (residual unions), finalmente, organizaram trabalhadores não efetivamente cobertos por outros sindicatos.
Já na segunda metade do século XIX, os movimentos sindicais dos trabalhadores obtiveram como conquista fundamental a promulgação da legislação trabalhista em vários países europeus para a regulamentação das relações de trabalho, graças à pressão sobre o Estado e sobre a classe patronal, com total apoio da Igreja Católica Apostólica Romana, por meio da publicação da encíclica Rerum Novaram do Papa Leão XIII. Considere-se a força política da classe trabalhadora, na época constituída por milhares e milhares de operários com autonomia profissional, exercendo controle sobre o processo de trabalho e, por isso, responsáveis pelo sucesso ou fracasso de qualquer empreendimento, pois a produção ainda era deles dependente pelo “saber fazer” que monopolizavam. Contestando as condições de trabalho, de salário e de vida, sua orientação política era, de fato, revolucionária, pois lutavam pela reapropriação dos meios de produção sob a influência das ideias marxistas, socialistas e anarquistas. A legislação trabalhista veio conter a agitação política do sindicalismo industrial que se sobrepôs, graças evidentemente ao desenvolvimento industrial, ao sindicalismo de ofício em importância política e numérica, tornando-se um sindicalismo de massas.
No início do século XX, os sindicatos industriais uniram-se a ou fundaram partidos políticos numa clara demonstração de que aceitavam participar do jogo político de acordo com as regras da democracia burguesa que tanto haviam condenado. Vislumbraram na participação das eleições a melhoria de suas condições de vida pela melhoria de suas condições objetivas de trabalho. Por isso, apresentaram reivindicações para obter estabilidade no emprego, aumentos salariais e melhores condições de trabalho. Compreenderam desde logo que a vitória imediata dos movimentos sindicais depende da participação e do envolvimento com a vida política mais ampla e, por essa razão, ao longo do século XX, optaram pela participação na política eleitoral, optando, portanto, pela aceitação das regras do jogo estabelecidas pelas instituições políticas democráticas, organizando-se em partidos social-democratas.
Tratava-se, como ensina Adam Przeworski, “ de ocupar-se da melhora imediata das condições dos trabalhadores” (1989, p. 30), como estratégia elaborada por suas lideranças sindicais e políticas para aglutinar sempre mais trabalhadores em torno dos ideais socialistas aos quais a grande maioria tinha aderido, enquanto perduravam aquelas condições inviabilizadoras da promoção de seus interesses imediatos, isto é, que a eles aderiram como promessa ou possibilidade única de promoção de seus interesses. A intenção dessas lideranças era lutar pelo socialismo; a estratégia de luta, a participação no jogo político institucionalizado e o abandono, em consequência, de ações revolucionárias. Acreditou-se, assim, que a participação no jogo político estabelecido seria a arma mais eficiente para a concretização daqueles ideais.
No entanto as lideranças sindicais e políticas dos trabalhadores não conseguiram prever com exatidão a extensão dos resultados da estratégia elaborada e empregada. Se, de um lado, o resultado foi, de fato, a melhoria imediata das condições de vida dos trabalhadores, tal como se esperava, de outro lado, esse mesmo resultado produziu outro não esperado e muito menos desejado, qual seja, o do abandono gradativo, porém constante, dos ideais socialistas pelo conjunto dos trabalhadores, o que de certa forma demonstra, tal como já o havia demonstrado, na década de 60, o trabalho de Goldthorpe e Lockwood, (1968) o caráter de “coletivismo instrumental” da vida sindical: o ideal de transformação social é abandonado em benefício de objetivos limitados às melhorias nas condições materiais imediatas de vida.
E isso porque, participando da vida política em todas as instâncias do poder, a classe trabalhadora dos países industrializados da Europa conquistou, ao longo do século XX, mais e mais direitos pela via da negociação, muito além daqueles previstos nas primeiras legislações trabalhistas, que lhe permitiram desfrutar de uma sensível elevação de seus níveis de vida graças ao ingresso na sociedade de consumo de massa.
Aparentemente paradoxal, é o fato de que a conquista de mais e mais direitos foi obtida durante as sete décadas da predominância do taylorismo/fordismo como formas de organização do processo de trabalho, responsáveis pela desprofissionalização da grande massa de trabalhadores, agora trabalhadores especializados na execução de uma ou mais tarefas simplificadas, repetitivas e insignificantes, pensadas pela gerência científica, inclusive nos gestos e movimentos necessários para realizá-las bem e rapidamente.
A desprofissionalização, isto é, a especialização, conduz inexoravelmente à perda da noção da totalidade do processo de produção e da prestação de serviços e compromete a capacidade de compreensão do significado do próprio trabalho. É causa de profunda insatisfação e profundo sentimento de frustração por impossibilitar a realização das potencialidades intelectuais e a satisfação das necessidades de autoestima e autorrealização, raiz da tendência ao absenteísmo, desperdício de material, negligência, acidentes de trabalho, turnover (rodízio de pessoal), alcoolismo, drogas, stress, Ler (lesão por esforço repetitivo, fadiga constante etc. Em outras palavras, a desprofissionalização significa a degradação do trabalho por significar a monopolização do saber pela gerência científica, cujo programa, nas palavras de Benjamin Coriat:
{...} se define pela análise do obstáculo que vence: trata-se nada menos que de expropriar aos trabalhadores seu saber {...) não se trata somente de expropriar aos trabalhadores seu saber, senão também de confiscar este saber recolhido e sistematizado – em benefício exclusivo do capital {...} o que aqui se instaura maciçamente é a separação entre trabalho de concepção e de execução, um dos momentos-chave da separação entre trabalho manual e intelectual (CORIAT, 1976, p. 94).
A monopolização do saber pela gerência científica reduz o poder de barganha da classe trabalhadora, agora, na sua grande maioria, simples apêndice da máquina, sem qualquer controle sobre o processo de trabalho, mera cumpridora de ordens emitidas pela gerência científica, cujos membros, sem escolaridade e sem qualificação profissional, eram substituídos com muita facilidade.
Nessas condições, como reagir? Afirmar que a classe trabalhadora assiste passivamente ao seu próprio massacre é desconhecer as suas práticas reativas efetivas ou propositadamente desvirtuar a história, como alguns autores:
A tecnologia capitalista e a divisão capitalista do trabalho não se desenvolveram, portanto, em razão de sua eficácia produtiva, considerada em si mesma, mas em razão de sua eficácia no contexto do trabalho alienado e forçado, isto é, de um trabalho sujeito a um fim que lhe é estranho. As técnicas capitalistas não visavam maximizar a produção e a produtividade em geral de quaisquer trabalhadores, foram concebidas para maximizar a produtividade para o capital de trabalhadores que não tinham nenhuma razão para colaborar nisso, dados os fins de sua produção lhes serem ditados por uma vontade inimiga. Para os obrigar a vergar-se a esta vontade, era preciso que perdessem não apenas a propriedade dos meios de produção, mas também, em toda a medida do possível, o controle do funcionamento desses meios; isto é, o poder – feito de habilidade, de conhecimentos profissionais, de savoir faire – de assegurar o funcionamento das máquinas por si próprios, sem o concurso de um enquadramento hierárquico composto de engenheiros, de técnicos, de profissionais de manutenção, de preparadores, etc., de todo um gênero de pessoas que, tecnicamente, a fábrica poderia dispensar, mas cuja função política é perpetuar a dependência dos operários, a sua subordinação, a sua separação dos meios e do processo de produção (GORZ et al., 1973, p. 89-90).
Assim, manipulados e “vergados à vontade inimiga do capital” – essa entidade abstrata e, por isso mesmo, todo poderosa – os trabalhadores, segundo aquelas interpretações, estariam submetidos passivamente aos seus imperativos implacáveis e ele, o capital, iria impondo os seus desígnios sem encontrar empecilho ou resistência inteligente para arrefecer-lhe a fúria. Apesar de serem capazes de reconhecer que “não tinham nenhuma razão para colaborar nisso”, seriam incapazes de agir porque, de fato, teriam se tornado marionetes da história à espera de redenção eterna pelas mesmas condições objetivas estruturais que os subjuga.
E isso não é verdade. Basta acompanhar a história dos movimentos operários para negar o poder das determinações estruturais na configuração das unidades de trabalho, e logo se compreenderá que os trabalhadores jamais se submeteram passivamente aos imperativos da organização do processo de trabalho tal como desejaria o capital. Reagem e reagem rápida, inteligente e eficazmente a todas as situações e condições de trabalho que contrariem seus interesses imediatos, obrigando a que se proceda a um conjunto de modificações no interior das unidades de trabalho que atendam, pelo menos parcialmente, aos seus interesses, como resposta ao enfrentamento permanente e manifesto entre capital e trabalho, do qual nem sempre se impõe a vontade inimiga do capital. Ao contrário. O capital se vê obrigado a fazer concessões se quiser obter o consentimento e, daí, a colaboração necessária do trabalhador. E a natureza dessas concessões dependerá da interveniência maior ou menor de outros fatores, além do confronto permanente e direto entre capital e trabalho no interior das unidades de produção e de prestação de serviços, mas certamente concessões serão feitas.
Exemplos significativos do poder permanente dos trabalhadores se revelam nas alterações das relações entre chefias, supervisores e trabalhadores do chão de fábrica e do chão dos escritórios que perderam o conteúdo autoritário; nas mudanças das condições de trabalho que lhes favoreceram na realização do trabalho (ritmo de trabalho, segurança, higiene, poluição); no estabelecimento de benefícios aos empregados (seguros de vida, plano de financiamento e convênios médico-odontológicos, nos programas de alimentação e transportes); na definição de um quadro de carreira que garanta promoções, etc. em todos os países industrializados do Ocidente, inclusive no Brasil. Considerem-se também as práticas mais contundentes de resistência dos trabalhadores às condições objetivas de trabalho: o absenteísmo, o turnover, a negligência, o desperdício de material, os acidentes de trabalho, a sindicalização em massa, etc. etc., e, evidentemente, as comissões de trabalhadores – comissões de fábrica e comissões de funcionários dos escritórios – expressão do movimento mais amplo de resistência dos trabalhadores que permite a representação e a defesa efetiva dos interesses dos trabalhadores no seu dia a dia de trabalho, superando as intervenções sindicais.
As reivindicações apresentadas nessas comissões expressam o modo de elaboração da percepção e do desenvolvimento da compreensão da própria condição assalariada, num processo, já denominado por Thompson (1978), de “autoconfecção” de formação de classe por considerar a subjetividade do trabalhador como elemento decisivo na determinação de suas práticas. Além disso, as comissões de fábrica e dos trabalhadores de escritório são capazes de resolver parte substantiva dos problemas cotidianos dos trabalhadores e, ao mesmo tempo, indicar para a direção das empresas os problemas humanos que afetam a produção e a prestação de serviços. Por isso, confirmam a tese segundo a qual a configuração do interior das unidades de trabalho é, de fato, fruto dos ajustamentos e rearranjos decorrentes do enfrentamento entre as partes, isto é, de um consentimento sem o qual o processo de submissão do trabalho ao capital não pode se efetivar, a não ser que se parta do pressuposto da total incapacidade de raciocínio e de ação racional dos trabalhadores na defesa de seus interesses, o que é absolutamente inimaginável e negado pelo processo histórico.
Assim, e apesar da degradação da qualidade do trabalho provocada pelo taylorismo/fordismo, essas formas de organização do processo de trabalho fizeram surgir novas formas de resistência dos trabalhadores, além da greve, e assistiram ao fortalecimento dos sindicatos – devido à enorme quantidade de empregos que geraram –à elevação dos salários diretos e indiretos, graças à conquista de muitos benefícios sociais, e à melhoria das condições materiais de trabalho e de vida da maioria dos trabalhadores, agora não só produtores, mas também consumidores na economia de produção padronizada em massa.
A reestruturação produtiva dos anos 70 e 80 e a resistência dos trabalhadores
As tecnologias da informação, conjugadas às novas técnicas gerenciais do processo de trabalho, transformaram o interior das fábricas e dos escritórios, imprimindo-lhes uma nova face e deram origem a uma nova forma de organização do trabalho denominada toyotismo, pois foi elaborada e implementada por Eiji Toyoda e Taiichi Ohno, no Japão. Suas principais características são:
- Redução das dimensões físicas das unidades empresariais em virtude não só do desenvolvimento do processo de terceirização da produção, isto é, da formação de redes empresariais, como também da adoção dos métodos japoneses de organização do interior das unidades produtivas para maior racionalização na utilização dos recursos e, sobretudo, para o rígido controle dos estoques que deu origem ao método just-in-time ou produção sem estoques;
- Diminuição da estrutura de autoridade hierárquica com o surgimento de equipes multifuncionais, com versatilidade em várias tarefas e compreensão da totalidade do processo de produção com autonomia para a tomada de decisões operacionais;
- Redução dos postos de trabalho, já que a nova lógica organizacional se fundamenta nas tecnologias de informação de base microeletrônica e, portanto, nos princípios de integração e supervisão de todo o sistema de produção;
- Controle de qualidade a cada etapa do processo produtivo para se chegar ao controle da qualidade total, com zero de defeitos e drástica redução do desperdício;
- Fim, portanto, da execução de tarefas parcelares, simplificadas e repetitivas, exigindo-se dos trabalhadores capacidade de compreensão da totalidade do processo de trabalho, versatilidade em várias tarefas, rápida adaptação às inovações e precisão na tomada de decisões, uma vez que os novos princípios de gestão enfatizam o processo e não a estrutura e a função;
- Forte envolvimento de todos os trabalhadores em todas as etapas do processo de trabalho, tendendo a permitir o fim da total dissociação entre gerência científica e o chão de fábrica e do escritório que caracterizou as formas taylorista e fordista de organização do trabalho;
- Adoção do princípio de aperfeiçoamento contínuo do processo (kaizen, palavra japonesa que significa aperfeiçoamento contínuo), encorajando, assim, os trabalhadores ao desenvolvimento e à utilização de suas potencialidades, isto é, inteligência, criatividade, espírito crítico e iniciativa, em todas as etapas da produção e/ou da prestação de serviços. Assim, foi possível vislumbrar-se aí o início de um novo processo, o da reumanização do trabalho, degradado pela universalização do taylorismo e fordismo no século XX. Os círculos de controle da qualidade, conhecidos como “CCQS”, nos quais se discutem melhorias no processo de produção, são a expressão mais significativa desse princípio;
- Produção orientada pela demanda, ao contrário da produção padronizada em massa do fordismo, o que implica conhecimento das tendências do mercado para atender o consumidor que exige variedade e diversificação na oferta de produtos e serviços. Por isso, a necessidade de produzir uma diversidade de produtos em pequenos lotes e o sistema just-in-time/kanban. (LAZZARESCHI, 2008, p.101-102)
No contexto da globalização da economia, cuja consequência imediata é o recrudescimento da competição entre empresas, regiões e países, a reestruturação produtiva se impõe como fator importante para o seu enfrentamento e suas implicações sociais atingem todos os trabalhadores sem distinção, pelas seguintes razões:
- Esgotamento relativo do paradigma taylorista/fordista por sua comprovada ineficiência produtiva, isto é, por sua rigidez tecnológica e organizacional que inviabiliza a inovação de produtos com sua produção padronizada em massa;
- Instabilidade dos mercados, cuja consequência era a necessária adaptação da produção ao dinamismo da demanda, agora assentada na exigência de qualidade dos produtos e nos humores dos consumidores, o que, em parte, define as conjunturas econômicas, nacionais e internacionais;
- Aparecimento de novos padrões de consumo a exigir inovação de produtos;
- Redução considerável dos postos de trabalho, como acima já indicado, que resulta do rígido controle dos procedimentos operacionais para a eliminação de unidades repetitivas ou ineficientes;
- Desestruturação dos mercados de trabalho com a terceirização nacional e internacional da produção e da prestação de serviços, como, por exemplo, os serviços de informática;
- Desenvolvimento do sentimento de insegurança dos trabalhadores, continuamente ameaçados de desemprego seja pelas inovações tecnológicas, seja pelas novas técnicas de gerenciamento do processo de trabalho que dão origem à regulamentação de novas e precárias relações de trabalho, como o trabalho em regime de tempo parcial, o contrato temporário de trabalho, a terceirização, o contrato de prestação de serviços, o banco de horas, o trabalho em domicílio, seja pelas conjunturas econômicas nacionais e internacionais:
- Concentração do poder sem centralização do poder, tal como se refere Sennet (1999, p. 64) sobre a fragmentação do processo de trabalho com a formação de redes empresariais sob o comando estrito concentrado na grande corporação que decide não só o quê, como, quando, quanto e onde produzir, mas também fixa metas de produção de difícil cumprimento, cuja consequência é a intensificação do trabalho nas empresas dependentes da sua substituição na rede;
- Exigência de novos saberes, quase sempre adquiridos nos bancos escolares, e de qualidades intelectuais, mentais, culturais, sociomotivacionais da pessoa do trabalhador para lhe permitirem a compreensão da totalidade do processo de trabalho, a versatilidade em várias tarefas, a capacidade de tomar decisões rápidas e corretas e a participação em equipes multifuncionais.
Essa nova lógica organizacional tornou muito mais difíceis as condições de trabalho e, sobretudo, dos mercados de trabalho que, por suas imposições, fizeram surgir o conceito de empregabilidade para referir-se à capacidade de candidatar-se a um emprego ou à capacidade de manter-se empregado, dadas as frequentes transformações do mundo do trabalho a exigir sempre novas competências profissionais.
Nessas condições, os sindicatos perdem poder de barganha, que se expressa na qualidade dos acordos trabalhistas e níveis salariais conquistados. As reivindicações que apresentavam, na verdade, reduziram-se a uma só: a defesa do emprego. De combativos ao longo do século passado, organizando movimentos grevistas de confronto aberto ao capital, com os quais reivindicavam aumentos salariais, diminuição da jornada de trabalho, aposentadoria plena, participação efetiva na elaboração de políticas públicas para a melhoria das condições de trabalho e de vida de todos os trabalhadores, os sindicatos passaram a adotar uma nova orientação: a da negociação permanente seja entre empresa e empresa, seja por setor, seja articulada entre governo x sindicato x empresários na tentativa de garantir alguma estabilidade dos empregos.
Leôncio Martins Rodrigues (1999) e José Pastore (1994) chamaram a nossa atenção sobre as razões das transformações do sindicalismo na Europa e nos Estados Unidos e apontaram os mesmos fatos: 1º) o declínio da densidade sindical; 2º) o enfraquecimento do poder dos sindicatos; 3º) a descentralização da negociação e flexibilização das relações de trabalho, isto é, na contratação, descontratação e remuneração da força de trabalho; 4º) o fortalecimento das negociações na empresa, como expressões das formas de adaptação às novas condições impostas pela globalização da economia e, fundamentalmente, pela competição.
Assim, o processo de modernização tecnológica e organizacional das empresas afetava a orientação política dos sindicatos e provocava mudanças muito significativas no comportamento, discurso e reivindicações dos trabalhadores remanescentes nas unidades de trabalho. Os trabalhadores compreenderam que a sua sobrevivência no emprego dependia da sobrevivência das empresas onde trabalhavam, cujo sucesso estava inextrincavelmente ligado aos altos índices de produtividade e qualidade dos produtos. E, da mesma maneira, as empresas compreenderam que a sua sobrevivência dependia do tipo de parceria que estabelecesse com o trabalhador, o que significava permitir a participação não só nas decisões operacionais como também nos lucros obtidos pelo aumento de produtividade, a partir da fixação, em conjunto, das metas a se realizar, além da adoção do sistema formal de remuneração variável que, como o próprio nome o indica, vincula o montante da remuneração à produtividade das equipes de trabalho.
Remuneração variável e participação nos lucros alteram as relações de trabalho e rompem a relação salarial, isto é, “o conjunto das condições jurídicas e institucionais que regem o uso do trabalho assalariado, como também a reprodução da existência dos trabalhadores” (BOYER, 1986, p. 18), justificando, em parte, a flexibilização e/ou desregulamentação dos mercados de trabalho. A relação salarial, desse modo, passou a se estabelecer com a capacidade de produção das empresas determinada pela tecnologia empregada; a eficiência do conjunto de seus trabalhadores; a qualidade do produto; a competência para a inovação dos processos e dos produtos e, sobretudo, a capacidade de administração dos negócios que, juntos, definem a capacidade de competir no mercado nacional e internacional e, em decorrência, a obtenção de lucros, garantindo, ao mesmo tempo, a manutenção do emprego e a elevação dos salários ou a participação nos lucros, que supõe o desenvolvimento de novas estruturas organizacionais e de gestão do pessoal.
Ora, a participação nos lucros interessava, como sempre interessa, tanto à empresa quanto aos trabalhadores. Para a empresa, significa garantir o esforço dos trabalhadores para atingir as metas estabelecidas, evitando paralisações, greves ou produção defeituosa por negligência ou irresponsabilidade. Significa também desmobilizar o movimento sindical, na medida em que os interesses dos trabalhadores, agora parceiros ou sócios do capital, estariam interligados aos interesses de sua empresa e sua realização não mais dependeria das conquistas dos trabalhadores do seu setor ou dos trabalhadores em seu conjunto. Em consequência, o movimento sindical perde importância para esses trabalhadores ou deixa de ter sentido como estratégia para a promoção de seus interesses econômicos imediatos, pessoais ou coletivos.
E dessa compreensão surgia uma nova tendência: a integração do trabalhador à empresa, num processo de explícita colaboração entre as partes. Apesar do reconhecimento da importância das novas tecnologias na sua determinação, há de se tratá-la como resultado de um conjunto de fatores econômicos, políticos, sociais e culturais interligados e, sobretudo, como fruto de ações estratégicas nas condições dadas, cujas consequências atingiram em cheio o coração da vida sindical.
As novas relações de trabalho estão conduzindo os sindicatos a uma encruzilhada. A globalização e as modernas tecnologias levam as empresas a atraírem seus empregados para bem junto de si, remunerando-os por produção, qualidade e comprometimento. Afinal, os trabalhadores têm de participar ativamente dos processos produtivos para ajudar as empresas a vencerem a competição. Nesse sentido, as empresas acabam competindo com os sindicatos, passando a prestar os serviços que os empregados, até então, iam buscar no sindicato. O sindicato moderno está à procura de um novo rumo. Afinal, os métodos de produzir mudaram radicalmente. As empresas estão sendo forçadas a lançar produtos novos com muita velocidade. Há cinco anos, uma novidade industrial (enquanto novidade), durava dois anos. Em 1993 durava apenas seis meses. No campo da eletrônica, seis semanas (WEF, 1992). O ritmo de criação e de obsolescência é frenético. Vencer, nesse ambiente, exige muito mais diálogo do que confrontação (Keckscher, 1988); muito mais flexibilidade do que rigidez; mais aproximação do que distanciamento. Tudo isso tem fortes implicações para o tipo de sindicalismo do próximo século (PASTORE, 1992, p. 51).
Assim, e apesar da legislação em vigor, teve início, também no Brasil, o desenvolvimento das negociações diretas, pela via de acordos e convenções coletivas, num prenúncio da flexibilização do mercado e das relações de trabalho, ainda sob a proteção e o patrocínio do Estado. A relação de confrontação foi substituída pela efetivação de um compromisso de responsabilidade mútua que resulta das novas formas de administração das empresas que, por sua vez, sugerem o envolvimento estreito de todos os seus trabalhadores na árdua tarefa de garantir-lhes a sobrevivência, a partir da liberação de informações sobre o seu desempenho, a sua situação de mercado, os seus planos futuros, etc.
No interior das empresas, os trabalhadores remanescentes logo perceberam que os limites de seu poder foram ampliados comparativamente à fase taylorista e fordista de organização do processo de trabalho, pois compreenderam que as empresas haviam se tornado muito mais dependentes do que nunca foram da estreita colaboração de seus trabalhadores. E para manter essa colaboração, evitando-se o absenteísmo, o turnover, a negligência, a irresponsabilidade consciente ou inconsciente, as empresas se viram obrigadas a fazer concessões. E passaram a oferecer altos salários, formação profissional, promoções no quadro de carreira, benefícios sociais que correspondiam a verdadeiros salários, como bolsa-educação, fundo de pensão, clube esportivo, colônia de férias, programas de qualidade de vida no trabalho, além de se anteciparem às reivindicações de seus trabalhadores. Ressalte-se também o fato de que trabalhadores mais capacitados tendem a negociar individualmente suas condições de trabalho e de salário, pois salários e benefícios coletivos padronizados não expressam o reconhecimento pela aquisição das novas competências profissionais, adquiridas e atualizadas sobretudo nos bancos escolares e nos cursos de formação sempre mais sofisticados.
São muito os autores que compartilham dessas análises sobre o comportamento sindical dos trabalhadores na atualidade e sobre as dificuldades dos sindicatos na manutenção de seu papel tradicional de representação e de defesa expressa de seus interesses.
Entre os fatores de debilitamento da solidariedade dos trabalhadores estão a dispersão da produção (às vezes por países diferentes e distantes), a redução da dimensão das unidades de fabricação e o aumento da produção em pequenas empresas; a maior mobilidade do capital internacional; a tendência em direção a acordos por empresas e locais de fabricação; a flexibilização da produção, das normas e regulamentos que regiam tarefas, hierarquias e carreiras dos empregados, a maior heterogeneidade da força de trabalho em virtude do aparecimento de novas profissões, da maior presença da mulher e dos imigrantes no conjunto da mão-de-obra. O resultado desses novos desenvolvimentos não é apenas o fim (ou o começo do fim) do velho modelo taylorista-fordista, mas também, como dificilmente poderia deixar de ser, da velha classe operária sobre a qual se apoiara o sindicalismo como fenômeno de massa (RODRIGUES, 1999, p. 177).
São afirmações que se repetem em numerosos outros textos, como, por exemplo, no volume I do livro de Manuel Castells (2011, p. 350) “A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura”, no artigo de Iram Jácome Rodrigues, “Sindicalismo, emprego e relações de trabalho na indústria automobilística” (1997) e no artigo a seguir:
Para onde foram os sindicatos? Esse é o tema proposto para esse dossiê. Nossa resposta à hipótese apresentada no início deste artigo é que as últimas décadas parecem empurrar o novo sindicalismo em direção a uma esdrúxula combinação, síntese de, ao menos, três movimentos: a velha prática peleguista, a forte herança estatista e a forte influência do ideário neoliberal (ou social-liberal), impulsionada, ainda, pelo culto da negociação e defesa do cidadão. Vale dizer que cada um destes elementos pode ter prevalência em diferentes conjunturas (ANTUNES; SILVA, 2015, p. 525).
A Quarta Revolução Tecnológica: a inteligência artificial e o movimento dos trabalhadores
O surgimento de novas formas de execução do trabalho em todos os setores da vida econômica – graças à utilização da inteligência artificial, blockchain, big data e profusão de aplicativos para a satisfação de um sem número de necessidades sociais –, inaugura a quarta revolução que dá origem a uma nova reestruturação produtiva e organizacional ao transformar radicalmente uma vez mais os mundos do trabalho no curto espaço de tempo de meio século, considerando-se o toyotismo como organização do processo de trabalho implementada a partir dos anos 70 e 80 do século passado e que hoje começa a ser ultrapassada devido ao desenvolvimento das tecnologias de informação, de comunicação e de inteligência.
Essa nova e verdadeira revolução na organização do processo de trabalho parece intensificar todas as consequências sociais da reestruturação produtiva dos anos 70 e 80 acima apontadas, tal como tem se apresentado nesta fase inicial de sua implementação nos países mais industrializados do mundo e mesmo aqui entre nós
Em 2017 e 2018, dois acontecimentos envolvendo os trabalhadores brasileiros chamaram a atenção de todos: o primeiro foi a aprovação da reforma da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT – em 13 de julho de 2017, sem que fossem registrados protestos da massa dos trabalhadores. Os protestos públicos contra a reforma da CLT contaram apenas com a presença dos partidos de esquerda e dos partidos de oposição ao governo federal, de todos os sindicatos e de todas as centrais sindicais, unidas naquele momento para a defesa da manutenção da contribuição sindical obrigatória, ameaçada pela reforma, e sem a qual fica comprometida a própria manutenção dos sindicatos e das centrais, uma vez que a grande maioria dos trabalhadores brasileiros não é sindicalizada e, portanto, não contribui espontaneamente para a manutenção dos sindicatos.
Além disso, a proposta de prevalência dos acordos coletivos sobre o legislado e a permissão para celebrar acordos individuais aos trabalhadores com curso superior e salário duas vezes maior que o teto do INSS – Instituto Nacional de Seguridade Social – reduziriam, de fato, o poder dos sindicatos, pois a partir da aprovação da reforma estaria definitivamente reconhecida a suficiência, isto é, a capacidade intelectual dos trabalhadores para lutar pela defesa de seus interesses individuais e coletivos pela via da negociação coletiva permanente.
A grande maioria dos trabalhadores brasileiros permaneceu à margem do processo de discussão do projeto de reforma, por ter compreendido que a reforma não lhes retirava direitos fundamentais e, ao mesmo tempo, apenas ampliava as suas possibilidades de contratação e de negociação direta com os empresários e, por isso, não se manifestou maciçamente como esperavam os líderes sindicais. Além disso, muitas propostas da reforma, como algumas das “novas” relações de trabalho, não eram mais novidade: estava de fato em vigor, graças à tendência de o negociado se sobrepor ao legislado desde a primeira década deste século. Aceitar a reforma foi a decisão estratégica dos trabalhadores brasileiros nas novas condições de trabalho.
O segundo fato que chamou a atenção de todos os brasileiros foi a rápida, eficaz, eficiente e direta mobilização dos caminhoneiros, em maio de 2018, sem a intervenção do sindicato. As tecnologias da informação, mais precisamente, o WhatsApp, isto é, esse poderoso meio de comunicação entre as pessoas, permitiu a mobilização dos caminhoneiros para uma greve que durou mais de dez dias e que só chegou ao fim com a celebração de um acordo muito vantajoso para essa categoria profissional. A greve demonstrou que os trabalhadores não são hipossuficientes e, por isso, podem dispensar a intermediação das lideranças sindicais, muitas vezes mais voltadas para a defesa de seus interesses pessoais do que para a defesa das diferentes categorias profissionais, sobretudo interessadas na manutenção da estrutura sindical brasileira que muito lhes favorece e que não foi estabelecida pelos próprios trabalhadores.
Esses dois marcantes acontecimentos demonstram que, dentre todas as transformações econômicas, políticas, sociais e culturais que tipificaram as últimas décadas do século passado e o início do século 21, a mais significativa para a classe trabalhadora brasileira refere-se, sem sombra de dúvida, ao seu acesso à educação escolarizada e aos meios de comunicação de massa, especialmente à mídia eletrônica, cuja consequência é, inevitavelmente, o desenvolvimento da consciência política para exigir participar livre e soberanamente da determinação dos rumos de sua própria história, sem a intermediação daqueles que nem sempre a defenderam como deveriam.
O ano de 2020 teve início com números muito significativos sobre a recuperação econômica do país, graças à política de ajuste fiscal, às reformas da CLT e da Previdência Social, e à pauta de continuidade de reformas prometidas pelo Congresso Nacional, principalmente a reforma tributária, que permitiram vislumbrar uma rápida e sustentada redução dos índices de desemprego com a expectativa fundamentada no sucesso das medidas econômicas em curso, cujas consequências seriam o aumento dos investimentos em todos os setores da economia, o apoio à pequena e média empresa, o incentivo ao empreendedorismo, a abertura da economia brasileira, a conquista de grandes mercados internacionais etc. etc.
No entanto a perspectiva de recuperação da economia brasileira durou apenas os dois primeiros meses do ano novo, pois os casos de contaminação social pelo novo coronavírus começaram a proliferar e provocaram a paralisação de quase todas as atividades, cujas consequências em todas as dimensões da vida social são de extraordinária gravidade: a queda do PIB em mais de 5%, a elevação dos índices de desemprego, a impossibilidade de obtenção de renda para milhões de trabalhadores informais, o enorme desajuste fiscal para subsidiar o orçamento ou economia de guerra, uma decisão necessária para garantir, pelo menos temporariamente, a sobrevivência do maior número.
Como planejar o futuro neste momento de cruel excepcionalidade para todos, sobretudo para milhares de famílias enlutadas e pais desesperados pela impossibilidade de manter o sustento de seus filhos? Passado o auge da pandemia, como enfrentarão os trabalhadores a trágica situação econômica, política, social por ela provocada? Segundo a perspectiva teórica que fundamenta este artigo, os trabalhadores brasileiros, como os trabalhadores do mundo inteiro atingidos pela crise sanitária, saberão, uma vez mais, tomar as rédeas do rumo da própria história com a escolha de alternativas que considerarem as melhores para si.
Considerações Finais
Procurou-se aqui compreender as atitudes e o comportamento dos trabalhadores face às mudanças do mundo do trabalho de uma perspectiva teórica que permitisse acompanhar a ação dos sujeitos da história não como meros reflexos das determinações estruturais ou ainda como simples manifestações, já previstas, de suas posições no processo de produção capitalista, mas como expressões da capacidade de homens e mulheres de tomarem decisões racionais, de acordo com os seus interesses e motivações, nas circunstâncias dadas, de modo a possibilitar o estabelecimento do nexo entre subjetividade/objetividade, isto é, entre consciência e ação.
As relações sociais constituem as estruturas com base nas quais os agentes, individuais e coletivos, deliberam sobre objetivos, percebem e avaliam alternativas e selecionam linhas de ação. Como corolário, repetirei {....} que as relações sociais devem ser, elas próprias consideradas um resultado historicamente dependente, para usar mais uma vez a frase de Marx, “das ações recíprocas dos homens.” Vale dizer, embora as relações sociais constituam uma estrutura de escolhas segundo a qual os agentes fazem sua opção, essa opção pode ser alterar as relações sociais. Estas não são independentes das ações humanas. Não é neste sentido que são “objetivas”. São objetivas, indispensáveis e independentes da vontade individual apenas no sentido de constituírem as condições sob as quais as pessoas lutam sobre transformar ou não suas condições (PRZEWORSKI, 1989, p. 118).
Assim, passou-se a compreender a estrutura social como resultado ou produto das ações dos sujeitos – homens e mulheres – na história, que a constroem a partir de um processo de avaliação racional das possibilidades existentes para a realização de seus interesses, isto é, que a constroem como estratégia. Ao mesmo tempo, compreende-se que a dramaticidade da condição humana nasce da experiência reveladora da própria incapacidade de prever a totalidade das consequências das escolhas efetivadas e da capacidade de errar na avaliação das consequências previstas. Fazer história significa, portanto, ter de enfrentar desafios inevitáveis à inteligência.
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Recebido em 03/05/2020
Aceito em 30/09/2020
1* Bacharela e licenciada em Ciências Sociais pela USP; mestra em Ciências Sociais do Trabalho pelo Institut Supérieur du Travail da Université Catholique de Louvain, Bélgica; doutora em Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp; profa. da Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. E-mail: acyr.noemia@terra.com.br
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 53, Junho/Dezembro de 2020, p. 145-161
YOUNG WORKERS IN FLEXIBLE CAPITALISM:
the Brazilian civil aviation experience
JOVENS TRABALHADORES NO CAPITALISMO FLEXÍVEL:
a experiência da aviação civil brasileira
____________________________________
Fernando Ramalho Martins1*
Daniel Wintersberger2**
Aline Suelen Pires3*
Abstract
In this article, we analyse the use of young workers to promote new patterns of work utilisation, illustrating the discussion with an example from Brazilian civil aviation. Data were collected in Brazil during a PhD research. Here we are going to focus on the qualitative element of the study, which draws on 52 interviews with airline and airport workers from a legacy airline (TAM), three low fares companies (GOL, Azul and Webjet) and agencies that provide ground handling services (Swissport and Aero-Park), complemented by three focus groups with a total of 16 workers from low-cost airlines (GOL, Azul, Webjet, Trip). Participants were sampled through local trade union representatives at major airports in São Paulo (Guarulhos and Campinas) and Rio de Janeiro (Galeão and Santos Dumont). Our data shed light on a very dynamic sector that has been making intensive use of a young labour force during a moment of renovation of its competitors, including the low-cost airlines. Thus, our results dwell on the importance of young workers in the implementation of new patterns of labour utilization.
Keywords: Young workers. Flexible capitalism. Civil aviation. Low-cost airlines.
Resumo
Neste artigo, analisamos a utilização de uma força de trabalho jovem para promover novos padrões de trabalho, ilustrando a discussão com um exemplo da aviação civil brasileira. Os dados foram coletados no Brasil durante uma pesquisa de doutorado. Aqui, focaremos o elemento qualitativo do estudo, que se baseia em 52 entrevistas com funcionários de companhias aéreas e aeroportos de uma companhia aérea herdada (TAM), três empresas de tarifas baixas (GOL, Azul e Webjet) e agências que prestam serviços de assistência em escala (Swissport e Aero-Park), complementadas por três grupos focais, com um total de 16 funcionários de companhias aéreas de baixo custo (GOL, Azul, Webjet, Trip). Os participantes foram indicados por representantes sindicais locais dos principais aeroportos do país: São Paulo (Guarulhos e Campinas) e Rio de Janeiro (Galeão e Santos Dumont). Nossos dados lançam luz sobre um setor muito dinâmico que utiliza intensivamente uma força de trabalho jovem durante um momento de renovação de seus concorrentes, incluindo as companhias aéreas de baixo custo. Assim, os resultados desta pesquisa ressaltam a relação entre os jovens trabalhadores na implementação de novos padrões de utilização da força de trabalho.
Palavras-chaves: Jovens trabalhadores. Capitalismo flexível. Aviação civil. Empresas aéreas de baixo custo.
1* Professor do Departamento de Administração Pública da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp Araraquara. E-mail: fernando.martins@unesp.br
2** Professor do Departamento de Administração da Universidade de Birmingham, UK. E-mail: d.wintersberger@bham.ac.uk
3*** Professora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: alinepires@ufscar.br
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 53, Junho/Dezembro de 2020, p. 162-180
Introduction
This paper approaches the relationship between generation and labour utilisation patterns in flexible capitalism, exploring the complex relations between generational issues and structural economic demands. We attempt to contribute to this debate by examining how the use of a young workforce has facilitated the introduction of flexible patterns of labour utilization.
The connection between age and attitudes towards flexible work patterns has been pointed out by previous studies. Sennett (2009, p. 110) has already put: “flexibility equals youth; rigidity, age”. Bradley (2009), in this direction, investigated the impact of changes in employment on the lives and life-courses of young adults in Britain, concluding that “the response of the young adult workers to the whole concept of flexibility was by and large favourable” (BRADLEY, 2009, p. 87). His findings draw attention to the generation issue regarding flexible patterns of labour utilization, as younger worker’s responses suggest that “(…) this generation of employees have generally accepted the ‘new rule of the game’ and are prepared to work within them in a way that is markedly different from their parent’s generation” (p. 91). He concludes that “many young workers demonstrate ‘internalized flexibility’ appearing in the main to welcome the idea of change and variety during their work histories. Older workers are much more hostile to change and suspicious of management initiatives: they are often sceptical about flexible strategies” (p. 93). Such enthusiasm of younger workers towards flexible work regimes, in the author’s viewpoint, is exploited within flexible capitalism.
In this paper, we focus on the attitudes of young workers towards flexible forms of work organisation in the context of the Brazilian civil aviation industry, based on the findings of a research project that investigated the development of the airline low-cost model in Brazil (WINTERSBERGER; HARVEY; TURNBULL, 2013). This research highlighted changes to the nature of work, employment, management-worker relations as well as relations between workers and their unions associated with the emergence of the low-cost model. An observed pattern in this research is a split in terms of age between the interviewees employed by a full-service carrier company (TAM) and four low-cost airlines (Trip, Azul, Webjet and Gol). The study suggests that Brazilian newly emerged low-cost airlines have been making use of both a young workforce and sophisticated HR practices aimed at functional flexibility, and underpinned by a paternalist management style which, implemented in conjunction with informal management-worker relations appears to have led to a blurring of the boundaries between managerial and non-managerial work, leading to apparently positive attitudes among the predominantly young workforce, despite being subjected to high levels of work intensity.
This observation made us wonder about the relation between youth and attitudes towards flexibility in the context of a very dynamic industry from Global South, leading us to question: could young workers be functioning as a facilitator in the introduction of new patterns of work in Brazilian civil aviation? Guided by this question, in the light of literature on young workers and flexible patterns of labour utilisation, we expect to bring new evidences and reflections about the importance of young workers in the implementation of new patterns of labour utilization. Furthermore, we aim to understand how these workers react to it. Evidently, we do not assume that there will be a universal answer, but contextual ones; thus, our discussion is situated in the context of an industry characterised by a high level of formal employment in a country with a high level of informal employment (around 40% of the household income comes from people who work off the book)1.
In sum, we believe that the Brazilian civil aviation industry offers an opportunity to understand how younger workers, due to their expectations and dispositions, have been a facilitating factor in the implementation of a new managerial approach, connected with flexible capitalism. In the first part of the paper, we present the concept of flexible capitalism and the conditions it poses to the young generation of the workforce. Moreover, we address its implications for young workers facing the challenges of the current labour market in Brazil. In the second part, we sustain and develop the arguments presented with data collected in the Brazilian low-cost aviation sector by Wintersberger, Harvey, and Turnbull (2013). Lastly, we sum up the main conclusions reached in this paper.
Flexible Capitalism and the introduction of a young workforce in the world of work
According to Skorstad (2009, p. 20) flexibility is an ambiguous term: “in some cases it is confined to the question of adjusting demands and capacity in a quantitative sense. In other cases, qualitative aspects are imperative, as in the cases where there is a pressing need to produce something new, voluntarily or under severe constraint.” We argue that this subject is not only ambiguous but also controversial. As Skorstad and Ramsdal (2009) remind us there are different approaches and perspectives related to it. For example, there are those who tend to see it as a positive phenomenon with mutual gains for capital and labour.
Our findings suggest that young labour seems to adapt well to new demands of the so-called flexible capitalism. Changes in the Artistic level, i.e. those related to a lack of autonomy and freedom in workplaces (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009), where most of the “flexible narrative” are included, seems to have a great potential of acceptance among young workers. Nonetheless, in this paper we are going to assume a sceptical outlook in relation to flexibility. Moreover, we opted to adopt a more general perspective. Authors like Skorstad (2009) presented a more mechanistic (Cartesian) approach to the subject, while authors such as Sennett (2009) opted for a more holistic approach. Therefore, we discuss the flexibility at the low-cost airlines through the lens of Sennett’s (2009) definition of “flexible capitalism”. For Sennett (2009, p. 9):
… the phrase ‘flexible capitalism’ describes a system which is more than a permutation on an old theme. The emphasis is on flexibility. Rigid forms of bureaucracy are under attack, as are the evils of blind routine. Workers are asked to behave nimbly, to be open to change on short notice, to take risks continually, to become ever less dependent on regulations and formal procedures. This emphasis on flexibility is changing the very meaning of work, and so the words we use for it.
One might wonder if there is some social group capable of cope with such changes or be fitted to this brave new world. The point we aim to address is, precisely, the link between this new organizational discourse (and practice) and the disposition of a young labour force. Young people seem to increasingly occupy a central position in sociological debate (PERALVA, 2007), exactly for supposedly being more informed, adaptable to changes, and connected to new technologies.
The case of the IT industry, being very representative of flexible capitalism, contributes significantly to shed light on this. Companies that deal directly with the development of new technology seek to articulate the idea of youth with new forms of work organization and, above all, work control. Google appears as an exemplary context in which the traditional ways of thinking about the workspace and the management of workers are questioned (CASAQUI; RIEGEL, 2009). The technology sector, although distinct from aviation, is an important reference because it is increasingly present in all areas and its organizational innovations become inspiration for many sectors.
The generational issue seems significant here. According to Wey Smola and Sutton (2002, p. 363): “A generational group, often referred to as a cohort, includes those who share historical or social life experiences, the effects of which are relatively stable over the course of their lives”.
It has been said, in that sense, that those born in 1980s and 1990s have been prepared to take jobs that do not yet exist, using technologies that have not yet been invented, and solve problems that are not still on the horizon (LOYOLA, 2009; OLIVEIRA, 2011; CAVAZOTTE, LEMOS; VIANA, 2012).
Overall, it has been attributed to this social group the following traits: the search for immediate gratification, the ability to do several things at the same time, eagerness for information, transitoriness and mobility (not remaining long in each job), the desire for rapid rise, job motivation through challenges and informality in relationships (OLIVEIRA, 2011; LEMOS, 2012). Young workers would have acquired such characteristics because they have been socialised into a context which challenges ideas linked with the traditional family, and because they have had access to new technologies (OLIVEIRA, 2011; LOYOLA, 2009).
It is worth noting that notions such as “generations” and “youth” require further discussion, given they are social constructions and not only a biological condition. The young people neither form a unitary culture (PAIS, 1990) nor compound a universal and clearly defined population segment, even if they have been defined as such (NOVAES, 2009). Youth, more than an age classification, comes to refer to a socio-cultural predisposition, connected to certain values and a lifestyle (EHRENBERG, 2010; PERALVA, 2007). Therefore, the “Y generation” idea, vastly spread by media and organisations in recent years, is not a neutral or value-free idea, it significantly meets the current capitalist expectations such as flexibility and mobility. In doing so, this idea comes to justify and reinforce new work configurations marked by instability, uncertainty and intensification (PIRES, 2018). Thus, it becomes naturally accepted that new entrants to the labour market are not expected to look for long term jobs. On the contrary, such ideas would be counterproductive, inhibiting a certain and welcome “creative instability” (LIMA; PIRES, 2017). Short-term perspectives and individualism take the lead, casting aside ideas such as: long term career, and collective aspirations aimed at achieving more equal standards of living and work.
Lastly, it is important to stress that the idea of Generation Y, especially in an emerging economy, would concern to a small portion of young people, more precisely those who have access to a certain amount of economic, social and cultural capital which give them room to take risks and make choices. The vast majority of young people do not have such access and most of times they are not able to engage in well-regarded and desirable social activities which usually require creativity (REGUILLO, 2007, 2010); among those who live “on the fringes” are the so-called NEETs, i.e., young people who neither study nor work.
As points Cardoso (2013, p. 299), “social changes occurring in a specific period of time neither equally impact the different generations” (CARDOSO, 2013, p. 299) nor different parts of the world. Even though there is a general socio-economical trend in contemporary capitalism, its development varies from context to context. This is why Silva (2016, p. 129), when discussing NEETs’ in Brazil, ponders that: if for the young European the current socio-economic situation is a source of disillusion towards a “scenario of deterioration of labour relations”, for the young Brazilian the relative success of PT new developmentalism may have given room to an illusion.
To better grasp Silva’s (2016) point, one needs to learn the main economic and political changes in Brazil during PT governments. After neoliberal presidencies, the country experienced a unique political and economic moment when Luiz Inácio Lula da Silva, former metalworker and trade unionist, became president in 2003, representing the Brazilian Labour Party, or Partido dos Trabalhadores (PT).
According to Bresser-Pereira (2013, p. 23), with Lula the country shifted from social democracy’s neoliberalism to new developmentalism, whose key points were: “a moderated intervention in the economy through planned investments in low or uncompetitive economic sectors, and through active economic and social policies”. The PT government attempted to build a new social pact between Capital and Labour, as shown by the creation of The Economic and Social Development Council composed by entrepreneurs, trade unionists, civil society representatives, bureaucrats from public sector, and intellectuals. Bresser-Pereira (2013, p. 23) considers that the PT government indeed offered “a truly ideological and economic alternative to neoliberalism – a social developmentalist one”.
Santos, Lima and Puzone (2019), by their turn, present a more sceptical viewpoint, not taking PT’s governs as a truly alternative to neoliberalism. For them, “Lulism” is understood as a “conservative compromise” through which Labour Party accepted to abandon class struggle approach in order to govern. Taking it into account, they defend that the use of a particularistic social policy perspective (as opposed to a universal one) gave room to the “dissemination of entrepreneurship as a guideline not only for economic behavior, but also for political and social conduct as a whole” (SANTOS; LIMA; PUZONE, 2019, p. 273). This new ethos fostered by PT was underpinned precisely by the “resort to neoliberal dispositives [sic.] of government”, and by the aforementioned “conservative compromise” (p. 273).
The idea of neoliberalism as “a normative system”, creator of ways of living, social relations and subjectivities based on individualism and the meritocratic and entrepreneurial logic was well put forward by Dardot and Laval (2016). Thus, even though we experienced a series of social advances during the PT governments’ period, they were not immune to the neoliberal traits, on the contrary. Thus, in a certain way, it is possible to say that Labour has prepared the ground for those who took control of the country after 2016 coup and undermined even more our fragile social and labour rights. As one can notice, different viewpoints regarding PT’s political legacy and theoretical affiliation co-exist. For the purpose of this paper, it seems central to shed light on the introduction and strengthening of a series of policies aiming social inclusion and citizenship promotion. For workers it was also a historical moment due to: decreasing of unemployment rate from 12,4% in 2003 to 5,7% in 2010; 18% increase average real wage; and increasing of per capita household income (PASSOS; GUEDES, 2015). It is exactly these conditions that led Silva (2016) to suggest that young Brazilians lived a moment of illusion about their future.
Eventually, the Labour government came to an end with the 2016 coup. From then on, ideas such as development through conciliation, which includes welfare policies, started giving way to liberal ideas, embracing more and more the idea of austerity. The conciliation moment seems to meet its end along with PT`s presidencies.
With the recent dismantling of social rights, especially with the first effects of the 2017 counter-reforms to the labour government, the country faces increasing levels of unemployment caused by dismay of young people (KREIN, 2018).
The Brazilian Experience: the low-cost airline industry
This section presents a concrete case of employment of young workforce by new entrants in the airline industry aligned with flexible patterns of control and labour utilisation. Specifically, we discuss how newly emerged low-cost airlines have been making use of a young workforce and implemented an HRM strategy based on functional flexibility and informality.
Firstly, we contextualize the low-cost airlines and their impact on the sector. Secondly, we describe the data-collection process, that took place in the period 2012-14, when the PT was still in charge of the country. Finally, we present and analyse research findings that reveal the match between the labour utilisation strategy of low-cost airlines on the one hand, and young workers’ expectations and disposition on the other.
The low-cost airline entrants and their impact on the sector
There is no doubt that the Brazilian airline industry has overcome a significant period of change with the introduction of low-cost model. As pointed out by Wood Jr. and Binder (2010) the success of the new entrants was evidenced by some indicators such as: higher occupancy rate by flight, shorter aircraft ‘turnaround’ times on the ground, lower operational costs, lower structural costs, all leading to a reduction of operational costs per seat by 50% relative to full-service carriers. Airline companies adopting this model engage in rigorous minimisation of operating costs by focusing on the imperatives of efficiency and flexibility. It is not surprising that cost cutting attempts are often primarily centred on workers and their terms and conditions, as civil aviation industry is a labour-intensive sector, with labour costs accounting for around 30% of an airline’s total operating costs. Furthermore, labour is often the only effective cost control lever in absence of influence over fuel costs and airport landing charges. Finally, with civil aviation being a pro-cyclical and volatile industry, it is also not surprising that the low-cost model is heavily associated with flexible working arrangements such as temporary contracts and outsourcing.
The liberalisation process of the Brazilian civil aviation industry has its roots in the 1990s, when a series of neoliberal policies were started with the aim of stimulating competition. Brazil’s first low-cost entrant was Gol, in 2001, absorbing much of legacy carrier ‘Varig’ in 2007, with Webjet to follow in 2005, and Azul in 2008. By 2009, Webjet, carrying over five million passengers per year became the third-largest airline at the time after TAM and Gol. Azul, within the first three years of operation developed a market share of around ten per cent (AGÊNCIA NACIONAL DE AVIAÇÃO CIVIL, 2013).
The decline of ticket prices is one of the central impacts of low-cost model on the sector. Price reduction after 2005 and 2008, when, respectively, Webjet and Azul were created, is particularly noticeable. While the average airline ticket was sold for 650 Brazilian Reais in 2004, this cost declined to 326 Brazilian Reais by 2013 (AGÊNCIA NACIONAL DE AVIAÇÃO CIVIL, 2013). Adjusted for inflation, this is a three-fold decline in prices over the course of less than ten years.
While low-cost airlines have brought low fares to Brazil, it is worth pointing out that their operational model appears to differ to some degree to their ‘ultra low-cost’ counterparts such as Ryanair in Europe. For one thing, basic operating costs such as higher taxes as well as fuel duty are less likely to make the ultra low-fares model profitable in Brazil. Such constraints, emanating from a relative monopoly of Petrobras until recently, as well as a USD 18 levy for every international flight has led some analysts to argue that any Brazilian attempt to lure in low-cost competitors from abroad may be doomed (ROCHABRUN, 2019). As a consequence, the operational model of the low-cost airlines in this study lacks some of the distinguishing features of the ultra low-cost model, including point-to-point flights only2 as well as a uniform aircraft fleet3. Moreover, until recently, simple on-board services such as light snacks and refreshments were included in ticket fares, and only in 2012 for example has Gol started charging extra for such ‘frills’ (GONÇALVES, 2012). Finally, also in stark contrast to the ‘single-cabin’ model of ultra low-cost carriers, Brazilian low-cost airlines such as Azul also offer ‘business-class’ seats.
Examining the changes in the Brazilian airline industry from 1990–2006, Garcia (2009) verifies that the increase of internal demand is remarkable, growing up to 174%. Cost reduction, creation of new products and services, and technological novelties are other features identified in the analysed period. The author also detects a change in the workforce profile that is especially relevant for the central argument of this paper. Analysing flight attendants’ age, he highlights that: “The participation of young flight attendants has increased, notably of those in the following ranges: from 18 to 24 years old, from 25 to 29 years old, and from 30 to 39 years old.” The table below summarizes the results found:
Table 1: Flight attendants’ age: 1994 – 2006.
Flight attendants’ age |
1994 |
% |
2006 |
% |
18 – 24 |
1 |
0 |
1,371 |
20,2 |
25 – 29 |
221 |
5,2 |
2,488 |
36,6 |
30 – 39 |
828 |
19,5 |
2,150 |
31,6 |
40 – 49 |
2,177 |
51,3 |
731 |
10,8 |
50 – 64 |
876 |
20,6 |
58 |
0,9 |
65 or more |
142 |
3,3 |
2 |
0 |
Total |
4,245 |
100 |
6,800 |
100 |
Source: Garcia (2009, p. 86)
It can be noted that workers over the age of 30 used to correspond to 94,7% of total employment in 1994, decreasing to 43,3% in 2006, meaning that the presence of the young workers (below 30 years-old) increased from 5,2% to 56,8% in twelve years (see table 1). For Garcia (2009, p.85), “this trend can largely be attributed to the rapid growth of TAM and the entry of Gol into the market”. It is important to stress that Gol and TAM have different business strategies. The first may be considered a low-cost airline while the latter is a full-service airline4 5.
Employment terms and conditions of work have changed since the advent of low-cost airlines. The neoliberal reforms in labour law aforementioned, such as the abolition of restrictions on subcontracting and temporary or part-time contracts, appear to have given rise to a ‘two-tier’ employment system, characterized by a strong divide between a ‘core’ group of workers directly employed by their airlines, and a peripheral group of workers sourced via multinational ground-handling service provider agencies such as Swissport and local ones such as Aero-Park.
Data Sources and Methods
The analyses we now present are based on data derived from a project that investigated the impact of a low-cost airline model on the nature of work, employment and trade union representation in the Brazilian civil aviation industry. Given the purpose and scope of this paper, we will focus on the qualitative element of the study, which draws on 52 interviews with airline and airport workers from a legacy airline (TAM), three low fares companies (GOL, Azul and Webjet) and agencies that provide ground handling services (Swissport and Aero-Park), complemented by three focus groups with a total of 16 workers from low-cost airlines (GOL, Azul, Webjet, Trip). Participants were sampled through local trade union representatives at major airports in São Paulo (Guarulhos and Campinas) and Rio de Janeiro (Galeão and Santos Dumont)6. Of the 68 participants, 9 were employed at TAM, 35 at low-cost airlines, and the remainder at agencies. The sample was comprised of:
The rationale behind the chosen airports is related to the strength of the union presence at the major hubs in Sao Paulo and Rio de Janeiro in comparison to the more remote airports in the less affluent North of the country with more employer-friendly legislation at state level. It was indicated by the Union representatives of FENTAC7, that the sampling of participants via trade union channels would have been quite difficult given what was then very patchy representation at major Northern hubs such as Manaus, Salvador, or Fortaleza. Particularly the strong presence of SindiGru8 at Guarulhos airport facilitated researcher access to particularly transient groups such as shift workers in ‘backstage’ functions such as baggage handling and cargo screening. An equally representative sample in Northern hubs would have undoubtedly required management support, which (in the unlikely event of being granted) could have potentially led to issues around biased employee responses.
Interviews entailed open questions regarding the nature of work and employment terms and conditions. All interviews were unstructured (with an interview guide on topics such as work intensity, interpersonal relations with staff, managers as well as customers) and were conducted at the aforementioned airports. Interviewees were reached through snowball and convenience sampling methods with a purposive element. This entailed on the one hand an emphasis on young workers employed at low-cost airlines and on the other hand more tenured workers with work experience pre-dating the emergence of the low-cost model. By doing so, we sought to grasp the views of young workers and to meaningfully compare them with those of older workers.
The focus groups, two conducted at Guarulhos and one at Campinas airport, involved a mix of young and more experienced cabin crew from various functions at Gol (group 1); various airlines’ customer agents from check-in, ticketing and customer information functions (groups 2); and Swissport ramp-agents and airlines’ cabin crew and check-in agents (group 3), as detailed below. The focus groups lasted between 40 minutes (Campinas) and two hours (Guarulhos) and were guided on the basis of key issues that emerged in interviews.
Table 2: Focus group’s participants
Focus Group 1 |
|||
Location: Guarulhos Airport, Office of SindiGru |
|||
Participants: six cabin crew (CC) employed at Gol |
|||
Participant code |
Age range |
Gender |
Organization |
CC1 |
25-30 |
Female |
Gol |
CC2 |
25-30 |
Female |
Gol |
CC3 |
30-35 |
Male |
Gol |
CC4 |
25-30 |
Female |
Gol |
CC5 |
50-55 |
Female |
Gol |
CC6 |
50-55 |
Female |
Gol |
Focus Group 2 |
|||
Location: Guarulhos Airport, Office of SindiGru |
|||
Participants: five customer agents (CA) from check-in, ticketing and customer information functions. |
|||
Participant code |
Age range |
Gender |
Organization |
CA1 |
20-25 |
Male |
Azul |
CA2 |
25-30 |
Male |
Azul |
CA3 |
35-40 |
Female |
Gol |
CA4 |
25-30 |
Female |
Trip |
CA5 |
20-25 |
Male |
Webjet |
Focus Group 3 |
|||
Location: Campinas Airport, Staff Canteen |
|||
Participants: five staff - cabin crew (CC), check-in agent (CA) and ramp-agent (RA) function. |
|||
Participant code |
Age range |
Gender |
Organization |
CC1 |
25-30 |
Female |
Azul |
CC2 |
25-30 |
Female |
Webjet |
RA1 |
35-40 |
Male |
Swissport |
RA2 |
40-45 |
Male |
Swissport |
CA1 |
20-25 |
Male |
Azul |
Source: Wintersberger (2015).
As indicated in the table above, most focus group participants were under 30 years old. It is noteworthy that the two more tenured cabin crew had work experience at Varig, a now defunct legacy carrier, and were able to reconstruct some of the key changes to work and employment associated with the low-cost model.
Analysis of the qualitative data was conducted using a coding approach characterised by multiple stages. Due to the exploratory nature of the study the initial stage was an open coding procedure (BRYMAN, 2012; STRAUSS, 1987), looking for key words or phrases associated with some of the key foci of the study, including the nature of work, employment, management-worker relations as well as relations between workers and their unions. Once such key terms were established, the transcripts were then reviewed systematically through a keyword search using MS Word. Meaning was, then, constructed directly from the language of participants. Eventually, themes - such as job insecurity, conflicting demands at work, etc. - were identified, taking into account both their frequency and significance.
Research findings: the low-cost model of operation and workers’ expectations and dispositions
A key feature of this model is an efficient utilisation of labour. Thus, it is not surprising that work intensity has been a common issue raised in interviews by workers from various functions. Operational and staffing figures suggest that those employed at low-cost airlines work harder than their counterparts at full-service carriers (WINTERSBERGER; HARVEY; TURNBULL, 2013). Those respondents with work experience from legacy carriers such as Varig claim that their labour process has been profoundly intensified.
Throughout our research, intensification appeared as a key-point for our interviewees. It is important to stress that it is multifaceted phenomenon. In terms of the labour process, we discern differences in the perceived work experiences of those working in ‘backstage’ functions such as baggage and cargo-handling, versus those working at the passenger interface.
In the former case, we observe perceptions that work is ‘intensive’ (or has intensified) mainly in quantitative terms, characterised by a perceived increase in ‘throughput’ over the years by those (rare) interviewees with some degree of job tenure within the multinational ground handling service providers. In ‘airside’ ground operations such as the ramp, time pressure is a common complaint raised primarily by workers employed via multinational ground handling service providers (GHSPs), who provide ground-staff to low cost airlines. One respondent employed as a shift leader at one of the largest multinational GHSPs reported to regularly have to ‘run around between aircraft’ due to the tight turnaround times of the low-cost airlines.
Now let us focalise passenger interface workers. If, on the one hand, higher seat density has been a problem for low-cost airline’s cabin crew members (Representative, FENTAC), on the other hand there is also a qualitative or, we dare say, emotional side connected to labour intensification. It has to do with the potential mismatch between expectation and reality, a key antecedent of dysfunctional passenger behaviours including violence or abusive language used against staff, a regular occurrence particularly for cabin crew and check-in agents. Moreover, tight aircraft turnaround times9 lead to passengers boarding the aircraft only minutes after the previous lot of passengers have disembarked. Passengers are reported to become impatient quickly following their boarding of the aircraft, often leading to them rushing cabin crew to perform their service-related duties. Thus, contrary to direct managerial control approaches, passenger facing roles such as the cabin crew function allow management to offload substantial degrees of supervisory duties to the customers, who as a consequence set the pace at which front-line workers need to perform their job duties:
There is no moment where we can sit down, rest, and make preparations for the next flight with the next passengers waiting at the gate (…) If we let them wait too long, they will be angry, making our flight miserable. They decide when we do what, and how fast we must work. (Flight attendant low-cost airline – focus group notes: April 2012).
A second qualitative dimension related to work intensification was highlighted by interviewees. It has to do with the level of responsibility put on their shoulders. They believe that those employed at low-cost airlines have higher degrees of responsibility than those at full-service carriers. This is related to the fact that, along the utilisation of workforce in a numerically flexible way (temporary and variable-hour contracts), low-cost companies utilise workers in a functionally flexible manner. Some of those with prior experience stated that the work organisation at low-cost airlines is more flexible and less rigid than at their previous airline. Rules, policies and procedures are minimal, and interviewees indicate that (passenger-facing) workers are left without any explicit codified behaviour rules, but rather asked to be friendly and to ‘act naturally’ (Cabin crew Gol, interview notes, April 2012).
Perhaps due to the relative novelty and (excepting Gol) small scale of low-cost airline operations, several interviewees (some with first-hand experience with established flag carriers) report finding levels of autonomy and functional flexibility which are quite atypical for the industry. One characteristic of this functional flexibility is that ordinary (non-managerial) members of staff at low-cost airlines, beyond their day-to-day job duties, are heavily involved in quasi-managerial responsibilities such as the maintenance of work schedules and rotas. The latter are overseen by line managers (duty supervisors), many of whom appeared to be ‘promoted’ to such positions from ordinary front-line service roles at a relatively young age.10 For example, one supervisor (ground handling) employed at Webjet attained their supervisory responsibilities at the young age of 22. While supervisory staff certainly take on higher degrees of responsibility (e.g. being accountable for key areas such as workplace safety, operational efficiency and punctuality), observations at Guarulhos and Campinas airport have led to the impression that such staff, on top of their responsibility still substantially participate in the labour process. For example, one supervisor at Webjet was observed to personally assist in the check-in of passengers (which was ordinarily the job of agency workers), while concomitantly frantically directing her dispersed staff via a walkie talkie and liaising with supervisors at the gate. While such demands could be viewed as stressful, interview responses however suggest that the relatively high levels of responsibility are perceived to be granted in return for higher levels of autonomy.
As a result, employment at the low-cost airlines appears to be viewed by many of the predominantly young workers as a career path. Many of the young employees spoke very highly of the opportunities at their airline for promotion or for transferable skills relevant for careers at other companies:
It is fantastic here. You get experiences you would only have after five, maybe even ten years at other airlines. (…) It is good for the CV. Duty supervisor at 22? This certainly opens opportunities at other airlines. (Duty Supervisor Webjet, interview notes, April 2012).
Therefore, even if the young worker is in an unstable and very intense job, he is led to understand himself as part of the team and must dedicate himself intensely, based on a bet on the future. The young workers employed at low-cost airlines also appear to display substantial tolerance towards their utilisation in a functionally flexible manner in return for what seems to be perceived as high levels of autonomy. This is in part due to what respondents seem to positively perceive as an absence of ‘direct’ or bureaucratic forms of control:
We are quite free here. As you know, flight operations are very complicated, and conditions can change quickly. I think the operations manager knows that, and lets us work as we want without disturbing us. (Check in agent- GOL, interview notes April 2012).
We observe, therefore, that the question of autonomy and freedom, widespread by the neoliberal discourse, is central to young workers. Even though this autonomy is mere appearance, disguised by new forms of control, it engages the workers’ subjectivity, motivating them to work intensely and under conditions of insecurity and instability. Moreover, it was found that non-managerial workers often assist in some of the administrative tasks associated with supervision, particularly where duty supervisors might be busy or on a break. Overall, this appears to lead to rather blurred boundaries between managerial and non-managerial work. One the one hand, supervisors participate in the labour process, while in turn they are often assisted by their staff with regard to administrative duties.
While this somewhat flexible form of work organisation, and absence of a division of labour may be perceived as stressful by some, the overwhelming response from interviewees, particularly those with limited prior work experience and those who have recently graduated from high school, college or university appears to be positive. Several of the interviewees displayed what appears to be quite a strong involvement and identification with their organisation:
You do feel like part of something bigger. When you hear every few months that we are expanding our network to new destinations, it is exciting (…) If you ask me, yes, I do feel very proud to work for Azul, and not some other airline.’ (Cabin crew, Azul, interview notes, April 2012).
It appears that the young workers perceive a strong psychological contract based on the norm of reciprocity, whereby preparedness to work hard (both in quantitative and qualitative terms) is viewed as given in return for the perceived levels of autonomy and promotion opportunities at their airline. This is particularly voiced by those with some degree of line managerial responsibility:
It is normal that when you are a supervisor or manager, you work longer than the other workers. You arrive before them, and leave after them. If not, people would start talking I think. You don’t want to be seen leaving on time. (…) You need to look busy and hard-working if you want to make a career here (Duty supervisor, Azul, interview notes April 2012).
It also appears that the young workers respond quite positively to what can best be described as a paternalistic management style, underpinned by an apparently unitarist ideology and attempts to ‘substitute’ formal collective (trade union) channels of communication through more individualised forms of employee voice such as ‘open door’ policies and staff-employee consultative committee meetings, supplemented by informal social events such as barbecues and sporting events as reported in the case of Azul, where staff are reminded not to voice concerns via trade union channels, but instead, to ‘speak to [management] directly’ [representative SindiGru, interview notes, April 2012]. Informal management-worker relations and non-union forms of employee voice appear to be further facilitated by the small scale and novelty of some of the recent low-cost entrants, such as Azul and Webjet.
Regardless of the managerial motivation for the implementation of such informal employee voice mechanisms, many of the policies and practices such as direct communication appear to elicit positive attitudes from young employees who speak highly about the informality at their respective employers:
OK, the work is hard, (...) and supervisors can be unpleasant when things are not going well, but you have to understand, here, it is not like at bigger airlines like TAM. We talk to management like they are our friends. If we need something, they are there for us. Any problems we have, I think we can overcome them by talking to management. (Cabin crew, Azul, interview notes April 2012).
If this informal way may be a motivational factor for some young workers, it is undeniable that contracts have been changing over the years, becoming more and more flexible and bringing insecurity to some fellow workers. Nowadays, temporary or fixed-term contracts are vastly used by companies. Cabin crew at Azul, Webjet and Trip are increasingly recruited on three-year contracts, while those employed in other customer-facing functions (check-in, ticketing) and ground-handling functions via local and multinational agencies are generally employed on one year contracts, particularly in the lesser skilled (and lower paid) functions. Variable-hour contracts are also common practice. Many agency employees report short-term/last minute changes to the rota, and only knowing week on week how many hours they are scheduled to work, leading to significant fluctuations in income throughout the year. Under such conditions, workers face insecurity with regards to future employment and earnings, and consequent difficulties in planning ahead. Some in particularly precarious employment with ground handling service providers have been reported by trade union representatives to ‘buffer’ against financial insecurity by seeking informal employment elsewhere, parallel to their employment with the agency. Reports by works council representatives from baggage handling that some of their colleagues work casual night shifts in hospitality before attending work at the airport the next morning is somewhat concerning from an occupational health and safety perspective, as are reports of ‘split shifts’ and long commutes to and from some of the airports often causing employees to ‘nap in their cars’ during breaks between shifts (Representative, SindiGru, interview notes, April 2012).
The job insecurity is exacerbated by financial insecurity as well, resulting from relatively low base salaries of little over R$ 2,000 at the low-cost airlines at the time of research. While this is still double the state level minimum wage in Sao Paulo, it falls short of legacy carriers such as LATAM or Avianca, where salaries for experienced cabin crew are said to be more than twice those at low-cost airlines. Such a shortfall can to some degree be compensated by performance-based pay, however this leads to further insecurity as workers have little control over various aspects of performance, including sales commission, ‘profit triggers’ for bonuses, as well as aircraft punctuality records. Moreover, particularly low base salaries for cabin crew increase their dependence on flying, as their base pay would only then be topped up with various variable elements of pay such as ‘flight duty’ and ‘time away from base’ pay. For example, in the case of delays, cancellations or having to take time off work due to illness, cabin crew are left only with their base pay, a shortfall of up to 40% if these elements of variable pay are discounted (First officer, low-cost airline, interview notes, April 2012).
As shown above, airline workers have been subjected to a variety of factors that are important for someone to grasp particularities of working for relatively new companies in air industry, in terms of changes, challenges and perspectives to young workers.
During the investigation hereby presented one notable factor is the apparently heavier reliance on young workers on the side of low-cost airlines, consistent with the findings of Garcia (2009) which detected an increase of young workers while analysing flight attendants. Our findings suggest that the use of young and less experienced workers appears to complement the implementation of the new flexible regime by low-cost airlines.
As argued above, those workers were born in a different context and bring a different background that seems to fit well with the low-cost model. Moreover, practices such as direct communication, meritocracy, lighter hierarchy, and informality were also well regarded. As shown above, the same formula used by IT companies to attract and maintain young workers is successful with young workers in the airline sector. Although the two sectors are very different in relation to the characteristics of the activities developed, the young workers of both present very similar speeches. In particular, we highlight a predisposition for intense and unstable work in exchange for an alleged autonomy. Considering that such findings seemingly differ from the experiences of those employed by traditional companies, it seems to us that all the evidences hereby presented lead to the following conclusion: the young workforce seems to have has been a keystone played an important role in the implementation of low-cost model in Brazilian civil aviation. Changing work patterns, surpassing labour resistances has never been easy. Bringing new players to the game seems to be a common business strategy to implement changes. The present case shows how the preference for young workforce can be a strategic tool for it.
The use of a group of workers to impose new patterns of work or labour relations is not something new in history (see, for example, Engels, 2008). The novelty here is the use of a specific group of workers with a particular mind-set (therefore, not connected to nationality or ethnicity).
In line with Bradley (2009), it seems that, ironically, youngsters, who seem to be particularly receptive to the culture of flexibility are also its victims, given the low level of income and earnings of those trapped in flexible contracts, so that flexibility “may well mean poverty and housing problems in the end of their lives.” (BRADLEY, 2009, p. 94). Wey Smola and Sutton’s (2002, p. 379) findings “suggest that workers’ values do change as they mature”. It remains to be known if the myth of flexibility as a sustainable and desirable labour relation model will persist among young workers (especially from peripheral parts of the world) as they age? and ii. who will be put in/out of labour market, i.e., who will form the relative surplus population in this scenario? Those questions can be addressed by future reflexions and researches.
In search of reflexivity, it is important to highlight that the authors of this paper adopt an employee-centred perspective. Other authors have emphasized the industry viewpoint while dealing with flexible capitalism. We strongly believe that such a complex phenomenon needs to be examined from different viewpoints and from different perspectives.
Finally, it is important to stress the limitations of this paper. Considering our qualitative approach, it was not possible to point to a specific causal relation between young mind-set and flexibility. Maybe further quantitative studies might address this matter. A second limitation is related to data gathering. We made vast use of trade unions to get access to workers. Considering the difficulties associated with access without ‘gatekeepers’, and the fact that there are generally always inherent biases associated with over-reliance on gatekeepers, further research adopting an ethnographic approach may provide not necessarily less biased insights, but certainly richer, context-specific information with higher degrees if internal validity.
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Recebido em 26/06/2020
Aceito em 30/09/2020
1 See: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,informalidade-e-beneficios-respondem-por-40-da-renda-das-familias-do-pais,70002765991
2 The alternative ‘hub-and-spoke’ model entails having primary bases to which every flight return, usually at expensive primary airports.
3 Unlike low-cost competitors such as Ryanair that operate with a single aircraft type as a means to achieve economies of scale in purchasing and maintenance, low-cost airlines in Brazil operate with multiple aircraft types in order to accommodate short and medium-haul travel.
4 If one considers that the low-cost airlines companies are in one extreme of a continuum, in the other extreme are the conventional legacy-carrier airlines such as Varig. In the middle of it, one would find full-service airlines such as TAM.
5 TAM (now LATAM), despite being a full-service carrier, was never a national ‘flag’ carrier as would have been Varig for example.
6 Access to interviewees and focus group participants was facilitated by local trade union representatives; hence there was little way to verify whether the sample obtained was a representative cross section of the worker demographics. Moreover, given that the research was funded by the International Transport Workers’ Federation, one needs to be aware of potential sampling biases, given the likely agenda of local trade union representatives. On reflection, we felt that the benefits of unrestricted access to notoriously transient groups (e.g. agency and shift workers) outweighed the disadvantages of potentially not obtaining a representative sample with regards to attitudes towards the union.
7 Federação Nacional dos Trabalhadores em Aviação Civil.
8 Sindicato dos Aeroviários de Guarulhos.
9 Some low-cost airlines target an average time of 30 minutes between disembarkation of the first lot of passengers and take-off for the next flight.
10 Standing (2014, p. 38) calls uptitling the tendency to give “a position with a pompous title to hide situations of precariousness and uncertainty, in which people are transformed into a chief, executive or officer without having an army to lead or a team to model”.
FLEXIBILIZAÇÃO E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO DOCENTE:
uma análise das condições de trabalho dos Professores Admitidos
em Caráter Temporário no Magistério Público de Santa Catarina1
FLEXIBILIZATION AND PREACARIZATION OF TEACHING WORK:
an analysis of the working conditions of teachers admitted
in character temporary in the Public Magisterium of Santa Catarina
_____________________________________
Matheus Felisberto Costa*
Rafael Mueller**
Resumo
Está em curso um intenso e significativo processo de precarização das relações entre capital e trabalho ocorrido, principalmente, nas duas últimas décadas do século XX, através da expansão do regime de acumulação flexível, da globalização e das políticas neoliberais no mundo. No campo da educação, encontram-se indicativos de processos de quasi-uberização nas relações de trabalho dos trabalhadores docentes. Verifica-se, no bojo desse processo, o aumento da retirada dos direitos historicamente conquistados e o avanço exponencial da precarização sobre as suas condições objetivas. Ante o exposto, o presente trabalho é uma análise das condições de trabalho dos professores Admitidos em Caráter Temporário (ACTs) no magistério público estadual de Santa Catarina. O objetivo do trabalho é verificar a situação atual dos professores ACTs no tocante aos seus direitos, à forma de contratação e realização do trabalho. A pesquisa foi desenvolvida sob a perspectiva do materialismo histórico-dialético, sendo bibliográfica e qualitativa. Utilizou-se artigos, livros e documentos oficiais. As principais bases de dados consultados foram o Catálogo de Teses e Dissertações da Capes e a SciELO. Como resultado, destaca-se extenso contingente desses profissionais na Rede Estadual de Santa Catarina, superando o número de professores concursados e acentuado o processo de precarização das suas relações de trabalho, com contratos de trabalho temporários e parciais, além da ausência de outros direitos reconhecidos aos trabalhadores estatutários. Em conclusão, cabe destacar que no contexto analisado há uma tendência de alargamento da exploração do trabalho docente, impondo a esses profissionais as características da gig economy.
Palavras-chave: Trabalho docente. Professores temporários. Precarização do trabalho. Uberização do Trabalho.
Abstract
An intense and significant process of precarious relations between capital and labor has occurred, mainly in the last two decades of the 20th century, through the expansion of the flexible accumulation regime, globalization and neoliberal policies in the world. In the field of education, there are indications of quasi-uberization processes in the working relationships of teaching workers. In the midst of this process, there is an increase in the withdrawal of rights historically conquered and an exponential advance of precariousness over their objective conditions. In view of the above, the present work is an analysis of the working conditions of professors admitted on a temporary basis (ACTs) in the State Public Magisterium of Santa Catarina. The objective of the work is to verify the current situation of ACT teachers with regard to their rights, the way of hiring and carrying out the work. The research was developed from the perspective of historical-dialectical materialism, being bibliographic and qualitative. Official articles, books and documents were used, the main databases consulted were the CAPES Thesis and Dissertations Catalog and SciELO. As a result, there is a large contingent of these professionals in the State Network of Santa Catarina, surpassing the number of publicly held teachers, accentuated process of precariousness of their labor relations, with temporary and partial employment contracts, in addition to the absence of other recognized rights for statutory workers. In conclusion, it should be noted that in the context analyzed there is a tendency to expand the exploitation of teaching work, imposing on these professionals the characteristics of the gig economy.
Keywords: Teaching work. Temporary teachers. Precarious work. Uberization of work.
Introdução
O trabalho é a atividade ontológica de interferência e modificação da natureza. Por meio do trabalho, os seres humanos transformam a natureza na busca iminente de garantir a produção de sua existência. O que diverge a espécie humana dos demais seres vivos é a sua capacidade de antecipar as suas necessidades, sejam elas do estômago ou da fantasia (MARX, 2013). Desse modo, ao antecipar a satisfação das necessidades, as relações sociais humanas são mediadas pela racionalidade e por uma intencionalidade.
Se por um lado, a capacidade humana de prever as necessidades levou à construção de uma vida material com maior expertise, processos produtivos com alto grau de sofisticação e respostas mais imediatas, por outro, o desenvolvimento e consolidação do capital ocorreu por meio da separação da força de trabalho dos meios necessários à realização desse, impulsionando, ainda mais, a classe trabalhadora a vender o seu trabalho para garantir a sua sobrevivência (MARX, 2013).
Desse modo, promove-se a separação entre trabalhador e elementos necessários à produção de sua existência, de maneira que fica relegado ao trabalhador com pouca instrução o trabalho manual, garantido por meio da força física. Já ao trabalhador complexo, caracterizado pelo trabalho de formação especializada, será necessária uma gama de conhecimentos e maior disponibilidade de tempo para sua realização (MARX, 2013).
Cada vez mais trabalhadores são expropriados das suas condições humanas de trabalho, de seus direitos historicamente conquistados. O capital financeiro globalizado, suplantado sob a suposta égide de um mundo sem fronteiras, representou, de fato, uma derrubada crescente das fronteiras comerciais e alfandegárias em vez de a garantia do intercâmbio e deslocamento humano nos diversos territórios do globo terrestre.
Com a expansão do regime de acumulação flexível, forjada sob os dogmas da plena liberdade de empreender, redução da interferência do Estado na economia, flexibilização das relações entre capital e trabalho, resultando numa perda histórica de direitos da classe trabalhadora, em grande medida, as lutas sociais dos trabalhadores, que até então se articulavam a partir das conquistas ou ampliação de direitos, passaram a ser associadas a enfrentamentos para não perderem os direitos conquistados.
As transformações orquestradas no âmbito do regime de acumulação flexível e da globalização, viabilizadas pelo neoliberalismo, levaram a bruscas mudanças no mundo do trabalho, redefinindo as condições objetivas e subjetivas da classe trabalhadora. Dentre as transformações, destacam-se a maximização do poder do capital – condicionando o proprietário da força de trabalho a perda de empregos, a ser alvo da redução de custos que resultou na baixa de salários, diminuição no tempo de produção e a redução das garantias trabalhistas (ALVES, 1997); as novas tecnologias da informação e comunicação em escala global, que possibilitaram a comunicação em tempo real; a construção sob o postulado de um mundo supostamente sem fronteiras, que se tornou efetivamente realizável no plano econômico, com o movimento de empresas, serviços e capitais; a drástica perda de autonomia de intervenção econômica dos Estados nacionais subsidiada pela política neoliberal e seu ajustamento aos novos preceitos do capital financeiro internacional.
Consequentemente, no limiar do século XXI, novas formas de precarização do trabalho surgiram, a exemplo do fenômeno da uberização2. A uberização do trabalho aprofundou ainda mais a ideologia do “empreendedorismo de si”, ou, como se chama no capitalismo contemporâneo, “empreendedores individuais” (FERRER; OLIVEIRA, 2018, p. 190). Nesse mote, dois fenômenos crescentes são o trabalho temporário e o parcial, sendo esses destituídos de direitos trabalhistas ou com redução substancial desses. E, desse modo, tornaram-se fenômenos globais, de modo que grande parte do contingente de trabalhadores do século XXI é formado por profissionais sujeitados a essas condições.
A precarização do trabalho, portanto, tem sido percebida como uma das consequências mais visíveis da flexibilização do mercado de trabalho, que preconiza a proliferação de formas de emprego de caráter flexível, das novas formas de contrato e do declínio da oferta de empregos típicos/permanentes (ARAÚJO; MORAIS, 2017, p. 2).
Um exemplo do fenômeno do trabalho temporário, ou parcial, são os professores Admitidos em Caráter Temporário (ACTs), em específico, da Rede Estadual de Educação de Santa Catarina. Tamanha é a expansão dessa forma de trabalho que os dados do Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina (TCE/SC), em 2018, informavam que dos 35.681 professores do magistério catarinense, 20.552 eram ACTs, em contraponto aos 15.129 professores efetivos (TCE/SC, 2018). Na mesma matéria, o tribunal ainda reiterava à Secretaria de Estado da Educação (SED/SC) que o número de trabalhadores temporários não poderia ultrapassar 20% em relação ao quadro de professores efetivos da rede.
Historicamente, o Estado de Santa Catarina tem mantido uma política de contratação de professores temporários em detrimento à efetivação desses profissionais por meio de concurso público. Nesse caso, os professores ACTs possuem menos vantagens e direitos quando comparados aos professores estatutários, compondo, assim, a grande massa de trabalhadores e trabalhadoras da educação básica de Santa Catarina.
Mediante o exposto, pretende-se analisar as condições de trabalho dos professores ACTs do magistério público estadual de Santa Catarina, compreendendo que esses são a maioria dos profissionais que atuam na educação pública catarinense e, que, historicamente, foram os mais relegados pelo poder público estadual, bem como foram os que mais experimentaram a precarização de suas atividades laborais, em sintonia com as mudanças decorrentes da organização do trabalho no século XXI.
No âmbito dos documentos oficiais que regulamentam as funções e direitos dos trabalhadores ACTs, pretende-se analisar as transformações oriundas de modificações legais entre os anos de 2011 a 2015, os quais aprofundaram ainda mais a instabilidade nas relações de trabalho dos professores temporários. Enfim, a partir dos movimentos de reinvindicação da categoria – as duas maiores greves da história do magistério catarinense, ocorridas em 2011 e 2015, e seus respectivos desdobramentos, propõe-se identificar a objetivação da precarização dos profissionais da educação pública estadual de Santa Catarina tendo em vista a sua relação com as formas de organização do trabalho no século XXI, a partir de três categorias: trabalho temporário, trabalho parcial e trabalho uberizado.
Realiza-se uma reflexão acerca da relação entre o trabalho temporário e as novas metamorfoses do mundo do trabalho, sobretudo as exponenciais decorrentes das novas plataformas produtivas, em especial, do sistema de acumulação flexível e uberização do trabalho. Consequentemente, busca- se refletir sobre sua interferência nas condições de trabalho da classe trabalhadora e, principalmente, sobre o trabalho docente.
Reestruturação produtiva e as transformações do mundo do trabalho
Ao longo das últimas três décadas do século XX, o mundo do trabalho foi marcado por intensas transformações que identificaram o desenvolvimento de novas bases de exploração da força de trabalho e de ressignificação da relação entre capital e trabalho. O keynesianismo, oriundo do período pós-crise de 1929 – firmado sob as bases da conciliação de classes e de concessões à classe trabalhadora, sob o jugo da proteção do Estado e controle desse sobre grande parte das relações econômicas – mostrou-se insuficiente em responder aos interesses do grande capital após a crise do petróleo nos anos 1970 (HARVEY, 1992).
Denomina-se esse processo de transformações sociais, econômicas e políticas de reestruturação produtiva, correspondendo à origem do projeto de acumulação flexível. Nesse, o rearranjo provocado pela expansão do capital e pelas políticas neoliberais impôs grandes mudanças nos regimes de trabalho nos países capitalistas, desenvolvidos ou em desenvolvimento e, a posteriori, nos países de economia planificada, denominados socialistas (IANNI, 1998).
[..] Realizam-se a desregulamentação das atividades econômicas pelo Estado, a privatização das empresas produtivas estatais, a privatização das organizações e instituições governamentais relativas à habitação, aos transportes, à educação, à saúde e à previdência (IANNI, 1998, p. 28).
Essas transformações marcaram profundas mudanças nos processos produtivos, redefinindo os sentidos e significados do trabalho. O trabalho (lato sensu) entendido no modelo taylorista-fordista como um mecanismo de atuação individual, embora necessitasse globalmente de atividades coletivas, pouco ou nada regulamentadas, passou, em meados do século XX, por uma substancial regulamentação por parte do Estado: com direitos básicos assegurados por intermédio de legislações, reconhecimento das instituições sindicais e uma considerável tentativa de eliminação das distinções de classe. Logo, a chamada “cidadania regulada” (SANTOS, 1979) garantiu, prioritariamente aos assalariados, uma gama de políticas sociais voltadas particularmente ao trabalho, assistência social e previdência. Com a cooptação dos movimentos sindicais e da classe trabalhadora, as lutas sociais pelo avanço da transformação social foram se esvaindo e a esfera da luta coletiva ficou cerceada quase plenamente pela política institucional, abandonando os ímpetos da luta de classes e do processo de ruptura com o establishment.
Com o desmonte do Welfare State, a partir da década de 1970, as políticas econômicas – demandadas por uma nova forma de acumulação – buscaram desconstruir o cabedal de direitos sociais conquistados ao longo do século XX, investindo na lógica neoliberal e no discurso do individualismo de si. No âmago desse processo, ocorre a desestruturação das relações entre capital e trabalho marcada pela desregulação das relações trabalhistas, terceirização, redução de direitos, intensificação da extração das taxas de mais-valia, rompimento com a estabilidade do emprego e desarticulação com os movimentos sindicais e de classe (HARVEY, 1992).
Desse modo, o retrato mais crítico da classe trabalhadora no século XXI é determinado pela precarização do trabalho, com ausência ou existência parcial de garantias legais, no trabalho flexibilizado, temporário ou parcial, incutido na insegurança diária do desemprego estrutural e nas incertezas dos desdobramentos econômicos do capitalismo global. “Foi nesse contexto que o capital, em escala global, veio redesenhando novas e velhas modalidades de trabalho – o trabalho precário – com o objetivo de recuperar as formas econômicas, políticas e ideológicas da dominação burguesa” (ANTUNES, 2009, p. 233).
Considera-se trabalho temporário aquele estabelecido por meio de contrato com data final e de acordo com necessidades temporárias, amparado pela Consolidação das Leis Trabalhistas – Decreto-lei nº 5.452/43 (BRASIL, 1943) ou lei específica, selado entre empregador e empregado, notadamente, sem garantir o conjunto de direitos e garantias específicas ao trabalhador estável, ficando ainda mais claro esse contraste no âmbito do serviço público. Já o trabalho parcial, tipificado na Lei nº 13.467/17 (BRASIL, 2017), é aquele sob contrato parcial de trabalho, que não exceda trinta (30) horas semanais e sem a possibilidade de horas suplementares; as férias e o décimo terceiro salário são calculados proporcionalmente às condições estabelecidas em contrato.
Nessa lógica, é crescente o alargamento da chamada gig economy: expressão da base econômica, característica do século XXI e da forma de organização das relações de trabalho, na qual os trabalhadores são entendidos como prestadores de serviços, sendo pagos estritamente pelas atividades que desempenham, sem qualquer vínculo empregatício. São mediados por recursos tecnológicos, como smartphones e aplicativos, em que o prestador de serviço é contactado por meio dos apps para desempenhar a atividade que se propôs – a exemplo os motoristas de Uber –, não responsabilizando a empresa desenvolvedora do app por qualquer eventual ocorrência em relação ao trabalho prestado ou sobre os encargos de seu prestador.
Assim, nas novas metamorfoses do mundo do trabalho, a partir das tendências do neoliberalismo, do regime de acumulação flexível e da gig economy, o trabalho temporário ou parcial ganha ainda mais visibilidade e recorrência, e é sobre essa condição que se encontram os trabalhadores ACTs da Rede Estadual de Educação de Santa Catarina. Trabalhando de forma precária, sem a estabilidade do emprego e com restrições de direitos, esses trabalhadores precisam, a cada novo ano letivo, ir em busca de novas aulas que viabilizem um novo contrato de trabalho historicamente mais precarizado e instável.
Entre a instabilidade e a precarização: a condição de trabalho dos professores Admitidos em Caráter Temporário em Santa Catarina
Segundo o Censo Escolar realizado entre 2011 e 2015, na educação básica brasileira, ٤١٪ dos professores eram trabalhadores temporários, o que em números representa quase um milhão de profissionais (SEKI et al., 2017). Esses profissionais eram responsáveis pela educação de mais de 48 milhões de estudantes. Ainda hoje, quase metade dos professores da educação básica são submetidos à lógica da contratação temporária, sofrendo os riscos e consequências desse tipo de regime de trabalho.
Evidencia-se, a partir daqui, uma análise dos antecedentes à existência dos professores ACTs no magistério catarinense considerando sua presença massiva na rede pública estadual, as mudanças no ordenamento jurídico – a exemplo da Lei nº 11.738/08 que trata sobre o Piso Salarial Profissional Nacional do Magistério (BRASIL, 2008), as condições salarias e de carreira dos profissionais do magistério público estadual e a luta coletiva constituída por meio do movimento sindical.
No Estado de Santa Catarina, o que predominou foi a presença dos não licenciados ministrando aulas nas escolas de ensino fundamental e médio. A contratação desses profissionais só começou de fato a ser interrompida com a Lei nº 6.032/82, que normatizou a contratação dos denominados professores admitidos em caráter temporário (ACT), estabelecendo a exigência de licenciatura ou do curso de magistério de nível médio para a investidura no magistério público estadual (BORGES, 1995). A referida lei também garantiu, até a promulgação da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), aos professores ACTs que atuavam há mais de cinco anos ininterruptos em vagas excedentes – ou seja, aquelas em que não havia professor titular – a efetivação no serviço público sem realização de concurso. Antes de serem denominados ACTs, esses professores eram chamados pela Secretaria de Estado da Educação (SED/SC) de professores designados.
Para Borges (1995, p.120), os trabalhadores designados ou ACTs “constituem os boias-frias da educação escolarizada”. Segundo a autora, a prática da precarização das condições de trabalho em educação é costumeira, havendo inúmeras outras experiências semelhantes nos outros estados e municípios brasileiros, chamados de temporários, provisórios, substitutos, etc.
Conforme aventado, a precarização do trabalho é um fenômeno que emerge a partir das novas formas e relações de trabalho. Até mesmo o serviço público, anteriormente ajustado sob o ordenamento jurídico, calcado na estabilidade e na garantia de direitos, passa pelo processo de degradação legal das condições históricas de seus trabalhadores, sobretudo, no âmbito da educação. Substitui-se o trabalhador concursado/estável no serviço público pelo trabalhador temporário ou/e com regime parcial de trabalho.
Em 1993, a SED/SC tinha em seu quadro lotacional 25.067 servidores efetivos em exercício, 12.495 servidores efetivos inativos e 21.629 professores ACTs. Por conseguinte, 46% dos servidores ativos da autarquia eram trabalhadores temporários (BORGES, 1995). Considera-se servidor efetivo da SED/SC, aquele estatutário, admitido por concurso público ou com contrato vigente antes da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), nos termos da Lei nº 6.032/82 (SANTA CATARINA, 1982), divididos nos seguintes cargos: professor, assistente técnico-pedagógico, especialista em assuntos educacionais, assistente de educação e consultor educacional. Cabe ressaltar ainda que o trabalhador ACT pode ser contratado somente para a função de professor, sendo vedada a sua admissão para outras funções pedagógico-administrativas das unidades escolares. Ocasionalmente, os dados oficiais do conjunto de servidores da SED/SC não são divulgados por cargos, mas sim notificados entre concursados e temporários.
Em 2011, a SED/SC contava com 21.979 professores efetivos e 16.370 professores ACTs, os quais representavam 43% da categoria dos trabalhadores ativos do magistério catarinense (BASSI; DEBOVI; SANDRINI, 2012). Situação semelhante era a do estado de São Paulo que, no ano de 2010, contabilizava 34.249 professores não efetivos, denominados de temporários, eventuais ou em função-atividade, num montante que representava 53% dos servidores ativos da Secretaria Estadual de Educação (SEDUC/SP) (RIGOLON; VENCO, 2013).
Em Santa Catarina, os professores ACTs, assim como os demais servidores da Rede Estadual de Educação, são amparados no magistério público catarinense pelo Estatuto do Magistério Público do Estado de Santa Catarina – Lei nº 6.844/86 (SANTA CATARINA, 1986) e pela Lei Complementar nº 668/15 (SANTA CATARINA, 2015c) que tratam, dentre outras coisas, sobre o quadro funcional, atribuições e o plano de cargos e salários.
Factualmente, o estado de Santa Catarina, além de manter contingentes expressivos de professores temporários em seus quadros funcionais, que em diversos momentos superaram inclusive o conjunto de professores efetivos, manteve, também, em seus planos de cargos e salários, o rebaixamento do vencimento básico do magistério catarinense com uma série de vantagens pecuniárias em forma de gratificações (BASSI; DEBOVI; SANDRINI, 2012). Essa lógica foi rompida parcialmente em 2015, quando entrou em vigor a Lei nº 668/15 de autoria do Poder Executivo estadual e aprovada pela Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina (Alesc) (SANTA CATARINA, 2015c). Historicamente, a luta dos profissionais do magistério estadual foi pela valorização do vencimento base, com a manutenção das vantagens pecuniárias e, posteriormente, a aplicação do reajuste anual do Piso Salarial Profissional Nacional do Magistério sobre a carreira da categoria.
Observando o contexto em questão, não podemos deixar de destacar que, em 2008, foi promulgada a Lei nº 11.738/08 que trata sobre o Piso Salarial Profissional Nacional do Magistério, definindo o que seria entendido como vencimento inicial mínimo de que um profissional de nível médio da educação básica deveria receber, tendo como base a carga horária de ٤٠ horas semanais, reservando ١/3 à hora-atividade (BRASIL, 2008). Os governos dos estados de Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso do Sul e Ceará, ingressaram com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) nº 4.167 questionando a Lei do Piso Nacional, a interferência da União nos planos de cargos e salários e a desconsideração à dotação orçamentária dos estados e municípios (LEÃO, 2011). Em 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou improcedente e determinou que o piso deveria ser calculado sobre a remuneração, sem considerar as vantagens pecuniárias.
Em Santa Catarina, o descumprimento do piso nacional era tamanho que, em 2010, ele estava fixado em R$ 1.024,00 enquanto a remuneração estabelecida para o profissional de nível médio ou de licenciatura curta pela SED/SC era de R$ 609,46 (SANTA CATARINA, 2013). No ano seguinte, em 2011, após inúmeras rodadas de negociações sem acordos entre a Secretaria de Estado da Educação (SED/SC) e o Sindicato dos Trabalhadores em Educação na Rede Pública de Ensino do Estado de Santa Catarina (Sinte-SC), os profissionais da rede estadual entraram em greve. Estando entre as reinvindicações da categoria, lista-se: a aplicação do piso nacional na carreira com a manutenção das vantagens pecuniárias; reajuste no valor do auxílio-alimentação; a mudança na lógica de contratação e demissão dos professores ACTS; descompactação da tabela salarial; e a realização de concurso público (PEDREIRA, 2011).
O Sinte-SC é o sindicato que representa os trabalhadores em educação da Rede Estadual de Educação. Fundado em 1966, à época se chamava Alisc (Associação dos Licenciados de Santa Catarina) (CAMPOS, 2004). A Alisc foi fundada com o objetivo de representar os professores licenciados perante o poder público, haja vista que os concursos que ocorriam até então eram apenas para o cargo de professor primário (BORGES, 1995). Naquele momento, havia a proibição aos servidores públicos estaduais de se sindicalizar, o que fez com que a Alisc viesse a se tornar o Sinte-SC somente anos mais tarde. Assim sendo, em outubro de 1988, a Alisc converteu-se em Sinte-SC, ganhando o status de entidade sindical. Atualmente, o Sinte-SC é filiado à CUT (Central Única dos Trabalhadores) e a CNTE (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação).
Destaca-se que, a esta altura, abordaremos os processos de desconstrução dos direitos dos trabalhadores em educação do magistério catarinense, sobretudo dos professores ACTs, a sua resistência – por meio de duas greves (2011 e 2015) – e a efetiva intensificação da precarização de suas condições de trabalho.
A greve que se iniciou em maio de 2011 perdurou até 19 de julho do mesmo ano, perfazendo um total de 62 dias de paralisação. Ao final da paralisação, os trabalhadores da rede estadual não conquistaram o principal ponto da pauta de reinvindicações, ou seja, aplicação do piso sobre a carreira do magistério, que passou a ser aplicado sobre o vencimento do início da carreira, mas não sobre todos os níveis e referências (SOUZA, 2018); conquistando um ligeiro reajuste no auxílio-alimentação; a anistia das faltas da greve de 2008; e a realização de novo concurso público, que ocorreria em 2012. A greve de 2011 foi a maior da história do Sinte-SC em percentual de adesão dos trabalhadores em educação do magistério estadual, chegando a um quadro de 90% da categoria.
É importante pontuar que em ٢٠١١ o governo do estado encaminhou à Alesc o Projeto de Lei Complementar nº 0026.6/2011 que tratava sobre o escalonamento do pagamento das vantagens pecuniárias dos profissionais do magistério (SANTA CATARINA, 2011a). Em vez de atender às demandas da categoria, o governador Raimundo Colombo (DEM) passou a fragmentar as suas gratificações. Em vista disso, às vésperas da finalização da greve, a Alesc aprovou o projeto transformando em Lei Complementar nº 539/11 (SANTA CATARINA, 2011b).
O Projeto de Lei Complementar nº 0026.6/2011 previa pagamento das gratificações de regência de classe, de incentivo à ministração de aulas e de aulas excedentes de forma escalonada iniciando com uma redução de percentual com recomposição integral em janeiro de 2012 (SOUZA, 2018, p. 63).
Com o pagamento do piso nacional, os professores de nível médio ou de licenciatura curta, efetivos ou ACTs, foram os maiores beneficiados (BASSI; BOLLMANN, 2015), pois antes de 2011 não recebiam o piso – especialmente os ACTs, que possuíam licenciatura plena, enquadrados no nível inicial da carreira, receberam 39% de reajuste em 2011. Ainda segundo os autores, os servidores de carreira com nível superior e aqueles com pós-graduação (lato ou stricto sensu) – professores, técnicos, consultores ou especialistas em educação – foram prejudicados pelas políticas de reposição salarial dos governos de Santa Catarina entre os anos de 2003 a 2014, de forma que os estágios mais elevados do plano de cargos e salários foram os que menos receberam reajustes.
A contratação dos professores ACTs ocorre mediante prova escrita e de títulos, em que o candidato deve escolher no ato de inscrição uma das Coordenadorias Regionais de Educação (CRE). As três últimas provas escritas foram organizadas com vinte questões, sendo dez questões de conhecimentos específicos da disciplina/área escolhida pelo candidato e outras dez sobre conhecimentos gerais. Essas abordam temas gerais da educação, concepções teóricas e metodológicas do ensino e da aprendizagem, documentos oficiais nacionais e estaduais. São avaliadas: a habilitação correspondente a cada disciplina, o tempo de serviço no magistério catarinense e os cursos de pós-graduação lato ou stricto sensu.
Nos últimos quatro anos, as provas foram realizadas bienalmente (2017/2018 e 2019/2020). Após o chamamento dos candidatos aprovados pelas provas escritas e de títulos, se eventualmente ainda restarem vagas que não foram preenchidas por esses, realiza-se uma chamada pública com aqueles que não realizaram a prova, considerando-se, em primeiro momento, a titulação e o tempo de serviço.
Até 2015, o período mínimo para contratação de um professor ACT era de 15 dias e não podendo exceder um ano letivo (que geralmente se estende de fevereiro a dezembro). Esses trabalhadores ocupam vagas excedentes, nas quais não há professor efetivo, ou vinculadas, em que há professor efetivo, porém esse encontra-se afastado de suas funções por motivos de saúde, para exercer mandatos eletivos, funções gratificadas ou cargos comissionados.
Embora os professores ACTs historicamente não tenham gozado dos mesmos direitos dos professores concursados, até 2015 uma parte considerável dos direitos que esses possuíam se estendiam aos contratados temporariamente. A contribuição previdenciária era recolhida ao Regime Geral de Previdência Social (RGPS), os ACTs, tal como os efetivos, recebiam regência de classe, uma gratificação de 25% sobre a remuneração para professores dos anos finais do ensino fundamental e ensino médio, com ٤٠٪ nos anos iniciais do ensino fundamental e educação especial. Tinham acesso também à gratificação de incentivo à ministração de aulas, nesse caso, 25% da remuneração. Trabalhavam por módulos de aulas, dez horas (oito horas-aula), vinte horas (dezesseis horas-aula), trinta horas (24 horas-aula) e quarenta horas (32 horas-aula) e recebiam pelas aulas que excediam os módulos (2,5% a mais por aula excedente ministrada) (BOLLMANN; SOUZA, 2019).
Em 2015, essa realidade mudou drasticamente, pois, em 10 de fevereiro, o governo do estado encaminhou a medida provisória nº 198 que modificava a remuneração dos professores ACTs (SANTA CATARINA, 2015a). A MP foi alvo de inúmeras críticas do Sinte-SC e da categoria, sobretudo dos trabalhadores temporários. Sem avanços em negociações com a SED/SC, em 24 de março de 2015, a categoria deliberou, na assembleia do Sinte-SC, pelo início da greve. A reinvindicação era a revogação da MP 198, a não incorporação da regência de classe, a manutenção dos direitos dos ACTs e a discussão das questões pendentes da greve de 2011 (BOLLMANN; SOUZA, 2019). O movimento grevista perdurou por 72 dias, encerrando a greve em assembleia no dia 03 de junho de 2015. Embora a MP tenha sido retirada de tramitação, não houve avanços nas discussões que ficaram sem respostas na greve de 2011. Vale ressaltar que a greve de 2015 foi a maior do Sinte-SC em números de dias paralisados.
Ao “apagar das luzes”, em 28 de dezembro de 2015, a Alesc aprovou a PL 0517.3/2015 de origem do Poder Executivo (SANTA CATARINA, 2015b). Entre outras medidas, a Lei Complementar nº 668/15 previa um novo plano de cargos e salários para os servidores do magistério catarinense, com a extinção de gratificações como incentivo à ministração de aulas e as aulas excedentes, além da incorporação à remuneração da regência de classe. Os professores ACTs passariam a ser contratados como trabalhadores horistas, sendo pagos por hora/aula ministrada e não mais por módulos de aulas, como era até então, perderam, também, o direito ao triênio, além de serem atingidos igualmente pelo fim de vantagens pecuniárias (SANTA CATARINA, 2015c).
Cabe salientar que a partir da implementação da LC 668/2015, a realidade concreta para os trabalhadores em educação da Rede Estadual de Santa Catarina tornou-se ainda mais árdua. Os servidores de carreira presenciaram a compactação da tabela salarial e o congelamento do salário até o ano de 2018, além da perda de parte das vantagens pecuniárias. Já os ACTs foram subordinados à intensificação da lógica do trabalho parcial, precisando atuar em até quatro escolas para conseguir manter a carga horária de quarenta horas semanais, pagos por aula ministrada, sem estabilidade e tendo que se deslocar por diversos ambientes de trabalho, quando não muito, por diversos municípios. Os profissionais temporários não têm acesso ao plano de saúde dos servidores do Estado (Santa Catarina Saúde – SC Saúde) e não são remunerados pelos seus cursos de pós-graduação.
Outrossim, pela sua condição de trabalhador instável, certamente está mais suscetível às mudanças nas rotinas administrativas do poder público estadual. Atualmente, a contratação de um professor ACT é realizada para um período mínimo de cinco dias letivos, com pelo menos duas horas-aula. Frequentemente, a jornada de trabalho do professor temporário é indefinida, semelhante ao motorista de aplicativo. Em Santa Catarina, o ACT envolve-se numa relação de trabalho de curto período de tempo ou com um número drasticamente reduzido de aulas, na expectativa de poder ampliar sua carga horária ou seu contrato de trabalho. Não sendo mais contratado pelos módulos de aula, mas sim por aula ministrada, tornou-se um trabalhador estritamente horista, logo, recebe exclusivamente por aula ministrada, tal como o motorista de aplicativo, que recebe somente pela corrida realizada. Partilham sua jornada de trabalho em vários estabelecimentos de ensino, muitas vezes são responsáveis por ministrarem aulas de disciplinas das quais não possuem habilitação ou sequer proximidade com a sua formação inicial. Segundo Venco (2018), é evidente a proximidade entre os trabalhadores temporários em educação e um processo de quasi-uberização por conta das características estruturais do trabalho, delimitadas anteriormente.
Assinala-se, assim, que os processos de transformação das condições de trabalho dos professores ACTs levaram à intensificação da precarização de suas condições objetivas, materializando, além do trabalho temporário precário, o predomínio do trabalho parcial e um processo incipiente de quasi-uberização do trabalho (VENCO, 2018). Dada as complexidades dos movimentos de transformação do metabolismo social do capital, categorias como trabalho temporário, trabalho parcial e trabalho uberizado, vão assumindo um dinamismo teórico, processual e concreto, que se entrelaçam em novas configurações de trabalho, e, por conseguinte, borram cada vez mais os limites conceituais vinculados ao trabalho.
Ademais, os dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), relacionados ao Indicador de Adequação da Formação do Docente do Ensino Médio (2017), demonstravam que uma parte considerável dos profissionais dessa etapa da educação básica não possuíam diploma de licenciatura plena ou de bacharelado com complementação pedagógica na área em que atuavam. A maior gravidade se encontrava nas disciplinas de Artes, Filosofia, Física e Sociologia, nas quais mais de 50% dos profissionais não possuem formação minimamente adequada, sendo que em Sociologia a porcentagem chegou à casa dos 70%. Parte da permanência dessa situação é responsabilidade dos próprios sistemas de ensino, que insistem na complementação de carga horária dos professores em disciplinas da mesma área ou de áreas próximas, evitando assim a contratação de um novo profissional habilitado.
Salienta-se que, no arcabouço das reinvindicações históricas dos movimentos sociais e sindicais, formados pelos profissionais da educação básica e do ensino público, permanece em voga a luta pela realização de uma jornada de trabalho em uma única rede de ensino, preferencialmente em uma única escola, com o reconhecimento e o cumprimento do 1/3 de hora-atividade. Contrariamente, a realidade objetiva do Brasil contemporâneo enseja o inverso, resultando, dentre outras questões, na queda da qualidade social da educação, na precarização objetiva e subjetiva do trabalho docente e na falta de identificação e apropriação docente com a escola e a comunidade escolar.
O fenômeno do trabalho temporário implica também a própria organização da categoria dos trabalhadores em educação. A cisão entre aqueles que são concursados e aqueles que não são – os “empreendedores de si” no jargão neoliberal – leva a um esvaziamento dos movimentos de classe, pois as reinvindicações são circunscritas em diferentes naturezas, sob diferentes necessidades e possibilidades concretas de luta coletiva.
Em um contexto de elaboração e execução da Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/17), Reforma do Ensino Médio (Lei nº 13.415/17) e Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017), as tendências de precarização do trabalho ganham ainda mais fôlego. No tocante ao trabalho docente, particularmente os professores ACTs do estado de Santa Catarina, a já precarizada condição de trabalho dos profissionais temporários pode se tornar ainda mais fragilizada, passando, deste modo, a patamares ainda maiores e perversos de exploração.
A uberização do trabalho docente mostra-se como um futuro possível para as redes públicas em geral, utilizando-se do trabalho intermitente de seus professores de acordo com sua necessidade. Políticas educacionais que vêm sendo implementadas como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a Reforma do Ensino Médio com seus itinerários formativos e o incentivo à educação à distância tentem a agravar a uberização e, consequentemente, a precarização do trabalho docente (SILVA, 2019, p. 248).
Em suma, embora a sanha das políticas educacionais privatistas de desmonte da escola pública e do arrebatamento do trabalho docente não sejam novidade, no século XXI ganharam novas singularidades. Ao que parece, são os processos políticos fundados no discurso da redução de gastos e investimentos nas áreas sociais, aí a educação, que viabilizam junto aos interesses do capital a conversão de direitos historicamente conquistados em mercadorias. A precarização do trabalho docente, tal como a permanente condição dos trabalhadores temporários ou parciais, não é apenas ação ou a permanência dessa no âmbito dos governos, mas ora, signo de um projeto inacabado de descalabro dos trabalhadores em educação.
Considerações Finais
Demonstrou-se que, no que se refere ao trabalho docente, sobretudo para aqueles que atuam na educação básica brasileira, foi imposta a lógica hegemônica de contratação temporária. Dentro desta perspectiva, o estado de Santa Catarina manteve historicamente um contingente massivo de professores ACTs. Ao longo do trabalho, mostrou-se que, em três diferentes períodos, esses profissionais compreendiam ao menos 40% da categoria no magistério catarinense. Não sendo o único a proceder nesse modus operandi, grande parte dos estados e municípios brasileiros trabalham dentro da lógica de contratações temporárias para os quadros do magistério, comprometendo a qualidade social da educação pública e reverberando práticas de precarização do trabalho.
Aos professores temporários são negadas uma série de garantias legais que dispõem os servidores de carreira do magistério público. Sem plano de carreira, estabilidade no emprego ou garantia de um futuro profissional, esses trabalhadores são submetidos a crescentes práticas de violação da dignidade do trabalho. Em Santa Catarina, as múltiplas ofensivas dos sucessíveis governos do estado contra os trabalhadores em educação resultaram em substancial piora das condições de trabalho desses profissionais, especialmente para os ACTs, colocando-os em um processo de quasi-uberização do trabalho.
Na existência de contratos precários e ausência de direitos reconhecidos aos trabalhadores estatutários, grande parte dos professores ACTs percorrem inúmeras escolas vinculadas à CRE em que trabalham, tendo que estar sempre prontos a assumir novas aulas ou turmas. Estabelecem essa relação de trabalho, temporário e parcial, na tentativa de garantir uma previsibilidade salarial ao fim do mês. Deste modo, não se apropriam do espaço escolar e do conjunto de relações sociais dispostas nesse ambiente, permanecendo como sujeitos passageiros (VENCO, 2019). Associa-se esses aspectos ao processo de quasi-uberização, na medida em que essas condições de trabalho extrapolam cada vez as fronteiras entre trabalhadores temporários, trabalhadores parciais e trabalhadores nitidamente uberizados. Outra circunstância fundamental é a sua capacidade combalida de luta coletiva. Dividindo a categoria docente, fragmenta-se as lutas sociais, pois as demandas são definidas pelas especificidades das frações da categoria. E, para além disso, em relação aos trabalhadores ACTs, suas reivindicações se amparam na manutenção de suas condições precárias, guiadas pela possibilidade da conquista de uma gama maior de direitos, amenizando o superlativo da precariedade, ao invés de sua completa superação histórica (VENCO, 2019).
Na conjuntura atual, na qual o discurso preponderante aponta para a concepção de “empreendedor de si”, a educação é solapada pelo desmonte nos investimentos públicos e pela tendência de subtração de direitos dos profissionais que atuam na área. Se por um lado, o neoliberalismo estabeleceu uma nova racionalidade nas relações de trabalho, incutindo a polivalência e a redução da estabilidade do emprego, a extensão da uberização do trabalho pode significar a mais profunda ruptura das relações entre capital e trabalho, convertendo os profissionais da educação em “trabalhadores colaborativos” ou simplesmente prestadores de serviço.
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Recebido em 04/05/2020
Aceito em 22/09/2020
1 O trabalho contou com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
* Mestrando em Educação (Unesc), licenciado em Ciências Sociais (UFSC) e Professor efetivo de Sociologia da Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina (SED/SC). E-mail: fcostamatheus@gmail.com.
** Doutor em Educação (UFSC), professor do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc) e coordenador do Núcleo de Estudos sobre Formação Humana (Forma). E-mail: rrmueller@unesc.net.
2 Segundo Tom Slee (2017), a uberização do trabalho está vinculada à economia de compartilhamentos, que por sua vez está calcada nos processos da Revolução Tecnológica. A uberização do trabalho expõe uma lógica de trabalho supostamente sem patrão e sem empregado, haja vista que a Uber, embora seja proprietária do aplicativo de motoristas, não reconhece o seu vínculo com esses trabalhadores, não lhes garantindo os direitos sociais vigentes em cada território em que atua. Além disso, em grande medida, seus serviços não são tributados, não contribuindo igualmente com os encargos fiscais aos Estados. A partir disso, dar-se-ia a ideia de que seus empregados são, na verdade, colaboradores ou prestadores de serviço, responsabilizando-os pelas ferramentas inerentes às suas atividades: carro, combustível, seguro etc.
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 53, Junho/Dezembro de 2020, p. 181-197
TRABALHADORES FORMAIS COM NÍVEL SUPERIOR:
Análise para as regiões Nordeste e Sudeste (2006-2016)
FORMAL WORKERS WITH HIGHER EDUCATION:
Analysis for the Northeast and Southeast regions (2006-2016)
___________________________________
Carlos Eduardo Pereira do Nascimento1*
Wellington Rodrigues da Silva2**
Silvana Nunes de Queiroz3***
Resumo
O presente estudo objetiva analisar, comparativamente, através do perfil ocupacional, demográfico e socioeconômico, os trabalhadores com nível superior completo, ocupados em vagas formais, nas regiões Nordeste e Sudeste, nos anos de 2006 e 2016. Pretende-se mostrar as semelhanças, diferenças e mudanças ocorridas durante esse hiato temporal, em duas regiões distintas socialmente, geograficamente e em termos econômicos. Para tanto, faz-se uso de microdados da RAIS/MTE, informações do IBGE, InepData e do CNPq. Os resultados mostram que, em 2016, de maneira surpreendente, não se observa gap expressivo entre o percentual de empregados formais com nível superior no Sudeste (21,75%) e no Nordeste (20,25%). Entretanto o número de ocupados com esse tipo de qualificação é baixo e impede o crescimento do país, bem como demanda vagas mais precárias e que remuneram mal. Ademais, as mulheres empregadas com nível superior completo são maioria, especialmente no Nordeste, contudo, apresentam diferenças nos rendimentos em relação aos homens, reiterando o papel do componente de gênero e regional que atua na desvalorização da mão de obra feminina. Assim, é preciso políticas públicas específicas e focalizadas e mais discussão e estudos sobre essa questão, com o intuito de colocar em prática a igualdade de gênero e regional.
Palavras-Chave: Ensino Superior. Mercado de trabalho. Nordeste. Sudeste.
Abstract
The present study aims to analyze, comparatively, through the occupational, demographic and socioeconomic profile, workers with complete higher education, occupied in formal vacancies, in the Northeast and Southeast regions, in the years 2006 and 2016. It is intended to show the similarities, differences and changes that occurred during this time gap, in two distinct regions socially, geographically and in economic terms. For this, microdata from RAIS/MTE is used, information from IBGE, InepData and CNPq. The results show that in 2016, surprisingly, there is no significant gap between the percentage of formal employees with higher education in the Southeast (21.75%) and in the Northeast (20.25%). However, the number of employed persons with this type of qualification is low and impedes the country’s growth, as well as demanding more precarious and poorly paid vacancies. In addition, women employed with a university degree are the majority, especially in the Northeast, however, they have differences in income in relation to men, reiterating the role of the gender and regional component that acts in the devaluation of female labor. Thus, there is a need for specific and focused public policies, more discussion, and studies on this issue, in order to put gender and regional equality into practice.
Keywords: Higher Education. Labor Market. Northeast. Southeast.
1* Economista. Mestrando em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPECO/UFRN). Pesquisador do Grupo de Estudos em Territorialidades Econômicas e Desenvolvimento Regional e Urbano (GETEDRU) e do Grupo de Estudos e Pesquisas em Espaço, Trabalho, Inovação e Sustentabilidade (GEPETIS). E-mail: eduardocarlos2807@gmail.com.
2*** Economista. Bacharel em Economia pela Universidade Regional do Cariri (URCA). Pesquisador do Grupo de Estudos em Territorialidades Econômicas e Desenvolvimento Regional e Urbano (GETEDRU) e do Observatório das Migrações no Estado do Ceará (OMEC/URCA). E-mail: wellyngton.ce@hotmail.com
3*** Economista-Demógrafa. Doutora em Demografia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professora adjunta do Departamento de Economia da Universidade Regional do Cariri (URCA) e do Programa de Pós-graduação em Demografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGDem/UFRN). Coordenadora e pesquisadora do Observatório das Migrações no Estado do Ceará (OMEC/URCA). E-mail: silvanaqueirozce@yahoo.com.br.
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 53, Junho/Dezembro de 2020, p. 198-217
Introdução
Com a industrialização, a economia mundial vivencia o capitalismo industrial, com produções em larga escala, otimizando produtividade e tempo. Nas décadas de 1960 e 1970, a estrutura produtiva industrial começa a perder sua hegemonia com o advento da estrutura financeira (transferência de plantas produtivas), que garante ao capital maiores rendimentos, com menos custos e maior poder tecnológico. Com isso, ao longo do século XX, a educação se destaca no que tange à qualificação profissional, acesso ao mercado de trabalho, com esse cenário persistindo até o final da década de 1970.
Nesse contexto, a disparidade geracional quanto à educação melhora no que concerne ao novo paradigma produtivo das grandes economias no mundo. No Brasil, esse contexto se sobrepõe e marca as estruturas econômicas e do trabalho, modificando as bases que as conformam. Exemplos disso são os novos padrões de trabalho exigidos pelas empresas – trabalhadores polivalentes e qualificados (ANTUNES, 2009; MENEZES FILHO, 2001).
Esse cenário marca a intensa inter-relação entre educação e trabalho. Muitos que não obtiveram qualificações adequadas ficaram para trás, engendrando um grande exército de reserva ou ocupados em postos de trabalhos que remuneram mal e com alta rotatividade. Aliado a isso tem-se a disparidade regional no que tange à qualidade da mão de obra, possibilidade de empregos e rendimentos. Essa relação é ainda mais intensa entre as regiões Sudeste e Nordeste do Brasil, as quais apresentam dinâmicas econômicas diferenciadas marcadas historicamente (CASTRO, 1998; LIMA; ABDAL, 2007; SEGNINI, 2000).
Diante disso, o presente estudo tem como objetivo analisar, comparativamente, através do perfil ocupacional, demográfico e socioeconômico, os trabalhadores com nível superior completo, ocupados em vagas formais, nas regiões Nordeste e Sudeste, nos anos de 2006 e 2016. Para tanto, utilizou-se dados provenientes da Relação Anual de Informações Sociais do Ministério do Trabalho e Emprego (RAIS/MTE), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do InepData e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A metodologia utilizada é comparativa e explicativa (GIL, 2008), ao analisar a inter-relação entre educação e mercado de trabalho formal, focando no papel da formação do ensino superior para a promoção de equidades de gênero, salarial e entre as regiões.
Além desta introdução e das considerações finais, o trabalho conta com mais três seções: a segunda descreve, brevemente, a conformação desigual e histórica entre o Nordeste e o Sudeste; a terceira relata a evolução recente do ensino superior no Brasil; e, por último, a quarta analisa e compara as características dos trabalhadores com nível superior completo, ocupados em vagas formais, nas regiões Nordeste e Sudeste.
Conformação díspar histórica e econômica entre o nordeste e o sudeste
A formação socioeconômica do Brasil, apesar do tardio processo de crescimento econômico, instaura-se somente entre o final do século XIX e o primeiro quartel do século XX, com o paulatino rompimento do sistema agroexportador, que afetou o setor cafeeiro brasileiro. A partir da crise de 1929, tem-se a passagem do centro dinâmico da economia (café), por meio do incipiente Processo de Substituição de Importações (PSI) ou indústria nascente (FURTADO, 2007).
Mesmo iniciando o processo de industrialização na década de 1930, a consolidação dar-se-á somente no governo Juscelino Kubitscheck (1956-1961). Cabe frisar que a criação do parque industrial brasileiro se consolida rapidamente, mas concentrado na Região Sudeste, sobretudo no estado de São Paulo. Tal fato tem raízes na “formação social desigual, cujos determinantes são inteiramente endógenos e têm centro na política de alocação de terras e no atraso educacional propiciado por omissão ou insuficiência de políticas públicas” (ARAUJO; LIMA, 2010, p. 108).
Nesse contexto, as regiões Nordeste e Sudeste são importantes, visto que ambas comportaram os ciclos econômicos de maior dinamismo na era colonial e imperial (açúcar, algodão e café) brasileira, bem como são as que concentram maior população. Todavia tais regiões alimentam entre si uma disparidade inter-regional que se arrasta desde o século XIX e se acentuou no desenvolvimento urbano e industrial do país. Essa disparidade situa o Nordeste e o seu obsoletismo econômico não mais pela questão climática, mas pelas barreiras econômicas provenientes de sua formação histórica, além do aspecto inerente ao capitalismo, a desigualdade por natureza (ARAUJO; LIMA, 2010; LIMA JUNIOR, 2014).
A partir da década de 1950, o governo atenta-se ao fenômeno da seca que agravava as disparidades regionais e intensificava as migrações de longa distância, notadamente dirigida para o Sudeste, sobretudo o estado de São Paulo (NUNES; SILVA; QUEIROZ, 2017). Destarte, o papel estatal torna-se presente a partir da década de 1950, com o objetivo de reduzir as desigualdades regionais e econômicas no país, através da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste, a Sudene (ARAÚJO; SOUZA; LIMA, 1997; LIMA JUNIOR, 2014; QUEIROZ, 2013).
Como forma de superar o subdesenvolvimento da região, a Sudene tinha por atribuição diagnosticar as dotações do Nordeste e planejar o desenvolvimento regional – via modernização da agricultura, ampliação da oferta de infraestrutura e, principalmente, estímulo e fortalecimento da indústria e geração de trabalho (CARVALHO, 2008).
Almeida e Araujo (2004), ao analisarem a experiência da Sudene no comando do processo de industrialização do Nordeste, concluíram que, durante o período de 1960 até 2000, a região teve crescimento médio superior ao Brasil, porém, não foi capaz de melhorar as condições de vida da população e diminuir o número relativo de indigentes. A distribuição de renda e de terra praticamente não se alterou e a atividade industrial concentrou-se no litoral, bem como os postos de trabalho.
Concernente ao mercado de trabalho, o Nordeste enfrenta desvantagem no que tange ao papel do novo paradigma tecnológico, o qual exige níveis de escolaridade e conhecimento acima da média. Aliado a isso, comporta alguns setores que absorvem parte dos trabalhadores, como a fruticultura irrigada, agricultura, setor têxtil e calçadista, intensivos em mão de obra que, em geral, exigem menor qualificação e remuneram menos. Esses efeitos são decorrentes das políticas de desenvolvimento regional instauradas nas décadas de 1960 e 1970, engendrando uma diferenciação regional, em que alguns estados da região se beneficiaram mais celeremente do que outros (ARAÚJO, 1997; ARAÚJO; LIMA, 2010; ARAÚJO; SOUZA; LIMA, 1997).
Contudo, em anos recentes, em especial a partir dos anos 2000, com a relativa desconcentração espacial da atividade econômica do Sudeste em direção às regiões menos desenvolvidas (MORAIS, 2012), um dos diferenciais entre o Nordeste e o Sudeste passou a ser a capacidade de retenção e/ou absorção de mão de obra qualificada no mercado de trabalho. O estudo de Morais e Queiroz (2017) aponta, com base em informações do Censo Demográfico de 2000 e 2010, que no referido intervalo, entre as cinco grandes regiões do Brasil, o Sudeste foi a que mais perdeu migrantes qualificados, preferencialmente para o Centro-Oeste, notadamente o Distrito Federal. O Sudeste qualifica/prepara profissionais com nível superior, mas não consegue retê-los, seja por questões salariais, devido ao desemprego ou a melhores oportunidades em outras regiões. Por sua vez, o Nordeste apresentou-se como uma região que passou por constantes mudanças no saldo migratório de indivíduos qualificados, mas com um volume de perdas arrefecendo no período em estudo.
Ensino superior no Brasil
O ensino superior no Brasil sempre sofreu com os gargalos do ensino básico, que historicamente tornou-se o principal obstáculo para o ingresso nas universidades. Diante do novo paradigma nas relações de trabalho, fruto do capitalismo flexibilizado e desregulamentado, o aumento da escolarização em nível superior torna-se crucial para o desenvolvimento do país e a inserção no mercado de trabalho, cada vez mais exigente e seletivo.
No final dos anos 1990, a taxa de escolarização bruta1 de alguns países da Europa e América do Norte são expressivas. O líder em jovens neste ensino é os Estados Unidos, com pouco mais de 80%. Os países europeus apresentam taxas menores, com patamar em torno dos 50%. O Brasil conta com apenas 13% dos jovens entre 20 e 24 anos no ensino superior, próximo somente ao México e atrás de alguns países da América Latina, como por exemplo, Argentina (39%), Chile (27%) e Bolívia (23%) (CASTRO, 1998). Mas, em 2016, segundo o Censo do Ensino Superior, a taxa de jovens brasileiros entre 20 e 24 anos no ensino superior chegou a 32,63%, representando mais do que o dobro do observado nos anos 1990, mas bem abaixo da média dos países desenvolvidos.
Fato importante a ser frisado é o papel das Instituições de Ensino Superior (as IES) privada e pública. A expansão é necessária, mas não somente com IES privada. A manutenção das universidades voltadas à pesquisa constitui suporte indispensável ao país. Nesse sentido, é necessário assegurar equilíbrio entre os setores público e privado no processo de expansão (CASTRO, 1998).
Gráfico 1: Número de vagas oferecidas, candidatos inscritos
e ingressos nas IES - Brasil - 2009-2017
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados da Sinopse Estatística Superior (INEP, 2017).
No Brasil, a partir dos anos 2000, houve grandes avanços concernentes às políticas de incentivo e desenvolvimento ao ensino superior, tanto que pode ser evidenciado aumento no número de vagas, inscritos e ingressantes nesse ensino, conforme aponta o Gráfico 1. Entre 2009 e 2017, o número de vagas oferecidas atinge os quatro milhões, com pequenas oscilações para baixo em 2009-2010 e 2016-2017. Com relação ao número de inscritos, esse se eleva vertiginosamente no referido período, com aumento de 120,03% (atinge o ápice em 2015, com 14.026.122 inscritos, isto é, um aumento de 125,37%). De forma geral, o que se observa é a alta demanda por vagas no ensino superior que suplanta a oferta ainda baixa pelas IES.
Por sua vez, segundo o Censo do Ensino Superior (2016), o número de IES privadas é quase sete vezes maior em relação ao número de IES públicas. Ao todo, são 2.407 IES em 2016, das quais o setor privado representa 87,7%, dispondo de 2.111 instituições. No setor público, o governo federal dispõe de 107 instituições (4,4%), o governo estadual 123 (5,1%) e o governo municipal munido de 45 (1,9%). Nesse sentido, o foco não está em suprir a demanda existente, mas em lançar bases ao promover “concomitantemente a diversificação do sistema, a melhoria das condições de oferta do ensino e a flexibilização da estrutura dos cursos e dos currículos” (CASTRO, 1998, p. 39).
Para Bosi (2007), houve crescimento de aproximadamente 270% de IES privadas entre 1980 e 2004, enquanto apenas 53% foram registradas como IES públicas. Ainda segundo o autor, essa expansão foi causada principalmente durante o segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, o qual proporcionou uma multiplicação de IES privadas, enquanto estagnava o ensino público, advindo do arrocho orçamentário e do represamento de concursos (BOSI, 2007).
Regionalmente, as informações na Tabela 1 mostram concentração das IES no Sudeste (1.126 das 2.368 ou 47,55%, em 2014), seguido de longe pelo Nordeste, com 452 (18,5%) das 2.368 IES do Brasil. Por sua vez, as regiões seguintes são Sul, Centro-Oeste e Norte. Na verdade, o que se observa, entre 2009-2014, foi quase nenhuma alteração na distribuição relativa de IES entre as cinco grandes regiões.
Tabela 1: Número de IES - Grandes regiões do Brasil - 2009-2014
Região |
Número de IES
|
|||||||||||
2009 |
2010 |
2011 |
2012 |
2013 |
2014 |
|||||||
Abs. |
% |
Abs. |
% |
Abs. |
% |
Abs. |
% |
Abs. |
% |
Abs. |
% |
|
Norte |
147 |
6,35 |
146 |
6,14 |
152 |
6,43 |
154 |
6,37 |
146 |
6,11 |
149 |
6,29 |
Nordeste |
448 |
19,36 |
433 |
18,21 |
432 |
18,27 |
444 |
18,38 |
446 |
18,65 |
452 |
19,09 |
Sudeste |
1.090 |
47,10 |
1.169 |
49,16 |
1.157 |
48,92 |
1.173 |
48,55 |
1.145 |
47,89 |
1.126 |
47,55 |
Sul |
386 |
16,68 |
386 |
16,23 |
389 |
16,45 |
409 |
16,93 |
413 |
17,27 |
402 |
16,98 |
Centro-Oeste |
243 |
10,50 |
244 |
10,26 |
235 |
9,94 |
236 |
9,77 |
241 |
10,08 |
239 |
10,09 |
Total |
2.314 |
100,00 |
2.378 |
100,00 |
2.365 |
100,00 |
2.416 |
100,00 |
2.391 |
100,00 |
2.368 |
100,00 |
Fonte: InepData (2014).
O maior número absoluto de IES no Sudeste, em parte, é devido ao seu dinamismo econômico, maior contingente populacional, empresas, tecnologia, aliado à infraestrutura que proporciona a sua inserção nessa região. Um diferencial das IES do Sudeste é o aporte financeiro e científico produzido neste espaço, sobretudo pelas Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Destaca-se o quantitativo de pesquisadores cadastrados na Plataforma Lattes em relação aos níveis acadêmicos de doutores e mestres, segundo grande área, no Brasil. Para o ano de 2016, segundo o CNPq (2016), a quantidade de mestres cadastrados na plataforma é superior ao número de doutores, 364.827 e 218.581, respectivamente. Analisando por grande área, apenas nas áreas de Ciências Agrárias e Ciências Biológicas, o quantitativo de doutores é superior ao de mestres, ocorrendo o inverso nas demais áreas. Ressalta-se o elevado número de pesquisadores concentrados nas áreas de Ciências Humanas, Ciências Sociais Aplicadas e Ciências da Saúde.
Contudo um grande diferencial quanto à produção em outros países é a qualidade das publicações que ainda estão abaixo do esperado. A USP é a maior produtora de pesquisa com mais de 20% da produção nacional. Por sua vez, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a Unicamp, apesar dos problemas que enfrentam, têm produção científica acima dos níveis médios de outros países, como a Holanda, Rússia, Suíça, Turquia, Taiwan, Irã e Suécia (CROSS; THOMSON; SINCLAR, 2018).
Entretanto é preciso relativizar essas informações. Assim, o Gráfico 2 mostra resultados importantes em termos de distribuição das IES segundo Unidade da Federação (UF) e número de habitantes. Chama atenção, em 2009, a posição do Tocantins, Espírito Santo e o Distrito Federal, que estão em melhor situação, com 2,55, 2,52 e 2,42 IES para cada 100 mil habitantes, respectivamente. Portanto no Sudeste o destaque não foi o estado de São Paulo (1,34 IES por 100 mil habitantes) ou o Rio de Janeiro (0,86 IES por 100 mil habitantes), mas o Espírito Santo, menor UF da referida região em termos populacional e extensão territorial.
Por sua vez, o ano de 2014 mostra mudanças e/ou desconcentração das IES entre as UFs do Brasil, a partir do arrefecimento na posição principalmente do Tocantins. O Espírito Santo e o Distrito Federal permanecem em melhor situação, mesmo com a diminuição no número de IES por 100 mil habitantes. Nesse contexto, algumas UFs do Nordeste (Alagoas, Ceará, Piauí e Rio Grande do Norte) e do Sudeste (São Paulo) aumentaram o número de IES em relação ao número de habitantes (100 mil). Mas o que fica claro no Gráfico 2 é que alguns estados (Acre, Amapá, Espírito Santo, Mato Grosso, Paraná, Rondônia, Roraima e Santa Catarina) com menor número de habitantes, quando comparado a maior Unidade da Federação do país (São Paulo), estão em uma situação mais confortável.
Gráfico 2: Número de IES segundo Unidade Federativa por ١٠٠.٠٠٠ habitantes - ٢٠٠٩ e ٢٠١٤
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do InepData (2014) e SIDRA/IBGE (2020).
Portanto, a primeira década do século XXI apresenta melhora na educação superior do Brasil, a partir da quantidade de universidades públicas e privadas abertas. O governo federal buscou alimentar esse ensino, que gerou frutos, com o número de oportunidades no ensino superior, não somente na graduação, mas na pós-graduação (mestrado e doutorado), com melhora na distribuição entre as Unidades da Federação.
Trabalhadores formais com nível superior nas regiões nordeste e sudeste
Esta seção analisa e compara, através do perfil ocupacional, demográfico e socioeconômico, os trabalhadores com nível superior completo, ocupados em vagas formais, nas regiões Nordeste e Sudeste, nos anos de 2006 e 2016. Para tanto, inicialmente, descreve sucintamente os procedimentos metodológicos para o alcance dos objetivos propostos.
Procedimentos metodológicos
A RAIS/MTE é a principal fonte de dados deste estudo2. O recorte temporal compreende o intervalo de dez anos, precisamente os anos de 2006 e 2016. A escolha desse último ano de análise é devido a usarmos as informações mais recentes na época da escrita deste artigo. Com relação ao recorte geográfico, as unidades de análise são as regiões Nordeste e Sudeste do Brasil, conhecidas na literatura por suas diferenças econômicas, regionais, sociais, demográficas e climáticas.
As variáveis selecionadas para analisar e comparar o perfil ocupacional, demográfico e socioeconômico do trabalhador com nível superior completo foram: i) grande setor de atividade econômica; ii) tamanho do estabelecimento; iii) sexo; iv) faixa etária; v) faixa de tempo no emprego; e vi) faixa de remuneração em salário-mínimo.
Neste estudo, é considerado trabalhador com nível superior completo aquele que possui a partir dessa escolaridade, com isso, também contempla mestres, doutores e pós-doutores. Por sua vez, trabalhador com nível superior incompleto envolve desde os sem instrução até aqueles que não concluíram o ensino superior.
Perfil ocupacional
Com relação ao estoque de trabalhadores no Brasil, em 2006, o total no mercado formal era de 35.155.249. Dez anos depois (2016), passa para 46.060.198, com aumento de quase 11 milhões de novas vagas entre 2006 e 2016. O sentimento de pertencimento ao mundo formal além de ser um forte ativo, é um importante termômetro do crescimento econômico do país (LIMA; ABDAL, 2007), confirmado com as vagas criadas no intervalo em estudo (Tabela 2).
Tabela 2: Trabalhadores formais, formais com nível superior completo e formais com nível superior incompleto – Região Nordeste e Sudeste - 2006 e 2016
Região |
Trab. com nível sup. comp. |
Trab. com até sup. inc. |
Total de trabalhadores |
|||
Abs. |
% |
Abs. |
% |
Abs. |
% |
|
2006 |
||||||
Nordeste |
849.818 |
13,74 |
5.336.085 |
86,26 |
6.185.903 |
100 |
Sudeste |
2.843.690 |
15,68 |
15.296.478 |
84,32 |
18.140.168 |
100 |
Demais |
1.573.098 |
14,53 |
9.256.080 |
85,47 |
10.829.178 |
100 |
Brasil |
5.266.606 |
14,98 |
29.888.643 |
85,02 |
35.155.249 |
100 |
2016 |
||||||
Nordeste |
1.708.646 |
20,25 |
6.727.557 |
79,75 |
8.436.203 |
100 |
Sudeste |
4.969.602 |
21,75 |
17.881.573 |
78,25 |
22.851.175 |
100 |
Demais |
3.195.715 |
21,63 |
11.577.105 |
78,37 |
14.772.820 |
100 |
Brasil |
9.873.963 |
21,44 |
36.186.235 |
78,56 |
46.060.198 |
100 |
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados da RAIS/MTE.
Em termos de distribuição regional, em 2006, mais da metade das vagas do Brasil estão na região Sudeste (18.140.168 ou 51,60%), acompanhado de longe pelo Nordeste (6.185.903 ou 17,60%), mostrando as primeiras diferenças entre as regiões. Em 2016, a dinâmica regional modificou um pouco, com ligeiro arrefecimento na participação do Sudeste (49,61%) e aumento no Nordeste (18,32%), constatando-se pequena desconcentração dos postos de trabalho.
Diante desse cenário, e de outros que persistem há séculos, é imprescindível que o Estado brasileiro disponha de uma efetiva política de desenvolvimento regional, a qual considere a ampliação da base produtiva nacional e a eliminação das persistentes desigualdades social e econômica entre regiões, sobretudo às regiões Nordeste e Sudeste.
Quanto à escolaridade dos trabalhadores formais no Brasil, em 2006, a grande maioria (85,02%) tinha até o nível superior incompleto e, em 2016, arrefece para 78,56% (Tabela 2), revelando o baixo nível de instrução dos ocupados ou tipo de vagas demandadas pela economia, apesar dos investimentos realizados no ensino desde o primário até a pós-graduação, especialmente a partir de 2004.
Em nível regional, em 2006 e em 2016, os ocupados com até o nível superior incompleto no Sudeste (84,32% e 78,25%) e no Nordeste (86,26% e 79,75%) têm participações próximas, sendo o trabalhador do Sudeste ligeiramente mais escolarizado do que o do Nordeste, com uma diferença de 1,94% em 2006 e cai para 1,5% em 2016. Isso revela que a educação é baixa em todo o país e não há gap expressivo entre os ocupados nas duas regiões em apreço. Esse resultado surpreende, porque, em sua maioria, os indicadores revelam menor escolaridade para a população nordestina.
No tocante à população-alvo deste estudo, trabalhadores com nível superior completo, no Brasil: 14,98% ou 5.266.606 tinha essa instrução em 2006, elevando-se para 21,44% (ou 9.873.963) em 2016, o que revelou um crescimento de 6,46%. Apesar de vivenciar um período agudo de desemprego, com elevada participação da informalidade nos anos 1990, a partir de 2003 até 2014, o emprego formal cresceu e o nível educacional do trabalhador brasileiro melhorou (ANTUNES, 2009; HENRIQUE, 2016).
A distribuição regional mostra melhora na qualificação dos empregados nas duas grandes regiões em estudo. Em 2006, o Sudeste figura com 15,68% (ou 2.843.690) e o Nordeste com 13,74% (ou 849.818) com nível superior completo. Por sua vez, em 2016, a participação do Sudeste aumentou para 21,75% e no Nordeste para 20,25%, ficando abaixo da média nacional em 1,19% e em relação ao Sudeste em 1,5%.
Portanto, houve mudança na qualidade dos empregos, sobretudo nos anos 2000, destacando os setores mais modernos, e isso fez com que a educação tornasse os trabalhadores, de alguns nichos, mais habilidosos/qualificados. Diante disso, discorrer sobre tais questões e sua inter-relação evidencia a importância na conformação ou trajetória do mercado de trabalho (LIMA; ABDAL, 2007).
Com relação à ocupação dos trabalhadores formais com nível superior completo, segundo grande setor de atividade econômica, fica evidente a preponderância dos serviços nas duas grandes regiões, apesar do arrefecimento entre 2006 e 2016 (Gráfico 3). Contudo constata-se diferenças regionais, dado que, em 2006, sozinho, os serviços empregam 90,33% dos ocupados no Nordeste com nível superior completo, ao passo que o percentual é de 81,15% no Sudeste. Por sua vez, em 2016, a empregabilidade desse setor diminui para 88,75% no Nordeste e 78,80% no Sudeste.
Gráfico 3: Trabalhadores formais com nível superior completo segundo grande
setor de atividade econômica - Região Nordeste e Sudeste - 2006 e 2016 (em %)
Fonte: Elaboração própria a partir da RAIS/MTE.
Na década de 1990 e anos 2000, houve diminuição do emprego industrial formal com o consequente aumento no setor de serviços, consequência dos efeitos da reestruturação produtiva que engendraram dois movimentos: a terceirização e a modernização tecnológica das empresas. O primeiro efeito é a transferência de empregos não relacionados ao centro produtivo para o terciário. O segundo efeito é tratado por Castillo (1996): a liofilização organizacional, no qual ocorre a substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto, ou seja, a “diminuição do pessoal ocupado”, mediante aparato tecnológico “sem a diminuição da produção” (LIMA; ABDAL, 2007, p. 228).
Apesar de criar poucas oportunidades de trabalho, a indústria é o segundo setor que mais emprega com nível superior completo no Sudeste (em 2006 e em 2016) e no Nordeste (em 2006). A chamada Terceira Revolução Industrial ou revolução tecnocientífica, caracterizada pela substituição da eletromecânica pela tecnologia digital de base microeletrônica, rompe com o padrão de desenvolvimento estabelecido em boa parte do século XX (1930-1980), alterando, principalmente, a estrutura da produção industrial (MISSIO; VIEIRA; IAHN, 2006) e passando a demandar/exigir maior qualificação do trabalhador e menos mão de obra.
No intervalo em estudo, as ocupações na indústria no Nordeste apresentam discreto aumento, enquanto o Sudeste tem sutil declínio na participação relativa. Entretanto, em 2016, 11,39% dos ocupados com nível superior completo do Sudeste estão no referido setor, contra, somente, 4,82% no Nordeste. Não obstante a enorme disparidade socioeconômica inter-regional, pautada em uma concentração industrial e financeira, é necessário que o Estado olhe para as especificidades regionais, seus adjetivos intrínsecos que as tornam quem são e adote políticas de desenvolvimento regional eficientes, capazes de reduzir as persistentes e marcantes desigualdades entre o Nordeste e o Sudeste do Brasil.
O arrefecimento das vagas no ramo dos serviços, em certa medida, foi redistribuído com o comércio, que apresentou crescimento nas duas áreas em estudo, sendo, em 2016, o segundo maior empregador no Nordeste (4,97%) e o terceiro no Sudeste (7,98%).
No Gráfico 5 também é possível constatar que apesar dos elevados investimentos realizados no país no setor da construção civil, notadamente a partir de 2004 até 2016, com as obras de infraestrutura do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC I e II), programa habitacional Minha Casa Minha Vida, Transposição do Rio São Francisco, obras para a Copa do Mundo, Jogos Olímpicos, construção de metrôs em algumas capitais, a resposta em termos de empregos para aqueles com nível superior completo não foi expressiva em nenhuma das regiões, inclusive com diminuição relativa no Nordeste. Vagas para a construção civil foram criadas, sendo que, em sua maioria, para ocupações de baixa escolaridade (BUFON, 2015).
A agropecuária é a atividade que menos emprega no conjunto do país, independentemente da escolaridade do trabalhador (MATTEI, 2015). Com isso, a participação de trabalhadores com nível superior é inferior a 0,5%, em ambas as regiões, com decrescimento discreto no Nordeste e sutil aumento no Sudeste.
Com relação ao tamanho do estabelecimento (Gráfico 4), a maioria dos trabalhadores com nível superior completo – em ambas as regiões, nos dois momentos estudados – atuam em empresas de grande porte. Apesar de perder espaço, em 2016, mais de 50% das vagas são nesse tipo de estabelecimento. O arrefecimento das vagas no estabelecimento de grande porte foi redistribuído com trabalhadores no micro, pequeno e médio, que apresentou aumento relativo no intervalo em estudo, tanto no Nordeste quanto no Sudeste. Também chama atenção o Nordeste suplantar o Sudeste, com maior percentual de trabalhadores nesse tipo de empresa (grande porte).
Gráfico 4: Trabalhadores formais com nível superior completo segundo o tamanho
do estabelecimento – Região Nordeste e Sudeste - 2006 e 2016 (em %)
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados da RAIS/MTE.
Perfil demográfico e socioeconômico
No que se refere aos atributos pessoais do trabalhador com nível superior completo, predomina a ocupação feminina nas duas áreas em estudo. Além disso, entre 2006 e 2016, o ingresso delas aumentou em relação aos homens. Em termos de região, o Nordeste se destaca por apresentar 62,28% das vagas ocupadas por mulheres, enquanto no Sudeste foram 57,91% em 2016.
Gráfico 5: Trabalhadores formais com nível superior completo segundo sexo - Região Nordeste e Sudeste - 2006 e 2016 (em %)
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados da RAIS/MTE.
Esse resultado, além de confirmar que as mulheres são mais escolarizadas, também revela diferenças regionais, ao mostrar maior concentração no Nordeste. Essa característica, possivelmente, é devido à região possuir, proporcionalmente, maior contingente de mulheres chefes de família (MOURA; LOPES; SILVEIRA, 2016).
Quanto à faixa etária (Gráfico 6), o resultado mostra a concentração na idade produtiva, portanto, a mesma tendência constatada para o mercado de trabalho como um todo. Isso revela que, independentemente da escolaridade, em geral, as vagas são preenchidas pelo grupo etário de jovem adulto (30 a 39 anos), dado que, nessa idade, em geral, as pessoas já concluíram os estudos, apresentam maior vigor físico e possuem certa experiência profissional.
Gráfico 6: Trabalhadores formais com nível superior completo segundo faixa etária -
Região Nordeste e Sudeste - 2006 e 2016 (em %)
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados da RAIS/MTE.
No caso das mulheres, apesar do adiamento da maternidade, em geral, nessa faixa etária, elas já têm filhos e não precisam solicitar a licença maternidade. Com isso, tanto em 2006 quanto em 2016, no Nordeste e no Sudeste, mais de 30% das ocupações é para aqueles na faixa etária de 30 a 39 anos, seguido de 40 a 49 anos e 50 a 64 anos, com valores bastante semelhantes entre as regiões.
Por sua vez, a faixa etária de 18 a 24 anos e 25 a 29, em ambas as regiões, mostram diminuição em sua participação. Por outro lado, constata-se aumento daqueles com 65 anos ou mais. No caso das faixas etárias iniciais, esse resultado pode ser positivo, caso os jovens estejam se qualificando ainda mais, ao cursarem mestrado ou doutorado. Entretanto pode ser negativo, pois mesmo possuindo tal escolaridade, o mercado de trabalho pode não estar os absorvendo. Com relação a maior demanda por idosos, o aumento na expectativa de vida interfere nesse fator, também é possível que o mercado esteja demandando mão de obra mais experiente e/ou, por outro lado, esses tenham que retornar às atividades para complementar a renda familiar após aposentadoria.
Outra informação que se destaca é a estabilidade nos postos de trabalho, apesar do arrefecimento no tempo de emprego de 10 anos ou mais, tanto o Sudeste e, principalmente, o Nordeste, nos dois momentos estudados, a concentração é maior na faixa de 10 anos ou mais (Gráfico 7).
Gráfico 7: Trabalhadores formais com nível superior completo segundo faixa de tempo no emprego - Região Nordeste e Sudeste - 2006 e 2016 (em %)
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados da RAIS/MTE.
Ademais, também se observa diminuição nos empregos de menos de 1 ano. Esse resultado é devido às empresas que contratam mão de obra qualificada, ao investirem em capacitação e treinamentos, não estarem dispostas a demitir profissionais com esse perfil, dado que não encontram facilmente no mercado ou facilmente “substituem” esse tipo de profissional.
Outro resultado, que difere em relação aos estudos sobre o mercado de trabalho brasileiro ou regional, está presente no Gráfico 8, que mostra os trabalhadores com nível superior completo, em 2006, no Nordeste e Sudeste, concentrados na faixa de 5,01 até 10 salários. Contudo, em 2016, o Nordeste passa a ser maioria na faixa de 3,01 a 5, enquanto no Sudeste permanece de 5,01 até 10, apesar do decréscimo na participação relativa.
Gráfico 8: Trabalhadores formais com nível superior completo segundo faixa de remuneração em salário-mínimo - Região Nordeste e Sudeste - 2006 e 2016 (em %)
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados da RAIS/MTE.
Além disso, destoando de parte expressiva dos trabalhadores no Brasil, que auferem somente até 1 salário-mínimo (REMY; QUEIROZ; SILVA FILHO, 2011), aqueles com nível superior completo têm menor concentração nessa faixa de rendimento. Todavia, ainda assim, é alta a participação, nas duas regiões em estudo, com destaque para o Nordeste.
Neste sentido, trabalho e escolaridade são aspectos interligados pela qualificação profissional exigida pelo mercado. Assim, quanto maior a escolaridade, maiores são as chances de ocupar uma vaga. Todavia, não se configura como uma oportunidade proporcional a nível escolar – diante do grande contingente de desempregados e trabalhadores que aceitam ocupações por um salário mais baixo (SEGNINI, 2000), desvalorizando a mão de obra com nível superior. Isso porque a participação nas faixas salariais mais elevadas, 10,01 a 20, e, notadamente, acima de 20 salários também é pequena.
Para dá maior robustez ao estudo, dado que as mulheres ocupam a maioria das vagas em cargos com nível superior completo, tanto no Nordeste quanto no Sudeste (Gráfico 5), procurou-se verificar se entre os trabalhadores mais escolarizados permanece o componente de gênero através do diferencial de rendimentos. Com isso, no Gráfico 9, observa-se que mesmo possuindo a mesma escolaridade que os homens (nível superior completo), as mulheres ganham menos. De um lado, elas têm maior participação na faixa até 1 salário e, por outro lado, são minoria nos rendimentos acima de 20 salários, em ambas as regiões, estando em pior condição econômica/ocupacional no Nordeste.
Gráfico 9: Trabalhadores formais com nível superior completo segundo sexo e faixa de remuneração em salário-mínimo - Região Nordeste e Sudeste - 2006 (em %)
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados da RAIS/MTE.
Para se ter ideia do gap salarial, no Nordeste, em 2006, 10,96% dos homens com nível superior completo ganham mais de 20 salários e as mulheres figuram com somente 3,43%. Quanto ao Sudeste, chama atenção duas questões: i) eles e elas ganham mais em relação aos trabalhadores do Nordeste, sejam homens ou mulheres; ii) também se observa que o homem (18,10%) suplanta significativamente a participação feminina (5,41%) na faixa salarial mais elevada.
Conforme Leone e Baltar (2006), além do componente de gênero, a diferença salarial entre homens e mulheres, em parte, é devido às ocupações. O emprego feminino para o nível superior é maioria em atividades de educação, saúde e serviço social, enquanto para eles é na atividade industrial, setor financeiro e construção civil que, em geral, remuneram melhor.
Uma semelhança constatada no Gráfico 9 é que a maioria de homens e mulheres, em ambas as regiões, em 2006, se concentram na faixa de 5,01 a 10 salários, seguido de 3,01 a 5,0. Contudo, a partir do Gráfico 10, que mostra os resultados para o ano de 2016, é possível observar achatamento nos rendimentos, dado que a faixa salarial predominante passou a ser de 3,01 até 5 salários, nas duas regiões, para ambos os sexos. Isso porque a participação daqueles que auferem mais de 5,01 salários cai e, por outro lado, aumenta a participação na primeira faixa de rendimento até 5 salários.
Gráfico 10: Trabalhadores formais com nível superior completo segundo sexo e faixa de remuneração em salário-mínimo - Região Nordeste e Sudeste - 2016 (em %)
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados da RAIS/MTE.
Segnini (2000) corrobora o papel significativo da relação educação e trabalho, porém, também afirma que é insuficiente. Na contemporaneidade, o índice de precariedade presente nos diversos tipos de trabalho influencia nas condições empregatícias que sempre visam o bem-estar do capitalista. Com isso, a criação de políticas e ações concretas é necessária para possibilitar o real desenvolvimento social, econômico e direitos sociais, no mercado de trabalho (SEGNINI, 2000), entre homens e mulheres, e entre as regiões do Brasil.
Considerações finais
O presente estudo teve por objetivo analisar, comparativamente, através do perfil ocupacional, demográfico e socioeconômico, os trabalhadores com nível superior completo, ocupados em vagas formais, nas regiões Nordeste e Sudeste, no ano de 2006 e 2016. Pretendeu-se mostrar as semelhanças, diferenças e mudanças ocorridas durante esse hiato temporal, em duas regiões distintas socialmente, geograficamente e em termos econômicos.
Diante do exposto, constatou-se aumento de quase 11 milhões de novas vagas no mercado formal de trabalho brasileiro, entre 2006 e 2016, mas em termos regionais permanece uma grande disparidade, em que a região Sudeste detém 49,61% de todas as ocupações do país (41,9% da população), enquanto a região Nordeste é representada por apenas 18,32% (possui 27,6% da população nacional).
Com relação à população-alvo deste estudo, os trabalhadores com nível superior completo, apesar do crescimento de 6,46 pontos percentuais entre 2006 e 2016, 21,44% têm essa escolaridade no Brasil, no ano de 2016. Em termos regionais, de maneira surpreendente, não se observa gap expressivo entre o Sudeste (21,75%) e o Nordeste (20,25%) em termos de escolarização do empregado formal, mas o número de ocupados com esse tipo de qualificação é baixo e impede o crescimento do Brasil.
Quanto aos setores que mais empregam pessoas com ensino superior completo, o ramo de serviços se destacou, em ambas as regiões em estudo. Ademais, a indústria, em termos relativos, emprega significativamente mais no Sudeste quando comparado ao Nordeste. Analisando o tamanho do estabelecimento, a maioria dos trabalhadores com nível superior completo, em ambas as regiões, nos dois momentos estudados, atuam em empresas de grande porte, sendo a participação relativa no Nordeste maior.
No tocante ao perfil demográfico e socioeconômico dos trabalhadores com ensino superior completo, foi observado predominância de mulheres empregadas, em ambas as regiões, além de apresentar crescimento relativo entre 2006 e 2016. Com relação à faixa etária, nas duas regiões estudadas, há concentração na idade produtiva ou de jovem adulto (30 a 39 anos), grupo etário no qual o indivíduo possui maior experiência e vigor físico.
Outro destaque é a permanência no tempo de emprego formal, que mostra estabilidade para o trabalhador com nível superior completo, isso porque, constatou-se concentração na faixa de 10 anos ou mais no emprego, revelando que os trabalhadores conseguem fazer carreira na empresa, no Sudeste e no Nordeste, com destaque para essa última região.
As maiores diferenças foram relacionadas ao nível de rendimentos, destoando de grande parte dos trabalhadores no Brasil, que ganham somente até 1 salário-mínimo, tendo em vista que aqueles com nível superior completo estão em faixas mais elevadas, mas com expressivas diferenças regionais. No Nordeste, em 2016, a maioria dos empregados na formalidade ganha de 3,01 a 5 salários, enquanto no Sudeste, situam-se na faixa de 5,01 até 10 salários-mínimos, mas com achatamento nos rendimentos, ao longo dos 10 anos, nas duas regiões.
Outra diferença marcante é quanto ao sexo e rendimento. Mesmo sendo maioria relativa e absoluta, em ambas as regiões, com nível superior completo, as mulheres ocupadas auferem menores rendimentos quando comparadas aos homens. De um lado, elas têm maior participação na faixa de até 1 salário e, de outro lado, são minoria nos rendimentos acima de 20 salários, estando em pior condição econômica no Nordeste.
Portanto, apesar de no Sudeste e no Nordeste as mulheres com nível superior completo, ocupadas no mercado formal de trabalho, serem maioria, os rendimentos auferidos por essas, nas duas regiões em estudo, especialmente no Nordeste, apresentam diferenças marcantes em relação aos homens. Assim, o componente de gênero e diferenças regionais permanecem atuando na desvalorização da mão de obra feminina, merecendo políticas públicas focalizadas e específicas, além de mais debates e estudos sobre essa temática, com o intuito de colocar em prática a igualdade de gênero e regional.
Referências
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ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 2 ed. São Paulo: Boitempo, 2009.
ARAÚJO, Tania B. de. Herança de diferenciação e futuro de fragmentação. Estudos avançados, São Paulo, v. 11, n. 29, p. 7-36, 1997.
ARAUJO, Tarcísio P. de; LIMA, Roberto A. de. Aspectos estruturais do mercado de trabalho em contexto recente da economia brasileira: contraponto Nordeste-Sudeste. In: MORETTO, Amilton. et al. (org.). Economia, Desenvolvimento Regional e Mercado de Trabalho no Brasil. Fortaleza: Instituto de Desenvolvimento do Trabalho, 2010. p. 103-135.
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Recebido em 02/06/2020
Aceito em 22/09/2020
1 Percentual de jovens entre 20 e 24 anos que ingressaram no ensino superior.
2 A Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) foi criada em 1975, tem periodicidade anual, cobertura geográfica de todo o território nacional e coleta dados do mercado de trabalho formal brasileiro. Visa a suprir as necessidades de controle, estatísticas e informações das entidades governamentais da área social e estudos/pesquisas. Após a extinção do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), em 2019, ao qual a RAIS era vinculada, passou a pertencer ao Ministério da Economia (ME). Todas as empresas inscritas com CNPJ no Ministério da Fazenda e pessoas físicas que tenham, ou tenham tido, funcionários, no período referente às informações solicitadas, são obrigadas a declará-los. (MINISTÉRIO DA ECONOMIA, 2020).
O MITO DA OUTORGA E A ATUAL
LEGISLAÇÃO TRABALHISTA NO BRASIL
THE MYTH OF GRANTING AND CURRENT
LABOR LAW IN BRAZIL
____________________________________
Amauri Cesar Alves1*
Marina Souza Lima Rocha2**
Resumo
O presente artigo pretende debater a inconsistência do mito da outorga varguista e demonstrar que a Consolidação das Leis do Trabalho, em 1943, é fruto da pressão dos trabalhadores sobre o capital e o Estado e que esse instrumento normativo vem sendo vilipendiado pelo Estado neoliberal brasileiro, principalmente, a partir de 2017. A construção teórica se dá principalmente em torno da doutrina de Direito do Trabalho e da História, mas conta também com aportes das Ciências Sociais/Sociologia. O objetivo é demonstrar que a legislação trabalhista é fruto de conquistas sociais importantes e que, também por isso, deveria ser protegida. A conclusão é que o Direito do Trabalho cumpriu historicamente uma função de equilíbrio entre capital e trabalho, e sua destruição certamente trará impactos negativos para o sistema, com consequências que poderão ser graves para todos os envolvidos.
Palavras-chave: Mito da outorga. Getúlio Vargas. Direito do Trabalho. Crise.
Abstract
The present article intends to debate the inconsistency of the Getúlio Vargas “Myth of Granting” and demonstrate that the Consolidation of Labor Laws in 1943 is the result of the pressure of workers on capital and the State and that this normative instrument has been vilified by the Brazilian neo-liberal State, especially from 2017 onwards. The theoretical construction takes place mainly around the doctrine of Labor Law and History, but also includes contributions from Social Sciences/Sociology. The objective is to demonstrate that labor legislation is the result of important social achievements and that, for this reason, it should be protected. The conclusion is that Labor Law has historically fulfilled a function of balancing capital and labor, and its destruction will certainly have negative impacts on the system, with consequences that could be serious for all those involved.
Keywords: Myth of Grant. Getúlio Vargas. Labor Law. Crisis.
Introdução
O presente artigo pretende debater a inconsistência do mito da outorga varguista e demonstrar que a Consolidação das Leis do Trabalho, em 1943, é fruto da pressão dos trabalhadores sobre o capital e o Estado, que responderam com a consagração de direitos mínimos para a classe trabalhadora. A ideia é afirmar a preponderância dos trabalhadores na construção
1* Doutor, mestre e bacharel em Direito pela PUC Minas. Professor (Graduação e Mestrado) da Universidade Federal de Ouro Preto. Coordenador do Grupo de Estudos de Direito do Trabalho da UFOP. Avaliador de cursos de Graduação em Direito, INEP/MEC. Email: amauri.alves.dte@gmail.com
2** Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), mestranda e bolsista no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Ouro Preto (PPGD-UFOP), integrante do Grupo de Estudos de Direito do Trabalho da UFOP. E-mail: marinarocha.direito@gmail.com
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 53, Junho/Dezembro de 2020, p. 218-238
de direitos trabalhistas e denunciar a perda de direitos promovida pelo Estado brasileiro desde 2017, o que deve gerar a repulsa da classe trabalhadora, que afinal conquistou os direitos que agora são afetados por políticas neoliberais. A construção teórica se dá principalmente em torno da doutrina de Direito do Trabalho, da História e da Sociologia.
O artigo parte de problemas concretos: a legislação trabalhista é fruto de uma dádiva estatal, ou, mais precisamente, da outorga de Getúlio Vargas, ou é decorrente, dentre outros fatores, da luta da classe trabalhadora por direitos mínimos? As alterações legislativas havidas no Brasil pós-2017 significam destruição do patamar civilizatório de direitos trabalhistas? A ideia é relacionar conquistas normativas históricas e a atual perda de direitos trabalhistas, para chamar a atenção para a atuação do Estado neoliberal brasileiro dos dias de hoje.
Para que seja possível concretizar o que está proposto o artigo se estrutura em dois itens principais. O primeiro busca retomar o debate justrabalhista em torno do mito da outorga, para demonstrar suas origens, seus fundamentos e sua imprecisão. O segundo demonstra a atual destruição do Direito do Trabalho, fruto de ideário neoliberal implementado pelo governo Michel Temer e que segue seu curso no governo Bolsonaro. O objetivo é demonstrar que a legislação trabalhista é fruto de conquistas sociais históricas e que, também por isso, não deveria ser precarizada. A conclusão é que o Direito do Trabalho cumpriu historicamente uma função de equilíbrio entre capital e trabalho e sua destruição trará impactos negativos para o sistema.
História do Direito do Trabalho no Brasil:
a Era Vargas e a Consolidação das Leis do Trabalho
O período em que o poder executivo em âmbito nacional foi ocupado por Getúlio Vargas foi marcado por inúmeras inovações no modo de se fazer política. Seja qual for a visão adotada sobre Getúlio, não há como negar a sua popularidade e protagonismo no cenário político nacional. A relevância de Vargas para o Direito do Trabalho brasileiro também é inegável, vistos, exemplificativamente, os atuais debates pela preservação ou não de seu principal ponto de sustentação junto à classe trabalhadora de sua época, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). A luta da classe trabalhadora por direitos, entretanto, é anterior ao governo Vargas e não se esgota com ele.
Antecedentes históricos ao varguismo e a luta dos trabalhadores pela consagração de direitos
Analisar o nascimento e as transformações do direito do trabalho no Brasil, bem como das formas de organização da classe trabalhadora (dentre elas o sindicalismo) pressupõe uma reflexão, mesmo que superficial, de um triste período da história marcado pela escassez de direitos trabalhistas e de trabalho assalariado: a escravidão.
O período escravocrata durou de aproximadamente 1550 até 1888, com a abolição formal e juridicamente prevista pela Lei Áurea, mas ecoam graves e inúmeras consequências até os dias de hoje no Brasil. Tal fase da conturbada história brasileira foi marcada pelo racismo e pela utilização exaustiva de mão de obra, tendo como contraprestação castigos, maus-tratos e discriminação. Pessoas escravizadas trabalhavam, mas não tinham direitos trabalhistas, não recebiam salários e não tinham sequer reconhecimento jurídico como seres humanos. Porém uma coisa nunca lhes faltou: resistência.
Após mais de 300 anos de regime escravista, adveio o fim da escravidão, motivado por movimentos de resistência de pessoas escravizadas – que fundaram quilombos, quebraram instrumentos de trabalho e até as próprias senzalas (FAUSTO, 1995) –, por lutas abolicionistas e pela necessidade de modificação das relações de trabalho para se adaptar ao capitalismo industrial (ALVES, 2015). As formas de trabalho assalariado foram, em consequência disso, ganhando espaço e se consolidando no país. A abolição da escravidão, em 1888, “é referência histórica para as relações de trabalho no Brasil, visto que somente então se tornou possível o trabalho livre como hegemônico” (ALVES, 2015, p. 19).
Nos últimos anos do Império e nos primeiros anos da República começou a se desenvolver a nascente atividade industrial nas áreas urbanas, especificamente no Rio de Janeiro e em São Paulo. Financiada pelos lucros provenientes do café e contando com grande contingente de mão de obra estrangeira, a atividade industrial fez nascer a incipiente classe trabalhadora urbana no Brasil (FAUSTO, 2006).
As condições de trabalho nas indústrias eram degradantes, os salários baixos e as jornadas elevadas. Os trabalhadores quase não tinham direitos trabalhistas e o custo de vida nas cidades se mostrava demasiadamente alto. Também em razão disso, “desde o início da Primeira República surgiram expressões da organização e mobilização dos trabalhadores: partidos intitulados de operários [...] sindicatos, greves” (FAUSTO, 1995, p. 299). Em 1917, os trabalhadores brasileiros surpreenderam os patrões e o governo, e o Brasil parou para ver a maior greve já ocorrida até então que, de fato, mostrou a força do proletariado e assustou os detentores do poder. Nesse sentido, Fernanda Barreto Lira explica que:
[...] O Estado de São Paulo teve sua economia completamente paralisada naquele momento. Uma convulsão social sem precedentes apanhava de surpresa o Brasil. Os números revelaram que cem mil trabalhadores cruzaram os braços, em todos os setores produtivos e mesmo na esfera cultural. Todos os espetáculos foram adiados enquanto durasse o movimento. Em alguns casos, os pleitos chegaram a ser atendidos, mas as categorias profissionais mantiveram-se paradas, em solidariedade ao conjunto. (LIRA, 2009, p. 116).
Essa greve inspirou a classe operária a articular mais movimentos de luta, bem como a se reunir em sindicatos, que tentaram se organizar e principalmente se legitimar como representantes dos trabalhadores brasileiros. O crescimento da organização da classe trabalhadora trouxe como uma de suas consequências o aumento da repressão por parte do governo e das elites. Segundo Boris Fausto, “a onda grevista arrefeceu a partir de 1920, seja pela dificuldade de alcançar êxitos, seja pela repressão” (FAUSTO, 2006, p. 302). Fábio Campinho explica que “a repressão aos movimentos grevistas esteve presente em toda a República Velha, tendo preponderado na prática a visão do presidente Washington Rodrigues de que o problema social era caso de polícia” (CAMPINHO, 2006, p. 117).
Nos últimos anos da Primeira República surgem algumas normas isoladas que visam a incipiente regulamentação da relação capital-trabalho:
O crescimento do operariado urbano, sua dramática situação e seu potencial explosivo, já não podiam ser totalmente ignorados, o que não significa que tais leis foram realmente cumpridas. O importante é que, apesar de todas as limitações desta legislação, ela representava uma fenda na concepção liberal até então soberana na regulação das relações de trabalho (CAMPINHO, 2006, p. 122)
É necessário atentar-se para o fato de que mesmo com as greves que ocorreram na República Velha, com a criação de leis esparsas e a existência de movimentos e partidos que tentavam arregimentar a classe operária, ou falar em nome dela, trabalhadores e trabalhadoras continuavam em sua grande maioria carentes de direitos e de uma articulação organizada. Essa carência seria um campo fértil, nos anos 1930, para a ação do Estado por meio da política trabalhista de Getúlio Vargas (FAUSTO, 2006). Mas é importante compreender, desde já, que a carência de representação e organização não significa sua inexistência, pois homens e mulheres lutaram muito no início do século XX para que a classe trabalhadora fosse minimamente respeitada na sua relação com o capital. As greves e os movimentos operários e sociais em geral, ainda que atingissem percentual pequeno da incipiente classe trabalhadora urbana, demonstravam a força potencial dos movimentos organizados, o que certamente preocupava as elites dominantes.
Os trabalhadores reivindicavam direitos parecidos com os que vinham sendo garantidos em outros países. Segundo Vito Giannotti (2007, p. 112) entre esses direitos requeriam “8 horas de trabalho diário, salário-mínimo, descanso semanal, regulamentação do trabalho da mulher e dos menores, previdência social”.
A disputa ideológica, importante no nascimento do sindicalismo brasileiro, se concentrava principalmente entre anarquistas, comunistas, socialistas e amarelos, esses também chamados (até hoje) de “pelegos” (ALVES, 2015). Para controlar e conter insatisfações tanto da classe trabalhadora quanto dos donos dos meios de produção, Vargas jogava o jogo das marionetes, ao estilo de D. Pedro II no Segundo Reinado, que precisava agradar liberais e conservadores.
A política de Getúlio Vargas na regulamentação do mercado e do trabalho
O governo Vargas foi marcado pela tentativa de construção de uma identidade nacional forte e centralizada, tendo na figura do presidente o protagonista desse novo Brasil, principalmente durante o Estado Novo.
Há dois pontos que se destacam na política econômica e na regulamentação do mercado durante o governo Vargas: o setor cafeeiro e o setor industrial. Celso Furtado trata da economia de transição para um sistema industrial, em seu clássico “Formação Econômica do Brasil”. A análise específica da transição destaca a crise mundial de 1929, momento em que a exportação de café era artificialmente estimulada pelo Estado brasileiro e mantida em patamares sempre estáveis. Tal política estatal permitiu manter empregos em outros setores da economia (FURTADO, 1974). O problema, entretanto, era que “manter elevado o preço do café de forma persistente era criar condições para que o desequilíbrio entre oferta e procura se aprofundasse cada vez mais” (FURTADO, 1974, p. 182). Na década de 1930, tem início o declínio da produção e das exportações cafeeiras, “que vivia em regime de destruição de um terço do que produzia com um baixo nível de rentabilidade” e que por isso “afugentava desse setor os capitais que nele ainda se formavam.” (FURTADO, 1974, p. 197). Houve crescimento da participação econômica de produtos voltados ao mercado interno, o que foi um dos fatores de indução da atividade industrial. Celso Furtado explica:
O crescimento da procura de bens de capital, reflexo da expansão da produção para o mercado interno, e a forte elevação dos preços de importação desses bens, acarretada pela depreciação cambial, criaram condições propícias à instalação no país de uma indústria de bens de capital. (...) A procura de bens de capital cresceu exatamente numa etapa em que as possibilidades de importação eram as mais precárias possíveis (FURTADO, 1974, p. 199).
O governo não abandonou o setor cafeeiro e nem poderia fazê-lo, vez que ele era um dos grandes responsáveis pela sustentação econômica nacional e também por financiar a industrialização do Brasil e, sendo assim, buscou subsidiá-lo (FAUSTO, 2006). Vargas determinou a compra de grande parte do café produzido no Brasil e ordenou a queima de milhões de sacas para controlar ao máximo o preço do produto e fazer com que ele não se desvalorizasse substancialmente no exterior (FAUSTO, 2006). Ocorre que para realizar essa estratégia, o governo emitiu moeda, o que provocou inflação. Essa crise enfrentada pelo Brasil, de início, proporcionou um congelamento na ainda incipiente e frágil atividade industrial, vez que grande parte do dinheiro investido era proveniente dos lucros do setor cafeeiro. Porém, pouco tempo depois, no Estado Novo, ocorreria o desenvolvimento da industrialização do Brasil, baseada em substituição de importações. Segundo Boris Fausto:
A política econômico-financeira do Estado Novo representou uma mudança de orientação relativamente aos anos 1930-1937. Nesse primeiro período, não houve uma linha clara de incentivo ao setor industrial. O governo equilibrou-se entre os diferentes interesses, inclusive agrários, sendo também bastante sensível às pressões externas [...] A partir de novembro de 1937, o Estado embarcou com maior decisão em uma política de substituir importações pela produção interna e de estabelecer uma indústria de base. Os defensores dessa perspectiva ganharam força, tanto pelos problemas críticos do balanço de pagamentos, que vinham desde 1930, como pelos riscos crescentes de uma guerra mundial, que imporia, como realmente impôs, grandes restrições às importações. (FAUSTO, 2006, p. 369-370).
Vargas, então, iniciou uma política de valorização da industrialização brasileira, de estatização de setores fundamentais para o bom funcionamento da economia nacional e exaltação e exploração dos recursos naturais como minas e quedas de água (FAUSTO, 2006).
A principal consequência justrabalhista em relação ao desenvolvimento da atividade industrial, marcadamente urbana, foi a necessidade de expansão do mercado consumidor interno, o que se deu por meio da consagração de direitos trabalhistas para empregados urbanos. Inicialmente, a legislação trabalhista abarcava apenas trabalhadores urbanos, fruto da regra contida no artigo 7º, alíneas “a” e “b”1, que expressamente excluía da proteção celetista os trabalhadores domésticos e rurais. A escolha de Vargas por esse modelo excludente atendia aos anseios da indústria por mercado consumidor interno e não desagradava o setor agroexportador, que não aceitava suportar o ônus decorrente de direitos trabalhistas, que poderiam encarecer seu produto no mercado internacional.
Paralelamente à CLT, o Estado brasileiro manteve os trabalhadores rurais, que na primeira metade do século XX eram maioria da classe trabalhadora, à margem do sistema protetivo. Vargas, então, estabeleceu o poder da norma jurídica heterônoma e cogente no trabalho urbano, mas manteve a influência coronelista para o trabalho rural, que seguiu inconteste durante todo o seu governo. Francisco Weffort (2003, p. 79) lembra que “o novo regime já não é oligárquico, não obstante as oligarquias não tenham sido fundamentalmente afetadas em suas funções de hegemonia social e política nos níveis local e regional”.
Outro grande destaque da política varguista foi a regulamentação dos sindicatos e dos direitos trabalhistas como uma forma de controle da classe trabalhadora, de seus movimentos de resistência e de forçar a “colaboração de classes” (PARANHOS, 1999). Ao regulamentar a relação capital-trabalho, Vargas se apresentou como o político que se preocupou com os trabalhadores, sem, entretanto, negar os interesses dos patrões:
Mal foi empossado na presidência da República, em 3 de novembro de 1930, Getúlio Vargas criou, no dia 26 desse mês, o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (MTIC), órgão de tremenda importância para a tentativa de dar corpo ao projeto estatal. A contenção da luta de classes em favor da cooperação orgânica entre as classes, e entre estas e o Estado, seria uma divisa ideológica da ação do Governo Vargas, em nome da paz social e da prosperidade da nação (PARANHOS, 1999, p. 85).
Vargas estabeleceu o controle da formação e atuação dos sindicatos no Brasil, que deveriam seguir as diretrizes impostas pelo presidente e se submeter ao poder do Estado. O sindicato passou a ser constituído como um órgão de colaboração com o poder público, o que se sustentava pelo modelo de unicidade sindical adotado. Alguns grupos de trabalhadores tentaram resistir a esse modelo imposto de sindicalismo, que retirava a autonomia de um órgão cuja existência se justificava e se justifica até os dias de hoje na representação de sujeitos hipossuficientes na relação capital-trabalho. As tentativas de resistência foram combatidas, seja pela força policial, seja por estratégias como a seguinte:
Para ter acesso à Justiça do Trabalho, o empregado tinha de ser membro do sindicato. Isso significava, na prática, que, se estivesse fora do sindicato, sua situação seria difícil. Como se dizia na época, “só quem tem ofício tem benefício” – ter ofício significava ter carteira assinada e ser membro de sindicato legal. Era um modo não só de isolar as lideranças mais independentes e agressivas, como de atrair os trabalhadores para a vida sindical. Com o passar do tempo, até os anarquistas tiveram de aderir a esses sindicatos oficiais, embora tentando resistir dentro deles (VIANA, 2013, p. 50).
Em relação aos direitos trabalhistas, o governo Vargas buscou criar uma imagem amigável tanto com a classe trabalhadora quanto com os empregadores. A regulamentação do trabalho foi realizada de maneira estratégica para pacificar a classe trabalhadora, desencorajando-a a realizar movimentos autônomos na busca por direitos. A ideia de conciliação de classes é presente nos discursos de Getúlio Vargas, que nega o conflito e constrói sua imagem populista em torno dessa negativa:
Em uma palavra, na adesão das massas ao populismo tende necessariamente a obscurecer-se a divisão real da sociedade em classes com interesses sociais conflitivos, e a estabelecer-se a idéia do povo (ou da nação) como uma comunidade de interesses solidários. O que é vedado às classes dominadas como tais — reconhecer a dominação das demais classes em situação de crise hegemônica — é permitido aos indivíduos que as compõem pelo “subterfúgio” do reconhecimento das lideranças populistas. (WEFFORT, 2003, p. 178).
Francisco Weffort apresenta caracterização formal do populismo que, embora seja, segundo o autor, insuficiente para abranger todo o fenômeno, é útil para a sua compreensão. Além disso, especificamente para os fins do presente estudo, a caracterização abaixo serve para destacar os papeis de capital e trabalho:
Aí estabelecem-se as seguintes condições gerais para o populismo: 1 — “massificação”, provocada pela “proletarização” (de fato, mas não consciente) de amplas camadas de uma sociedade em desenvolvimento que desvincula os indivíduos de seus quadros sociais de origem e os reúne na “massa”, “conglomerado multitudinário de indivíduos, relacionados entre si por uma sociabilidade periférica e mecânica”; 2 — perda da “representatividade” da “classe dirigente” — e, em con- seqüência, de sua “exemplatidade” — que, assim, se transforma em “dominante”, parasitária; 3 — aliadas estas duas condições à presença de um líder dotado de carisma de massas, teríamos todas as possibilidades para o populismo se constituir e alcançar ampla significação social. (WEFFORT, 2003, p. 26).
O populismo de Vargas, diferente do coronelismo que ainda imperava paralelamente no campo, se desenvolveu nas regiões urbanas nascentes no século XX, marcadas pelo intenso desenvolvimento industrial, como São Paulo (WEFFORT, 2003). Enquanto o coronelismo “expressa um compromisso entre o poder público e o poder privado do grande proprietário de terras, o populismo é, essencialmente, a exaltação do poder público, é o próprio Estado colocando-se por meio do líder, em contato direto com os indivíduos reunidos na massa.” (WEFFORT, 2003, p. 27).
Na prática, e em geral, Getúlio Vargas garantia direitos trabalhistas já reclamados pelos trabalhadores urbanos, e que não confrontariam os interesses dos patrões, e imprimia, nesses direitos, a imagem de uma doação, um presente do Estado a esses sujeitos:
Nessas condições, simultaneamente à legislação social promulgada no Governo Vargas, entra em gestação a ideologia do trabalhismo. O Estado, à sua moda, procuraria apropriar-se da palavra operária, reelaborando-a, tanto quanto possível, ao sabor dos interesses dominantes. O que importa destacar, neste caso, ao contrário do que fazem as interpretações mais simplistas sobre os processos de dominação ideológica, é justamente a influência exercida pelas ideologias dominadas na produção das ideologias dominantes e/ou oficiais. As marcas impressas pelas lutas operárias se tornam bem perceptíveis (PARANHOS, 1999, p. 21).
Houve certo consenso histórico, também no âmbito jurídico, no sentido da outorga benevolente de direitos trabalhistas por Getúlio Vargas. O que se pretende demonstrar, em breve análise, é que há uma mistificação em torno dessa ideia, pois a classe trabalhadora brasileira teve papel fundamental na conquista de direitos, o que deveria implicar, também por isso, resistência organizada contra sua perda nos dias de hoje.
O mito da outorga e a participação da classe trabalhadora
na construção do Direito do Trabalho
Paira ainda hoje, no estudo das origens do texto da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o mito da outorga varguista, que apresenta os direitos trabalhistas não só como uma construção exclusiva do presidente e seu governo, mas sobretudo como uma concessão, um verdadeiro presente dado aos trabalhadores. Nas palavras de Márcio Túlio Viana (2013, p. 60), “a CLT nasceu num dia de festa um 1º de maio. Parecia mesmo um presente. E assim todo um passado de lutas se escondia”.
Evaristo de Moraes Filho destaca como relevante, para a criação de direitos trabalhistas, a mudança de perspectiva sobre a relação capital-trabalho na ordem internacional, que tem no Tratado de Versalhes e na criação da Organização Internacional do Trabalho importantes contribuições. Moraes Filho (1956) cita as principais recomendações do Tratado de Versalhes em matéria trabalhista: o reconhecimento de que trabalho não é mercadoria, direito de associação, salário razoável, jornada de 8 horas com limite de 48 horas de disponibilidade semanal de trabalho, repouso semanal, fim do trabalho infantil, igualdade salarial e de tratamento contratual sem discriminações e criação de serviços de inspeção e proteção ao trabalho.
Ao discorrer sobre os primórdios da Consolidação das Leis do Trabalho, Evaristo de Moraes Filho lembra do golpe de Estado perpetrado por Vargas, em 1937, que instituía um “Estado forte, ditatorial, baseado numa organização corporativa” (MORAES FILHO, 1960, p. 319). O citado autor discorre sobre a CLT em seu momento inicial:
A Consolidação foi útil, representa uma grande tarefa e ficará como um dos marcos mais notáveis da história do nosso direito especial. Sistematizou a legislação confusa e contraditória que possuíamos, harmonizou-a, tornou mais fácil o seu conhecimento e aplicação. (MORAES FILHO, 1960, p. 323).
Em relação ao Direito Material do Trabalho, a parte introdutória da CLT em sua origem
compreende as normas sobre o campo de aplicação da Consolidação e as exclusões correspondentes, o conceito de empregadores e seus equiparados, o conceito de grupo econômico consorcial, a definição de empregado, a de serviços efetivo, os princípios da equiparação salarial e da continuidade da relação de emprego”, a proteção do trabalho em domicílio, as fontes do direito do trabalho e as regras para a sua interpretação, além da prescrição genérica. (MORAES FILHO, 1960, p. 323).
Sobre as normas especiais de tutela do trabalho, destaca Moraes Filho, no que interessa diretamente ao presente estudo, “Identificação profissional, duração do trabalho, salário-mínimo, férias, higiene e segurança do trabalho” além de “disposições gerais do contrato individual de trabalho, remuneração, alteração, suspensão e interrupção, rescisão, aviso prévio, estabilidade, força maior e distinções especiais.” (MORAES FILHO, 1960, p. 324).
Tais direitos foram e são extremamente importantes para toda a classe trabalhadora, ainda mais em um cenário neoliberal como o atual, de precarização e exclusão deliberada de um número cada vez maior de pessoas que vivem do trabalho. Não se nega a importância de Vargas para a classe trabalhadora, vez que ele foi o primeiro grande político a, de fato, reconhecer a relevância desses sujeitos para o desenvolvimento nacional. Entretanto a crítica que este trabalho pretende fazer é em relação à ideia de simples concessão de direitos quando, na verdade, eles foram conquistados por movimentos de trabalhadores ao longo do tempo. Vargas sabia do poder de trabalhadores unidos e bem-organizados e, em razão disso, sempre defendeu uma suposta “conciliação” das classes patrocinada pelo Estado. Segundo Adalberto Paranhos (1999), o que Vargas fazia era, em última análise, roubar a fala dos trabalhadores, reformulá-la e devolver a eles como mito.
A ideia construída e propagada pelo governo varguista foi a de que no Brasil, nos anos 1930, não havia reivindicações dos trabalhadores em matéria de direitos trabalhistas. Veja-se o discurso de Salgado Filho, Ministro do Trabalho do governo Vargas:
[...] tendes uma legislação que vos foi concedida sem nenhuma exigência, imposição ou pressão de qualquer ordem, mas espontaneamente. E isso é exatamente o que constitui o traço predominante que nos coloca, em matéria de legislação social, acima de todos os países. O que se chama de reivindicações trabalhistas não foram jamais obtidas em qualquer país como estão sendo aqui verificadas. No Brasil não há reivindicações nesse assunto. Há concessões (COSTA, 2013, p. 22).
O mito da outorga, que considera direitos como dádivas, parece ser até mesmo anterior a Vargas. Teresa Sales, em seu artigo intitulado “Raízes da Desigualdade Social na Cultura Política Brasileira”, em uma tentativa de buscar a origem da construção da cidadania do brasileiro, afirma que ela teve sua primeira expressão naquilo que nomeou como “cidadania concedida”. Aponta que a cultura da cidadania concedida marcou o povo brasileiro ainda na sociedade escravocrata, quando mesmo “homens livres e pobres” eram inteiramente dependentes dos favores dos senhores de terras, encontrando-se sempre protegidos pelas “sombras de suas dádivas” (SALES, 1994, p. 1). Tal cultura manteve-se dominante na época de fazendas e engenhos coloniais, sobreviveu à abolição da escravatura, ao domínio coronelista e chegou até os dias atuais (SALES, 1994, p. 1). Conceituando e exemplificando a ideia perpetuada de dádivas concedidas aos cidadãos, Teresa Sales explica:
Essa cidadania concedida, voltando aos argumentos utilizados no início deste artigo, tem a ver com o próprio sentido da cultura política da dádiva. Os direitos básicos à vida, à liberdade individual, à justiça, à propriedade, ao trabalho; todos os direitos civis, enfim, para o nosso homem livre e pobre que vivia na órbita do domínio territorial, eram direitos que lhe chegavam como uma dádiva do senhor de terras. (SALES, 1994, p. 5)
Nota-se, portanto, a perpetuação na sociedade brasileira da ideia de que qualquer direito conquistado sempre foi, na verdade, concedido, outorgado, dado de presente pelos detentores do poder econômico, social e político. Segundo Teresa Sales, tal cultura é marcada por uma relação dialética entre mando e subserviência, ligada diretamente às raízes da desigualdade social no país (SALES, 1994, p. 8). Em tal relação, cada conceito se representa como a face de uma mesma moeda, posto que uma não existe sem a outra. A subserviência dos cidadãos é, certamente, imposta pelo “mando” daqueles que se encontram em posição de poder superior. Desta maneira, quando a relação tende a se desequilibrar, os detentores do “mando” tendem a “conceder” direitos à parte subserviente, não por mera benevolência (como é amplamente divulgado), mas unicamente pelo reestabelecimento da relação dialética de dominação anteriormente constituída (SALES, 1994).
Vargas tentou silenciar ou inibir o associativismo negro, com relativo sucesso. Petrônio Domingues, em verbete no “Dicionário da Escravidão e Liberdade”, registra que o Estado Novo “não conseguiu amordaçar tais associações; fez, porém, com que se retraíssem e perdessem parte do potencial reivindicativo. As que sobreviveram – como os clubes e as escolas de samba – tinham um caráter mais recreativo ou carnavalesco” (DOMINGUES, 2018, p. 117). Claudma Paiva Carvalho (2017) destaca o protagonismo negro na luta contra a escravidão e estuda suas implicações sociais. Por fim, nesse ponto específico e periférico da análise, é importante afirmar que a classe trabalhadora brasileira não nasce após 1888, mas se verificam sua existência e atuação bem antes, com a resistência dos negros ao regime escravista (ALVES, 2015). Enfim, a Princesa Isabel não concedeu graciosamente a liberdade dos negros, assim como Getúlio Vargas não deu à classe trabalhadora a legislação trabalhista.
Divulgou-se durante seu governo que Vargas antecipou qualquer reclamação, movimento operário ou greve, numa espécie de premonição genial que culminou na publicação da CLT posteriormente (CAMPANHA; BOSCHI, 2009). Contudo, entre os anos 1930 e 1940, emergiam greves, sobretudo nas grandes cidades, estando os trabalhadores mais do que cientes da importância dos movimentos de resistência como maneira de influenciar a política governamental:
Questiona-se, portanto, que Vargas, de forma “iluminada”, captava as necessidades dos trabalhadores sem que estes precisassem dizê-las. Retórica que passaria despercebida não fossem os registros que a própria história tradicional aponta sobre os inúmeros casos de greves que se alastraram na década de trinta, como a de maio de 1932, em São Paulo, e fortemente reprimida; a de 1935 no Rio de Janeiro, e que se alastrou por outras cidades, como Recife (CAMPANA; BOSCHI, 2009, p. 55)
A estratégia adotada pelo governo visava a desconstruir a luta de classes e a organização operária, pretendendo inculcar no inconsciente da população que esses movimentos deveriam ser vistos como agitadores, perturbadores da paz e, além de tudo, desnecessários, pois o que os trabalhadores necessitavam já estaria sendo concedido a eles como um presente do governo (CAMPANA; BOSCHI, 2009). O trabalhador brasileiro, como ser individualizado, de outro lado, deveria ser enxergado como pacífico e conivente com a política governamental, assim como um colaborador para um melhor desenvolvimento da economia.
O Estado, principalmente por meio do Ministério do Trabalho, atuaria juntamente aos sindicatos (patronais e de trabalhadores) como agentes corretivos, retificadores do movimento trabalhista, estabelecendo um diálogo entre o poder público, os empregadores e os trabalhadores (CAMPANA; BOSCHI, 2009). Tamanha foi a propaganda realizada em prol dessa ideia, principalmente através do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), que a historiografia continuou reproduzindo o discurso varguista como verdadeiro (COSTA, 2013) durante a maior parte do século XX.
Uma exceção à adesão ao mito da outorga veio de Evaristo de Moraes Filho, abaixo citado por John D. French:
... não houve outorga nenhuma [...] As massas operárias lutaram durante um triênio – e ainda lutam hoje e continuarão a lutar – pelo advento de leis que lhes melhorassem as condições de vida. Houve greves, lutas, sangue, desespero, prisões, morte. Como falar-se em pobres-diabos, sem líderes, sem idéias, sem aspirações que receberam tudo que se lhes queria dar como favores espontâneos e unilaterais? (MORAES FILHO, apud FRENCH, 2001, p. 84)
Há de se ressaltar, portanto, que embora o discurso do mito da outorga ainda seja propagado até os dias de hoje, a história do Direito do Trabalho no Brasil passa, essencialmente, pela luta dos trabalhadores para conquista de seus direitos. Há notícias de greves mesmo antes da Proclamação da República, como, por exemplo, a greve dos três jornais do Rio de Janeiro, no longínquo ano de 1858, em face das precárias condições de trabalho a que os trabalhadores eram submetidos (COSTA, 2013). Em função de tal movimento, segundo Adailton Pires Costa (2013), nenhum jornal circulou pelas ruas da cidade durante alguns dias.
É relativamente simples, historicamente, reconhecer quais são as outras fontes materiais, além da luta da classe trabalhadora, para a emergência do Direito do Trabalho no Brasil no início do século passado. Magda Barros Biavaschi (2007) relaciona a Encíclica Papal Rerum Novarum, o 1º Congresso Brasileiro de Direito Social, e diversas constituições sociais do início do século XX, além de Convenções Internacionais da OIT. Percebe-se, portanto, que de outorga pouco há na legislação trabalhista brasileira. O que há, de fato, é a luta operária, nacional e internacional, que culminou em respostas capitalistas, e até mesmo religiosas, no sentido do reconhecimento de direitos trabalhistas. Não há dádiva, mas conquistas. Importante, neste sentido, compreender o papel dos trabalhadores na construção dos seus direitos para que se reflita sobre sua relevância na preservação daquilo que foi duramente conquistado e que se encontra agora ameaçado tanto pelo capital quanto pelo Estado.
Destruição do direito do trabalho no século XXI:
legislação trabalhista neoliberal no Brasil
Nunca antes no Brasil, a classe trabalhadora se viu tão pressionada em relação às suas conquistas históricas quanto neste início de século. Nem mesmo a ditadura civil-militar, inaugurada em 1964, ameaçou ou agrediu tanto os direitos trabalhistas no país quanto o que se vê agora. O contexto atual de agressão à legislação trabalhista é fundamentado no neoliberalismo, que assola boa parte do mundo capitalista desde a década de 70 do século passado. Ao presente estudo interessa o neoliberalismo enquanto ausência do Estado nas relações intersubjetivas, dentre elas a relação de emprego. A ideia básica, implementada em diversos países, é reduzir o papel do Estado na regulamentação da relação capital-trabalho e, paralelamente, diminuir também a relevância do sindicato dos trabalhadores enquanto sujeito coletivo obreiro. A estratégia é criar o discurso da “modernização trabalhista”, posto que a CLT seria anacrônica, o que resulta agora na destruição da proteção normativa heterônoma estatal, intensificada pela pandemia do coronavírus.
O discurso da “modernização trabalhista” pelos detentores
do poder político no Brasil pós-2016
A tomada do poder por Michel Temer, em 2016, potencializa um discurso, recorrente, de fim da herança varguista caracterizada pela Consolidação das Leis do Trabalho e início da modernização das relações trabalhistas. Uma das primeiras reuniões públicas de Temer durante o processo de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff foi com a Confederação Nacional da Indústria (CNI), oportunidade em que ouviu vários de seus pleitos e críticas:
O presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Robson Braga, afirmou nesta terça-feira (16), após se reunir com o presidente da República em exercício Michel Temer, que a entidade pediu ao governo mudanças na legislação trabalhista. Integrantes do governo têm dito que pretendem enviar uma proposta de reforma ao Congresso ainda neste ano. Em julho, também após se reunir com Temer, o presidente da CNI já havia defendido que o Brasil deveria “estar aberto a mudanças” na legislação trabalhista para enfrentar a crise econômica. Ele citou o exemplo da França, onde o governo adotou uma reforma trabalhista que permite, entre outras medidas, que empresas negociem com empregados o aumento da jornada para até 60 horas semanais, em casos excepcionais. (MATOSO, 2016, n.p.).
O pedido da CNI foi concretizado quase que integralmente (ALVES, 2015; ALVES, ALVES, 2017) e pouco antes da entrada em vigor do texto da “Reforma Trabalhista” Michel Temer parece ter se apropriado da estratégia de Getúlio Vargas para tentar convencer a classe trabalhadora das vantagens de uma mudança na legislação:
A cerca de mês da entrada em vigor da polêmica reforma trabalhista, o presidente Michel Temer afirmou nesta quarta-feira (4) que o trabalhador e o empresário estão se unindo no país. “De um lado o trabalhador e de outro lado o empresário têm que fazer o que estão fazendo recentemente, se unindo, se unificando”, afirmou o presidente em discurso no Palácio do Planalto. (BOLDRINI; ALEGRETTI, 2017, n.p.).
Ora, fácil hoje identificar que o discurso presidencial nada teve de verdade. Naquele momento não havia, e hoje também não há, essa ideia de união, e muito menos unificação, dos interesses de capital e trabalho em torno de mudanças na legislação trabalhista. O patrão tem se mostrado ávido pelas mudanças prejudiciais ao trabalhador, que infelizmente não consegue resistir a contento, por enquanto. O que há, de fato, é a implementação de um receituário neoliberal que preconiza o individualismo do trabalhador, que majoritariamente tem de se abster da participação sindical para preservar seu emprego, bem como mostrar-se dócil diante do empregador, por saber dos riscos do desemprego, além de lutar sozinho para manter seu contrato e minimamente seus direitos, pois o Estado cada vez mais age contra a preservação da legislação protetiva.
Várias foram as manifestações de deputados e senadores quando da tramitação do texto da Reforma Trabalhista no Congresso Nacional a respeito da “herança varguista”, aqui representadas pelo relatório final do então deputado Rogério Marinho, que relacionava a CLT não só a Getúlio Vargas e ao Estado Novo, mas também ao fascismo do governo italiano de Mussolini:
O Brasil de 1943 não é o Brasil de 2017. Há 74 anos éramos um país rural, com mais de 60% da população no campo. Iniciando um processo de industrialização, vivíamos na ditadura do Estado Novo, apesar disso, o governo outorgou uma legislação trabalhista que preparava o país para o futuro. Uma legislação que regulamentava as necessidades do seu tempo, de forma a garantir os patamares mínimos de dignidade e respeito ao trabalhador. (...) Novas profissões surgiram e outras desapareceram, e as leis trabalhistas permanecem as mesmas. Inspiradas no fascismo de Mussolini, as regras da CLT foram pensadas para um Estado hipertrofiado, intromissivo, que tinha como diretriz a tutela exacerbada das pessoas e a invasão dos seus íntimos. (BRASIL, 2017, n.p.).
Um ano após a Reforma Trabalhista, mesmo sem ter de fato nada a comemorar, o ex-deputado (não reeleito em 2018), e atual ministro do governo Bolsonaro, Rogério Marinho, festejava no Twitter:
Após um ano constatamos que a herança peleguista da república sindical de Vargas começa a ruir, em 2018 a contribuição sindical que era obrigatória e passou a ser opcional foi reduzida em 86%. Agora sindicatos terão de ser relevantes e prestar serviços ou desaparecerão. (MARINHO, 2018, n.p).
É verdade que os sindicatos foram afetados, o que aliás está em consonância com um dos pilares iniciais do neoliberalismo inglês, sob Margaret Tatcher, na década de 1970. Em sentido contrário à comemoração do relator do texto, empregados e empregadores não têm o que comemorar. Hoje já é possível perceber que a Reforma Trabalhista de 2017 (leis 13.429 e 13.467 de 2017) não trouxe novos empregos, não diminuiu o desemprego (ao contrário) e não melhorou a vida da classe trabalhadora. Sequer melhorou acentuadamente as possibilidades fáticas de contratação pelo empregador. Prova disso é a profusão de reformas que sucederam e sucederão à primeira, sempre como o mesmo falacioso discurso, que agora volta à pauta.
A continuação da reforma trabalhista, agora sob Bolsonaro, se iniciou com o “Contrato de Trabalho Verde e Amarelo”, e também foi comemorada pela CNI com o mesmo discurso de “modernização”, ou seja, como ruptura com o passado celetista. Trata-se, também, de uma proposta normativa de ideologia neoliberal, pois deixa para as partes contratantes boa parte dos conteúdos mínimos de regulação da relação. Para a CNI, o novo contrato seria a continuidade “daquilo que temos chamado de modernização das leis trabalhistas e caminha no sentido do nosso desenvolvimento econômico. Estamos a tratar de uma nova modalidade que visa inserir jovens no mercado de trabalho, do qual hoje eles estão alijados” (ABREU, 2020, n.p.). As medidas reformistas seguintes de Bolsonaro são emergenciais, no contexto da pandemia do coronavírus, mas também foram comemoradas como modernização das relações de trabalho.
Destruição da proteção normativa heterônoma estatal pós-2016 e a pandemia do coronavírus
O início do século XXI será crucial para os destinos do Direito do Trabalho no Brasil e no mundo, sobretudo após a pandemia do novo coronavírus. Ao presente artigo interessam as estratégias do Estado brasileiro após 2017 na definição das novas normas de regulamentação da relação capital-trabalho, com destaque para o disposto nas leis 13.429/2017, 13.467/2017, 13.874/2019, MPV 905/2019, MPV 927/2020 e MPV 936/2020.2 Todas essas alterações podem ser compreendidas como parte do processo amplo de Reforma Trabalhista inaugurado pela legislação de 2017 no governo Temer e que infelizmente segue se aprofundando nos dias atuais.
Para os fins do presente artigo, o essencial é compreender brevemente os caminhos do Estado brasileiro ao patrocinar as propostas de mudança legislativa. A intenção neoliberal do governo Temer foi totalmente implementada no início da Reforma Trabalhista, em 2017, conforme fixado nas leis 13.429 e 13.467. Em seguida, com impacto menos intenso nos direitos individuais trabalhistas, foi editada a Lei 13.874/2019, denominada “Lei de Liberdade Econômica”, já no governo Bolsonaro, que tem parte de seu conteúdo voltado a alterações na CLT. Embora não tenha sido implementado em um primeiro momento, provavelmente o “Contrato de Trabalho Verde e Amarelo” voltará à discussão no Congresso Nacional. Além dessas amplas medidas de redução de direitos trabalhistas, houve opção pela edição de medidas provisórias para fazer face aos efeitos da pandemia do coronavírus. Embora a aplicação das medidas de redução de direitos durante a pandemia seja “transitória”, ela reflete bem as escolhas do Estado brasileiro em sua linha de atuação neoliberal.
Para retratar esse momento de mudança nos rumos da legislação trabalhista, segue o Quadro 1. A opção, até mesmo em razão do número enorme de temas, institutos e direitos trabalhistas impactados, foi por restringir a análise ao que é o centro do Direito Individual do Trabalho: duração do trabalho, remuneração e contrato.
Quadro 1 – Alteração da Legislação Trabalhista – 12/2017 a 05/2020
Alteração: redução de direitos |
Tema |
Norma Impactada |
Referência da alteração |
Tempo à disposição |
Duração do trabalho |
CLT, art. 4º. |
Lei 13.467/2017 |
Deslocamento interno |
Duração do trabalho |
CLT, art. 58 |
Lei 13.467/2017 |
Compensação de jornada |
Duração do trabalho |
CLT, art. 59 |
Lei 13.467/2017 |
12 x 36 sem intervalo |
Duração do trabalho |
CLT, art. 59 |
Lei 13.467/2017 |
Pagamento parcial de intervalo |
Duração do trabalho |
CLT, art. 71 |
Lei 13.467/2017 |
Intervalo de 30 minutos |
Duração do trabalho |
CLT, art. 71 |
Lei 13.467/2017 |
Horas in itinere |
Duração do trabalho |
CLT, art. 58 |
Lei 13.467/2017 |
Banco de Horas |
Duração do trabalho |
CLT, art. 59 |
Lei 13.467/2017 |
Jornada em ambiente insalubre |
Duração do trabalho |
CLT, art. 60 |
Lei 13.467/2017 |
Fracionamento das férias |
Duração do trabalho |
CLT, art. 134 |
Lei 13.467/2017 |
Regime de tempo parcial |
Remuneração |
CLT, art. 58-A |
Lei 13.467/2017 |
Teletrabalho sem horas extras |
Remuneração |
CLT, art. 62 |
Lei 13.467/2017 |
Prêmios sem natureza remuneratória |
Remuneração |
CLT, art. 457 |
Lei 13.467/2017 |
Exclusão de natureza remuneratória |
Remuneração |
CLT, art. 457 |
Lei 13.467/2017 |
Exclusão de gratificação de função |
Remuneração |
CLT, art. 468 |
Lei 13.467/2017 |
Equiparação, PCS e homologação |
Remuneração |
CLT, art. 461 |
Lei 13.467/2017 |
Logomarcas em uniformes |
Remuneração |
- |
Lei 13.467/2017 |
Termo de quitação anual de obrigações trabalhistas |
Remuneração |
- |
Lei 13.467/2017 |
Contratação formal de autônomo |
Contrato |
- |
Lei 13.467/2017 |
Trabalho intermitente |
Contrato |
- |
Lei 13.467/2017 |
Livre negociação “hipersuficiência” |
Contrato |
- |
Lei 13.467/2017 |
Terceirização irrestrita |
Contrato |
Lei 6.494/1974 |
Lei 13.429/2017 Lei 13.467/2017 |
Fim do ponto eletrônico |
Duração do trabalho |
CLT, art. 74 |
Lei 13.874/2019 |
Registro do ponto por exceção |
Duração do trabalho |
CLT, art. 74 |
Lei 13.874/2019 |
Ampliação do prazo de registro de CTPS |
Contrato |
CLT, art. 29 |
Lei 13.874/2019 |
“Direitos rescisórios” pagos mensalmente |
Remuneração |
CLT, art. 477 |
MPV 905/2019 |
Redução de alíquota FGTS para 2% |
Remuneração |
ADCT/CR 10, I. |
MPV 905/2019 |
Inaplicabilidade de multa por rescisão antecipada do contrato a termo |
Remuneração |
CLT, art. 479 |
MPV 905/2019 |
Liberação de trabalho aos domingos sem ônus e de modo irrestrito |
Duração do trabalho |
Lei 605/1949 |
MPV 905/2019 |
Trabalho dos bancários aos sábados |
Duração do trabalho |
CLT, art. 224 |
MPV 905/2019 |
Ampliação da duração do trabalho dos jornalistas |
Duração do trabalho |
CLT, art. 304 |
MPV 905/2019 |
Fim da natureza salarial da alimentação |
Remuneração |
CLT, art. 458 |
MPV 905/2019 |
Cobrança de INSS s/ Seguro Desemprego |
Remuneração |
Lei 8.212/1991 |
MPV 905/2019 |
Trabalho dos professores aos domingos |
Duração do trabalho |
CLT, art. 319 |
MPV 905/2019 |
Exclusão do acidente de percurso como acidente de trabalho e consequente garantia provisória de emprego |
Contrato |
Lei 8.213/1991 |
MPV 905/2019 |
Acordo individual de trabalho com preponderância sobre a lei, ACT, CCT. |
Contrato |
CR, art.7º, XXVI |
MPV 927/2020 |
Suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho |
Contrato |
CR, art. 7º, XXII |
MPV 927/2020 |
Implementação de teletrabalho independentemente de restrições contratuais, de ACT ou CCT |
Contrato |
CLT, art. 75-C CR, art.7º, XXVI |
MPV 927/2020 |
Antecipação de férias sem implementação de período aquisitivo |
Duração do trabalho |
CLT, art. 134 |
MPV 927/2020 |
Antecipação de férias futuras |
Duração do trabalho |
CLT, art. 136 |
MPV 927/2020 |
Suspensão de férias em curso, em serviços essenciais |
Duração do trabalho |
CLT, art. 134 |
MPV 927/2020 |
Conversão de 1/3 de férias como opção do empregador |
Remuneração |
CLT, art. 143 |
MPV 927/2020 |
Desnecessidade de antecipação dos valores referentes às férias |
Remuneração |
CLT, art. 145 |
MPV 927/2020 |
Antecipação de feriados |
Duração do trabalho |
Lei 605/1949 |
MPV 927/2020 |
Ampliação dos prazos máximos do Banco de Horas |
Duração do trabalho |
CLT, art. 59 |
MPV 927/2020 |
Afastamento do empregado para qualificação, sem pagamentos3 |
Remuneração |
CR, art. 7º, IV e VI |
MPV 927/2020 |
Flexibilização de jornada e períodos de descanso dos trabalhadores da área da saúde |
Duração do trabalho |
- |
MPV 927/2020 |
Desconsidera a COVID-19 como doença profissional, o que pode afastar a garantia provisória de emprego4 |
Contrato |
Lei 8.213/1991 |
MPV 927/2020 |
Redução de jornada e de salário sem negociação coletiva |
Remuneração |
CR, art. 7º, VI |
MPV 936/2020 |
Suspensão do contrato de trabalho sem salário integral, mas com benefícios governamentais, ainda que parciais |
Remuneração |
CR, art. 7º, VI |
MPV 936/2020 |
Fonte: elaborado pelos autores no âmbito do Grupo de Estudos Jurídicos COVID-19 da UFOP.
Esse rol significativo, com cinquenta medidas legislativas de redução de direitos, trata somente de três temas, como visto: duração do trabalho, remuneração e contrato. É apenas uma parte da estrutura de Direito Individual do Trabalho e as alterações aqui relacionadas representam parcialmente as perdas suportadas pela classe trabalhadora desde 2017. Há muitos outros direitos trabalhistas afetados nos últimos anos, seja em matéria de direito individual, coletivo, processual ou administrativo do trabalho, o que desafia a classe trabalhadora à luta pela reversão desse quadro caótico e pela proteção das suas conquistas sociais históricas, que, afinal, não foram uma benesse do Estado, mas, sim, fruto de muitas lutas.
Considerações finais
O que se pretendeu aqui demonstrar, portanto, é que as conquistas históricas da classe trabalhadora não deveriam ser objeto de alteração estatal sem que haja qualquer contrapartida para os empregados. Atuar somente em prol do patrão significa promover muito mais do que alteração legislativa, pois resulta em agressão às garantias sociais construídas historicamente e também em ruptura do equilíbrio sistêmico até então havido entre patrões e empregados no plano do Direito do Trabalho. A partir do momento em que patrões e Estado se desobrigam daquilo que consolidaram historicamente, a classe trabalhadora também pode e deve romper com o imobilismo e lutar ativamente pela preservação de suas conquistas, forçando ambos a rever seu posicionamento e a recompor as perdas até aqui experimentadas. Não houve dádiva estatal na construção dos direitos trabalhistas e, consequentemente, sua supressão não deveria ser imposta em prejuízo do interesse da maioria.
Referências
ABREU, Diego. Contrato Verde e Amarelo dá continuidade à modernização das leis trabalhistas. Portal da Indústria, Brasília, DF, 12 fev. 2020. Disponível em: https://conexaotrabalho.portaldaindustria.com.br/noticias/detalhe/trabalhista/modernizacao-e-desburocratizacao-trabalhista/contrato-verde-e-amarelo-da-continuidade-modernizacao-das-leis-trabalhistas/ Acesso em: 04 ago. 2020
ALVES, Amauri Cesar; ALVES, Roberto das Graças. Reforma Trabalhista e o Novo “Direito do Capital”. Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária, v. XXIX, p. 47-74, 2017.
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Recebido em 15/06/2020
Aceito em 24/07/2020
1 Art. 7º Os preceitos constantes da presente Consolidação salvo quando fôr em cada caso, expressamente determinado em contrário, não se aplicam: a) aos empregados domésticos, assim considerados, de um modo geral, os que prestam serviços de natureza não-econômica à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas; b) aos trabalhadores rurais, assim considerados aqueles que, exercendo funções diretamente ligadas à agricultura e à pecuária, não sejam empregados em atividades que, pelos métodos de execução dos respectivos trabalhos ou pela finalidade de suas operações, se classifiquem como industriais ou comerciais; (BRASIL, 1943).
2 Em relação às medidas provisórias, independentemente de alteração, rejeição ou aprovação pelo Congresso Nacional (o Executivo encontra grandes dificuldades de aprovação de MPV’s, graças à sua dificuldade de diálogo democrático), importante será compreender o que o governo Bolsonaro pretende para as relações capital-trabalho.
3 O artigo 18 da MPV 927/2020 foi revogado pela MPV 928/2020.
4 Eficácia suspensa pelo STF em sede de ADIs 6375 e 6377.
OFENSIVA PATRONAL E VULNERABILIDADE LABORAL:
os efeitos iniciais da reforma trabalhista a partir do relato de empresários
e sindicalistas da indústria de confecção paulista
EMPLOYERS OFFENSIVE AND WORKERS VULNERABILITY:
the early effects of labor law reform based on the perspective of entrepreneurs and trade unionists from the apparel sector in São Paulo state
____________________________________
Ana Paula Fregnani Colombi1*
Patrícia Rocha Lemos2**
Ellen Gallerani Corrêa3***
Resumo
Este artigo analisa os efeitos iniciais da reforma trabalhista de 2017 no ramo de confecções do estado de São Paulo. O universo da pesquisa foi composto por entrevistas semiestruturadas com proprietários de pequenas e grandes empresas da indústria de confecção, um representante da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit), dirigentes sindicais do segmento e pela análise de negociações coletivas. Por investigar um fenômeno recente, a pesquisa teve caráter exploratório e buscou identificar as disputas em torno dos principais dispositivos da nova legislação a partir do relato dos empresários e sindicalistas pesquisados. Os resultados apontam para a ampliação da terceirização e do contrato temporário e a configuração de um cenário adverso para a atuação dos sindicatos. Para além de mudanças que reforçam a flexibilização das relações de trabalho, mostra-se que essas alterações contribuem para aprofundar uma prática política e social neoliberal que dissemina a privatização das condutas e a lógica de riscos. Com isso, a relação de assalariamento vai sendo transformada pela queda progressiva de sua dimensão pública.
Palavras-chave: Reforma trabalhista. Confecção. Neoliberalismo. Vulnerabilidade laboral.
Abstract
This article analyses the initial effects of the labor law reform in the apparel industry in the state of São Paulo. The research field consisted of semi-structured interviews with owners of small and large companies in the apparel sector, a representative of Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit), trade union leaders and the analysis of collective labour agreements. By investigating a recent phenomenon, the research was exploratory and sought to identify the disputes over the new legislation based on business and trade union narrative. The findings point to the expansion of outsourcing and the temporary contract and the configuration of an adverse scenario for the collective action. In addition to changes that reinforce the flexibilization of labor relations, it is shown that these changes contribute to deepen a neoliberal political and social practice that disseminates the privatization of conducts and the logic of risks.
Keywords: Labor law reform. Apparel sector. Neoliberalism. Work vulnerability.
1* Ana Paula Fregnani Colombi é professora da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail: ana.colombi@ufes.br
2** Patrícia Rocha Lemos é pós-doutoranda do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Cesit/Unicamp). E-mail: pat.csrp@gmail.com
3*** Ellen Gallerani Corrêa é professora do Instituto Federal de São Paulo (IFSP). E-mail: ellen@ifsp.edu.br
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 53, Junho/Dezembro de 2020, p. 239-257
Introdução
Este artigo investiga os efeitos iniciais da reforma trabalhista a partir de entrevistas com empresários e dirigentes sindicais e análise de negociações coletivas do ramo de confecções do estado de São Paulo. As entrevistas foram realizadas ao longo dos meses de agosto e setembro de 2018 no âmbito do projeto de pesquisa Regulação privada transnacional, regimes de produção e recursos de poder1. Diante da oportunidade de visitar sindicatos e empresas do setor de confecção, justamente após a aprovação da Reforma Trabalhista, em novembro de 2017, as pesquisadoras lançaram mão de um questionário semiestruturado com a finalidade de apurar as primeiras impressões desses agentes2 sobre o referido processo. Por estar atrelada a outro projeto, a pesquisa conseguiu acesso a três grandes empresas e uma pequena empresa da indústria de confecção nas cidades de São Paulo, São Bernardo do Campo e Sorocaba, sendo possível entrevistar cinco proprietários. Além disso, um representante da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit) também foi entrevistado.
Já os três depoimentos sindicais citados neste artigo foram colhidos em sindicatos de mesma base das empresas pesquisadas, particularmente em Sorocaba e São Bernardo do Campo, e na base de Americana. Essa última foi incluída para garantir pluralidade de visões, uma vez que os dois primeiros sindicatos são filiados à Central Única dos Trabalhadores (CUT), ao passo que o sindicato de Americana é filiado à Força Sindical3. Por fim, ainda pela facilidade de acesso proporcionada pelo projeto, a investigação contou com a entrevista de uma dirigente da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Vestuário da CUT (CNTRV).
Com base neste universo de entrevistados e na análise das Convenções Coletivas de Trabalho (CCT) celebradas pelos sindicatos de Sorocaba, ABC e Americana antes (em 2011, 2015 e 2017) e depois da reforma (em 2018 e 2019), o artigo discute alguns efeitos da nova legislação, com foco nos principais dispositivos já implementados no ramo em questão, os temas que ainda têm sido objeto de disputa entre o patronato e os sindicatos pesquisados e a percepção geral desses agentes sobre a reforma. Trata-se de uma pesquisa de caráter exploratório que não se pretende representativa, ou seja, o objetivo não é retratar os impactos da Reforma Trabalhista em todo o setor, mas fornecer indícios e ilustrar com casos concretos os novos desafios do cenário pós-reforma a partir do depoimento de uma parcela dos agentes envolvidos nos processos de disputa e negociação.
A Reforma Trabalhista é um processo que ainda não se esgotou4, mas tem importante capítulo com a Lei 13.429/2017, que versa sobre trabalho temporário e prestação de serviços, e a Lei 13.467/2017, que introduz novas modalidades de contratação e alterações na jornada de trabalho, formas de remuneração e condições de trabalho. Esse processo tem como uma de suas principais características a ampliação do poder dos empregadores na determinação das relações de trabalho e o faz tanto legalizando práticas já existentes como possibilitando um novo “cardápio” de opções aos empregadores (CESIT, 2017; KREIN, 2018). Entretanto a aplicação desses dispositivos tem dependido tanto das especificidades de cada setor econômico quanto da capacidade de resistência das organizações sindicais no sentido de inibir o processo de flexibilização das relações de trabalho na prática, por meio da negociação coletiva (GALVÃO; TEIXEIRA, 2018).
Na cadeia têxtil, o ramo de confecções faz uso intensivo do trabalho, empregando majoritariamente mulheres e é fortemente marcado pela informalidade (RAMALHO MARTINS; LIMA, 2016, p. 102). A reprodução da divisão sexual do trabalho, nesse setor, garante, assim, o substrato que sustenta condições precárias e rebaixadas de trabalho que destoam de setores tradicionais da indústria, conforme aqueles analisados por Lapa (2019). Leite, Silva e Guimarães (2017, p. 54) ressaltam que o trabalho no setor de confecção sempre apresentou condições muito inferiores ao prescrito na legislação nacional, pois uma das estratégias de concorrência desse segmento é recorrer à subcontratação da produção, deslocando-a para regiões onde os custos do trabalho são mais baixos. Isso gerou, inclusive, um processo de migração de empresas para a Região Nordeste e um deslocamento da capital para o interior do estado de São Paulo, onde a sindicalização é menor e a fiscalização ocorre de forma menos rigorosa5 (LUPATINI, 2004, p. 17).
Na Região Metropolitana de São Paulo, o percentual de trabalhadores com carteira assinada no ramo de confecções alcança metade dos vínculos de trabalho (DIEESE, 2015). A maioria desses é ocupada por mulheres que, tanto em nível nacional quanto estadual, permanecem até dois anos no emprego, possuem uma remuneração média anual de até dois salários-mínimos e estão empregadas, principalmente, em microempresas com até 19 funcionários (RAIS, 2019). Devido a esse perfil de emprego, Ramalho Martins e Lima (2016, p. 102) afirmam que essa atividade é “precária em sua origem em termos de formas de organização da produção”. Levando em consideração essa característica e pesquisas recentes sobre a reforma trabalhista, que apontam para as possibilidades de rebaixamento das condições de trabalho (CESIT, 2017; KREIN, 2018), é possível que a nova legislação tenha a potencialidade de aprofundar a precariedade das ocupações formais no setor, daí a relevância de pesquisas que acompanhem seus impactos. Dado os limites da amostra utilizada, o artigo se propõe a discutir evidências que apontam para esta direção.
Na primeira seção, as principais alterações da Reforma Trabalhista no setor são problematizadas a partir da percepção dos empresários e sindicalistas entrevistados. Na segunda seção, a percepção desses agentes é o substrato para demonstrar as tensões de um processo mais profundo de transformação da relação de assalariamento. Os dados apontaram que a terceirização e o contrato temporário foram os principais dispositivos adotados no contexto pós-reforma e que esses têm se mostrado adversos para a atuação dos sindicatos estudados. A instabilidade dessas formas de contratação e a fragilização da organização coletiva dos trabalhadores, identificadas na pesquisa, são duas das dimensões da precariedade das relações de trabalho no capitalismo contemporâneo, conforme argumenta Druck (2011).
Evidencia-se também que os dispositivos da nova lei apontam para mudanças que não se encerram na flexibilização (ANTUNES, 2018) das relações de trabalho. A partir da perspectiva de Dardot e Laval (2016), mostra-se que essas mudanças contribuem para aprofundar uma prática política e social neoliberal que dissemina a privatização das condutas e a lógica de riscos. Com isso, a relação de assalariamento vai sendo transformada pela queda progressiva de sua dimensão pública (OLIVEIRA, 2000; KREIN, 2018), ampliando os desafios para a organização sindical. Os achados de pesquisa são, portanto, inferências preliminares sobre os efeitos da reforma trabalhista em um dado conjunto de empresas, visando contribuir para o debate sobre os desafios que cercam o mundo do trabalho na periferia em tempos de crise sanitária e econômica.
Flexibilidade laboral e ofensiva patronal
A Reforma Trabalhista tem sido, desde o início, amplamente sustentada pelo empresariado. Entre os que contratam diretamente assalariados com carteira assinada no setor da confecção é significativa a defesa de uma legislação que flexibilize as relações de trabalho, como a aprovada em 2017. O argumento principal é a necessidade de garantir a competitividade das empresas diante do baixo custo de produção do setor informal, como explicou o representante da Abit. Para ele, os chamados “camelôs”, seriam uma espécie de “distribuição organizada mafiosa” (Carlos, representante da Abit, 10/09/2018).
Para lidar com o problema, a Confederação Nacional das Indústrias (CNI) participou ativamente da criação do Super Simples6 (COLOMBI, 2018) e da regulamentação da terceirização. A despeito da Súmula 331, que restringia essa prática nas atividades-fim, a terceirização vinha ganhando amplo espaço desde os anos 1990. As 101 Propostas de Modernização das Relações Trabalhistas, elaboradas pela CNI, pautaram a regulamentação da terceirização que foi, posteriormente, incorporada à lei 13.429/2017. Essa lei “amplia a utilização dos contratos temporários, possibilitando, por essa via, o uso indiscriminado da terceirização, seja no âmbito público ou privado, permitindo, ainda, a substituição de trabalhadores efetivos por prestadores de serviços para a realização de quaisquer atividades” (CESIT, 2017, p. 32).
As demais alterações na CLT, promovidas pela Reforma Trabalhista, foram defendidas pelos setores empresariais sob o argumento de que seriam um importante gerador de empregos formais (KREIN, 2018). No entanto, até o momento, a reforma não gerou resultados positivos sobre o mercado de trabalho. Desde 2017, a desocupação vem sendo timidamente revertida às expensas do aumento da informalidade (KREIN; COLOMBI, 2019). A dinâmica de geração de empregos depende da atividade econômica sem que as alterações legislativas garantam, por si só, novas contratações. A mudança da lei, todavia, pode modificar o patamar de proteção dos já empregados e, dentre seus efeitos, degradar as condições de trabalho de um segmento que, conforme mostram Leite, Silva e Guimarães (2017), já é marcado pela precariedade laboral. Ademais, a aprovação da reforma abriu a possibilidade de prevalência dos termos negociados sobre a legislação. Com isso, os mecanismos de flexibilização passam a ser fortemente disputados no processo de negociação coletiva dada a possibilidade de se consolidarem no conteúdo dos instrumentos coletivos.
Entretanto, a análise das Convenções Coletivas de Trabalho (CCT), celebradas pelos sindicatos de Sorocaba, ABC e Americana – nos anos de 2011, 2015, 2017, 2018 e 2019 –, não permite visualizar a perda de direitos historicamente conquistados. Ao contrário, o que se pode ver é a existência de cláusulas que buscam manter ou defender direitos ameaçados pela reforma: como mostra o quadro abaixo, uma delas veda o trabalho da empregada gestante e/ou lactante em atividades insalubres7, independentemente da apresentação de atestado médico (Sorocaba); já outra restringe a terceirização na atividade-fim mesmo após a aprovação da reforma (ABC e Americana)8. Isso mostra que apesar de a Reforma Trabalhista ampliar o poder dos empregadores, a implementação na prática de seus dispositivos não é imediata e nem inexorável, pois depende da capacidade de resistência dos sindicatos.
Quadro 1: Cláusulas destacadas nas CCT dos sindicatos de Sorocaba, ABC e Americana
Tema |
Sindicato |
Cláusula |
Terceirização |
Americana (CCTs de 2017, 2018 e 2019) |
Com o fim de se evitar a precarização no trabalho e, por consequente, na mão de obra, resta pactuado entre a partes convenentes a proibição de contratação de mão de obra de terceiros nas atividades-fim da empresa, em especial nos setores de produção; § - ÚNICO - O desrespeito por parte do empregador tomador dos serviços sujeitará o mesmo à responsabilização solidária pelo cumprimento das cláusulas contidas na presente CCT e legislação vigente. |
Terceirização |
ABC (CCTs de 2011, 2015, 2017, 2018 e 2019) |
Na execução dos serviços de sua atividade produtiva fabril ou atividade principal, no segmento representado pela categoria profissional abrangida por esta convenção, as empresas não poderão se valer se não de empregados por elas contratados sob o regime da CLT, salvo nos casos definidos na Lei 6019/74 e os casos de empreitada, cujos serviços não se destinem à produção propriamente dita. |
Garantias à empregada gestante |
Sorocaba (CCT 2018 e 2019) |
É vedado o trabalho da empregada gestante e/ou lactante em atividades insalubres. Parágrafo Primeiro: Enquanto durar a gestação e a lactação, de quaisquer atividades, operações ou locais insalubres a empregada gestante ou lactante deverá exercer suas atividades em local salubre. |
Fonte: elaboração própria com base nas CCT.
Como nem toda prática adotada no setor aparece nas convenções, as entrevistas com empregadores e sindicalistas foram fundamentais para identificar, por exemplo, o aumento da terceirização. No caso da base do sindicato de Americana, o relato das dirigentes sindicais apontou um aumento de mais de 50% da terceirização após a reforma, a despeito de a CCT colocar obstáculos a essa prática. Os empregadores, por sua vez, confirmaram que a terceirização já era amplamente utilizada antes da nova lei. A questão é que pairava sobre ela forte “insegurança jurídica”, uma vez que poderia ser considerada ilegal pela Justiça do Trabalho:
[...] a terceirização foi muito importante porque elimina o risco jurídico que nós tínhamos no caso de terceirizar uma função que é [...] atividade-fim [...]. Então a partir do momento que eu posso, juridicamente, terceirizar a atividade-fim, eliminou-se o risco jurídico. Antes, não podia fazer porque podia sofrer alguma autuação (Marcelo, empresário, 31/07/2018).
Outra situação em que a nova lei estimulou a subcontratação foi descrita por outro empresário entrevistado que relatou o caso em que, ele próprio, impulsionou uma de suas funcionárias a constituir uma empresa e se tornar uma subcontratada.
[...] naquela divisão ali nós tínhamos duzentas e dez costureiras. Só que a empresa aqui é tributada pelo lucro real, dá prejuízo. Porque o mercado te oferece, pra costurar uma calça, por um preço X. Você não consegue fazer isso pelo tanto de obrigação que você tem. Sabe o que nós fizemos? Nós pegamos todo o maquinário e cedemos em regime de comodato a uma funcionária mais antiga que a gente tinha lá, gente boa, cedemos pra ela. Ela vai pagar como ela puder, quando puder [...] e dispensamos o pessoal aqui e ela está recontratando na empresa dela. Empresa dela tem dois meses, dois meses e já deu lucro (Maurício, empresário, 03/09/2018).
Esse é um caso típico de como a terceirização substitui o vínculo de trabalho por uma relação de prestação de serviços. Não se trata mais de uma relação entre empregado e empregador, mas entre empresas supostamente autônomas. Como explica Silva, a terceirização nesses moldes “descaracteriza juridicamente a relação de subordinação, ainda que, a rigor, a subordinação exista” (SILVA, 2009, p. 35), estimulando o ideário do empreendedorismo. O trabalho passa a ser realizado sem a mediação dos contratos de emprego, como mostra a fala de Maurício, no esforço de eliminar custos e riscos através da dissimulação das relações de subordinação.
Nas palavras de Fontes (2017, p. 52), “está em curso um processo de subordinação direta – sem a mediação de emprego ou contrato – dos trabalhadores às mais variadas formas de capital”, em que se multiplicam formas jurídicas que promovem um acordo entre “empresas”. Dentre essas modalidades utilizadas pelos empresários, está o trabalho em domicílio e a pessoa jurídica, isto é, “quando o trabalhador cria uma empresa cujo objetivo é vender sua força de trabalho, uma das modalidades do empreendedorismo, na qual o próprio trabalhador torna-se ‘empresa’, para a qual não estão previstos direitos trabalhistas” (FONTES, 2017, p. 53). A relação de trabalho vai se transformando em uma relação de prestação de serviços entre partes, supostamente iguais, visto que o próprio Estado cria e incentiva dispositivos legais que procuram apagar as determinações de classe9. Nesta condição, a tendência é que as trabalhadoras não mais figurem como um grupo social de interesses compartilhados entre si e em antagonismo com aqueles responsáveis pela exploração de seu trabalho, o que impõe desafios à ação coletiva.
Dentre o conjunto de novas formas de contratação possíveis, a ampliação do prazo do contrato temporário para 270 dias é outro dispositivo que está sendo utilizado no setor. De acordo com o empresário Marcelo, por meio dessa medida, a reforma facilita a gestão da produção:
[...] o [contrato] temporário é o mais forte no nosso setor [...] O setor é muito fortemente sazonal. Então você tinha um problema [...]. No segundo semestre a produção é muito maior do que no primeiro semestre, são dois terços e um terço. Você sempre tinha um dilema: se você contratar gente pra trabalhar no segundo semestre depois eles não têm o que fazer no primeiro semestre e aí o custo de demissão é extremamente elevado. Então de uma forma geral as empresas evitavam admitir e tentavam se virar de alguma outra forma. Nesse caso, tendo a possibilidade de admissão temporária você não tem mais esse problema. Você pode, facilmente, admitir durante um semestre e a pessoa vai saber que tá sendo admitida pra um trabalho de seis meses (Marcelo, empresário, 03/09/2018).
Além de indicar a ampliação da terceirização e do contrato temporário, as entrevistas, sobretudo com as dirigentes sindicais, revelaram tensões em torno de dispositivos que ainda não foram implementados e uma investida patronal para interferir na relação entre os trabalhadores e seus sindicatos.
Em entrevista, uma dirigente sindical do ABC relatou pressões de determinadas empresas para que o sindicato fechasse um acordo a respeito da redução do intervalo intrajornada, mas o sindicato se recusou, uma vez que a legislação não obriga a entidade a negociar. No caso do sindicato de Americana, as dirigentes relataram que foram fechados acordos sobre esse tema, reduzindo em meia hora o horário de almoço após aprovação das trabalhadoras em assembleia. Em uma das empresas, essa redução se refletiu no horário de saída das trabalhadoras, que passou a ocorrer meia hora antes.
A dirigente sindical do ABC também ressaltou que uma ameaça aos direitos das trabalhadoras foi gerada por conta da possibilidade de serem firmados acordos individuais. Uma das implicações disso foi a negociação de um acordo sobre banco de horas que há tempos o sindicato se recusava a fazer:
[...] as mulheres têm essa dificuldade [de negociar banco de horas] por conta de creche. A creche fecha às dezessete horas enquanto ela tá batendo o cartão. Ela já tem que pagar alguém pra buscar. Eu discuti bastante isso aqui [...] como que você discute banco de horas se a creche fecha às dezessete horas? Como você vai colocar um setor, majoritariamente feminino, o sindicato sem nenhuma responsabilidade e negociar com o sindicato patronal um acordo de banco de horas. Já na convenção coletiva, então a gente se negou. Todo ano tem essa pressão e a gente nunca deixou isso acontecer. Então, [...] os próprios trabalhadores nos chamavam pra fazer porque senão ele ia perder o emprego. [...] pra nós o impacto muito grande é a questão humana, ele impõe você a assinar um acordo, você tem que fazer. Se não fizer você vai ter o desconto, vai ter prejuízo de trabalho, então impactou bastante na reforma essa liberdade dos patrões de fazer acordos individuais. A parte mais fraca vai ser sempre a trabalhadora, que vai ter que ceder. Ou ela cede ou ela vai ser dispensada (Leila, sindicato do ABC, CUT, 14/08/2018).
Ao facilitar a negociação individual do banco de horas, a reforma impacta particularmente as mulheres. Pela dinâmica social da divisão sexual do trabalho, as mulheres são as principais responsáveis pelo trabalho doméstico e cuidado dos filhos, portanto enfrentam o desafio de compatibilizá-lo com o trabalho remunerado fora do domicílio. Essa realidade faz com que as trabalhadoras tenham como demanda a flexibilização de suas jornadas, como a redução do intervalo de almoço para garantir que possam sair mais cedo e realizar as demais tarefas. Contudo são os empregadores que definem quando as horas adicionais serão compensadas, o que, em um contexto de necessidade do emprego, as pressiona a aceitar os termos da negociação individual.
No caso do sindicato de Americana, a dirigente explicou que existe uma dificuldade em obter informações sobre como e onde estão acontecendo os acordos individuais. Isso porque uma das medidas da reforma foi o fim das homologações no sindicato. Apesar da CCT ter passado a incorporar uma cláusula que incentiva a homologação no sindicato, houve uma redução de 85% nas homologações realizadas na entidade. Isso não só diminui a segurança do trabalhador em ter seus direitos pagos no momento da despedida como também obstaculiza o acesso do sindicato a informações sobre o que ocorre nas empresas:
[...] É tão difícil porque nós perdemos um leque de contatos. Porque era através da homologação que nós sabíamos tudo o que ocorria nas empresas. Eu tenho conhecimento de demissões em massa, de alguns processos, [...] mas se tivéssemos a homologação, como era antes, lotado de gente [...] Aí a gente sabia o que acontecia [...] hoje se nós atendemos cinco homologações na semana é muito, tem semana que passa sem nenhuma homologação (Márcia, sindicato de Americana, Força Sindical, 20/08/2018).
Como os relatos demonstram, a intensificação das investidas patronais nos processos de negociação coletiva tem sido uma realidade para os sindicatos pesquisados. Entretanto os impactos podem ser distintos a depender da região e das relações de força entre patronato e as entidades de representação trabalhista. Neste sentido, há experiências que mostram que a negociação coletiva tem conseguido barrar algumas das pressões patronais. Essa foi a realidade encontrada no sindicato de Sorocaba:
A reforma trabalhista no nosso setor, ela não aconteceu. Por quê? Porque tem uma convenção coletiva do sindicato e assim que a Reforma Trabalhista foi aprovada, o sindicato foi para cima das empresas. [...] o setor patronal respeitou o sindicato. Por exemplo, a questão de férias parceladas: tinham empresas que queriam fazer essa prática, o sindicato não deixou. Nós temos garantida uma cesta básica na categoria. As empresas queriam tirar a cesta básica. Por quê? É aquela questão do negociado sobre o legislado. Nós dissemos “nós temos uma convenção que tem que respeitar” [...] porque se acontece numa [empresa], pipoca em todas [...]. Então a Reforma Trabalhista não impactou a categoria. Ela impactou de outra forma, com a questão do desemprego, com a questão da precarização; [...] os empresários têm respeitado em tudo a convenção coletiva. Não têm feito nenhum tipo de acordo pra redução da jornada, redução de almoço [...] (Gisele, sindicato de Sorocaba, CUT, 04/09/2018).
Esse, entretanto, é um caso de exceção no rol das entrevistas realizadas. A maioria delas mostra a prevalência de ofensivas empresariais contra os sindicatos no contexto pós-reforma como, por exemplo, o estímulo à dessindicalização das trabalhadoras. Além disso, lançam mão de diferentes ameaças para pressionar os sindicatos a aceitarem acordos que reduzem direitos. No sindicato do ABC, por exemplo, um dos empregadores de sua base ameaçou aplicar o dispositivo da reforma que permite eliminar a ultratividade (princípio que garantia a continuidade das normas pactuadas em acordos e convenções após o fim de sua vigência, até a assinatura de um novo acordo) e retirar os direitos conquistados por conta da “demora” do sindicato em fechar um novo acordo.
Foi assim [...] fizemos uma assembleia de manhã, às sete da manhã, colhemos 180, 190 assinaturas e lá são 400 trabalhadores na empresa. A empresa libera todo mundo pra assembleia, só que o pessoal não vai, vai para o refeitório e tal. Então tinha na assembleia, presente, 180, 190 pessoas e assinaram a lista de presença. Essas pessoas votaram a favor da sustentação do sindicato, todo mundo se sindicalizando. Inclusive a gente entregou para cada um a ficha, para recolher na hora do almoço. Aí elas entraram para trabalhar após a assembleia e a empresa foi com abaixo-assinado dizendo: “Quem não quiser pagar o sindicato é só assinar aqui”. Então os 380 assinaram o da empresa também. A empresa cumpriu o dela e não o nosso, entendeu? Então foi onde começou o embate com a empresa. O sindicato não vai negociar, quem faz assembleia é o sindicato e não é o patrão. [...] Aí assim, eu fiz umas dez assembleias lá nesses três meses para convencer o trabalhador que o sindicato hoje é mais importante pra ele do que foi no passado, mas eles estavam garantidos de que a empresa disse que eles não precisavam pagar. Então o convencimento foi muito complicado. Aí nós já estávamos no final de julho e a empresa falou: “olha, eu vou cumprir com a ultratividade, não vou mais cumprir convênio médico”. [...] Então o próprio patrão foi nos setores dizendo: “a partir de amanhã vou suspender com tudo [...]. Ele falou ‘a lei me dá o direito e a partir de tal data o convênio médico tá suspenso” (Leila, sindicato do ABC, CUT, 14/08/2018).
No caso acima, o sindicato acabou fechando o acordo e os direitos já adquiridos não foram suspensos, mas a situação ilustra como a investida patronal tem se legitimado pelas próprias ferramentas que a lei oferece. Assim, a pesquisa indicou que o cenário que vai se desenhando tem dado aos empresários a prerrogativa de prescindir da presença sindical. Ao mesmo tempo, eles usam essa prerrogativa para convencer os sindicatos a continuar na negociação, mesmo com perda de direitos, como ocorreu no caso da negociação do banco de horas, apresentado anteriormente.
Além das pressões no processo de negociação coletiva, as campanhas do patronato para estimular a desfiliação das trabalhadoras têm como objetivo atacar a capacidade de representação e financiamento dos sindicatos. Essas medidas têm sido, em muitos casos, mais impactantes do que o fim da obrigatoriedade do imposto sindical10 que, nesse setor de baixa remuneração, não era considerada a principal fonte de recursos. Há casos, como já mencionado, em que patrões fizeram assembleia com as trabalhadoras para informar que não precisariam mais pagar o sindicato. Eles afirmam que vão cumprir a convenção e, por isso, não haveria necessidade de a trabalhadora se sindicalizar:
[...] O que está embutido para as trabalhadoras? Que tudo o que tá na convenção é direito adquirido. É isso que elas têm em mente. E os patrões estão reforçando [...]. Eu passei por isso esses dias fazendo assembleia e a menina do RH me filmando e dizendo que eles [os trabalhadores] não precisavam ficar sócios, porque tudo o que o sindicato negociar o patrão prometeu que vai cumprir. Então está muito complicada essa situação. Ficou pra gente muito difícil. E é novo. A cada momento, a cada empresa você tem que tirar uma estratégia diferente (Márcia, sindicato de Americana, Força Sindical, 20/08/2018).
No que tange às entrevistas com os empresários, também foi possível identificar aspectos que, na perspectiva destes agentes, a reforma ainda não alcançou. Algumas dessas propostas, como o fim da obrigatoriedade do pagamento da multa do FGTS em caso de dispensa imotivada, voltaram com mais força ao debate político no atual governo de Jair Bolsonaro11. Outras demandas são o fim do adicional noturno e do adicional sobre as horas extras. Para o patronato, esses benefícios configurariam um excesso que não condiz com a realidade do País:
[...] a multa, outra coisa que não mudou e eu acho isso um absurdo. Num momento de crise uma empresa, que está num momento de crise, ter que fazer um corte e ela ainda vai ser penalizada mais ainda por uma multa (Mauro, empresário, 10/09/2018).
[...] antigamente, a legislação quando foi feita, e foi pedida pra ter adicional de hora extra. Por quê? Porque antigamente, lá em 1939, não tinha ônibus [...] hoje, você tem tantos meios e ainda existe adicional noturno. Isso é absurdo nos dias de hoje. Qual país do mundo paga isso? Qual país que paga 40% de multa para o funcionário do que ele já depositou e mais 10 pro governo? Olha, se eu começar a falar as coisas eu vou ficar louco aqui. São coisas absurdas, hora extra. O mundo trabalha por hora, se você quer ficar mais tempo trabalhando você vai ganhar por aquilo, não hora extra. Por que tem que ter adicional de hora extra? Isso tudo só no nosso país [...] (André, empresário, 14/08/2018).
Como um processo ainda incompleto, as falas dos empresários entrevistados mostram que a reforma está sendo utilizada e deve ser ampliada. No segmento em questão, a nova lei permitiu o estímulo à ampliação da terceirização e do contrato temporário, como as entrevistas revelaram. Além disso, as entrevistas com as dirigentes sindicais mostraram que o contexto pós-reforma reforça a ofensiva patronal na direção de incitar a dessindicalização, prescindir da mediação sindical ou mesmo convencer as organizações sindicais a assinarem acordos desvantajosos sob pena de perderem a representatividade perante as trabalhadoras.
A pesquisa, mesmo sem a pretensão de desvendar a realidade de todo o setor, traz evidências, a partir dos casos estudados, que mostram o sentido de flexibilização da lei, pois o novo cenário indica maiores dificuldades de resistência dos sindicatos e um ataque permanente aos direitos dos trabalhadores com o intuito de rebaixar o patamar mínimo de condições de trabalho. Entretanto as entrevistas realizadas também mostram que a reforma aponta para mudanças que vão além dos mecanismos voltados à flexibilização das relações de trabalho. Ela se insere em um movimento mais amplo que busca transferir aos trabalhadores – enquanto indivíduos concorrendo no mercado – os riscos e as responsabilidades envolvidas no emprego e, com isso, coloca em andamento uma transformação da relação de assalariamento, como se discute a seguir.
A vulnerabilidade do formal:
percepções e sentido da reforma trabalhista
As entrevistas com os empresários revelaram que sua percepção em torno da Reforma Trabalhista delineia o comportamento que eles próprios esperam dos trabalhadores no mundo contemporâneo, destacando o papel da legislação na adequação das relações laborais aos imperativos econômicos. Na visão desses empresários, a autonomia e a autorresponsabilização dos trabalhadores seriam componentes de uma relação laboral que deve operar segundo a lógica da concorrência, como pode ser visto nos depoimentos abaixo, em que o empresário discute os dispositivos da reforma com foco nas condições do mercado:
[...] o trabalho temporário, eu, sinceramente, não vejo problema. Num país em crise por que não pode ter um trabalho [temporário]? Disseram que todo mundo vai ser temporário. Sinceramente, acho que quem determinaria isso é oferta e procura. Funcionário, se tiver emprego ele vai optar pelo trabalho, por uma carteira de trabalho. Agora entre não ter emprego e ter um temporário, vai optar pelo temporário. Agora na hora que o mercado aquece, é que nem eu, vou querer temporário. “Mauro, você não está conseguindo, porque está tão aquecido o mercado, que o mercado vai pela CLT, você não vai conseguir temporário”. Agora no momento de crise, o temporário ele soluciona o problema num momento de crise. Por que não pode ter um temporário? (Mauro, empresário, 10/09/2018, grifos nossos).
Conforme o relato, a demanda do setor é que deve ditar o tipo de relação laboral a ser estabelecida, aspecto que a reforma resolveu com precisão ao garantir ao empregador o acesso a distintas formas de contratação, permitindo-o ajustar de forma ótima a sua necessidade de força de trabalho. Nessa dinâmica, e relegados aos movimentos da atividade econômica, os trabalhadores tornam-se “buscadores de empregos”, isto é, agentes de sua empregabilidade (DARDOT; LAVAL, 2016), gerando trajetórias profissionais móveis que, como descreve Castel, constroem carreiras em etapas escalonadas em que “cada indivíduo deve assumir ele próprio os imprevistos de seu percurso profissional que se tornou descontínuo, fazer opções, operar a tempo de reconversões necessárias” (CASTEL, 2005, p. 46).
Subcontratação, trabalho temporário e banco de horas são alguns dos instrumentos que, facilitados pela reforma, promovem a flexibilidade, “traço essencial da atual fase de desenvolvimento do capitalismo” (ANTUNES, 2018, p. 141). Como ressalta o autor, é nessas transformações que se pode ver uma diminuição das fronteiras entre atividade laboral e vida privada. A flexibilização, assim, é vista como “uma espécie de síntese ordenadora dos múltiplos fatores que fundamentam as alterações na sociabilidade do capitalismo contemporâneo” (ANTUNES, 2018, p. 141).
Embora a busca por flexibilidade na gestão da força de trabalho não seja um fenômeno novo no Brasil12, já que responde à reestruturação das relações laborais no âmbito da reorganização do capitalismo sob o paradigma da acumulação flexível (HARVEY, 1992; ANTUNES, 1999; ANDERSON, 2003), e ainda que o patamar de regulação social nunca tenha sido amplamente difundido no país (BARBOSA, 2008; DRUCK, 2011; CARDOSO, 2013), os ataques contemporâneos aos direitos do trabalho se coadunam com a informalidade histórica e o assalariamento restringido, fazendo com que as consequências desse processo atinjam contornos mais dramáticos em realidades periféricas. Neste sentido, além de indicar como a flexibilização ameaça os direitos trabalhistas, a pesquisa realizada oferece outros indícios do aprofundamento da condição de precariedade das trabalhadoras formais do setor, e eles se referem, notadamente, ao objetivo de esvaziamento das garantias sociais.
Tal esvaziamento aparece no discurso dos empresários entrevistados. Eles se referem ao combate ao que consideram um “excesso de benefícios” como, por exemplo, o pagamento de hora extra, adicional noturno, multa do FGTS e outros. Suas falas revelam a expectativa de que haja no país uma desidratação da legislação, o que Fontes (2017, p. 52) identifica como um processo de “curto-circuitar direitos ligados ao emprego”. Evidenciam, ainda, um discurso que busca desconstruir a premissa de que os direitos ligados ao trabalho partem do reconhecimento da relação de troca desigual constitutiva do assalariamento. Nas palavras da autora:
Se a “natureza das coisas” promovida pela expansão do capital não é suficiente para “domar” os trabalhadores em níveis adequados para a extração de mais-valor, as velhas formas de curto-circuitar direitos ligados ao emprego, através do uso direto da força de trabalho sem mediação de direitos, são reativadas pelas próprias empresas e, em geral, posteriormente rejuvenescidas e “legalizadas” pelo Estado, apresentadas como as novas “necessidades” do crescimento (FONTES, 2017. p. 52).
O ataque às vias de proteção social não diz respeito somente aos aspectos antes garantidos no contrato laboral, mas também ao papel do Estado, como indica um dos empresários entrevistados:
[...] o fundo de garantia eu acho que é uma [...] sacanagem que fazem com vocês [trabalhadores], porque ele toma o seu dinheiro e aplica por metade dos juros da poupança. Isso é errado, você devia ser admitida aqui e eu devia te dar a opção do seguinte, “onde está o seu pecúlio?”, você fala, “Maurício, o meu pecúlio está no Banco X”. Então eu separo aquela parte do seu salário e todo mês eu ponho lá no banco, eu não sei nem qual acordo você fez lá, o problema é seu, está lá, é teu, se você quer sacar ele, quando você sai, não quer, é teu, direito teu, não é do governo. Outra coisa, tem muitas empresas, como a nossa, que têm um convênio de assistência médica pros funcionários, gratuito, mas mesmo assim eu pago INSS. Isso te ajuda em que? Nada. Você não acha que podia ser chegar aqui e falar, “senhor Maurício, qual é o plano que você tem?”. “Olha, nós temos esse plano aqui, o Xixilin”. Você fala: “o A é de graça, o B, C, D”, você precisa e fala, “Maurício, então me incluí no B e me desconta cinquenta reais a mais no salário que eu quero o plano B”. Tá bom, é teu, acabou, nada de governo, o governo tem que tomar conta das pessoas que não têm emprego, quem tem emprego tem que se acertar com o empregador (Maurício, empresário, 10/09/2018).
No relato acima, transparece a visão de que o Estado provedor de direitos sociais deveria ser substituído pelo livre encontro das vontades individuais, impulsionando um processo que Dardot e Laval (2016) chamaram de privatização das condutas e disseminação da lógica de riscos. A autorresponsabilização passa a orientar os comportamentos dos trabalhadores que devem, então, ser responsáveis por valorizar a si mesmos como um capital. Nessa lógica, cabe ao indivíduo, diante da concorrência, assegurar suas próprias condições de vida. Portanto, mesmo que não tenha sido plenamente instituído no Brasil, a premissa do sistema de seguridade social como garantia de um direito que busca compensar o problema social e, por isso, coletivo, da desigualdade, vem sendo atacada.
Em conjunto, é possível perceber uma série de transformações que vão, pouco a pouco, estimulando a alteração da relação dos trabalhadores e das trabalhadoras com o assalariamento. Na seção anterior, discutiu-se a disseminação da subcontratação que, ancorada no ideário do empreendedorismo, lança mão de formatos que visam liberar os empresários do contato direto com os empregados. Nesta seção, o esvaziamento do patamar de proteção contido no contrato de trabalho aparece como outra dimensão desse processo, na medida em que os trabalhadores são incitados a assumir os riscos e os custos implícitos em uma relação de trabalho que está cada vez mais imbricada com as intempéries do mercado.
Além de mostrar essas transformações na relação de trabalho, em linha com o que a literatura crítica já vem apontando, as entrevistas também indicam um cenário pós-reforma de grandes dificuldades para o movimento sindical. Um exemplo tem sido a tentativa patronal de disseminar a ideia de que o sindicato não é mais uma instituição necessária e de que a negociação direta individual garantiria os mesmos benefícios. Outra forma de criminalização do movimento sindical, apontada pela dirigente de Sorocaba, foi a acusação, por parte dos empregadores, de que os sindicatos se opuseram à Reforma Trabalhista apenas porque esta alterou suas formas de financiamento. No depoimento, as entrevistadas destacaram o quanto isso era falacioso porque, no caso daquele sindicato, o imposto sindical era devolvido às trabalhadoras. Além disso, outros sindicatos do setor explicaram que, devido aos baixos salários, o imposto sindical nunca foi a principal fonte de financiamento, mas sim a contribuição sindical13.
A prevalência da negociação individual e a criminalização do movimento sindical estão fundamentadas na visão dos empresários entrevistados, segundo a qual os sindicatos deveriam assumir um novo papel num mundo orientado pela lógica gerencial. O empresário Mauro, por exemplo, diz que o sindicato precisa existir “até para poder defender os pisos de categoria e tudo mais”, entretanto, há questões em que sua anuência não seria necessária, já que é o mercado que define a necessidade e orientação dos acordos:
[...] que nem acordo de banco de horas. Eu acho que tenho que ter a minha equipe e falar: “vamos fazer acordo? Vocês estão de acordo?” [...]. Antigamente, “ah, o sindicato tem que ter anuência”. Por que eu tenho que ter anuência do sindicato? [...] Acho que eu com a minha equipe podia [dizer]: “vocês preferem fazer um corte ou ir pra casa mais cedo e quando o mercado aquecer a gente repõe essas horas?”. Acho que todo mundo [diria]: “não, Mauro, pelo amor de Deus, vamos pra casa mais cedo e quando o mercado aquecer a gente repõe essas horas” e sem precisar ter anuência do sindicato (Mauro, empresário, 10/09/2018).
Como parte da ofensiva para alterar o papel dos sindicatos que atuam na base de suas empresas, a busca dos empresários entrevistados pela realização de acordos individuais tem pressionado os primeiros a aceitarem o rebaixamento de cláusulas sob pena de serem excluídos das negociações. Se não é o caso de extingui-los, o sentido geral da ação dos empresários entrevistados mostra que é o caso de, ao menos, circunscrever a sua ação à legitimação da lógica neoliberal. Como afirmam Dardot e Laval (2016), o desejo dos empresários parece ser o de que os sindicatos sejam excluídos do jogo, a menos que, como parte interessada no sucesso do negócio, também atendam à lógica gerencial em busca da eficácia e do bom desempenho dos negócios. Com isso, apenas certos ajustes secundários nas relações de trabalho ainda poderiam ser objeto de discussão sindical. É nesse sentido que ganham importância os acordos individuais e a prevalência do negociado sobre o legislado garantidos nessa reforma.
Por fim, outro elemento que, segundo as sindicalistas entrevistadas, compromete a relação sindical frente à categoria é a predominância de pequenos negócios familiares em que a proximidade de patrões e empregadas dificulta a caracterização explícita da relação de subordinação:
[...] nós temos um problema de algumas empresas que elas são muito pequenas e elas [as trabalhadoras] entendem que elas são parte da família do dono, por essa proximidade [...]. Então, por exemplo, eu tenho uma empresa com vinte funcionários, eu fico ali o dia inteiro, eu sou amiga de todo mundo. Eu sou a dona da empresa, eu tô tirando o seu couro, mas você não percebe isso porque eu tô te dando emprego... eu sou sua amiga... olha como eu sou boa: eu te dou cesta básica. Não foi o sindicato que conquistou não, sou eu que dou. Eu te dou café da manhã aqui [...]. Embora o sindicato fale, ela acha que, tipo “minha patroa é boa porque ela me faz um favor, ela me emprega, ela é minha amiga. Eu moro ali perto e ela me arrumou um emprego”. Então assim, tem essa questão da proximidade [...] muitas trabalhadoras vieram falar “não, o meu patrão não vai tirar a minha cesta básica. Imagina!”. É aquela questão de você ter aquela confiança no dia a dia (Gisele, sindicato de Sorocaba, CUT, 04/09/2018)
Na medida em que as transformações da lei assumem a visão empresarial, a relação de assalariamento é gradativamente despida de sua condição de seguridade ao passo que a livre negociação entre as partes ganha importância. Esse aspecto faz parte do um processo que Chico de Oliveira já atentara no início dos anos 2000, qual seja um movimento de privatização da relação de assalariamento por meio da progressiva queda de sua dimensão pública (OLIVEIRA, 2000). Krein identifica o mesmo movimento ao afirmar que está em curso “uma tendência de fragilização da regulação pública em favorecimento da regulação privada, em que o trabalhador fica mais exposto aos mecanismos de mercado na determinação de suas condições de sobrevivência” (KREIN, 2018, p. 79).
Dissimulando as relações de subordinação e desigualdade entre trabalhadores e patrões, relegando a trajetória laboral aos movimentos do mercado e esvaziando o patamar de proteção e seguridade social atrelado ao contrato laboral, as mudanças legislativas não indicam somente uma intensificação da flexibilização das relações de trabalho. Essas transformações apontam para um processo mais amplo de vulnerabilização dos trabalhadores formais por meio de uma prática política e social neoliberal, que dissemina a privatização das condutas e a lógica de riscos. Com isso, a relação de assalariamento vai sendo transformada pela queda progressiva de sua dimensão pública, ampliando os desafios para a organização sindical dos trabalhadores.
Considerações finais
Analisando a implantação da Reforma Trabalhista a partir do relato de empresários e sindicalistas do setor de confecções paulista, a pesquisa mostrou que práticas já largamente utilizadas pelos empregadores se tornaram mais recorrentes com a aprovação da lei, como a terceirização e o contrato temporário. Além disso, foi observado que o contexto pós-reforma estimulou uma ofensiva patronal na direção de fragilizar os sindicatos pesquisados e atacar direitos, como a pressão pela redução do intervalo intrajornada e a realização de acordos individuais de banco de horas. O depoimento dos empresários também revelou que novas alterações na legislação trabalhista são esperadas, como o fim do adicional noturno e do adicional sobre as horas extras.
A despeito de experiências que conseguiram barrar investidas dos empregadores, os relatos das dirigentes sindicais revelam a recorrência de práticas patronais de desestímulo à filiação sindical das trabalhadoras, a promoção de acordos individuais, bem como uma maior pressão para que os sindicatos assinem acordos coletivos desvantajosos. Ajustando-se às especificidades do setor e ancorada na fragilização das instituições sindicais, a implementação da reforma, neste segmento, aponta, portanto, para um processo de flexibilização das relações de trabalho, ampliando a vulnerabilidade das trabalhadoras formais.
Ademais, a mudança na legislação laboral vis-à-vis à percepção empresarial revela que a adoção de novas regras não responde somente a um processo de intensificação da flexibilização das relações de trabalho, mas reforça pressupostos neoliberais que buscam transformar a relação de assalariamento. Três aspectos ilustram esse processo.
Em primeiro lugar, o esvaziamento do patamar de proteção ancorado no contrato de trabalho acentua a precariedade da trabalhadora formal do setor de confecção. Ao mesmo tempo, os empresários almejam que as trabalhadoras assumam, progressivamente, o papel de gestoras de sua trajetória profissional e busquem o acesso aos direitos sociais individualmente na esfera do mercado. Em segundo lugar, o incentivo ao empreendedorismo dissimula a relação de subordinação e invisibiliza os conflitos inerentes à relação de exploração ao promover relações entre “empresas”.
Por fim, a subordinação da relação laboral às intempéries do mercado, aspecto recorrente nas falas empresariais, é um elemento essencial não somente para criar um discurso de legitimação em torno da necessidade empresarial de transferência de riscos às trabalhadoras, mas também para buscar atribuir aos sindicatos um outro papel. A posição dos empresários revela que a negociação entre capital e trabalho não deve deixar de existir, mas que, pouco a pouco, o conflito entre posições antagônicas deve dar lugar ao acordo entre posições mediadas pela lógica gerencial. Ao mesmo tempo, como mostrou a pesquisa, os sindicatos sentem-se pressionados a negociar para legitimar o lugar que ocupam.
É neste sentido que a Reforma Trabalhista contribui para transformar a relação de assalariamento, ajustando as relações de trabalho à instável dinâmica do capitalismo contemporâneo. Ela é, em si mesma, um arcabouço legal que fragiliza a dimensão pública da relação de assalariamento e insere as trabalhadoras em uma lógica permanente de riscos.
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Recebido em 31/05/2020
Aceito em 30/09/2020
1 Trata-se de um projeto de pesquisa internacional coordenado pelo professor Jean-Christophe Graz, da Universidade de Lausanne, e financiado pela Swiss National Science Foundation em parceria com a Unicamp. Seu objetivo foi analisar o papel desempenhado pela regulação privada transnacional sobre as relações de trabalho e sindicais em três países: Brasil, Quênia e Tanzânia. No Brasil, o projeto foi coordenado pela professora Andréia Galvão, a quem agradecemos a oportunidade de realização concomitante da presente pesquisa sobre a Reforma Trabalhista.
2 Os entrevistados são identificados por nomes fictícios ao longo do texto.
3 Tentou-se acesso, sem sucesso, ao Sindicato das Costureiras de São Paulo e Osasco, motivo pelo qual as pesquisadoras buscaram outro sindicato filiado à Força Sindical.
4 Desde a aprovação dessas leis, em 2017, até a crise da pandemia da Covid-19, inúmeras medidas provisórias no campo trabalhista foram aprovadas. Somente no governo Bolsonaro, são mais de ١٧ MPs que versam sobre o tema, dentre elas: a MP ٩٠٥/٢٠١٩ do Contrato Verde e Amarelo, revogada em ٢٠٢٠, que propunha reduzir encargos para patrões que contratassem jovens no primeiro emprego e pessoas acima de 55 anos que estavam fora do mercado de trabalho formal. Além dessa MP, há outras como as MPs 927 e 936 aprovadas no contexto da pandemia. Em todas elas, prevalece a lógica de que a flexibilização seria o caminho para combater o desemprego e a informalidade, evidenciando que o processo é mesmo de uma ampla contrarreforma trabalhista que ainda não se esgotou.
5 O estado de São Paulo é o maior produtor do segmento de confecções, empregando 27,6% do pessoal ocupado em toda cadeia têxtil em 2017, sendo que mais de 80% do emprego está concentrado nos confeccionados (IEMI, 2018).
6 O Super Simples foi criado a partir da Lei Complementar 123/06 com o objetivo de unificar a arrecadação de tributos e contribuições devidas pelas micro e pequenas empresas, ampliando a possibilidade de enquadramento de novos prestadores de serviços e profissionais liberais.
7 Em maio de 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou inconstitucional trechos de dispositivos da Reforma Trabalhista que admitiam a possibilidade de trabalhadoras grávidas e lactantes desempenharem atividades insalubres.
8 Apesar de o sindicato de Sorocaba não possuir uma cláusula que busque restringir a terceirização, há nas CCTs cláusula que proíbe o trabalho em domicílio e, em caso de constatação de tal irregularidade, prevê o reconhecimento imediato do vínculo empregatício.
9 No caso do setor de confecções, uma das principais evidências dessa dissimulação das relações de subordinação é o fato de que muitas das subcontratadas ou produzem exclusivamente para a contratante ou servem de intermediadoras entre várias outras pequenas oficinas que constituem facções de produção para uma única ou distintas marcas. No caso da região central de São Paulo, esse fenômeno tem sido discutido como uma das principais formas de rebaixamento dos custos através do uso de trabalho de migrantes indocumentados e em condições análogas à escravidão. Essa situação, que já veio a público através de diversas denúncias, deu origem inclusive ao Pacto Contra a Precarização e pelo Emprego e Trabalho Decentes em São Paulo (DIAZ, ٢٠١٩).
10 A Reforma Trabalhista passou a condicionar a cobrança do chamado imposto sindical à anuência prévia por parte do trabalhador, dificultando a capacidade de financiamento sindical.
11 A Lei ١٣.٩٣٢/٢٠١٩ extinguiu a multa adicional de ١٠٪ do FGTS em demissões sem justa causa, a partir de janeiro de 2020.
12 Os anos 1990 tiveram uma clara orientação redutora e flexibilizadora de direitos e garantias dos trabalhadores, expressando-se em medidas pontuais, como a introdução de novas formas de contratação (contrato por prazo determinado), o banco de horas, o fim da política salarial pari passu com as práticas de remuneração variável e a implementação de novas formas, especialmente privadas, de resolução de conflitos, como a Comissão de Conciliação Prévia (KREIN, 2013). Nessa década, também prevaleceu o discurso de responsabilização do próprio trabalhador por suas “condições de empregabilidade”. Naquela conjuntura, empresários, governo e parte significativa do movimento sindical admitiram como inevitável o desemprego causado pela reestruturação produtiva das empresas. Como forma de minimizar o problema, os trabalhadores foram incentivados, por um lado, a fazer cursos de qualificação profissional a fim de se adequarem às exigências das empresas automatizadas e, por outro, a participarem de empreendimentos de economia solidária, uma vez que não haveria emprego formal para todos.
13 O cenário pós-reforma tem apontado para a queda na arrecadação sindical, bem como para a adoção de estratégias pelas entidades sindicais que visam mais à preservação de suas estruturas do que a repensar a sua representatividade junto à base e o papel do movimento sindical na sociedade, como discutido em Véras de Oliveira, Galvão e Campos (2019).
MISCELÂNIA DESCOLADA OU GENTRIFICATION?
Baixo Augusta – São Paulo1
EDGY MISCELLANEA OR GENTRIFICATION?
Baixo Augusta – Sao Paulo
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Beatriz Salgado Cardoso de Oliveira*
Ana Lúcia de Castro**
Resumo
A partir de um mapeamento histórico da rua Augusta, na cidade de São Paulo (Brasil), buscamos discutir a (in)adequação do conceito de gentrification para a compreensão de recentes transformações paisagísticas ocorridas na porção central da rua, conhecida como “Baixo Augusta”. Em meados da década de 2000, observa-se na região dois fenômenos característicos do processo de gentrification. Todavia peculiaridades das dinâmicas urbanas no Baixo Augusta nos fazem problematizar a “aplicação” direta desse conceito em nosso caso de estudo. Argumentamos que sua operacionalização em realidades urbanas distantes de sua origem anglo-saxã, pode acarretar uma espécie de violência epistêmica (SPIVAK, 1988). Como alternativa de escape a esse tipo de armadilha epistemológica, sugerimos a prática etnográfica como empreendimento intelectual que coloca em constante relação o teórico e o empírico e busca construir interpretações de realidades locais em articulação com processos estruturais, de escala global.
Palavras-chave: Cidades. Gentrification. Violência epistêmica. Etnografia urbana.
Abstract
Based on a historical mapping of Rua Augusta, in São Paulo city (Brazil), we seek to discuss the (in)adequacy of the concept of gentrification to understand recent landscape changes that have occurred in the central portion of the street, known as “Baixo Augusta”. In the mid-2000s, two characteristic phenomena of gentrification could be observed. However, due to peculiarities of the urban dynamics in Baixo Augusta we question the direct “application” of the gentrification concept in our case study. In this sense, we argue that its operationalization in urban realities far from its Anglo-Saxon origin, can lead to a kind of epistemic violence (SPIVAK, 1988). In order to escape this type of epistemological trap, we suggest that the treatment of the urban dynamics of Baixo Augusta occurs through ethnographic practice, as an intellectual enterprise that places the theoretical and the empirical in constant relationship and pursuit to build interpretations of local realities in articulation with structural processes of global scale.
Keywords: Cities. Gentrification. Epistemic violence. Urban Ethnograpy.
Introdução
A rua Augusta é, sem dúvida, umas das regiões mais conhecidas da cidade de São Paulo. Inaugurada em 1897 (conforme consta no Dicionário de Ruas do site da Prefeitura de São Paulo), sofreu muitas transformações ao longo de sua história. Hoje, é especialmente conhecida por comportar o “Baixo Augusta”, parte importante do circuito (MAGNANI, 2002)2 de lazer jovem de São Paulo, que abarca a região entre a Avenida Paulista e o centro da cidade. Em contrapartida, o outro lado da rua Augusta é comumente chamado de “Jardins”, região mais voltada ao comércio, que comporta parte do circuito de compras de luxo da capital, cuja principal referência é a rua Oscar Freire.
Essa divisão da Augusta em duas regiões distintas não consta no mapa geopolítico da cidade, e pode-se dizer que foi construída socialmente, com observância de seus frequentadores às transformações da via ao longo do tempo.3
Em geral, os estudos sobre e na rua Augusta a descrevem por meio de suas “fases”, uma maneira de organizar histórica e socialmente as transformações ocorridas nessa região paulistana desde a década de 1930. Na maior parte dos casos, há referência a três fases distintas. A primeira, denominada “gloriosa”, compreende a primeira metade do século XX, aproximadamente entre 1900 e 1950, período no qual a rua Augusta comportava as lojas e cafés mais elegantes da cidade (RAGAZZO, 2005; DINES, 2011) e, por isso, era frequentada principalmente pela elite paulistana. A segunda fase, entre 1960 e 1990, é vista como período de degradação da rua, momento no qual um duplo processo, de ascensão e decadência da avenida Paulista como polo econômico da cidade, impacta profundamente a rua Augusta, em especial sua região central, cujas paisagens passam a ser marcadas pela degradação de infraestrutura, precariedade dos serviços de transporte público e pelo estabelecimento de pontos de prostituição.
A partir da década de 2000, indica-se um processo de “revitalização” ou de “renovação” da rua Augusta (ARRUDA, 2016; DINES, 2011; MENDES, 2014; PISSARDO, 2013), influenciado por políticas voltadas ao centro da cidade, pelo investimento no transporte público e pelo surgimento de uma série de estabelecimentos voltados ao lazer, como espaços culturais, cinemas, casas noturnas e bares. Naquele período, argumenta-se que a rua é ressignificada e adentra uma fase “descolada”, consolidando-se como importante mancha de lazer da cidade de São Paulo, especialmente para o público jovem. Mais recentemente, o noticiário aponta que os bairros Cerqueira César e Consolação, onde estão localizadas a região dos Jardins e do Baixo Augusta, foram campeões de valorização do metro quadrado na cidade (YURI, 2016, n.p.), cujo valor, entre 2006 e 2017, teria saltado de R$ 3.300,00 para R$ 10.000,004.
Esse cenário de “renovação” do Baixo Augusta e sua suposta ressignificação, combinada ao boom imobiliário e à valorização do solo, podem ser indicativos de um processo de gentrification ou enobrecimento5 da região. Não obstante, certas características da atual paisagem da região do Baixo Augusta parecem resistir a um enquadramento nos modelos tradicionais desse tipo de transformação urbana, como veremos adiante.
Isto posto, este artigo se propõe a problematizar a atual paisagem da parte baixa da Augusta a partir da apresentação de um breve histórico das transformações da rua, que dá contornos mais positivos a sua fase de “degradação” e localiza nela o ponto inicial da constituição do Baixo Augusta como mancha de lazer de São Paulo. Argumentamos que a ressignificação do Baixo Augusta não é apenas consequência do deslocamento de capital privado e/ou público para a região, ou seja, da ação exclusiva de empreendedores, construtoras e/ou poder público; há de se considerar um pool de agentes, que (res)significam o Baixo Augusta pelos usos que fazem da região e de seus estabelecimentos, dando-lhe sua atual “identidade”, marcada pelo signo da “diversidade” de estilos, configurando uma espécie de miscelânea.
Finalmente, tais especificidades paisagísticas do Baixo Augusta nos compelem a problematizar o suposto processo de enobrecimento da via – tratar-se-ia, de fato, de uma mudança no status social da região? Seria o conceito de gentrification o mais adequado para o tratamento dessa dinâmica urbana?
Histórico: para muito além da degradação
A segunda fase da rua, entre 1960 e 1990, é usualmente relacionada a uma imagem de degradação (ARRUDA, 2016; DINES, 2011; PISSARDO, 2013; RAGAZZO, 2005), porém, ao mesmo tempo, traz consigo os processos que preambulam a configuração da atual paisagem da via.
Nessa fase, importante notar o impacto, na Augusta, de processos ocorridos na Avenida Paulista. Na década de 1970, a avenida paulistana passa a sediar escritórios de grandes empresas, ganhando “centralidade comercial e financeira da cidade” (PISSARDO, 2013, p. 129). Os efeitos na Augusta são claros: seus terrenos mais próximos à Paulista serviram para a construção de prédios comerciais e, mais tarde, sua parte central recebeu um grande contingente de hotéis, que não apenas abrigam executivos e funcionários dos escritórios, mas cujas estruturas de lazer tornam-se importantes referências na vida noturna da região. Hotéis de luxo, como o Ceasar Park Hotel e o Hotel Ca’D’Oro, contavam com bares, restaurantes e salões de eventos, frequentados pela elite paulistana e pelos executivos das cercanias. Nesse momento, a “fase gloriosa” da Augusta vai ganhando outros ares. Os escritórios da Paulista trazem um novo público para a região, e práticas como o lazer após o trabalho, o famoso “happy hour”, começam a caracterizar sua vida noturna.
Mais tarde, na década de 1980, o fácil acesso à região e seu grande contingente de hotéis e de hóspedes passam a atrair “garotas de programa, travestis e cafetões” (ARRUDA, 2016, p. 38), que atuavam na parte baixa da rua, tanto no trottoir como nos “inferninhos”, “casas de massagem” e American Bars que surgiam. Essa aglomeração de estabelecimentos voltados à prostituição favorece a emergência de hotéis menores e de maior rotatividade, que se fortalecem com a nova clientela (PISSARDO, 2013). Mais tarde, na passagem dos anos 1980 para os 1990, transformações na avenida Paulista concorrerão, novamente, para mudanças na Augusta. Atraídos por prédios com arquitetura moderna e alta tecnologia na avenida Berrini e proximidades, os escritórios de grandes empresas começam a deixar o centro paulista, e tornam-se mais visíveis os primeiros sinais de deterioração da região (PISSARDO, 2013; FRÚGOLI JR., 2001).
Evidentemente, a evasão gera consequências imediatas no mercado hoteleiro da Augusta. Somam-se a isso a proliferação dos “inferninhos”, os problemas de infraestrutura e transporte da região e a crise econômica e social que vivia o Brasil como um todo. Esses fatores corroboram a imagem de “degradação” da rua, fortalecida pela mídia e apropriada inclusive em representações artísticas (PISSARDO, 2013, p. 142)6.
Porém, é válido argumentar que essa imagem de “degradação” é uma caracterização gestada fora da realidade dos “nativos” da via – frequentadores, trabalhadores e moradores da Augusta à época. A negatividade do termo não pode traduzir como um todo as dinâmicas sociais que lá se desenvolviam. Ademais, também não é possível afirmar que houve, verdadeiramente, uma nova e homogênea ocupação da Augusta, ou que dela a elite da fase “gloriosa” evadiu completamente. Como comenta Arruda, mesmo que os usos da rua tenham sido alterados, “membros da elite e do proletariado continuavam a ocupá-la e a dividir o mesmo espaço. Só que, neste período, essa interação era proibida e escondida” (2016, p. 38). Assim, no período da década de 1990, e não a partir dos anos 2000, é que a rua Augusta ganhava os ares de “diversidade” que hoje lhes são tão característicos. Um comentário de Massimo Canevacci, de 1993, reforça nosso argumento:
[...] tudo é conjunto, justaposição mistura. Passa-se de maneira absolutamente normal e contígua de famosos hotéis cinco estrelas, que têm as melhores cozinhas da cidade, a casas meio arruinadas, a pequenos palacetes nos quais se anunciam as aventuras e os tabus mais promíscuos [...]. E ao seu lado [...] escolas elementares ou médicas que, quando fecham, à noitinha, fazem com que o inocente público de suas estudantes misture-se na rua com o das mocinhas prostitutas também de sua idade [...] (CANEVACCI, 1993, p. 196).
É possível notar que essa fase de suposta “degradação” é extremamente dinâmica e não implica o desaparecimento ou substituição de certos equipamentos ou práticas culturais por outras, tampouco uma mudança radical ou uma homogeneização de público. Como procuraremos evidenciar na próxima seção, essa “justaposição” e “mistura” de públicos, práticas culturais e equipamentos, é que caracterizará com mais força a “renovação” do Baixo Augusta.
Revitalização
O enfraquecimento do Centro Paulista teve grande impacto nas transformações de paisagem da Augusta, porém, ao mesmo tempo, outros estabelecimentos de peso, inaugurados no final da década de 1960, como o Masp, a Faculdade Cásper Líbero e o Conjunto Nacional (ARRUDA, ٢٠١٦), auxiliam na permanência da rua como local de lazer e cultura, especialmente para o público interessado em comunicação e arte, frequentador dos cinemas, teatros e da vida noturna da via.
Ressalte-se que, ainda no período de “degradação”, imóveis desvalorizados pela presença dos “inferninhos” e dos pontos de prostituição atraem jovens estudantes que “viviam a Augusta da noite, faziam amizade com as prostitutas e bebiam até mais tarde nos bares da região” (ARRUDA, 2016, pp. 42-43). Esse novo grupo de moradores e frequentadores da via certamente influenciaram o surgimento de uma série de baladas “underground”, que funcionavam nos porões de estabelecimentos comerciais. Consolida-se, nesse momento, um novo circuito de música alternativa e rock’n’roll, que passa a caracterizar e dar contornos mais nítidos à região que viria a ser conhecida como “Baixo Augusta” (ARRUDA, 2016, p. 40; PISSARDO, 2013)7.
Ainda nos anos 1990, inicia-se uma discussão sobre a requalificação de áreas centrais da cidade em processo de deterioração, com impactos indiretos para a rua Augusta, que é alvo de algumas ações “visando sua requalificação e valorização imobiliária” (PISSARDO, 2013, p. 179). Na esteira desse processo, assiste-se à evasão das classes populares e grupos marginalizados da região e à chegada de moradores e frequentadores das classes médias à praça Roosevelt8. Fronteira entre o centro da cidade e a rua Augusta, a Roosevelt renovada contribuirá para a “nova” imagem do Baixo Augusta como local “descolado” de lazer para o público jovem.
Esse momento de deslocamento do capital público para o centro da cidade é fortemente acompanhado, no caso do Baixo Augusta, pelo investimento do capital privado. De fato, a maioria dos estudos apontam como símbolo da sua fase de “revitalização” a inauguração de empreendimentos comerciais como a casa noturna “Vegas” (rua Augusta, 765), dos empresários Facundo Guerra e José Tibiriça Martins, em 2005, e também o Espaço de Cinema Unibanco. Outros tantos novos estabelecimentos de lazer são inaugurados ao longo da década de 2000, entre bares, restaurantes, baladas etc., frequentados, majoritariamente, por um público jovem bastante variado, que compõe uma “cena noturna” única, “cujos personagens convivem no mesmo espaço com mulheres da noite, dançarinas de strip-tease e vendedores ambulantes” (DINES, 2011, p. 1). O Baixo Augusta passa a ser “a rua que interessa”, parte de um “circuito de jovens” (MAGNANI, 1993; 2005), por oferecer desde os pontos de encontro, como a saída do metrô Consolação e as escadarias do Banco Safra, até os bares para o “esquenta”, restaurantes, baladas dos mais variados tipos e os fast-foods do “after party”.
Interessante notar que esses novos empreendimentos ressignificam, em suas propostas e design, as imagens da fase “degradação” da rua. Como observa Pissardo (2013), a decoração e as festas promovidas pelas novas casas noturnas que são inauguradas no Baixo Augusta, na esteira do Clube Vegas, ajudaram a “‘glamourizar’ o universo e a estética da prostituição”, “através de decoração exagerada, romantizada ou vulgar dos clubes, recorrendo a cores fortes, dourados, veludos, almofadas, lustres de cristal, etc.”, elementos que procuravam refletir a atmosfera dos prostíbulos (PISSARDO, 2013, p. 143)9. O Beat Club (rua Augusta, 625), por exemplo, contava com esse tipo de “atmosfera”:
[...] a experiente hostess Adriana Recchi, a promoter Vivi Flaksbaum e o empresário Gigio usam de suas experiências baladeiras para montar o Beat Club [...] “Escolhemos um antigo inferninho de três andares e demos um ar de cabaré”, conta Adriana (GIOVANELLI, 2011, n.p.).
Nota-se, assim, que a fase caracterizada por autores como aquela de “degradação” da Augusta forneceu, na verdade, o arcabouço de imagens e sentidos que foram apropriados e ressignificados na “nova fase descolada” da rua. É possível, então, falar de degradação da Augusta apenas no que tange à infraestrutura – prédios abandonados, transporte problemático, calçadas esburacadas. Todavia, no que refere à sociabilidade, a ideia de “degradação” não convém – é justamente a “mistura” social desse período que caracterizará a Augusta “renovada” e “descolada” dos anos 2000, descrita como local de diversidade social e cultural, como é possível observar nas narrativas dos jovens entrevistados por Dines (2011):
Por exemplo, Franz considera que “a rua é o mais interessante. Gosto, quanto mais misturado melhor. As pessoas ficam mais abertas, mais livres.” Ou, como Jessica considera “gosto da situação, as pessoas se socializam, pedem isqueiro, as pessoas são bem abertas. Lá, dá para ser outra pessoa – me libertar, sair do habitual. [...]. Também considera como outros jovens entrevistados, que há “diversidade sexual, mundos diferentes, sem preconceitos.” (DINES, 2011, p. 6).
Na primeira década de 2000, a “renovação” da rua Augusta é marcada por um boom imobiliário, resultado de um processo de rent-gap, caracterizado por “uma alternância de investimento e desinvestimento, na qual esse último produz, em valores de terra urbana e propriedades construídas, a possibilidade do reinvestimento” (RUBINO, 2009, p. 28). No caso da rua Augusta, pode-se dizer que há o investimento em sua fase “gloriosa”, o desinvestimento em sua fase de degradação da infraestrutura e, finalmente, um processo de reinvestimento caracterizado por uma série de fatores intimamente interligados. O desenvolvimento da mancha de lazer na Augusta faz com que a região passe a ser procurada enquanto espaço de moradia “por um público jovem já frequentador do lazer na rua e que gostaria de ter acesso fácil às opções de lazer e cultura” (PISSARDO, 2013, p. 188). O aumento da procura por moradia na região e a própria consolidação da mancha de lazer têm como consequência o incremento nos preços dos terrenos e no valor do aluguel, o que impulsionará sua aquisição por grandes incorporadoras. Mesmo os novos estabelecimentos que deram à Augusta seu ar “descolado” sofrem com esse processo de valorização. Isso acontece, por exemplo, com o clube Vegas, que encerrou suas atividades em 201210.
Esse processo é facilmente notado na estética da rua. A Figura 1 aponta vinte novos empreendimentos imobiliários construídos ou em construção na rua Augusta, nos últimos dez anos. A maior concentração desses prédios está na parte baixa da via. Alguns dos empreendimentos se destacam11pelo tamanho. Por exemplo, a nova construção que hoje abriga os revitalizados hotel e restaurante “Ca’d’Oro” foi erguida em modelo misto e comporta duas torres de quase 120 metros (TRINDADE, 2011)12.
Figura 1 - Mapa desenvolvido na plataforma “My Maps” da Google (mai. 2017/ago. 2018).
Os pontos azuis mostram empreendimentos identificados ao longo da investigação.
A estética moderna dos novos edifícios contrasta com a paisagem mais antiga da rua. Apesar de sua localização privilegiada em relação à aglomeração de equipamentos culturais, muitas dessas novas torres residenciais contam, paradoxalmente, com grandes áreas voltadas ao lazer e são circundadas por altos muros e gradis. Algumas delas, como o “Capital Augusta”, foram construídas de forma que suas portarias estivessem localizadas nas ruas perpendiculares, enquanto que sua fronteira com a rua Augusta fosse totalmente murada (PISSARDO, 2013, p. 189). Ressalte-se também que muitas dessas construções estão bastante próximas da região do Baixo Augusta, que comporta o que sobrou de seus “inferninhos” e stripclubs.
Diante deste cenário, o noticiário mais recente sobre a rua Augusta faz amplo uso do termo “gentrificação” para caracterizar suas transformações13. Por exemplo, em matéria de 2016 no site da Folha de São Paulo, o Baixo Augusta é caracterizado como “Garoto-propaganda da transformação do centro” que passa atualmente pelo fenômeno da gentrificação. É quando a mudança urbana é acompanhada da chegada de novos moradores, com maior poder aquisitivo’” (YURI, 2016, n.p.). Ou ainda, a matéria do website do jornal “Nexo” aponta: “Andar pela [...] que ficou conhecida como o Baixo Augusta, revela uma sucessão de novos empreendimentos imobiliários [...] Esse processo [...] no qual residências e comércio são substituídos por novos ocupantes de renda e preços mais altos, é chamado gentrificação” (ROCHA, 2015, n.p.).
A popularização do termo é notável, e mesmo a literatura acadêmica corrobora essa visão, afirmando haver de fato a gentrificação na rua Augusta ou sondando sua possibilidade (PUCCINELLI, 2017; PISSARDO, 2013; MENDES, 2014; VEGA, 2008). Por exemplo, o estudo de Pissardo (2013) argumenta que ocorre na rua Augusta uma “gentrificação” mascarada pelas atividades e equipamentos que constituem sua mancha de lazer. Já o estudo de Veja (2008), um pouco anterior, flerta com a possibilidade de afirmar a ocorrência de tal processo. Mas, afinal, trata-se mesmo de gentrificação?
Gentrification – uma breve revisão do termo
O termo gentrification tem origem bastante distante da realidade das cidades brasileiras. Cunhado pela socióloga Ruth Glass (1964), faz referência a uma crise de suburbanização em Londres, quando bairros antes habitados pelas classes trabalhadoras são “invadidos” pelas classes médias. Nesse processo, prédios históricos são revalorizados e os custos de vida e de moradia na região são inflacionados, “até que a maioria dos ocupantes trabalhadores originais são deslocados, e todo o caráter social do bairro é alterado” (GLASS, 1964, p. xvii-xix, grifo nosso). Entendemos essa como a fórmula “clássica” do processo de gentrification. É ela que, duas décadas mais tarde, entre 1980 e 1990, será redefinida em um novo debate, agora de escala global, que transformará a própria natureza do termo – o que era antes termo descritivo, passa a ser um conceito analítico (RUBINO, 2009, p. 26).
Esse é um aspecto importante no desenvolvimento dos estudos sobre gentrification, pois, ao ganhar caráter de conceito analítico, extrapola os contornos de sua fórmula clássica e é apropriado por uma série de autores a fim de analisar diferentes realidades urbanas ao redor do globo – e não apenas norte-americanas ou anglo-saxãs. Nos limites de um artigo, não seria possível analisar as diferentes abordagens em torno desse conceito que, ora se mostram mais fiéis à ideia originária, ora a transformam e a adaptam a outras realidades urbanas. Preferimos assim elencar os principais debates em torno da natureza desse conceito: a) preservação versus demolição/construção; b) forças econômicas versus forças culturais; c) habitação versus usos do espaço – ou “gentrificação de convívio”, como propõe Gaspar (2010)14.
Em primeiro lugar, o processo descrito por Ruth Glass não é de alteração apenas no espaço construído, mas também na percepção que se tem do bairro, no que diz respeito a seu novo status – um ambiente antes degradado é revestido de charme e distinção (RUBINO, 2009, p. 26). Nesse sentido, vale a referência a uma gama de estudos acadêmicos brasileiros que analisa projetos de “revitalização” de centros históricos, como por exemplo a pesquisa de Leite, em Recife (2007), de Scouguglia, em João Pessoa (2004), ou de Botelho, em Fortaleza, São Luís e Vitória (2005). Nestes casos, é notória a relação entre patrimônio e tradição, por um lado, e consumo, por outro. Leite aponta que no processo de gentrification, a cidade é reinventada “como vitrine do consumo da tradição pelo city-marketing e suas políticas contemporâneas de patrimônio cultural”, num movimento que transforma “os significados de uma localidade histórica em um segmento de mercado” (LEITE, 2007, p. 18-19). Assim, o processo traz repercussões importantes para os habitantes originais do local. Como ressalta Mira, “[...] nestes projetos de “revitalização” urbana onde a atração é a cultura local ou regional, entra a “cultura popular”, saem as classes populares” (MIRA, 2016, p. 128).
Por outro lado, o debate sobre gentrification também gira em torno da possibilidade de relacionar o conceito analítico a movimentos de transformação do espaço construídos não apenas no que tange à preservação e à valorização de prédios históricos, mas também à sua demolição e/ou construção, em seu lugar, de novos edifícios de arquitetura moderna. Rubino volta-se para a própria realidade brasileira a fim de questionar esse tipo de transformação do espaço físico. A autora nos dá como exemplo os casos do bairro paulistano da Mooca e da área ferroviária da cidade de Campinas e nota que, em tais regiões, elege-se apenas um edifício, ou um conjunto deles, para que seja “culturalizado” e transformado em equipamento cultural, “botando-se abaixo” o restante. Tal cenário, para a autora, não caracteriza a gentrification, ao menos de acordo com sua conceituação clássica (RUBINO, 2009, p. 29).
O segundo debate aqui ressaltado dá-se em torno da natureza dos agentes da gentrification. Por um lado, autores como Neil Smith (2000) argumentam que a gentrification se dá, exclusivamente, pela volta do capital aos centros das cidades. Assim, os agentes desse processo seriam apenas construtores, empreendedores, poder público, etc., e as forças econômicas predominariam absolutamente sobre as culturais. Nessa perspectiva, os novos habitantes da região gentrificada não são agentes, mas são passivos em relação à força do capital (RUBINO, 2009, p. 28). Já outras abordagens, como por exemplo a de Sharon Zukin (1989), agregam outros atores sociais ao processo. Segundo Rubino (2009), essas abordagens têm, em geral, bases etnográficas, e analisam a produção da cidade por um pool de atores, e não apenas sua reprodução.
Evidentemente, a abordagem economicista apresenta sérios problemas, e o próprio caso paulistano pode evidenciá-los. Os estudos de Frúgoli e Sklair (2009) apontam como as tentativas do poder público e da iniciativa privada de fazer da Nova Luz um bairro cultural não foram suficientes para atrair novos tipos de frequentadores que de fato vivenciassem a região como um todo e não apenas seus principais equipamentos culturais, como a Pinacoteca e a Sala São Paulo (FRÚGOLI; SKLAIR, 2009; GASPAR, 2010). Segundo os autores,
A [...] Sala São Paulo, por exemplo, atrai uma certa população às noites, que utiliza, quase que na totalidade, seus carros para locomoção, deixando-os no estacionamento do próprio prédio. A Pinacoteca, por sua vez, atrai um número considerável de visitantes, mas a grande maioria tem acesso à instituição através do metrô, com uma das saídas situadas logo à sua frente, sem qualquer necessidade de interação com o resto do bairro. Não se pode negar, então, que tenha havido mudança na população que frequenta circunstancial ou pontualmente o bairro (...), mas isso não configura, a princípio, uma mudança na vida pública do bairro em questão (FRÚGOLI; SKLAIR, 2009, p. 129).
Nota-se que o debate sobre a natureza dos agentes da gentrification é intimamente ligado àquele sobre habitação e usos do espaço. Em sua “fórmula clássica”, as regiões da gentrification recebem um novo contingente de moradores e não apenas de frequentadores de classes mais elevadas do que as originais. Porém, quando a gentrification passa ao status de conceito-analítico e é pensada globalmente por pesquisadores, a hipótese “baseada em frequência e consumo” torna-se válida. Não obstante ela depende da averiguação “de que os espaços públicos do bairro vêm sendo ocupados por novos grupos”, de maneira que esses vivenciem de fato a região e não apenas utilizem de maneira pontual seus equipamentos culturais (FRÚGOLI; SKLAIR, 2009, p. 129).
Gaspar (2010) faz referência a estudos de casos latino-americanos de gentrification similares ao da Luz e que esclarecem igualmente este debate. Esses casos demonstram como certos bairros de classes populares passam a ser revestidos de nova “aura” ao ganharem uma diversidade de novos equipamentos culturais, sendo, porém, apenas frequentados por um novo público, advindo das classes médias, e muito pontualmente. Esse é o cenário das transformações em áreas centrais da Cidade do México, estudadas por Hiernaux-Nicolas (2006). Nesse caso, por meio do investimento público e privado, há a “retomada do centro pelas atividades comerciais, de serviço e de lazer, dentre outras, mas principalmente as culturais”. Todavia, apesar da frequentação da região pelas classes médias e altas, não há real “vivência” da área, assim como no caso da Luz. Como nota o autor, “os restaurantes e boates só têm sucesso porque adotam o sistema de manobristas [...]. Não se anda no centro à noite, mesmo quando se vai a um concerto no Palácio de Belas Artes (há um estacionamento subterrâneo em frente) ou a um restaurante” (HIERNAUX-NICOLAS, 2006, p. 254, grifo nosso).
Não foi nosso objetivo realizar uma revisão bibliográfica sobre o tema da gentrification, já elaborada por outros tantos autores15; tampouco procuramos engessar o conceito ao enfatizarmos sua concepção mais “clássica”. Com efeito, é inevitável que qualquer conceituação se amplie e se diversifique ao tomar dimensões globais, afastando-se cada vez mais de sua concepção original. Ao mesmo tempo, as diversas facetas do conceito de gentrification e a necessidade de adaptações de suas características, para modelos fora de seu universo de origem, podem evidenciar tanto sua plasticidade como sua fragilidade analítica. Os dois casos latino-americanos citados são bons exemplos de como certas dinâmicas urbanas podem apresentar algumas das características da gentrification, mas não sua característica principal: a real mudança de status social do bairro. Resta-nos saber, neste contexto, como caracterizar o caso do Baixo Augusta.
Baixo Augusta: gentrification em debate
Exploramos agora a possibilidade de analisar as transformações do Baixo Augusta nos termos do debate sobre gentrification. Os recortes geográfico e temporal se justificam por uma série de razões. Ressalte-se, em primeiro lugar, que tanto o boom imobiliário como a fase de “renovação” da Augusta são datados a partir dos anos 2000 e, como demonstramos, têm como preâmbulo um percurso histórico que data da fase de degradação da rua. Em segundo lugar, como mostra a figura 2, os resultados do boom imobiliário são muito mais expressivos na região do Baixo Augusta – dos vinte novos empreendimentos imobiliários, apenas três deles localizam-se na porção dos “Jardins”. Finalmente, os estudos sobre e na rua Augusta apontam uma transformação simbólica especificamente em sua região baixa, sendo que sua outra porção continua a ser caracterizada por um perfil mais comercial.
No que tange à transformação do espaço físico, o caso do Baixo Augusta não se enquadra na ideia de preservação e valorização do patrimônio, mas sim no caso das “novas construções”. Os efeitos do boom imobiliário são inegáveis – as novas torres comerciais e residenciais transformaram de forma impactante a estética arquitetônica da via. Mais importante, como notamos ao longo do histórico da rua Augusta, é possível observar que houve de fato o processo de rent-gap, também característico da gentrification. Não obstante, quando adentramos as questões das forças econômicas e culturais, e das mudanças habitacionais e de uso do espaço, o caso do Baixo Augusta começa a se afastar das dinâmicas que o conceito de gentrification abarca.
O ponto principal desse afastamento é o fato da região do Baixo Augusta não ter se modificado em termos de sua principal atividade: o lazer. É salutar, nesta perspectiva, resolver uma problemática temporal. Como já exposto, tanto trabalhos acadêmicos como matérias jornalísticas indicam que o processo de gentrification na Augusta teve como início os anos 2000, que marcam uma nova fase da via, após o período caracterizado como aquele de “degradação”. Afirmar que esta nova fase da rua configurou o processo de gentrification implicaria a substituição dos habitantes e/ou dos frequentadores “originais” da região por um novo contingente, de classes mais altas, que ressignificariam o local, conferindo-lhe novo status.
Porém, como procuramos demonstrar, se a região do Baixo Augusta foi ressignificada, isso aconteceu justamente ao longo da “degradação”. É quando da desvalorização dos imóveis que a via recebe como moradores os jovens universitários que incentivam a abertura de empreendimentos comerciais na parte baixa da Augusta, como as casas noturnas underground, que caracterizam um certo estilo de vida. Essas passam a coexistir com os “inferninhos” e com o circuito de cinema alternativo e teatro, garantindo a frequentação da rua para fins de lazer.
O imaginário atual da via, que tem em seu bojo a ideia de diversidade – como aponta o texto de Canevacci (1993), as narrativas dos jovens frequentadores da Augusta (DINES, 2011) e até mesmo o design das “novas” casas noturnas e bares – é tributária justamente da valorização da imagem de “degradação”. Não é possível afirmar, então, que houve mudança no status do Baixo Augusta, que permanece como mancha de lazer, frequentada pelos mais variados grupos.
Nesse sentido, é mais apropriado argumentar que, na rua Augusta, existe uma espécie de “conjugação de cronologias espaciais” (FERNANDES, 2009, p. 196). Dito de outra maneira, novas inscrições nas paisagens da via coexistem ou mesmo se justapõem a elementos do passado: antigos “inferninhos” coexistem com as novas torres de apartamentos; lojas da “fase gloriosa” da via resistem a todas suas transformações16; o circuito de teatro e cinema transforma-se, mas ainda é presente e característico da Augusta, assim como os bares e baladas, que se adaptam a novas modas17 e mantêm o status do Baixo Augusta de importante mancha de lazer jovem de São Paulo.
Não se trata de negar o impacto das transformações causadas pelo rent-gap e pelo boom imobiliário. Certamente, esses processos tiveram repercussões notórias na via. Importantes casas noturnas e bares, como o Clube Vegas, acabaram por fechar as portas, por não conseguir competir com as grandes incorporadoras. Porém novos clubes noturnos, restaurantes e bares continuam a surgir, outros conseguem manter a atividades, e até mesmo resistem ainda alguns strip-clubs em frente a novas torres comerciais e residenciais.
Também se observa uma resistência por parte da população às forças econômicas e às ações das construtoras, como demonstra, por exemplo, o debate em torno do Parque Augusta18, ou a própria narrativa de conhecidos empresários da região como Facundo Guerra, que afirmou em relação ao cenário de especulação imobiliária: “Eu vejo com certo ar de tristeza, mas ao mesmo tempo entendo que a rua é viva. É uma especulação barata, em função da arquitetura de péssimo gosto, e cara ao mesmo tempo em função do preço do metro quadrado” (Depoimento de Facundo Guerra, concedido ao R.7, 2013).
A despeito de apresentar algumas características do processo de gentrification, o cenário do Baixo Augusta revela também suas peculiaridades, que incitam uma série de questionamentos: O rent-gap é suficiente para caracterizar a gentrification? A longo prazo, os condomínios e torres muradas alterarão a paisagem simbólica da via, substituindo a mancha de lazer, marcada pela diversidade, por um cenário “enobrecido”19? Ou ainda persistirá a mancha e seus frequentadores, numa espécie de “contra-uso” da região (LEITE, 2007)? Argumentamos que tentar enquadrar o caso do Baixo Augusta no modelo de gentrification pode configurar uma violência epistêmica, no sentido desenvolvido pela crítica pós-colonial e seu desdobramento crítico, autodenominado decolonialismo.
Considerações finais: uma crítica ao conceito de gentrification
Um dos pressupostos das reflexões desenvolvidas pelos pós-coloniais refere-se à ideia de que os processos de colonização implicaram uma violência e uma dominação não apenas territorial, mas também epistêmica. O fim da situação colonial, representado pela desocupação formal, não implicou o desaparecimento de procedimentos, categorias e tecnologias associados ao domínio colonial, nem o deslocamento da Europa enquanto referência primordial para muitas histórias e geografias pós-coloniais.
Uma das principais contribuições dos autores pós-coloniais reside em sua potente crítica ao eurocentrismo presente nas ciências humanas. Stuart Hall (2016), por exemplo, aponta como elas reproduzem a perspectiva colonial, ao alimentar e legitimar o modelo de representações entre a Europa e o resto do mundo. O autor aponta a dicotomia West/Rest como um dos fundamentos da Sociologia moderna, a qual adota parâmetros, normas e valores encontrados nas sociedades ocidentais como balizas para definição de sociedades modernas e define as sociedades não ocidentais pela ausência ou incompletude, frente ao padrão moderno evidenciado pelas sociedades ocidentais:
Bons exemplos da incorporação pela sociologia moderna do binarismo West/Rest seriam, para Hall, categorias como patrimonialismo, em Weber, e modo de produção asiático, em Marx, que, de formas distintas, fraseam o movimento interno de sociedades definidas como não ocidentais na gramática implicitamente comparativa que toma as sociedades europeias como padrão (COSTA, 2006).
Nessa mesma linha, Spivak (2010) destaca, como um desdobramento da situação colonial, a violência epistêmica, que desclassifica os conhecimentos e as formas de apreensão do mundo do colonizado, expropriando-lhe a possibilidade da enunciação. Inspirados na crítica foucaultiana à episteme das Ciências Humanas (FOUCAULT, 1999), os autores vinculados à vertente pós-colonial buscam garantir um lugar de fala que valorize e legitime a voz dos sujeitos subalternos, em luta por representação. Nas palavras de Machado:
[...] o que caracterizaria uma situação pós-colonial seria uma relação de insuficiência representacional, ou seja, uma incapacidade crônica dos sujeitos de expor sua própria narrativa sobre os fatos. Grupos subalternos que não têm controle sobre a própria imagem seriam os grupos que vivem em situações pós-coloniais: populações marginalizadas em geral (MACHADO, 2004, p. 20).
Essa discussão parece apropriada para análise acerca da pertinência ou não da noção de gentrification na compreensão das referidas transformações experimentadas pelo Baixo Augusta. Parece-nos que a mobilização dessa noção, neste caso em estudo, produz uma modalidade de violência epistêmica, por inviabilizar os diferentes agentes, suas memórias, representações, significações e modos de uso do espaço ali experimentados nos processos de transformação acima relatados.
Um conjunto de autores latino-americanos vêm desenvolvendo uma nova perspectiva crítica, como desdobramento do pós-colonialismo. Trata-se da proposta decolonial, representada por autores como o sociólogo peruano Aníbal Quijano (2000) e o semiólogo argentino Walter Mignolo (2017). O ponto nevrálgico da perspectiva decolonial refere-se à necessidade de buscar uma crítica ao eurocentrismo que parta da especificidade latino-americana, apontando que as teorias pós-coloniais têm seu contexto de enunciação situado no legado colonialista do imperialismo inglês. Como aponta Walter Mignolo (apud BALLESTRIN, 2013), seria preciso promover um rompimento com a crítica pós-colonial, ainda muito presa aos referenciais teóricos do norte, e construir uma crítica à modernidade e à colonialidade a partir de um ponto de vista da América Latina, que foi a primeira a se submeter à dominação colonial/imperial e moderna e, além disso, guarda relações de subalternidade colonial em relação ao império estadunidense. Modernidade e colonialidade, na perspectiva analítica defendida por Walter Mignolo (2017) são indissociáveis:
[...] a “modernidade” é uma narrativa complexa, cujo ponto de origem foi a Europa, uma narrativa que constrói a civilização ocidental ao celebrar as suas conquistas enquanto esconde, ao mesmo tempo, o seu lado mais escuro, a “colonialidade”. A colonialidade, em outras palavras, é constitutiva da modernidade – não há modernidade sem colonialidade (MIGNOLO, 2017).
Buscamos, na reflexão proposta nos limites deste artigo, vislumbrar uma perspectiva de análise que, “sem jogar a criança com a água do banho”, mobilize criticamente a contribuição teórica desenvolvida pelos clássicos em contexto europeu, revestindo-a com pressupostos do debate pós-colonialista, ao assumir uma perspectiva crítica, relacional e não substancialista na operacionalização de ideias e conceitos.
A noção de gentrification é tributária das teorias da modernização, carregando em seu bojo o ideário do progresso, do desenvolvimento, do planejamento e ascetismo. A sua transposição direta para aplicação no contexto da rua Augusta implicaria a reprodução de uma postura intelectual que reproduz abordagens eurocêntricas, apoiadas em um arsenal teórico-conceitual produzido pelas autorreferidas Ciências Humanas, em contexto europeu.
A globalização do conceito de gentrification fez com que ele se tornasse lugar comum. Mais ainda, sua recepção pode ter acarretado o apagamento das peculiaridades e das localidades. Como uma das alternativas possíveis para escapar desse recorrente caminho – que acaba por se revelar como armadilha – sugerimos que o tratamento das dinâmicas urbanas do Baixo Augusta, bem como de outras realidades das cidades latino-americanas, parta da prática etnográfica, por seu potencial de desvendar sujeitos ocultos e vozes silenciadas, memórias e experiências não registradas, que passam desapercebidas pelo olhar que busca evidenciar as marcas do tão desejável desenvolvimento modernizante.
Levando em conta as críticas pós-colonial e decolonial expostas, sugerimos ainda um movimento epistemológico que trate a pesquisa etnográfica como esforço intelectual, no sentido geertziano, ou ainda como etnografia-e-teoria, para citar Mariza Peirano (2014). Dito de outro modo, a ideia é a de que os conceitos analíticos não sejam importados ou previamente definidos, mas desenvolvidos ao longo da prática etnográfica, em comunicação constante com a realidade estudada.
A intrínseca relação entre a prática etnográfica e a teoria antropológica já foi reiterada por uma série de autores20. Como propõe Mariza Peirano (1995), a história da disciplina antropológica é caracterizada pela busca de visões alternativas à generalização e universalização de conceitos, em sua busca incessante pelo diálogo com o “Outro”, visando uma ideia de humanidade construída pelas diferenças. Para a autora, a teoria antropológica se desenvolve vinculada ao conhecimento etnográfico – há um diálogo direto entre teoria acumulada e fatos etnográficos (PEIRANO, ١٩٩٥).
Além da estruturante relação entre os planos teórico e empírico, a prática etnográfica vem sendo marcada pela forte preocupação com a articulação entre as relações localmente experienciadas e as estruturalmente definidas, em escala global. Desde o que podemos denominar como virada interpretativista, inaugurada por Geertz (2008), os antropólogos vêm se debruçando sobre a questão, buscando alcances interpretativos que ultrapassem as práticas locais, seja via etnografias multisituadas (MARCUS, 1995), pela noção de redes sociotécnias (LATOUR, 2012), pelos modos e efeitos dos fluxos globais, em forma de paisagens (APPADURAI, 2004), ou ainda, pela ênfase na articulação, proposta por Strathern (2014), dos modos como os interlocutores em campo acionam escalas e contextos globalizados com as operações do antropólogo no processo de escrita etnográfica.
Não é o caso de afirmar a preeminência da disciplina antropológica em toda e qualquer investigação de dinâmicas urbanas. Não obstante o empreendimento etnográfico, na perspectiva apresentada, mostra-se como uma possível alternativa às armadilhas da violência epistêmica, expressa pela transposição acrítica de conceitos sem as mediações que se fazem necessárias.
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Recebido em 13/05/2020
Aceito em 30/09/2020
1 Este artigo é um subproduto da pesquisa “Para além da distinção: gostos, práticas culturais e classe em São Paulo», desenvolvida com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), à qual registramos nossos agradecimentos.
* Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Unesp – FCLAr. E-mail: beatrizsalgado.co@gmail.com
** Professora livre-docente da Unesp – FCLAr. E-mail: castroanalucia75@gmail.com
2 Utilizamos aqui os conceitos de “circuito” e de “mancha” de Magnani (2002). Por “circuito”, entende-se uma “categoria que descreve o exercício de uma prática ou a oferta de determinado serviço por meio de estabelecimentos, equipamentos e espaços que não mantêm entre si uma relação de contiguidade espacial” (MAGNANI, 2002, p. 23); e por “mancha”, uma categoria que se refere a “áreas contíguas do espaço urbano dotadas de equipamentos que marcam seus limites e viabilizam (...) uma atividade ou prática predominante” (MAGNANI, 2002, p. 21).
3 É possível notar a adoção dos termos “Baixo Augusta” e “Jardins” em reportagens e noticiários sobre a rua Augusta, websites oficiais de turismo da cidade de São Paulo (CIDADE DE SÃO PAULO, 2019) e, inclusive, nos mapas da plataforma Google Maps.
4 A fonte não explicita se o novo valor corresponde a uma média ou ao valor do metro quadrado das novas construções. Ademais, os valores variam também de acordo com o perfil e o tamanho dos imóveis. De qualquer maneira, segundo o portal Proprietário Direto (2020), o valor médio do metro quadrado no bairro da Consolação é de R$ 9.870 (com base nos imóveis anunciados no site).
5 Adotamos como tradução de “gentrification” o termo “enobrecimento”, de acordo com as colocações de Rubino (2009). A terminologia será esmiuçada ao longo do artigo.
6 Pissardo cita uma série de representações artísticas que mobilizaram o imaginário de “degradação” da rua Augusta, “o universo do submundo e da ilegalidade”. Para mais referências, ver Pissardo (2013, p. 142-143).
7 Pissardo ressalta que as casas noturnas da rua Augusta possuíam perfis diferentes de acordo com o “lado” em que estavam. Na região dos Jardins, esses estabelecimentos eram, em geral, voltados para um público de maior poder aquisitivo e tocavam música eletrônica. Já o lado central da Augusta comportava casas noturnas de preços mais acessíveis, nas quais predominava o rock’n’roll. (PISSARDO, 2013, p. 154-155).
8 A renovação da praça Roosevelt é iniciada de fato apenas em 2010. São notáveis as ações policiais para a exclusão de grupos marginalizados da região, que poderíamos categorizar como ações de “higienização”. Com a exclusão de tais grupos e a vinda de camadas da classe média, é possível notar um processo de enobrecimento da região, nos termos de Silvana Rubino (2009) (PISSARDO, 2013, p. 186).
9 Clubes, como o Studio SP (Augusta, 591), apresentavam atmosfera “underground” e artística, com exposições de arte e shows de músicos brasileiros de vanguarda (STUDIO SP anuncia que encerra atividades neste mês de abril, 2013). Restaurantes, como o Z Carniceria (Augusta, 934), também apresentavam ar “descolado”. Dines comenta: “Apresenta um aspecto bem particular (...) procura lembrar o açougue que havia lá. Já na porta, visualiza-se esta diferença, pois as maçanetas são dois cutelos. Nas vitrines, ao lado da porta, vemos caveirinhas mexicanas e também correntes. Dentro do ambiente, foram mantidos os azulejos azul piscina na parede, há reboco exposto e os garçons usam aventais como os de um açougue. Nas paredes há ganchos pendurados de prender carne, caveira de touro, além de retratos, uma espingarda, dentre outras quinquilharias” (DINES, 2011, p. 4).
10 Como comenta um de seus antigos sócios, Facundo Guerra: “O galpão onde o mesmo [Vegas] se encontra recebeu uma proposta de compra milionária para ali ser montado um empreendimento imobiliário [...]. Como inquilinos, nunca poderíamos cobrir a oferta que o imóvel recebeu, e batalhamos até o último segundo. Mas nesta segunda-feira resolvemos jogar a toalha” (SAMPAIO, 2012, n.p.).
11 O mapa foi desenvolvido a partir de um levantamento de dados e imagens, por meio de trabalho de campo e pesquisa na internet, conduzido entre o segundo semestre de 2017 e o primeiro semestre de 2018.
12 Também se destaca o prédio residencial “Capital Augusta”, localizado na esquina com a rua Dona Antônia de Queirós, com “ampla área de lazer”, que tem desde “espaço café com wi-fi” até “SPA” (RUA AUGUSTA, em São Paulo, valoriza e atrai lançamentos imobiliários, 2011, n.p.).
13 Para exemplos de como as dinâmicas urbanas do Baixo Augusta são tratadas na mídia ver Freire (2019), FRB (2014), Rocha (2015), Yuri (2016) e Angiolillo (2019).
14 Não é nossa intenção oferecer aqui uma revisão bibliográfica sobre esta temática, aliás, realizada já por muitos autores (RUBINO, 2009; GASPAR, 2010; LEITE, 2007). Procuramos apenas pontuar as características mais marcantes do conceito de gentrification, a fim de problematizar o caso do Baixo Augusta.
15 Por exemplo, as autoras citadas ao longo deste artigo, Gaspar (2010) e Rubino (2009).
16 Por exemplo, a loja de chapéus “Plas” (rua Augusta, 724).
17 A título de exemplo, ver a matéria de Moretti, 2019.
18 Localizado em uma área de quase 25 mil metros quadrados, entre a rua Caio Prado e a Marques de Paranaguá, o terreno era propriedade das construtoras Setin e Cyrella e permanecia fechado desde 2013. Em 2015, no aniversário de São Paulo, milhares de pessoas ocuparam o local em “uma mobilização festiva pela liberação da área e sua efetivação integral como parque municipal” (A LUTA, 2015). Com outras formas de mobilização em torno do Parque Augusta, como petições on-line (PETIÇÃO, 2016), a formação do OPA – Organismo Parque Augusta (CONCLI, 2018), etc. –, as construtoras “aceitaram ceder o terreno em troca de títulos que permitem a realização do empreendimento que seria feito no local em outra área” (MELLO, 2020).
19 Ressalte-se a tradução de Rubino (2009) para o termo anglo-saxão gentrification – enobrecimento – e não gentrificação. Essa escolha enfatiza a principal característica desta dinâmica urbana: uma transformação simbólica de uma região, de seu status social (RUBINO, 2009, p. 38).
20 Por exemplo, Peirano (1995, 2014), Nader (2011) e Strathern (2014).
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 53, Junho/Dezembro de 2020, p. 258-276
Tradução
PEQUENAS EMPRESAS E DEMOCRATIZAÇÃO NO BRASIL (1978-1990)1
SMALL BUSINESS AND DEMOCRATISATION IN BRAZIL (1978-1990)
____________________________________
William R. Nylen*
(Tradução2 de Daniel Gustavo Fleig**)
Resumo
Este artigo explora a política da não-elite do capital3 – ou das micro, pequenas e médias empresas (MPMEs) – na época da transição do regime militar para a democracia contemporânea no Brasil. Descreve as relações e interações políticas entre ativistas políticos das MPMEs e suas organizações de ação coletiva, por um lado, e instituições políticas formais (agências estatais, formuladores de políticas, partidos políticos etc.) e organizações de ação coletiva dominadas por empresas da elite empresarial, por outro. O artigo argumenta que a não-elite do capital é um componente há muito ignorado dos setores populares economicamente explorados, socialmente subordinados e excluídos politicamente, em toda a América Latina. Embora os micro, pequenos e médios empresários possam ser membros da “classe empresarial”, seus interesses não devem ser confundidos com aqueles que professam representá-los em organizações dominadas por elites empresariais (associações do topo – peak associations – e instituições corporativas “representativas” de longa data) ou por burocratas nomeados politicamente em agências estatais, que afirmam levar os interesses de “seus clientes” no coração. O artigo demonstra como os esforços das lideranças das associações do topo no Brasil para consolidar a “unidade empresarial”, no período de análise, ajudaram a destruir um movimento social promissor do associativismo da não-elite do capital nos finais dos anos 1970 até o início dos anos 1990. Sugere-se que, quando permitido florescer, esse ativismo pode gerar benefícios positivos para as MPMEs que não seriam possíveis de outra maneira, especialmente se deixadas para as organizações tradicionais dominadas pela elite do capital. Analiticamente, este estudo de caso ilustra a utilidade do conceito de Sidney Tarrow (1994) de um “ciclo de protesto”, mostrando como a história da ascensão e a subsequente queda da ação coletiva da não-elite do capital no Brasil podem ser vistas como partes de um processo cíclico, mais universal, de reformismo induzido por uma crise político-institucional, seguido de eventual enrijecimento das estruturas políticas.
Palavras-chave: Democratização. Sociedade Civil. Micro, Pequena e Média Empresa. Política Empresarial.
Abstract
This article explores the politics of the non-elite capital - or of micro, small and medium-sized enterprises (MSMEs), at the time of the transition from the military regime to contemporary democracy in Brazil. It describes the relations and political interactions between MSMEs political activists and their collective action organizations, on the one hand, and formal political institutions (state agencies and policy makers, political parties, etc.) and collective action organizations dominated by business elite companies, on the other hand. The present work argues that the non-elite capital is a long-ignored component of the economically exploited, socially subordinated and politically excluded popular sectors across Latin America. Although micro, small and medium-sized entrepreneurs may be members of the “business class,” their interests should not be confused with those who profess to represent them in organizations dominated by business elites (top associations - “peak associations” - and corporatist institutions’ “representatives”) or by politically appointed bureaucrats in state agencies, who claim to have the best interests of “their clients” at heart. The article demonstrates how the efforts of the leaders of the top associations in Brazil to consolidate the “business unity”, during the analysis period, helped to destroy a promising social movement of non-elite capital associations in the late 70s until the beginning of the 1990s. It is suggested that, when allowed to flourish, this activism can generate positive benefits for MSMEs that would not be possible otherwise, especially if left to traditional organizations dominated by the capital elite. Analytically, this case study illustrates the usefulness of Sidney Tarrow’s (1994) concept of a “protest cycle”, showing how the history of the rise and subsequent fall of collective action by the non-elite capital in Brazil can be seen as parts of a cyclical, more universal process, of reformism induced by a political-institutional crisis, followed by eventual rigidity of the following political structures.
Keywords: Democratization. Civil Society. Micro, Small and Medium Business. Business policy.
Introdução
Os estudiosos da democratização na América Latina há muito reconhecem a importância da classe empresarial em ajudar, dificultar ou influenciar processos de mudança política.4 Isso não deveria causar surpresa. Os estudiosos marxistas sempre insistiram em uma análise minuciosa, embora às vezes excessivamente mecanicista, das relações estado-capital. Análises mais sofisticadas e empíricas da política da classe empresarial – relações entre elites econômicas e instituições políticas e, igualmente importante, entre os próprios setores econômicos (ou “frações de classe”) – têm sido um dos pilares do estudo da América Latina nos Estados Unidos, pelo menos desde o trabalho inovador de estudiosos neomarxistas e teoria da dependência, como Guillermo O’Donnell, Celso Furtado, Fernando Cardoso e Enzo Faletto e Peter Evans. Os não marxistas também reconheceram a importância de estudar a política de classe empresarial, como atestam os trabalhos seminais de Simon Schwartzman, Philippe Schmitter, Peter McDonough e outros.
Neste artigo, não questiono a sabedoria de estudar a política da classe empresarial, nem questiono a maior parte das descobertas da vasta literatura gerada ao longo dos anos. Em vez disso, busco acrescentar uma nova dimensão a essa literatura, que estava em grande parte ausente há dez anos, quando empreendi a pesquisa na qual este artigo se baseia e que permanece pouco estudada até hoje (com a exceção parcial de alguns trabalhos sobre a classe empresarial no México contemporâneo).5
Este artigo explora esse aspecto da política de classe empresarial que chamo de não-elite do capital, ou micro, pequenas e médias empresas (MPMEs).6 Essa dimensão que falta na literatura inclui relações e interações políticas entre ativistas políticos do MPME e suas organizações de ação coletiva, por um lado, e instituições políticas formais (por exemplo: agências estatais e formuladores de políticas, partidos políticos etc.) e organizações de ação coletiva dominadas por empresas da elite empresarial – por exemplo: associações “do topo” (peak associations) e instituições corporativas “representativas” de longa data –, por outro.
Argumento que a não-elite do capital é um componente há muito ignorado dos setores populares economicamente explorados, socialmente subordinados e excluídos politicamente, em toda a América Latina.7 Embora micro, pequenos e médios empresários possam ser membros da “classe empresarial”, seus interesses não devem ser confundidos com aqueles que professam representá-los em organizações dominadas por elites empresariais ou por burocratas nomeados politicamente em agências estatais que afirmam levar os interesses de “seus clientes” no coração. “A classe empresarial”, afinal, é uma abstração analítica. A unidade da classe empresarial e a representação unitária de toda a classe empresarial são apenas maneiras agradáveis e igualmente abstratas de descrever o domínio político das grandes empresas sobre o capital que não é de elite. No entanto a literatura existente muitas vezes opta pelo uso mais amplo do termo “classe empresarial” ou escolhe se concentrar exclusivamente nas “elites empresariais”. De qualquer maneira, uma importante dimensão da política – a subjugação de um setor social significativo – é ignorada.
Para ilustrar meu argumento, demonstrarei como os esforços das lideranças das associações tradicionais das empresas (“do topo”) no Brasil, para consolidar a “unidade empresarial”, ajudaram a destruir um movimento social promissor do associativismo do capital não pertencente à elite, durante o final da década de 1970 até o início dos anos 1990. Claramente, outros fatores também foram importantes para explicar esse fracasso na consolidação do ativismo coletivo: a extrema heterogeneidade da “classe” de micro, pequenos e médios empresários, a imersão total frequentemente observada dos empresários de pequeno porte em seus negócios e sua consequente falta de tempo para participar politicamente, a cultura política mais generalizada do Brasil de passividade política etc. Ilustrarei, no entanto, que o capital da elite organizado foi crucial para garantir que os cerca de 99% dos empresários privados brasileiros oficialmente identificados como “micro, pequenos ou médios” em 1980 (ou seja, empresas do setor comercial e de serviços com menos de 100 funcionários e empresas industriais com menos de 250) – que empregavam cerca de 84% da força de trabalho e ganhavam cerca de 70% da renda total – perderam a oportunidade de escolher entre organizações representativas estabelecidas por pequenos empresários como eles e as organizações tradicionais que, por praticamente todas as contas objetivas, representam apenas as empresas maiores e mais bem conectadas (“o capital da elite”) em apenas alguns setores da economia.8
Isso aconteceu no Brasil em “vias de democratização” – o maior país da América Latina e o país com a nona maior economia do mundo – e ninguém escreveu sobre isso. Isso, por si só, traz uma importante contribuição para a literatura. Eu vou adiante, no entanto, argumentando que a falta dessa dimensão da política de classe empresarial faz com que os observadores subestimem até que ponto a atual política de classe empresarial brasileira pode ser caracterizada como abertamente antidemocrática (hostil à “inclusão” e à “contestação” democrática). Pode parecer desnecessário acrescentar mais uma voz ao coro de críticas a respeito de “defeitos congênitos” elitistas do processo de democratização do Brasil.9 Mas o registro histórico exige isso, assim como as reivindicações de muitas elites empresariais do Brasil de que elas são uma força positiva para a democracia.
Além de sua relevância para o desenvolvimento brasileiro e para quem estuda o Brasil, este também é um estudo de caso das possibilidades e limitações do ativismo político da não-elite capital nas economias caracteristicamente oligopolistas e estatizantes da América Latina e suas políticas elitistas de “democratização”. Ele sugere que, em condições favoráveis, esse ativismo pode gerar benefícios positivos para as pequenas e médias empresas que não seriam possíveis de outra maneira, especialmente se deixadas para as organizações tradicionais dominadas pela elite. Em condições desfavoráveis, entretanto, este estudo de caso sugere que é provável que o capital organizado da elite assuma uma boa parte da culpa.
Três ondas de ativismo da Não-Elite do Capital na “Democratização do Brasil” (1978-1990)10
O princípio básico por trás do ativismo das pequenas empresas no Brasil sempre foi “tratamento diferenciado” ou, como um proponente disse, “tratamento desigual para desiguais”11. O conceito não é diferente do de “ação afirmativa” nos Estados Unidos, em que considerações especiais são tidas como apropriadas para um determinado grupo, a fim de compensar desigualdades ou preconceitos contra esse grupo que foram estruturados na sociedade. No Brasil, ativistas de pequenas empresas e seus apoiadores discutiram em momentos diferentes a implementação desse princípio em seu nome: dentro da estrutura oficial corporativista de associações empresariais, no sistema jurídico referente às responsabilidades fiscais e à regulamentação das empresas, no conjunto de prioridades de desenvolvimento estabelecidas pelo Estado e implementadas principalmente na forma de acesso ao crédito subsidiado pelo Estado.
A Primeira Onda: Antes de 1978, não existia ação política coletiva de pequenos empresários no Brasil. Pequenas e médias empresas receberam tratamento diferenciado, a partir de iniciativas do Estado para estimular o emprego e a modernização produtiva, principalmente por meio da criação de linhas de crédito com juros baixos e várias reduções e isenções de impostos.12 Em 1972, o governo militar criou o Centro Brasileiro de Assistência às Pequenas e Médias Empresas (Cebrae) para facilitar e coordenar esses esforços nos níveis nacional, estadual e municipal.13 Tais políticas não incluíram a organização e mobilização de sua clientela14 e uma porcentagem significativa de seus fundos era rotineiramente canalizada para as maiores e mais lucrativas empresas tecnicamente mais produtivas.15 No entanto as políticas estabeleceram o conceito de pequenas e médias empresas (PMEs) como uma categoria econômica e social distinta, fornecendo, assim, a base para a identidade coletiva e os esforços subsequentes de organização e mobilização.
O primeiro desses esforços ocorreu em 1978, no centro industrial de São Paulo. Três associações industriais de pequeno e médio porte foram formadas deliberadamente independente das associações comerciais corporativas oficiais (sindicatos) e de sua poderosa organização da elite do capital, a Federação da Indústria do Estado de São Paulo (Fiesp)16. Essa configuração precedente pode ser delineada por seis principais causas.
A primeira e mais imediata causa foi o resultado de negociações salariais após as vigorosas greves de metalúrgicos em 1978 e 1979.17 Vários pequenos industriais expressaram publicamente sua raiva por terem sido ignorados pelos negociadores da Fiesp (todos representando as maiores empresas do setor). Como resultado dessa falta de atenção, eles alegaram que as pequenas empresas em mercados concorrenciais, (price taking small firms) mais intensivas em mão de obra e famintas de capital, estavam sendo forçadas a aceitar um acordo salarial que não podiam pagar. As grandes empresas, por outro lado, eram geralmente “fabricantes de preços”, oligopolistas e intensivas em capital, que podiam facilmente repassar preços mais altos aos seus clientes.18
Essa percepção de falta de representação no processo de negociação salarial era indicativa, na opinião dos fundadores dessas associações, de uma falta de representação mais geral na estrutura da Fiesp como um todo. De fato, uma sensação de falta de representatividade da Fiesp já havia surgido entre pelo menos alguns pequenos industriais em São Paulo e nos arredores.
Em 1975, por exemplo, um grupo de cerca de 25 pequenos industriais da cidade de Campinas, interior de São Paulo, apresentou um documento de 23 páginas à diretoria da Fiesp intitulado “O pequeno industrial é, acima de tudo, um forte ... candidato a um ataque cardíaco!” Enumerando muitas das queixas comumente associadas ao status de pequeno produtor – escassez de capital de giro devido ao fato de ser espremido entre fornecedores e clientes oligopolistas de estabelecimento de preços, regulamentos burocráticos excessivos e encargos tributários etc. – e descrevendo um programa de extensão de assistência do Estado aos pequenos industriais, o documento terminou com uma crítica direta à falta de representação da Fiesp:
... NÃO EXISTE COMUNICAÇÃO COM as indústrias de pequeno e médio porte, ou seja, comunicações suficientes não estão chegando a essas indústrias. Agora, sem ter canais apropriados de comunicação com órgãos governamentais, entidades representativas e outras agências envolvidas com as quais possa chegar a indústrias menores, pelo menos periodicamente, seja qual for a boa iniciativa, seja qual for o programa de ajuda, assistência e ajuda a essas empresas serão natimortas.19
Diniz e Boschi (1978, p. 178) confirmaram essa suspeita, argumentando que “a liderança política da Fiesp em meados da década de 1970 é mantida nas mãos de grandes empresários, que podem, quando for conveniente, fazer uso da força representada pelo contingente numérico de pequenas e médias empresas”. Empresários e empresas que não pertencem à categoria da elite de empresas maiores foram formalmente “representados”, mas não foram realmente ouvidos por seus supostos líderes. Talvez como resultado, a maioria dos empresários ignorou as organizações oficiais de classe empresarial. Menos de 10% das 160.887 indústrias existentes, segundo o censo industrial de 1970, eram membros registrados de seu sindicato e não mais de 6% haviam ingressado em uma “associação paralela”.20 Essa falta de interesse se correlacionou diretamente com o tamanho da empresa. Um estudo sobre a participação nos sindicatos industriais de São Paulo e nas filiais locais do Centro de Indústrias do Estado de São Paulo (Ciesp), no início dos anos 1970, descobriu que “a representação tende a crescer com o tamanho das firmas-membros”, assim como a participação nas posições de liderança21
Esse sentimento crescente das falhas da Fiesp como entidade representativa coincidiu com a terceira causa subjacente dessa onda inicial de associativismo de pequenas empresas: uma maior conscientização pública das pequenas empresas como contribuinte positivo para o desenvolvimento econômico do Brasil. Essa foi uma imagem promovida em meados da década de 1970 pelo Cebrae, em rápida expansão, e pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico,22 não apenas para estimular a atividade fora dos “altos comandos dominantes” da economia (estimulando a criação de empregos e uma maior base tributária), mas também para convencer os pequenos empresários e outros que o Estado se importava com sua inclusão no modelo de desenvolvimento econômico.23 Novas linhas de crédito oficial para MPMEs foram abertas e promovidas pelo Cebrae com grande alarde. Os relatórios do censo foram amplamente divulgados, mostrando que 99% de todas as indústrias, 99,9% de todas as empresas comerciais e 99,9% de todas as empresas do setor de serviços no Brasil eram “micro, pequenas ou médias”.24
Enquanto o país estava dando os primeiros passos em seu processo prolongado de democratização (abertura) – com as eleições locais e do Congresso já tendo ocorrido – muitos dos fundadores dessa primeira onda de associativismo de pequenas e médias empresas viram nessas figuras e na retórica do governo uma noção do potencial de um lobby organizado em nome de pequenas e médias empresas. Esse sentido foi bastante aprimorado quando, em 1979, o general Golbery, principal assessor do presidente Geisel e autor da abertura, manifestou publicamente interesse em promover o desenvolvimento de pequenas empresas e, ainda mais importante, sua participação política. Em uma ação destinada a enfurecer a liderança da Fiesp (que estava fazendo todos os esforços para contestar legalmente e deslegitimar as novas associações), ele se encontrou pessoalmente com vários dos fundadores das novas associações de São Paulo para discutir suas preocupações e interesses.25 A democratização e essa brecha intraelite, portanto, forneceram a “estrutura de oportunidades” para a ação coletiva da não-elite do capital, que antes não estava disponível sob estruturas autoritárias mais rígidas26.
Uma quinta causa subjacente da ação coletiva de pequenas empresas foi a descoberta, por parte de vários dos fundadores dessas primeiras associações, da existência de associações autônomas de pequenas empresas em outros países. Vários chegaram a visitar diversas associações de pequenas empresas na Itália antes de começar a criar as suas próprias.
Finalmente, o fato de a liderança da Fiesp estar passando pelo primeiro desafio eleitoral nos quase 50 anos de história da organização significava que a liderança emergente de pequenas indústrias detinha um poder de barganha sem precedentes com os líderes da oposição. Pelo menos dois líderes fundadores fizeram acordos para apoiar o concorrente, que findou por vencer, em troca das promessas de que a Fiesp prestaria mais atenção às pequenas empresas no futuro.
Essa “primeira onda” de ação coletiva de pequenas empresas produziu vários resultados benéficos para pequenas empresas industriais em São Paulo. Primeiro, as negociações salariais no setor de metalurgia foram alteradas, permitindo que empresas menores pagassem aumentos percentuais relativamente menores. O processo de negociação foi alterado para incluir um conselho de sindicatos de membros (onde as pequenas empresas têm uma voz potencialmente mais significativa) e um grupo técnico que consulta e estuda as necessidades de uma seção muito mais ampla das firmas-membro.
Segundo, a Fiesp criou um Departamento de Assistência à Média e Pequena Indústria para fornecer serviços e consultoria especiais a seus membros menores (ao mesmo tempo, tornou-se uma influência essencialmente controladora na diretoria da filial estadual do Cebrae). Finalmente, pelo menos duas das três associações autônomas originais persistiram até o final da década de 1980 e, embora afetada por uma baixa e instável adesão de membros, eles ainda forneciam serviços e um grau de representação que até então era inexistente (especialmente porque a mídia local costumava se voltar para eles, para “opiniões alternativas”, sobre questões do dia).
Em uma aparente tentativa de evitar uma divisão semelhante nas fileiras do setor de comércio de São Paulo (onde, em 1975, 99,87% das empresas formais eram consideradas pequenas e médias, empregando 92,57% da força de trabalho do setor e gerando 89,85% de seu total de receitas), a Associação de Comércio de São Paulo (ACSP) adotou plenamente a causa ainda não articulada da representação de pequenas e médias empresas desde 197727. Em conjunto com o Governo do Estado de São Paulo (cujo governador, Paulo Maluf, era ex-presidente da ACSP) e com o Cebrae, a ACSP patrocinou uma série de congressos de três dias para pequenas e médias empresas, começando em 1978. Esses foram amplamente e favoravelmente relatados na mídia e ajudaram a apresentar a ACSP como uma entidade representativa dos interesses das pequenas e médias empresas. Também em 1978, a ACSP criou um Conselho para o Desenvolvimento de Pequenas e Médias Empresas como um canal para a participação das pequenas e médias empresas nos assuntos da ACSP, bem como um fórum para discutir problemas específicos das pequenas e médias empresas. Os líderes da ACSP intensificaram o recrutamento de pequenos empresários para os conselhos distritais, ao mesmo tempo que mantinham controle estrito e centralizado sobre esses conselhos. Muitas outras Associações de Comércio em todo o Brasil acabaram seguindo o exemplo da ACSP, embora geralmente muito depois de o associativismo autônomo do MPME ter se tornado uma ameaça à reivindicação de representação exclusiva.
A Segunda Onda: Uma “segunda onda” de ação coletiva para pequenas empresas ocorreu no início e em meados da década de 1980. Teve como causa imediata o apoio de pequenos empresários e ativistas à criação e implementação do Estatuto da Microempresa, legislação que propunha a eliminação da maioria dos impostos e regulamentações burocráticas das microempresas, como forma de fortalecer seus interesses – suas capacidades de sobrevivência e lucratividade – e como um incentivo para sua “graduação” fora do setor informal. Os debates sobre a criação e implementação do Estatuto da Microempresa, bem como suas contrapartes estaduais e locais, ofereceram muitas oportunidades para os pequenos empresários-ativistas organizarem e fazerem suas vozes serem ouvidas.
Esses ativistas – alguns dos quais fizeram parte da primeira onda de associativismo – passaram a falar publicamente da necessidade de “democratizar a economia”, mudando o foco exclusivo do Estado em grandes empresas e projetos de desenvolvimento grandiosos e eliminando a considerável pressão fiscal e reguladora do Estado sobre “o cidadão comum”28. Quanto mais eles se manifestavam, mais suas preocupações e interesses assumiam implicações sobre os gritos generalizados antiestado e pró-democratização do período.29 Pequenos empresários viram-se elevados, em grande parte por uma imprensa simpática e por políticos da “nova direita”, ao status de heróis em sua luta contínua pela sobrevivência, não apenas em um mundo de “capitalismo selvagem”, onde grandes empresas públicas e privadas mantinham todas as vantagens do poder de mercado e das conexões políticas, mas também contra uma burocracia sufocante do Estado, com seus vorazes cobradores de impostos e fiscais corruptos.30 O autor do Estatuto da Microempresa, o ministro da desburocratização, Hélio Beltrão, emergiu como o ministro mais popular do governo e foi mencionado como um provável candidato a presidente. Seu ministério fez campanha em todo o país para a aprovação do estatuto, cortejando ativamente o apoio de entidades tradicionais da classe empresarial, bem como de novas associações autônomas do MPME.
Os opositores do Estatuto das Microempresas eram, principalmente, os ministros de economia do governo, da Receita Federal e da Confederação das Secretarias Econômicas dos Governos Estaduais. Todos temiam a perda de receitas fiscais se o estatuto fosse aprovado. Com o país imerso em sua pior recessão em anos (o início da chamada “Década Perdida”), esses argumentos pró-tributação e seus porta-vozes eram altamente impopulares. Finalmente, a política em torno do Estatuto das Microempresas ilustrou mais uma vez as contradições inerentes às organizações empresariais tradicionais, especialmente as que supostamente representavam os industriais. Essencialmente controladas por grandes empresas nacionais, essas organizações tendiam a relegar o Estatuto da Microempresa a uma pequena preocupação, apesar de ter afetado diretamente a vida da maioria de seus membros.
Vindas dessa luta, mais de cem associações autônomas de micro, pequenas e médias empresas surgiram em todo o país. Muitas surgiram espontaneamente. Muitas outras foram criadas por associações previamente organizadas que se ramificaram nas regiões vizinhas. Em 1985, menos de um ano após a aprovação do Estatuto da Microempresa pelo Congresso, o jornal paulista O Jornal da Tarde (1985, p. 10) declarou, com aprovação, que “uma nova força política está nascendo: os microempresários”.
A Associação Comercial e Industrial de Micro e Pequenas Empresas do Vale do Itajaí (Acimpevi) em Blumenau, Santa Catarina, oferece um estudo de caso ilustrativo (com espaço, é claro, para que as circunstâncias locais também se apliquem). No início dos anos 1980, respondendo às crescentes críticas de seus membros e à crescente cobertura da mídia por parte dos MPMEs inspirados no Estatuto da Microempresa, os líderes da Associação de Comércio e Indústria de Blumenau (ACIB) discutiram a criação de uma comissão especial para identificar os problemas das MPMEs de Blumenau e aconselhar os membros interessados sobre a melhor forma de solucionar esses problemas.31 A comissão nunca realmente decolou e sua inação foi claramente revelada após as inundações devastadoras da região em julho de 1983. Membros do MPME severamente afetados pediram que o ACIB fizesse lobby por um alívio temporário de sua carga tributária, por linhas especiais de crédito para reconstrução e para obter ajuda para forçar as empresas de seguros relutantes a pagar pelas apólices de alívio de desastres. De acordo com aqueles que acabariam se separando da ACIB, a liderança se opôs a essas medidas. A maioria das grandes empresas, apontaram os dissidentes, ficavam em terrenos mais altos e, portanto, eram comparativamente pouco afetadas pelas inundações.
Um dos membros da ineficaz Comissão do MPME e cerca de quinze proprietários de pequenas empresas locais decidiram agir por conta própria. Eles propuseram a criação de uma zona de realocação para MPMEs gravemente afetadas e procuraram a reativação de uma Expo ao ar livre, há muito adormecida, de produtos fabricados localmente. Suas propostas foram ignoradas não apenas pela liderança da ACIB, mas também por autoridades locais e estaduais. O grupo decidiu atuar em um segundo projeto. O primeiro Festival de Verão de Blumenau incluiu cerca de 200 participantes de micro e pequenas empresas e mais de 60.000 visitantes pagantes. Seu sucesso levou o grupo a fundar a Acimpevi, em março de 1984.32
O ACIB respondeu anunciando uma comissão especial de assistência especificamente às microempresas. Essa tentativa de cooptar o programa da Acimpevi e atrapalhar sua fundação foi prejudicada, no entanto, pelo fato de o presidente nomeado da nova comissão ser um grande empresário. No dia da fundação da Acimpevi, o ex-chefe da ineficaz Comissão MPME da ACIB foi forçado a admitir nos jornais locais que não fazia ideia de quantos membros da ACIB eram proprietários de micro ou pequenas empresas.33 Ele enfatizou, entretanto, a necessidade de unidade da classe empresarial, protestando contra a “divisão de forças” causada pelo aparecimento da Acimpevi. Tais argumentos apareceram repetidamente na imprensa local: o secretário de imprensa da ACIB também foi o editor de uma coluna de ampla leitura que abordava as notícias de Blumenau de um dos principais jornais do estado, O Diario Catarinense. A Acimpevi encontrou pouca cobertura na mídia local.
Contudo, após um ano de existência, a Acimpevi reivindicou 4.500 membros pagantes em vinte vilas e cidades em todo o Vale do Itajaí. A organização criou seus membros com uma estratégia agressiva de confronto com autoridades locais e autoridades da ACIB, esforços bem-sucedidos em obter reconhecimento da mídia nacional, demandas populares por mais assistência do governo aos MPMEs e uma variedade de serviços disponíveis exclusivamente para os membros – todos provenientes de uma liderança altamente carismática e dedicada. A metade dos anos 1980 representou o ponto alto do ativismo da não-elite do capital, não apenas em Blumenau, mas em todo o país.34
A Terceira Onda: Em 28 de fevereiro de 1986, diante do início da inflação descontrolada, o Plano Cruzado do Presidente José Sarney congelou os preços e aumentou os salários reais, gerando um salto nos gastos dos consumidores. Sarney exortou as empresas brasileiras a tirar proveito do “fim da inflação” e da alta demanda do consumidor para investir no aumento da produção. Enquanto as taxas de juros dos bancos comerciais atingiram níveis de 50 a 80%, os empréstimos patrocinados pelo governo para investimentos apresentavam baixas taxas mensais, de 2% a 5%. O presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) afirmou que apenas pequenas empresas estavam realmente usando esses fundos para investir35. O número de novas empresas iniciantes, principalmente microempresas, aumentou substancialmente. Mais fundos foram anunciados e funcionários do governo elogiaram as pequenas empresas por seu “patriotismo”. A alta demanda dos consumidores fez com que a maioria das pequenas empresas prosperasse durante os nove meses em que o Plano Cruzado permaneceu em vigor.
O governo Sarney fez várias propostas públicas para os líderes das novas associações do MPME. Ele e seu ministro da economia, Dilson Funaro, se reuniram em ocasiões separadas com vários deles e receberam apoio qualificado para a “opção do mercado interno” do Plano Cruzado.36 Em março de 1986, Sarney convidou António Guarino, presidente da nova Associação de Pequenas e Médias Empresas do Rio de Janeiro (Flupeme), para se tornar presidente do Cebrae. Guarino foi o primeiro empresário, também o primeiro pequeno empresário, a presidir o Cebrae nos quatorze anos da sua existência. Os ativistas-proprietários do MPME ficaram entusiasmados. Os líderes das associações oficiais da classe empresarial ficaram furiosos.
Logo após as eleições de novembro de 1986, o Plano Cruzado – em grande parte responsável pela vitória do PMDB à época – terminou tão de repente quanto havia começado, revelando claramente os esforços politicamente motivados para mascarar suas instáveis fundações econômicas. À medida que a economia voltava à inflação e à recessão, a demanda do consumidor caía e as taxas de juros disparavam. Os proprietários endividados de MPMEs sofreram bastante. Uma pesquisa realizada em março de 1987 com 350 pequenas empresas no Rio de Janeiro indicou que as taxas de juros mensais dos empréstimos haviam subido para 18,3% (as taxas mensais chegariam mais tarde a 30%). Para piorar a situação, os bancos comerciais que até consideraram conceder novos empréstimos e reagendamentos exigiram acordos informais de “reciprocidade” (ou seja, ilegais) em que parte dos novos fundos teria que ser usada para “seguro” ou como um saldo mínimo exigido.37
O governo prometeu mais fundos para pequenas empresas, mas, no clima de crescente incerteza (Sarney estava trabalhando com seu terceiro ministro da economia em menos de três anos), a realidade ficou muito aquém. Em alguns casos, os fundos simplesmente não foram liberados pelas agências governamentais responsáveis. Quando os ministros da economia de Sarney e o Banco Central elaboraram um esquema de refinanciamento para as dívidas do Cruzado, muitos bancos privados se recusaram a cooperar. Funcionários do Banco Central admitiram que apenas 30% dos elegíveis para assistência realmente a receberam.38 Para piorar a situação, pelo menos aos olhos dos líderes do movimento associativismo do MPME, Guarino foi destituído da presidência do Cebrae com menos de um ano de mandato.
Como a maioria dos brasileiros, muitos pequenos empresários se sentiram traídos pela transformação do mercado interno exuberante inspirado pelo Cruzado em estagflação cada vez pior. Para aqueles que contrataram empréstimos para aproveitar a aparente recuperação econômica, esse sentimento de traição foi agravado pela possibilidade real de perder seus negócios e bens pessoais. Nesse contexto, muitos buscaram conselhos.
A maioria das entidades tradicionais da classe empresarial, ao mesmo tempo que denunciou publicamente a “destrutividade” do plano, assumiu a linha-padrão de responsabilidade dos devedores: pague e seja mais inteligente da próxima vez, aproveite o esquema de refinanciamento do Banco Central ou liquide ativos e encontre um emprego. Essa também foi a atitude dos principais comentaristas da mídia. Para os proprietários do MPME que não encontraram consolo nessa sabedoria ortodoxa (“Por que eu pagaria quando o que aconteceu não foi minha culpa?”), a maioria das associações autônomas de pequenas empresas adotou uma postura pró-devedor mais agressiva.
Denunciando publicamente o comprometimento dos bancos privados dos esquemas oficiais de reescalonamento, muitos entraram com ações individuais contra bancos, amarrando o caso no sistema judicial por um ou dois anos. O devedor ficou, então, livre para continuar o melhor que pôde (obviamente, sem acesso ao crédito). Muitas vezes, os bancos preferiram resolver casos fora do tribunal em termos relativamente generosos. À medida que essas ações se tornavam cada vez mais conhecidas, a participação em associações autônomas aumentava.
As associações de pequenas e médias empresas se alegraram durante a redação, entre 1987 e 1988, da nova Constituição do Brasil (e depois se lamentaram). Seus líderes uniram-se em uma rara aliança com organizações empresariais tradicionais em favor do artigo 179, estabelecendo “tratamento jurídico diferenciado” para micro e pequenas empresas “com o objetivo de estimulá-las pela simplificação de seus processos administrativos, fiscais, previdenciários e de crédito, bem como a eliminação ou redução de tais obrigações por meio de legislação”.39 Com efeito, o artigo 179 tomou o espírito do Estatuto da Microempresa e o consagrou na nova Constituição. O ex-presidente da ACSP e deputado federal, Guillerme Afif Domingos, se proclamou em voz alta (e erroneamente) o autor do artigo 179 e a principal força política por trás de sua passagem. A maioria dos líderes de organizações empresariais tradicionais seguiu o exemplo ao reivindicar vitória por seus esforços em nome de seus membros-microempresas. A mídia tendia a reportar tais alegações sem questionar.
Infelizmente, em termos de sua imagem pública geral, a menção mais conhecida dos MPMEs na Constituição dizia respeito ao artigo 47 das “Cláusulas transitórias”, mais conhecido como “emenda de anistia”. Essa cláusula isentou a maioria das micro e pequenas empresas, bem como as micro, pequenas e médias fazendas, de ter que ajustar pela inflação quaisquer empréstimos contratados durante o Plano Cruzado (no momento em que a inflação anual era de 934% em 1988 e as falências dos MPMEs atingiram níveis recordes). Os beneficiários da anistia ainda tinham que pagar suas dívidas, mas apenas nos termos das taxas de juros pré-inflação originais. Com efeito, os beneficiários receberam uma anistia de suas responsabilidades legais como devedores para pagar o ônus da inflação pós-Cruzado.
Embora isso possa ter sido uma vitória para muitos proprietários de micro e pequenas empresas, o governo, as grandes empresas, as entidades tradicionais da classe empresarial e, mais importante, os formadores de opinião pública na mídia, viram as coisas de maneira muito diferente. A lei sagrada do contrato foi deliberadamente desobedecida por “devedores impulsivos” e “demagogos populistas irresponsáveis” no Congresso. Um precedente perigoso havia sido estabelecido. A reação foi rápida e furiosa. O quarto ministro da economia de Sarney, Maílson da Nóbrega, apresentou números alarmantes mostrando o quanto isso ia custar aos contribuintes. Sarney anunciou que os empréstimos agrícolas para o próximo ano seriam negados a micro, pequenos e médios agricultores. Os bancos declararam sua indisposição a emprestar para pequenas empresas “não confiáveis”, definidas como aquelas que ousariam tirar vantagem da anistia. A mídia relatou essas declarações ampla e favoravelmente.
Embora os números do governo mais tarde tenham sido inflacionados, e a ameaça de Sarney tenha sido revogada, o dano permaneceu. Enquanto os MPMEs haviam sido retratados como heróis da economia popular versus a aliança “cartorial” do Estado e das grandes empresas dependentes, os pequenos empresários e suas associações representativas eram agora descritos na imprensa como cartorialistas egoístas, aproveitando descaradamente tendências populistas do Congresso às custas da sociedade como um todo.40 O comentário a seguir, de um colunista popular, era um refrão típico:
A Assembléia Constituinte não foi inventada para votar em material episódico como a anistia da dívida para empresários falidos, enganados ou simplesmente astutos. [...] a anistia privatiza os lucros dos beneficiados e socializa as perdas dos credores. Amplia a ética política desses ilustres manipuladores profissionais de assuntos públicos (BETING, 1988, p. A-24).
Depois que a anistia e o furor passaram, e após seus beneficiários receberem seus perdões “vergonhosos”, as pequenas empresas quase desapareceram da vista do público. O associativismo do MPME diminuiu, conforme indicado por um declínio constante na participação de associações de autônomos e pelo desaparecimento real de muitas associações.
Uma exceção importante ocorreu em São Paulo, envolvendo um grupo chamado Associação Nacional de Empresas de Base (PNBE). A partir do fim de 1986, esse grupo de industriais de porte médio e mais jovem (entre 30 e 40 anos), com cargos de segundo nível na Fiesp, começou a se reunir informalmente para discutir questões como política macroeconômica, o papel da Fiesp na elaboração de políticas econômicas, e uma falta percebida de comunicação eficaz entre a liderança da Fiesp e as “bases” da classe empresarial (definidas explicitamente como micro, pequenas e médias empresas nacionais).41 A maioria considerou que eles próprios haviam sido desprezados pela “máfia” da Fiesp em seus esforços para participar da formulação de políticas da elite do capital. Concluíram que a Fiesp precisava tanto de abertura quanto o restante das instituições políticas elitistas do Brasil. Nas palavras de um membro fundador:
Nossa tarefa é ser democráticos na Fiesp, lutar pelo espaço político; tentar, a partir da posição de nossos próprios sindicatos, modificar a estrutura de tomada de decisão de maneira democrática e não corporativista. Nosso trabalho como líderes eleitos não consiste em emitir pronunciamentos e decisões, mas em permitir discussões e tomar decisões por meio de tais discussões. A tomada de decisão deve ser feita com transparência, não a portas fechadas (FEOLA, 1988).42
Em junho de 1987, o PNBE tornou pública uma declaração de princípios e uma série de reuniões públicas destinadas a empresários que achavam que não estavam recebendo o reconhecimento que mereciam do Estado (na forma de políticas econômicas relevantes) ou das entidades de classe tradicionais (em termos de representação).43 A maioria das pessoas que compareceram a essas reuniões era proprietária de um MPME, e estava irritada com a direção recessiva pós-Cruzado da formulação de políticas econômicas e com a abordagem da Fiesp, que nada fez por seus problemas. Esses eventos foram amplamente divulgados pela mídia e entrevistas com essa “facção de oposição” dentro da Fiesp apareceram em vários jornais e revistas importantes.
Embora o PNBE nunca tenha desafiado o direito da Fiesp de representar os industriais de São Paulo como um todo, desafiou diretamente a capacidade da liderança atual de fazê-lo de forma eficaz. Desinteressada em tais distinções, a liderança da Fiesp respondeu com ameaças, esforços de cooptação e tentativas disfarçadas de se entrincheirar por meio de mudanças nos estatutos do governo da Fiesp, que descartariam desafios à liderança em exercício. No início de 1989, os membros do PNBE foram simplesmente dispensados de seus cargos, alguns dos quais foram eleitos. A maioria permaneceu ativa e visível, nas posições de liderança nos sindicatos setoriais. Em 1992, o membro do PNBE, Emerson Kapaz, montou uma campanha malsucedida e amargamente travada, para a presidência da Fiesp.44 A candidatura de Kapaz coroou a ascensão do PNBE à proeminência pública, ao mesmo tempo que dividiu seus membros (já enfraquecidos por uma crescente politização partidária de muitos de seus líderes mais visíveis).45 No final dos anos 1990, o PNBE evoluiu de seu foco inicial em fornecer uma voz forte e alternativa à não-elite do capital, em questões de política-econômica, para se tornar um grupo de cidadania que promove discretamente questões de justiça social e reforma de políticas sociais.
Os esforços anteriores do PNBE para contestar as reivindicações de representação da Fiesp levaram um de seus membros a buscar uma estratégia paralela. Referindo-se à cláusula “tratamento diferenciado legal” (artigo 179) da nova Constituição, o industrial de médio porte Joseph Couri criou um novo sindicato: o Sindicato da Micro e Pequena Indústria do Estado de São Paulo (Simpi).46 O Simpi teria o mesmo acesso legal ao Imposto Sindicato – pago por todas as empresas formais em apoio à estrutura oficial de representação –, assim como os sindicatos mais antigos, garantindo uma sólida base financeira. Além disso, o novo sindicato e seus membros poderiam votar nas eleições da Fiesp e Ciesp. Durante anos, a Fiesp travou uma batalha perdida contra Couri e o Simpi nos tribunais e na mídia. Enquanto isso, Couri incentivou com sucesso a abertura de sindicatos similares de microindústria em todo o Brasil. O sucesso de Couri, no entanto, teve vida curta.
Um desafio finalmente debilitante para toda essa década e meia de esforços para promover o associativismo do MPME (ou, pelo menos, estabelecer uma alternativa para as grandes organizações dominadas pelas grandes empresas e sua liderança) começou com a proposta extinção do Cebrae, em 1990, como parte dos esforços de corte de orçamento do presidente Fernando Collor.47 Os funcionários do Cebrae se uniram a várias associações do MPME em um esforço para manter o Cebrae vivo. Incapazes de cooperar, no entanto, as associações autônomas perderam para um plano apresentado pela Confederação Nacional da Indústria, a organização nacional das federações da indústria em nível estadual.48 O novo Sebrae foi descentralizado e “corporativizado”, isto é, entregue a um conselho executivo “não governamental”, composto por entidades públicas responsáveis pelos programas de desenvolvimento do MPME – sempre incluindo representantes de bancos estaduais e federais de desenvolvimento e as federações locais da indústria e do comércio, e financiado principalmente por um novo imposto obrigatório de 0,3% sobre salários.49
O controle efetivo dos conselhos pelas organizações tradicionais de classe empresarial significava que a liderança dessa ditava essencialmente as metas e as alocações orçamentárias consideráveis dos 27 Sebraes em nível estadual. Somente o Sebrae do Rio de Janeiro incluiu uma associação autônoma de MPME (Flupeme) em seu conselho de governo (o conselho foi, entretanto, totalmente controlado pela federação da indústria desse estado, um inimigo de longa data do Flupeme). Os novos sindicatos da microindústria foram “representados” por federações que toleraram apenas relutantemente sua existência. Essa exclusão efetiva dos conselhos do Sebrae – que agora administram praticamente todos os esforços oficiais de desenvolvimento direcionados aos MPMEs – significa que a organização autônoma e a mobilização da não-elite do capital, para todos os efeitos, tornaram-se impossíveis.
Análise
A principal problemática deste artigo foi dupla: primeiro, a falta de representação política para cerca de 99% da classe empresarial brasileira e, segundo, a falta de qualquer análise acadêmica séria sobre esse problema. Não posso explicar o segundo problema, exceto ao observar que as análises da política da classe empresarial tradicionalmente se concentram nos interesses e ações das elites empresariais. Quanto ao problema da falta de representação dentro da classe empresarial, argumentei que a não-elite do capital no Brasil perdeu a oportunidade de se representar principalmente porque as organizações existentes da classe empresarial dominadas pelo capital nacional da elite lutaram por isso. Em outras palavras, a falta de representação do capital que não é de elite não ocorreu por causa de uma cultura política de não participação, generalizada para todos os brasileiros que não são de elite ou específica para proprietários de empresas menores, ou por falta de recursos efetivos de empreendedores políticos para traduzir os anseios desse “grupo latente” em organizações reais de ação coletiva.50 Pelo contrário, o associativismo de micro, pequenas e médias empresas foi notícia notável no Brasil por quase duas décadas.
O poder das associações tradicionais de antecipar, cooptar ou destruir os desafios que não pertencem às elites, para sua efetiva monopolização da representação e seu atual domínio do Sebrae, mostram que o corporativismo excludente está bem vivo no Brasil contemporâneo. Pode-se ficar tentado a argumentar, no entanto, que os acordos colaborativos do Sebrae entre o Estado e a sociedade civil organizada – seu “embaçamento das fronteiras da sociedade estatal através da formulação conjunta de políticas”51 – constitui um exemplo progressivo de “corporativismo democrático”, “concertação” ou “redes associativas”.52 Certamente, há menos um controle centralizado do Estado e mais autonomia societal nos conselhos de governo do Sebrae, em comparação com as hierarquias burocráticas de cima para baixo do antigo Cebrae, durante os períodos de transição autoritária e no início da democracia. Mas o antipluralismo institucionalizado e a intolerância à “legitimidade da diferença”53 –consistentemente exibida ao longo dos anos pela liderança das entidades tradicionais da classe empresarial, que agora dominam o Sebrae “em nome das” micro, pequenas e médias empresas – não têm nada a ver com a democracia. O que temos hoje não é um corporativismo democrático, mas praticamente o mesmo “sistema de expressão de interesse oficialmente patrocinado e protegido” que Phillipe Schmitter (1971, p. 222) encontrou no Brasil na década de 1960.54 De fato, Schmitter (1995) observou recentemente essa tendência infeliz à “incrustação” de antigas instituições corporativistas em muitas das novas democracias da América Latina.55
Se Adam Przeworski (1992, p. 116), entre outros, está correto ao argumentar que “a própria essência da democracia é a competição entre forças políticas com interesses conflitantes”,56 então devemos concluir que o processo pelo qual a “unidade de classe empresarial” foi construído no Brasil prejudicou a democracia naquele país. Isso foi feito principalmente ao restringir severamente, se não eliminar, a competição e o debate pluralistas dentro da classe empresarial. Ao fazê-lo, também prejudicou a construção da cidadania democrática (ou seja, conscientização e participação política) entre uma parcela significativa da sociedade brasileira, desnudando, no processo, as fundações de classe e institucionais da chamada “cultura política” da não participação popular.57
Essa história da ascensão e da queda da ação coletiva da não-elite do capital no Brasil exibe muitas semelhanças com o padrão de “ciclo de protesto” dos movimentos sociais discutido por Sidney Tarrow (1994).58 Tarrow argumenta que novas formas de organização não elite e ativismo político surgem durante períodos de conflitos intraelite extraordinariamente intensos, muitas vezes provocados por graves crises econômicas (por exemplo, o desaparecimento do grande modelo desenvolvimentista liderado pelo Estado) e/ou mudança de regime político (por exemplo, abertura democrática). Esse conflito gera rachaduras e fissuras em instituições dominadas pela elite e redes informais (por exemplo, organizações tradicionais de classe empresarial), criando oportunidades para ativistas de fora da elite propagarem uma agenda e mobilizarem apoio. Como os primeiros ativistas (por exemplo, a primeira onda de associativismo da não-elite do capital) atraem a atenção da mídia e obtêm ganhos mais ou menos significativos para si mesmos, outros seguem o exemplo, criando, em conjunto, o “despertar da sociedade civil” tão frequentemente verificado pelos observadores dos processos de democratização.
Tarrow (1994) aponta como esse despertar pode criar tensões dentro dos novos movimentos entre radicais maximalistas e os moderados que jogam de acordo com as regras. Tais tensões dividem os novos movimentos da não-elite do capital, ao mesmo tempo que produzem uma unificação defensiva. Ao democratizar o Brasil – como na maior parte da América Latina – essas tensões foram atenuadas pelo fato de a moderação ter sido a regra esmagadora dos movimentos sociais contemporâneos. Segundo Tarrow (1994), a vitória da liderança moderada da não-elite move o lugar da luta política da sociedade civil para arenas institucionalizadas da política (por exemplo, partidos, legislaturas, burocracias estatais) que são facilmente “apadrinhadas” ou recuperadas por uma aliança intraelite cada vez mais unificada.
A barganha nessas arenas da política abre aos recém-chegados, não pertencentes à elite, toda uma gama de táticas-padrão da elite: repressão, cooptação de líderes e deslegitimação ou apropriação grosseira de seus programas. Tendo escolhido essa estratégia, o melhor que as organizações de movimentos sociais, que seguem as regras, pode esperar, segundo Tarrow (1994), são “reformas modestas”, níveis modestos de participação cidadã comum e uma probabilidade modesta de sobrevivência organizacional (“modesta”, isto é, relativa aos objetivos e demandas dos ativistas originais do movimento).
A estrutura analítica de Tarrow (1994) apoia claramente o argumento de que o ativismo político do MPME foi frustrado “de cima” por elites empresariais temporariamente divididas e depois reunificadas. Além disso, sugere que a razão pela qual o ativismo do MPME ocorreu foi que os conflitos intraelite enfraqueceram as elites empresariais e reduziram temporariamente sua capacidade de exclusão.59 Por fim, podemos deduzir, a partir da análise do autor, que o impacto do ativismo da não-elite do capital incluiu a implementação de reformas modestas que, apesar de ficarem abaixo das expectativas dos próprios ativistas, representaram ganhos significativos em relação ao status quo anterior.
Os ativistas da não-elite do capital no Brasil articularam uma visão do futuro desenvolvimento econômico de seu país muito diferente do modelo atual de inspiração neoliberal ou do modelo de grandeza desenvolvimentista anterior. Ele incorporou o “tratamento diferenciado” para os MPMEs em uma “opção para o mercado interno” com foco no consumo popular e na produção nacional, estimulando o primeiro com uma distribuição de renda mais justa (por exemplo, salários-mínimos mais altos, tributação progressiva e programas sociais ampliados) e esse último com incentivos fiscais e de crédito seletivos, proteção seletiva da indústria nascente contra a concorrência estrangeira e legislação antitruste eficaz. Em vez disso, o que eles obtiveram foram “reformas modestas”, como mudanças favoráveis ao MPME nos processos de negociação trabalhista. Os departamentos de assistência do MPME acrescentaram, à maioria das organizações empresariais tradicionais, o Estatuto da Microempresa – que proporciona alívio tributário e regulatório para os menores dos menores – do artigo 197 da Constituição de 1988, que consagra legalmente o princípio de “tratamento diferenciado” para micro e pequenas empresas e (por todas as suas falhas políticas) um órgão assistencialista do MPME muito mais bem financiado e visível: o Sebrae.
No que diz respeito a essas melhorias, não tão boas como deveriam (aos olhos dos ativistas originais), mas ainda significativas, se comparadas com o status quo antes de 1978, é provável que nenhuma teria sido implementada se não houvesse a existência da “ameaça” do ativismo político da não-elite do capital na mobilização de um número significativo de micro, pequenos e médios empresários do Brasil para ingressar em organizações autônomas que desafiaram diretamente as organizações de classe empresarial já existentes. O registro comparativo mostra que reformas, mesmo modestas, devem ser travadas a partir “de baixo” e raramente surgem “de cima”, das ações esclarecidas ou benevolentes das elites.60
Conclusão
A literatura sobre a política da classe empresarial na América Latina e o registro histórico dos processos de democratização da região sofrem com a falha em considerar adequadamente a política da não-elite do capital. O estudo de caso apresentado aqui – referente à ascensão e à queda do ativismo político entre empresários das MPMEs no Brasil “em vias de democratização” – ilustra importantes observações obscurecidas por falta acadêmica.
Primeiro, ilustra claramente a posição social e politicamente subordinada dos micro, pequenos e médios empresários em relação aos chamados “líderes empresariais”, encontrados nas tradicionais associações dominadas pela elite. Em segundo lugar, e talvez o mais importante, o estudo de caso sugere que esses mesmos “líderes empresariais” negaram os princípios democráticos fundamentais de contestação e inclusão ao criar uma “unidade de classe empresarial” retórica, reconstruindo à força as instituições corporativistas excludentes dominadas pela elite e destruindo expressões autônomas de ação coletiva não pertencentes à elite. Isso tem implicações negativas para os processos gerais de democratização.
Finalmente, o estudo de caso ilustra a utilidade do conceito de Sidney Tarrow (1994) de um “ciclo de protesto”, mostrando como a ascensão e a queda da ação coletiva da não-elite do capital no Brasil podem ser vistas como partes de um processo cíclico, mais universal, de reformismo induzido pela crise, seguido de eventual enrijecimento das estruturas políticas.
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Recebido em 09/03/2020
Aceito em 16/02/2021
1 Artigo não publicado, originalmente apresentado no dia 27 de outubro de 1990, no painel Organized Interests, Political Participation, and the State in Brazil, na reunião do New England Council of Latin American Studies, Durham, New Hampshire. Atualizado em 1997.
* Professor de Ciência Política e Diretor do Programa de Estudos Internacionais na Stetson University, (DeLand, Flórida, EUA). Ele é autor de Elitist Democracy vs. Participatory Democracy: Lessons from Brazil (2003) assim como de vários artigos e capítulos de livros sobre a política e a política econômica no Brasil e em Moçambique. Possui doutorado em Ciência Política (política comparada) pela Columbia University (Nova Iorque), mestrado em estudos latino-americanos e economia internacional pela Johns Hopkins School of Advanced International Studies (Washington) e bacharelado em Ciência Política pela University of California at Berkeley. E-mail: wnylen@stetson.edu
2 Tradução certificada pelo Centro de Assessoria de Publicação Acadêmica (Capa) da Universidade Federal do Paraná.
** Professor de Gestão e Empreendedorismo na Universidade Federal do Paraná (UFPR – Setor Litoral – Matinhos), com graduação em Administração (UFSM), mestrado em Administração (UFLA) e doutoramento em Sociologia (UFPR). E-mail: fleig@ufpr.br.
3 Nota do tradutor: no original do artigo em inglês, o termo apresentado é no-elite capital. Com esse termo, Nylen busca um contraste com as grandes empresas, com destaque para a dimensão política do desenvolvimento brasileiro. Neste sentido, as grandes empresas (nacionais, estatais e estrangeiras) representam o grande capital econômico e, no âmbito político, a elite do capital. Portanto, as chamadas micro, pequena e médias empresas representam o pequeno capital econômico, constituindo, na esfera política, a não-elite do capital.
4 Veja, por exemplo, Ernest Bartell e Leigh A. Payne em Business and Democracy in Latin America (1995), Leigh A. Payne em Brazilian Industrialists and Democratic Change (1994), Douglas A. Chalmers, Maria do Carmo Campello de Souza e Atilio A. Boron em The Right and Democracy in Latin America (1992) e David G. Becker em Business Associations in Latin America: the Venezuelan Case Comparative Political Studies (1990).
5 Blanca Heredia em Profits, Politics, and Size: The Political Transformation of Mexican Business in Chalmers (1992) e Kenneth C. Shadlen no artigo Small Industry and the Mexican Left: Neoliberalism, Corporatism, and Dissident Populism (1997).
6 O tamanho da empresa é uma notação abreviada popular (embora de modo algum não problemática) para distinguir entre capitais de elite e de não-elite. Nas décadas de 1960 e 1970, de acordo com Peter Evans (1979), as grandes empresas constituíam parte integrante da tríplice aliança dominante de capitais de Estado, multinacionais e grandes elites domésticas. Para definições semelhantes, ver Eli Diniz e Renato Raul Boschi em Empresariado Nacional e Estado no Brasil (1978) e também R.R. Boschi Elites Industriais e Democracia (1979). Para abordagens mais recentes e definições semelhantes de elites empresariais e não-elites, consulte Payne em Brazilian Industrialists and Democratic Change (1994), especificamente o capítulo 1, e também Henrique Rattner em Pequena Empresa: O Comportamento Empresarial na Acumulação e Luta pela Sobrevivência, volumes 1 e 2 (1985).
7 Alguns podem se opor a ver donos de empresas colocados na categoria do setor popular. Mas aceito a seguinte definição: Na América Latina, o “popular” é uma mistura de elementos socioeconômicos, políticos e culturais. O “popular” abrange a pobreza, mas não se limita a ela. Incorporando também uma dimensão política e cultural, o “popular” inclui grupos de classe média mobilizados não tanto por demandas estritamente econômicas quanto por pedidos de democratização, liberdades públicas e direitos de cidadania. Ver Carlos Vilas em Participation, Inequality, and the Whereabouts of Democracy (1997).
8 Dados do censo oficial da FIBGE dos setores de indústria, comércio e serviços (1980).
9 Tais vozes incluem as numerosas análises de Francis Hagopian das “elites tradicionais”, incluindo Traditional Power Structures and Democratic Governance in Latin America (1996) e Guillermo O’Donnell em Transitions, Continuities, and Paradoxes (1992).
10 Para uma descrição e análise mais detalhadas desses eventos até 1990, consulte William R. Nylen em Small Business Owners Fight Back: Non-elite Capital Activism in Democratizing Brazil (1978-1990) publicado em 1992.
11 Para Helio Beltrão (1984, p. 97), “não há livre empresa sem pequena empresa”.
12 As microempresas (ou Micro-sized businesses) não foram oficialmente distinguidas das pequenas empresas até o início dos anos 1980.
13 Em 1990, “a Lei nº 8.029 [...] autorizava [o Cebrae] a desvincular-se da administração pública e estabelecia critérios para a arrecadação de recursos, que passaram a vir de uma alíquota de 0,3% cobrada sobre as remunerações pagas pelas empresas contribuintes do Sesi/Senai e Sesc/Senac aos seus empregados. Dessa forma, o Cebrae se transformou em serviço social autônomo. Em 9 de outubro, o Decreto n° 99.570 alterou a sua denominação para Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas, o Sebrae com “S”, que passa a fazer parte do chamado Sistema S, que inclui Senai, Sesi, Senac, Sesc, Senar, Senat, Sest, Sescoop, entre outros.” [Fonte: https://memorial.sebrae.com.br/historia/?ano=1990]
14 Como o ex-diretor de operações do Cebrae (1974-1978), Afonso Otávio Cozzi, colocou em uma entrevista concedida ao autor em 15 de julho de 1986: (...) o trabalho que fizemos no Cebrae, foi feito diretamente pelo governo para os empresários. Portanto, não dialogamos com pequenos empresários. [...] Éramos bastante fortes, até um pouco autoritários.
15 Essa é uma das conclusões de Eli Diniz e Renato Raul Boschi no artigo O Programa de Apoio à Pequena e Média Empresas no BNDES: Análise, Avaliação e Perspectivas, presente na obra A Pequena e Média Empresa no Atual Modelo de Desenvolvimento Econômico (1980). Esse ainda era o caso no final de 1997. Veja Miséria e Classe Média na Folha de São Paulo (1997).
16 As novas organizações foram: Associação de Pequenas e Médias Empresas e Centro de Estudos (Acempeme), Associação Nacional de Pequenas e Médias Indústrias (Anapemei) e Associação Brasileira de Pequenas e Médias Indústrias (Abrapemi).
17 Veja Margaret E. Keck em The Workers’ Party and Democratization in Brazil (1992), especificamente o capítulo 4.
18 O presidente de quatro mandatos da Anapemei e proprietário de uma empresa com 135 funcionários, Claudio Rubens, disse-me, em uma entrevista em 4 de julho de 1988, que essa reação decorreu do fato de que os custos de mão de obra para pequenas e médias empresas industriais representavam tipicamente 17% a 35% dos custos totais de produção, enquanto o valor respectivo de um fabricante/montador de automóveis, por exemplo, era de apenas 11%.
19 Wlademir Righetto et al. O pequeno industrial é, antes de tudo, um forte ... candidato ao enfarte! (1975).
20 Archibaldo Figueira (Assessoria Parlamentar do CEBRAE), no artigo O Legislativo e o Sistema de Pequena e Média Empresa (1986, p. 8). A divisão do trabalho político entre sindicatos e associações setoriais “paralelas” é descrita como “mais complementar do que conflituosa” por Diniz & Boschi (1978). Ver também Peter Kingstone em Shaping Business Interests: the Politics of Neoliberalism in Brazil, 1985-1992, (1994).
21 Oracy Nogueira et al. (1975, p. 35). O Ciesp era uma estrutura paralela, legalmente autônoma dos regulamentos do Estado, ao lado da Fiesp. Sua liderança, no entanto, era a mesma da Fiesp. Para Payne (1994, p. 243), “a FIESP agrada mais aos industriais conservadores de grandes empresas, independentemente da nacionalidade”.
22 Criado em 1952, o BNDE passou a ter a denominação de Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) em 1982.
23 Entrevista do autor com o Dr. Afonso Otávio Cozzi, ex-diretor de Operações do CEBRAE (1974-1978), 15 de julho de 1986, Belo Horizonte.
24 Para comércio e serviços: micro = 0-9 funcionários, pequeno = 10-49 e médio = 50-99; para a indústria: micro = 0-9, pequeno = 10-99 e médio = 99-249 (FIBGE, 1970)
25 Entrevistas do autor com Braulio Cesar Jordão Machado, fundador e primeiro presidente da Acepeme-SP, em 6 de novembro de 1989; e com Wlademir Righetto, fundador e primeiro presidente da Acepeme-Campinas, em 25 de março de 1988 e 11 de novembro de 1989.
26 Para o conceito de “estrutura de oportunidades”, veja Sidney Tarrow em Power in Movement: Social Movements, Collective Action and Politics (1994); uma análise semelhante, mas no quadro da teoria dos jogos, pode ser encontrada em Adam Przeworski (1992) em The Games of Transition.
27 Muitos dados do ACSP foram baseados na entrevista do autor com o Dr. Marcel Domingos Solimeo, diretor do Instituto Econômico do ACSP e criador do SMB Council, em 11 de novembro de 1989, em São Paulo.
28 O termo usado no inglês the little guy refere-se ao cidadão comum que não possui riquezas, grandes empresas e tem pouco ou nenhum poder, influência política e econômica.
29 Para “antiestadismo” no Brasil, veja Sebastião Velasco e Cruz Empresários, Economistas e perspectivas da Democratização no Brasil (1988).
30 Na época, o livro de Hernando DeSoto, The Other Path (1989), elogiando o espírito empreendedor e a criatividade de pequenas empresas do setor informal, era um best-seller no Brasil e em toda a América Latina.
31 De entrevistas pessoais com Décio Moser, ex-diretor da comissão, em 6 de junho de 1988, e Pedro Cascaes, ex-membro da comissão e futuro fundador e presidente da Acimpevi, em 13 de agosto de 1986 e 22 de novembro de 1989.
32 Entrevista pessoal do autor com Pedro Cascaes, presidente da Acimpevi, em 13 agosto de 1986, em Blumenau (SC).
33 “Empresariado do Vale do Itajaí está dividido na Acimpevi” em O Estado (Florianópolis, 29 de março de 1984); também ver “Décio Moser prega a união de todos” em O Povo (Blumenau, 29 de março de 1984).
34 Veja, por exemplo, William R. Nylen Representation without Participation: the Association of Small and Medium-Sized Businesses of Rio de Janeiro (Flupeme), Brazil (1985).
35 BNDES diz que só pequenos investem, Flupeme Notícias 15 (1986). Muitos grandes produtores hesitaram em parte por se preocupar com a sustentabilidade a longo prazo do plano e em parte porque as altas taxas de juros proporcionaram maiores retornos no setor financeiro da economia.
36 Ofereceram só “apoio qualificado” por causa da clemência do governo em não reprimir a contenção ilegal dos grandes negócios pelos controles de preços (cobrar um prêmio por mercadorias ou exigir um desconto de pequenos fornecedores, nenhum dos quais podia aparecer nos recibos de vendas), bem como estocagem ilegal e acordos de compra exclusivos de produtos escassos.
37 A pesquisa da Flupeme, Flupeme Notícias 20 (1987).
38 Protesto contra o Banco Central, Flupeme Notícias 24 (1987).
39 Constituição da República Federativa do Brasil (1988), título VII, capítulo 1, Art. 179. Esse artigo foi finalmente regulamentado com a Lei n.8.864 de 28 de março de 1994.
40 “Cartorialismo” é definido e ilustrado em William R. Nylen em Liberalismo para todo mundo menos eu: o Brasil e a “solução” neoliberal (1992). É semelhante às “combinações redistributivas” mercantilistas no Peru, conforme descrito por DeSoto em The Other Path (1989).
41 A maioria das informações sobre o PNBE vem de entrevistas pessoais com os membros fundadores: Oded Grajew (11 de janeiro de 1988), Fábio Starace Fonseca (27 de abril de 1988 e 2 de setembro de 1988), Joseph Michael Couri (3 de maio de 1988 e 29 de agosto de 1988), Emerson Kapaz (18 de maio de 1988), Bruno Nardini Feola (19 de maio de 1988), Paulo Roberto Butori (20 de maio de 1988) e Luiz Carlos Delben Leite (2 de junho de 1988 e 6 de dezembro de 1988). Esse é o único exemplo de ativismo do capital não-elite que se destacou na literatura sobre política de classe empresarial. Veja, por exemplo, Payne em Brazilian Industrialists (1994) e também Peter Kingstone, em Shaping Business Interesses (1994).
42 Entrevista pessoal com Bruno Nardini Feola, membro do PNBE e primeiro vice-presidente do SINDIMAQ, em 19 de maio de 1988, em São Paulo.
43 A declaração de princípios, intitulada PNBE: Mobilização Pela Defesa da Livre Iniciativa no Brasil, foi enviada como um comunicado de imprensa a todos os principais meios de comunicação.
44 Para obter informações sobre o PNBE, no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, consulte Kingstone em Shaping Business Interesses (1994).
45 Vários líderes do PNBE entraram no círculo interno de conselheiros de política econômica do Presidente Collor após sua campanha em que ele desprezou publicamente a liderança da Fiesp como de mente estreita e “cartorialista”. Outros apoiaram ativamente o Partido dos Trabalhadores, de esquerda. Em meados dos anos 1990, vários líderes e ex-líderes do PNBE, incluindo Kapaz, ocupavam posições no governo do estado de São Paulo, dirigido por Mario Covas, do Partido da Social Democracia do Brasileira (PSDB).
46 A maioria das informações provêm de entrevistas citadas anteriormente com Joseph Couri. As ações de Couri não foram endossadas pelo restante do PNBE.
47 O Cebrae sobreviveu a uma ameaça semelhante na política de corte orçamentária do presidente Sarney, em 1988, intitulada “Operação Desmantelar”. Ele acabou sendo salvo, embora seu orçamento tenha sido reduzido, pelo fato de seu então presidente, Paulo Lustosa, ser amigo pessoal do presidente.
48 Informações de entrevista pessoal com o presidente da Flupeme, Benito Paret, 22 de junho de 1993 (Rio de Janeiro); e de um funcionário de longa data, necessariamente anônimo, do Sebrae-RJ (anteriormente Ceag-RJ).
49 Veja a nota de rodapé de número 11.
50 Os conceitos de “empreendedor político” e “grupo latente” podem ser encontrados no tratamento dado por Mancur Olson à ação coletiva em grandes grupos, no livro The Logic of Collective Action; Public Goods and the Theory of Groups (1971).
51 Scott Martin em Beyond Corporatism: New Patterns of Representation in the Brazilian Auto Industry (1997).
52 Samuel Valenzuela (1992, p. 86-87) define “corporativismo democrático” da seguinte forma: “... os conflitos e demandas sociais são tratados por meio de procedimentos previsíveis e amplamente aceitos que incluem todos os grupos relevantes, mas são, ao mesmo tempo, isolados dentro dos limites mais estreitos possíveis, em termos da especificidade das questões e dos atores estatais, políticos e sociais envolvidos”. “Concertação” é, essencialmente, a mesma coisa. O conceito de “redes associativas” é definido como “um tipo novo e não hierárquico de estrutura de representação (geralmente envolvendo atores populares), na qual atores estatais e sociais se unem para moldar as políticas públicas”. (MARTIN, 1992, p. 69).
53 O’Donnell (1992, p. 43).
54 Philippe C. Schmitter em Interest Conflict and Political Change in Brazil (1971, p. 222).
55 Philippe C. Schmitter em Transitology: The Science or the Art of Democratization? (1995, p. 24-27).
56 Adam Przeworski em The Games of Transition (1992, p. 116).
57 Discutido, por exemplo, por José Álvaro Moisés em Dilemas da Consolidação Democrática no Brasil (1989, p. 168-171).
58 Sidney Tarrow em Power in Movement (1994, p. 153-86).
59 Isso foi confirmado em minha análise do caso mais bem-sucedido de associativismo do MPME, a Flupeme do Rio de Janeiro, em Nylen (1995).
60 Esta é uma conclusão-chave, por exemplo, em Dietrich Rueschemeyer, Evelyne Huber Stephens & John D. Stephens Capitalist Development & Democracy (1992).
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 53, Junho/Dezembro de 2020, p. 278-300
Resenha
OS OFÍCIOS NO MUNDO DO TRABALHO CONTEMPORÂNEO:
resistências e transformações
CRAFTS IN THE WORLD OF CONTEMPORARY WORK:
resistances and transformations
____________________________________
Leonardo José Ostronoff1 *
Fernando Salla2**
BARONE, Rosa Elisa Mirra; APRILE, Maria Rita (org.). Ofícios e saberes: permanências, mudanças e rupturas no mundo do trabalho. Curitiba, Appris, 2019.
Resumo
Ofícios e Saberes no Mundo do Trabalho Contemporâneo é uma coletânea organizada por duas professoras experientes na temática do trabalho que conta com a colaboração de diversos autores e do resultado de suas pesquisas. Escapando das tradicionais análises das fábricas, bancos e outros ramos centrais da atividade econômica, o livro discute um objeto pouco explorado nos estudos acadêmicos: o trabalho artesanal. Foram apresentados os seguintes ofícios: telegrafista, alfaiate, costureira, sapateiro, curtumeiro, ceramista, marceneiro, ladrilheiro, amolador de facas, parteira. Uma pluralidade e heterogeneidade que se conecta na resistência ao mundo industrial, tanto na ousadia em não aceitar o controle do tempo taylorista, quanto em continuar realizando um trabalho em que a habilidade manual e a criatividade são exigidas. Dessa maneira, não versa sobre a produção capitalista em larga escala, ao contrário, retrata um aspecto residual a ela, apresentando, através das memórias dos trabalhadores de ofícios artesanais, como resistem à lógica do capital na própria realização do seu trabalho. A coletânea é uma contribuição importante para as reflexões no terreno da Sociologia do Trabalho, abordando desde os aspectos objetivos das atividades laborais, como também os efeitos subjetivos das relações de trabalho no exercício dos ofícios. Os textos desta coletânea fazem um registro das profundas alterações pelas quais muitas ocupações e ofícios abordados foram passando ao longo do tempo; conceito fundamental que percorre o livro todo.
Palavras-chave: Trabalho artesanal. Tempo. Identidades. Culturas.
Abstract
Crafts and Knowledge of Contemporary Work is a collection organized by two experienced teachers on the theme of work that has the collaboration of several authors and the results of their research. Escaping the traditional analyzes of factories, banks and other central branches of economic activity, the book discusses an economic object little explored in academic studies: artisanal work. The following crafts were presented: telegraphist, tailor, seamstress, shoemaker, tannery, ceramist, joiner, tiler, knife sharpener, midwife. A plurality and heterogeneity that connects in the resistance to the industrial world, both in the boldness in not accepting the control of Taylorist time, as in continuing to carry out a job where manual skill and creativity are required. In this way, it does not deal with capitalist production on a large scale, on the contrary, it portrays a residual aspect to it, presenting through the memories of the workers of artisanal crafts, how they resist the logic of capital in carrying out their work. The collection is an important contribution to the reflections in the field of Sociology of Work, addressing from the objective aspects of work activities as well as the subjective effects of labor relations in the exercise of crafts. The texts in this collection make a record of the profound changes that many occupations and crafts covered have been passing through time, a fundamental concept that runs through the entire book.
Keywords: Artisanal work. Time. Identities. Cultures.
A Sociologia do Trabalho é, sem dúvida, uma das mais tradicionais áreas de conhecimento especializado nas Ciências Sociais, sofrendo muitas transformações nas últimas décadas. Não obstante a importância que o mundo do trabalho continua a ter na vida econômica e social, houve um considerável deslocamento nos temas de investigação nas Ciências Sociais e novas agendas de pesquisa se formaram, talvez por conta das mudanças políticas decorrentes dos movimentos de 1968, talvez pela emergência de movimentos sociais e mudanças nos tradicionais atores, como os sindicatos e os partidos políticos, talvez pela queda do mundo soviético e socialista, enfim, talvez por tantas e tantas transformações nas formas de sociabilidade e comunicação social. Certo é que a chamada reestruturação produtiva, a intensificação dos processos de internacionalização da economia, os novos padrões de comunicação reconfiguraram o mundo do trabalho. Alterações advindas da inteligência artificial (IA), da robótica, da internet das coisas, dos veículos autônomos, da impressão 3D, da nano e da biotecnologia, são algumas das inovações que causaram e causam impactos que transformam pessoas e organizações, agravando o isolamento e a exclusão de amplos setores da sociedade.
No entanto essas novas formas de organização das linhas de montagem, das empresas, dos processos produtivos, em escala local e mundial, não eliminaram o interesse dos pesquisadores pela relevância do trabalho, dos trabalhadores e suas condições de vida e trabalho, mas, por certo, tais preocupações estão mais diluídas e coexistem com uma pluralidade considerável de temas contemporâneos como a violência, as relações de gênero, a criminalidade, a retomada do pensamento religioso, as novas formas de organização familiar, novos atores políticos etc.
É em meio a esse cenário que tem relevância o livro “Ofícios e Saberes”, coletânea organizada por duas professoras experientes na temática do trabalho. Motivadas por esse turbilhão de mudanças que têm afetado o mundo do trabalho, colocaram-se o desafio de trazer para os leitores um painel sobre alguns ofícios. Não se propuseram a produzir uma obra que abrangesse um infindável número de ofícios, existentes ou extintos, mas, por meio da colaboração de diversos autores que assinam os capítulos, buscaram evocar, descrever, rememorar as condições em que se encontram alguns deles.
O objetivo declarado, portanto, da obra é resgatar e registrar trajetórias profissionais fundadas em ofícios, através de relatos de experiências e desafios enfrentados pelos respectivos trabalhadores de cada um deles. A metodologia usada pelos autores dos capítulos foi a pesquisa bibliográfica e documental, complementada por informações de pesquisa de campo (entrevistas e relatos), bem como, aspectos das memórias dos sujeitos. As organizadoras afirmam que os relatos foram centrais, pois traduziram histórias de vida e revelaram aspectos valorizados pelos próprios trabalhadores.
Como toda obra coletiva, tratando de ocupações, personagens, situações de trabalho bem diferentes, o livro poderia se tornar um aglomerado de textos disformes, mas as organizadoras tentaram dar um tom de alinhamento para os autores, no qual se identifica a preocupação de todos de fazer um resgate histórico dos ofícios tratados, as condições atuais em que se encontram, as relações que mantêm com os processos de modernização que atingem a economia, os processos de aprendizagem e ainda um pouco das percepções e da memória de profissionais que exerciam os ofícios.
Na verdade, o livro traz a discussão de um objeto pouco explorado nas Ciências Sociais: o trabalho artesanal. A proposta sem dúvida soa interessante aos pesquisadores, estudiosos e até mesmo ativistas políticos, envoltos nas discussões do tema trabalho. Há uma considerável pluralidade de temas e abordagens nos diversos capítulos do livro quanto ao arcabouço teórico para tratar das novidades no mundo do trabalho. O sociólogo Ricardo Antunes (2005), entre outros, tem constatado e analisado as profundas dimensões pelas quais têm passado as relações laborais nas últimas décadas, sobretudo a partir dos anos 1990 e que, sem dúvida, servem de pano de fundo para o que se passa com os ofícios.
Uma referência presente para as autoras é o livro de Richard Sennett (2009) que mergulha profundamente nesse terreno da relação do artesão, do artífice com o seu fazer, com a sua obra. A utilização desses dois autores, Sennett e Antunes, tão diferentes em suas perspectivas teóricas e metodológicas, já é uma primeira provocação do livro que vale destacar. Desde esse momento, fica claro ao leitor que não se trata de uma obra que se encaixa facilmente nos temas clássicos de uma Sociologia do Trabalho, mas enfrenta o pouco considerado tema dos “ofícios”, ou seja, das atividades ancoradas no saber-fazer, ainda remanescentes num ambiente capitalista cada vez mais industrializado, automatizado, e que produz cada vez mais trabalhadores destituídos de habilidades, relegados às condições mais ínfimas de trabalho, como têm apontado os autores que analisam o chamado “precariado” (STANDING, 2014)
As organizadoras do livro não impõem ao leitor uma concepção do que seja um ofício, permitindo uma verdadeira inquietação epistemológica através dos capítulos. Nesse sentido, o livro trata de uma questão que atravessa áreas variadas de conhecimento como a Sociologia do Trabalho, a Sociologia das Profissões e a Sociologia Econômica. A tentativa de encaixar em áreas da Sociologia talvez seja o menos importante para a obra, a contribuição que se destaca é a de preencher uma lacuna deixada pela concentração de estudos com foco na fábrica e nos trabalhadores industriais.
Depois de um capítulo introdutório feito pelas organizadoras que baliza as diretrizes da coletânea, e antes de tratar especificamente dos ofícios, o segundo capítulo do livro, “Ofícios e Saberes na História dos Artífices da Bahia do século XIX”, traz uma abordagem histórica quanto aos artífices na Bahia do século XIX. Não se trata de mera curiosidade, mas de um resgate de como os ofícios eram tratados em nossa história colonial e imperial a partir dos dispositivos sociais e sobretudo legais herdados de Portugal. Em que pese a influência das matrizes portuguesas nesse terreno, é importante notar que “dentre as várias particularidades entre os dois sistemas, uma sobressai: a mão de obra dos ofícios no Brasil foi majoritariamente negra” (p. 29).
Esse traço essencial das corporações que existiram no século XIX na Bahia também expressava muito da organização mesma da sociedade e suas relações de dominação. É interessante que os ofícios mecânicos somente se estabeleceram graças à mão de obra escrava, com os “negros de ganho”, que eram os escravos que tinham licença para trabalhar, dividindo seus lucros com os senhores. No capítulo, a autora mostra como se fez presente o preconceito para com o trabalho manual na sociedade soteropolitana. Embora os negros cativos não pudessem exercer ou sequer aprender o trabalho mecânico, isso no papel, na prática o realizavam. Essa situação criou uma associação do trabalho mecânico com os negros, gerando um menor status para esse tipo de trabalho. Aos brancos, era reservada uma garantia de educação formal e empregos públicos através da cor da pele. Enquanto os artífices brancos queriam formar filhos doutores, os negros queriam assegurar a transmissão do ofício por gerações, uma clara intenção de precaução contra barreiras que o jovem iria ter que ultrapassar ao buscar profissões liberais. Em boa medida, essa condição dos negros no trabalho manual, artesanal, só seria alterada com a forte presença dos imigrantes, sobretudo europeus, a partir do final do século XIX.
Foram abordados, no livro, os seguintes ofícios: telegrafista, alfaiate, costureira, sapateiro, curtumeiro, ceramista, marceneiro, pedreiro, ladrilheiro, amolador de facas, parteira. Como se pode notar, estão reunidos ofícios que poderiam ser considerados tradicionais (como os alfaiates, os sapateiros, os ceramistas, os marceneiros etc.) e outros que ocupam ou ocuparam uma condição menos reconhecida como um ofício (curtumeiro, amolador de facas, parteira). É essa pluralidade de trabalhadores, em condições muito distintas, não só no passado como também no presente, que nos incita a uma verdadeira viagem pelo mundo do trabalho, num percurso que avança sobre condições de trabalho bastante heterogêneas.
Mas não é de um mundo do trabalho da fábrica, da produção em grande escala, de que tratam os textos, e sim de um mundo quase que residual, formado por ofícios, por habilidades artesanais nas quais os trabalhadores ou artesãos ainda tinham uma relação com o seu fazer, suas habilidades, seus objetos que foram gradativamente sendo solapados pelos processos industriais, pelas inovações tecnológicas, pela reorganização do mundo produtivo.
Como vários capítulos mostram, não se trata apenas de reconfigurações materiais, de deslocamentos de espaços de trabalho, divisão de tarefas, por vezes, perda de habilidades roubadas pelas máquinas, transferidas para o capital morto, mas também de subjetividades que tiveram que se recompor, se refazer. São os telegrafistas que desaparecem completamente no mundo das novas formas de comunicação e só restam as memórias cada vez mais distantes e melancólicas dos remanescentes operadores. São os alfaiates que constatam o esvaziamento de seus ateliês por parte dos homens que agora frequentam as lojas de roupas prontas, produzidas em escala industrial, desfilando os modelos cada vez mais padronizados. O longo aprendizado e o acúmulo de experiência no seu fazer, que imprimiam um toque pessoal na roupa e na relação do alfaiate com o seu cliente, se ainda existem, não deixam de proporcionar um certo gosto amargo de um passado que foi mais generoso do que tem sido o presente. São os muitos ceramistas que ainda conservam um fazer que se aproxima da produção artística, da peça única que traz impressa a marca de sua autoria, que enfrentam a concorrência, as investidas de um neotaylorismo que move, por exemplo, a indústria chinesa de cerâmica.
Percorrendo os vários capítulos se constata que esse mundo dos ofícios, do artesão que possuía autonomia de trabalho, de ganho, de organização da vida, de produção de uma subjetividade estreitamente ligada ao seu universo quase que particular da oficina, é um mundo que está sendo solapado pelos processos industriais, reorganizado pelos instrumentos, pelos novos materiais, pela concorrência do mercado. Muitos desses ofícios não desapareceram, mas passaram a ter uma sobrevivência difícil quanto à autonomia e, em geral, os profissionais estão sendo engolidos, tragados para a condição de trabalhadores assalariados. É emblemático o caso dos sapateiros. O capítulo que trata deles mais falou de operários que trabalham nas fábricas de calçados como assalariados, nas linhas de montagem, do que propriamente de sapateiros, enquanto artesãos que sabiam e realizavam o processo de produção completo de um calçado, de preparação de um solado para remendar ou de um salto para ser colocado.
Com o esvaziamento de muitos ofícios, com o desaparecimento de muitos ateliês e oficinas, com a incorporação de muitos dos antigos artesãos ao mundo das fábricas, não foram apenas subjetividades desses trabalhadores que se dissiparam, mas foi também perdida uma dose de relações sociais primárias, de territorialidades como referência para a vida das pessoas: não há mais o sapateiro do bairro, o alfaiate que todos conheciam, a costureira que fazia os vestidos das moças e as roupas das crianças, o pedreiro que havia construído muitas casas na localidade, o marceneiro que de sua oficina fazia exalar o forte cheiro de serragem que todos do bairro sentiam. Se não foram arrastados para o chão das fábricas, muitos destes trabalhadores viraram empregados de lojas de roupas ou de empresas franqueadas que prestam serviços de costura ou de sapataria, por exemplo.
O tempo, um tema clássico dos estudos sobre o trabalho, percorre o livro todo. Emerge, por exemplo, quando se menciona no primeiro capítulo a permanência do taylorismo como forma de organização do trabalho. A marca que define o taylorismo ao longo da história é o controle rígido dos tempos e dos movimentos, controlando os corpos nas fábricas. Para além disso, o taylorismo tornou-se um paradigma de organização da vida durante o período do capitalismo industrial, podendo ser observadas sobrevivências até hoje (HARVEY, 1993). A partir do trabalho industrial, organizou-se um modo da vida social em que o dia passou a ser todo racionalizado, calculado, pensado através de métricas.
Ao ter como tema central o ofício, o trabalho artesanal, o livro problematiza um objeto que escapa ao controle do taylorismo, pois, diferente do operário, o artesão é dono do seu tempo de trabalho. Nesse sentido, não há como deixar de lembrar as lições de Thompson (1998) quanto à passagem do trabalho no âmbito das antigas corporações de ofício para o interior das fábricas e a submissão dos trabalhadores a uma nova disciplina do tempo, a novas formas de divisão do trabalho, supervisão, controle de horário etc. Se, ao longo do tempo, se desenvolveram inúmeros sistemas de gerenciamento do trabalho, por meio, sobretudo, de tecnologias de controle dos trabalhadores nas fábricas – e nas empresas de modo geral –, de certa maneira, o trabalho artesanal representa uma contraposição não somente ao trabalho fabril, mas a todo um sistema que gere a vida, sobretudo quanto ao controle do próprio tempo de trabalho.
A característica de ser dono do próprio trabalho é um dos traços principais da identidade do ofício de artesão, ou mesmo, nas palavras de Sennett (2009), do “artífice”. O seu saber-fazer está diretamente relacionado ao fato de não estar debaixo de um controle rígido do tempo, ao contrário, seu trabalho necessita de uma outra forma de pensar e agir que, por sua vez, foge a uma racionalização da gerência científica. O “ser artesão” tem como exigência uma fuga ao processo de racionalização de trabalho imposto pelo taylorismo, uma resistência que exige um outro estilo de vida que não aquele do operário fabril. Portanto, também podemos inserir a obra abordada por esta resenha dentro do conjunto de pesquisas que alcança um mundo do trabalho para além da fábrica (SANTANA; RAMALHO, 2004).
O livro expõe, assim, essas encruzilhadas em que se encontram os ofícios ali tratados. Um certo pessimismo e uma certa nostalgia se apresentam nas falas dos trabalhadores face a um mundo do trabalho que se refaz com velocidade alucinante, que esvazia inclusive o aprendizado no local mesmo do trabalho, no contato pessoal do oficial com o aprendiz, em favor de agências especializadas, formais, que legitimam o exercício dos ofícios. Diante de tais mudanças – que o avanço do capitalismo tem tornado avassaladoras para os ofícios, para o trabalho artesanal, para o trabalhador que possua autonomia no seu saber-fazer, controle sobre o processo completo de produção, apontando para um futuro incerto – o livro é instigante pelas possibilidades de resistência, de sobrevivência, de alguns desses e de outros ofícios.
É certo que uma coletânea que reúne diversos autores escrevendo sobre ofícios, artesãos, sobre habilidades de trabalho tão diversas, não poderia deixar de apresentar também nuances na profundidade e alcance dos textos. Um dos capítulos que proporciona ao leitor uma verdadeira imersão em um ofício bastante desconhecido é o que trata da produção dos azulejos hidráulicos. Ainda na atualidade, os processos de confecção desses objetos são bastante artesanais, dotados de etapas que não se alteraram há décadas. Os modernos processos de produção industrial que competem com essa produção parecem não conseguir, no entanto, substituir, apagar o encanto que tem um azulejo hidráulico produzido artesanalmente. Esse capítulo, assim como o que trata dos ceramistas, é o que mais traz à tona os conflitos, os impasses entre uma produção de larga escala, padronizada, anônima, impessoal, proporcionada pela mecanização do trabalho, pela indústria, e a produção artesanal, em que reside alguma impressão de pessoalidade no resultado do trabalho.
Os capítulos também despertam o interesse em torno da reflexão sobre a presença feminina nos ofícios. Os que foram tratados no livro mostram uma presença historicamente modesta das mulheres ou quase que confinada à condição das costureiras, das parteiras. Sua presença é quase que inexistente entre pedreiros, alfaiates, azulejistas, sapateiros, curtumeiros, marceneiros. Em alguns casos, o processo de industrialização, além de esvaziar a oficina, o ofício, o artesanato, remodelou a produção e incorporou as mulheres, como foi o caso da indústria de calçados, ainda que na condição de trabalhadoras assalariadas e sem necessariamente as habilidades que se referiam ao ofício de sapateiro enquanto artesão, que provia seu sustento de forma autônoma.
Se muitos dos ofícios que foram objeto de reflexão trazem essa marca de uma forte presença masculina, isso não significa que não existam outros tantos que tenham uma presença das mulheres. Nesse sentido, o livro motiva outros pesquisadores a refletir sobre os muitos ofícios, formas de trabalho artesanais, a partir de um recorte de gênero. Basta lembrar as quituteiras nos cenários urbanos do século XIX (DIAS, 1995) ou então a forte presença pelo Brasil afora das rendeiras, bordadeiras, das que fazem bijuterias com os mais variados materiais.
Além de todas as inquietações intelectuais que o livro possibilita, o leitor tem reunidas imagens, fotografias, obras de arte (há excelentes telas como de Tarsila do Amaral, Fernando Botero) sobre os locais de trabalho, sobre o resultado do trabalho dos artesãos e representações desses trabalhadores que emprestam ao livro uma certa leveza, talvez um certo alívio depois de convivermos pelo menos por algum tempo e à distância com essas vidas, com esses trabalhadores pertencentes a ofícios que foram extintos, a ofícios que permanecem – mas foram reorientados – e a ofícios que a duras penas continuam presentes.
Por fim, a contribuição aos estudos sobre o trabalho é notória, pois o livro traz um conjunto de pesquisas sobre o trabalho artesanal, objeto pouco explorado na área. A obra apresenta a própria dificuldade que é fazer pesquisa sobre esse objeto, uma vez que pouco se investiga sobre ele. Dessa maneira, as autoras tiveram ousadia ao organizarem um livro que reúne pesquisas que contribuem de forma criativa ao tema do trabalho em nosso país.
Referências
ANTUNES, Ricardo. O caracol e sua concha: ensaios sobre a morfologia do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2005.
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, ١٩٩٥.
HARVEY, David. Condição Pós-moderna. Paulo: Edições Loyola, 1993.
SANTANA, Marco Aurélio; RAMALHO, José Ricardo (org.). Além da fábrica. São Paulo: Boitempo, ٢٠٠٤.
SENNETT, Richard. O artífice. Rio de Janeiro: Record, 2009.
STANDING, Guy. O precariado: a nova classe perigosa. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, ١٩٩٨.
Recebido em 12/05/2020
Aceito em 04/06/2020
1* Sociólogo, possui pós-doutorado, doutorado e mestrado em Sociologia pela USP e é pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV-USP). E-mail: leonardo_ostronoff@yahoo.com.br
2** Sociólogo, doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV-USP). Autor do livro O Trabalho dos Presos e a Privatização das Prisões (Brazil Publishing, 2020). E-mail: fersalla@gmail.com
ISSN 1517-5901 (online)
POLÍTICA & TRABALHO
Revista de Ciências Sociais, nº 53, Junho/Dezembro de 2020, p. 302-308